— Está se referindo ao meu iminente estado conjugal, não é?



— Claro — respondeu André, depois de uma breve pausa.



Angelique se perguntou, irritada, qual era o problema com ele, por que se mostrava tão grosseiro e distante, como ocorrera na noite anterior, quando tocou piano por um longo tempo, mas sem que a música tivesse o entusiasmo habitual.



André exibia olheiras e o rosto parecia mais encovado do que o habitual.



— Tem algum problema, meu caro amigo?



— Não, minha cara Angelique, absolutamente nenhum.



Mentiroso, pensou ela. Por que os homens mentem tanto, para as outras pessoas e para si mesmos?



— Teve êxito em sua missão?



— Sim e não.



Ele sabia que Angelique girava num espeto e, de repente, teve vontade de fazer com que ela se contorcesse, abanar as chamas para fazê-la gritar, pagar por Hana.





Você é louco, disse a si mesmo. A culpa não é de Angelique. Isso é verdade, mas foi por sua causa que ontem à noite visitei a casa das Três Carpas, falei com Raiko; enquanto conversávamos, em nossa mistura de japonês, inglês e pidgin senti de repente que aquela outra noite não passara de um pesadelo terrível e que a qualquer momento Hana apareceria, com um riso nos olhos, meu coração palpitaria, como sempre, deixaríamos Raiko, tomaríamos um banho juntos, comeríamos em particular e faríamos amor sem pressa. Quando compreendi a verdade, que Hana se fora para sempre, tive a sensação de que vermes fervilhavam em minhas entranhas e cérebro e quase vomitei.



— Raiko, preciso saber quem eram os três clientes.





— Sinto muito, Furansu-san. Já disse antes: a mama-san dela morreu, pessoas da casa se dispersaram, a Estalagem dos Quarenta e Sete Ronin foi destruída.



— Deve haver algum meio de descobrir...



— Não há nenhum. Sinto muito.



— Então me conte a verdade... a verdade de como ela morreu.



— Com sua faca na garganta. Sinto muito.





— Ela se matou? Haraquiri?



Raiko respondera com a mesma voz paciente, a mesma voz que usara para contar a mesma história, dar as mesmas respostas às mesmas perguntas, uma dezena de vezes antes:





— O haraquiri é o meio antigo, o meio honrado, o único meio de expiar um erro cometido. Hana traiu a você e a nós, a todos os clientes, a si mesma... era esse o seu karma nesta vida. Não há mais nada a dizer. Sinto muito. Deixe-a descansar. O quadragésimo dia depois de sua morte, seu dia de kami, quando uma pessoa renasce ou se torna um kami, já passou. Deixe seu kami, seu espírito descansar. Agora, que outra coisa posso fazer por você?



Angelique sentava empertigada, como fora ensinada desde a infância, angustiada, observando-o, uma das mãos no colo, a outra se abanando contra as moscas. Indagara duas vezes “o que significa sim e não?”, mas André não a ouviu, aparentemente em transe. Pouco antes de deixar Paris, seu tio ficara no mesmo estado e a tia comentara:



— Deixe-o em paz. Quem sabe que demônios habitam a mente de um homem quando perturbado?



— Qual é o problema que ele tem?





— Ah, chérie, toda a vida é um problema quando o que se ganha não dá para tudo o que se precisa. Os impostos nos sufocam, Paris é uma cloaca de arrogância e ausência de moral, a França desmorona outra vez, o franco compra cada vez menos, o preço do pão dobrou em um ano e meio. Deixe-o em paz. O pobre coitado faz o melhor que pode.



Angelique suspirou. É isso mesmo, um pobre coitado. Amanhã farei o melhor que puder. Falarei com Malcolm, que acertará o pagamento das dívidas. Um homem tão bom não pode continuar na prisão dos devedores. De quanto serão suas dívidas? Uns poucos luíses...



Ela viu André voltar a si e fitá-la.



— Sim e não, André? O que isso significa?



— Sim, elas têm um medicamento, mas não, você ainda não pode tomá-lo porque...



— Mas por que você...





Mon Dieu, seja paciente, e espere até eu terminar de contar o que a mama-san me disse. Não pode ter o medicamento agora porque não deve ser tomado antes do trigésimo dia, e de novo no trigésimo quinto, e também porque a beberagem... uma infusão de ervas... deve ser preparada na hora, a cada vez.





As palavras liquidaram a simplicidade do plano de Angelique; André já deveria ter lhe dado aquela altura a poção ou o pó que obtivera na noite anterior, ela tomaria de imediato e iria para a cama, alegando que se sentia com depressão. Voilá! Uma pequena dor de barriga e, em poucas horas, um dia no máximo, tudo ficaria perfeito.



Por um momento, Angelique sentiu que todo o seu mundo se distorcia, mas conseguiu aplicar um freio: Pare com isso! Está sozinha. É a heroína, apanhada pelas forças do mal. Deve ser forte, tem de lutar sozinha... mas pode vencê-las!



— Trinta dias?



A voz saiu sufocada.



— Isso mesmo, e repete no trigésimo quinto. Você precisa ser pontual e...



— O que acontece depois, André? Age rápido?



— Pelo amor de Deus, deixe-me acabar. Ela disse que costuma funcionar de lmediato. A segunda dose nem sempre é necessária.



— Não há nada que eu possa tomar imediatamente?



— Não. Absolutamente nada.



— Mas ela disse que a tal beberagem dá certo em todas as ocasiões?



— Disse, sim.



A resposta de Raiko a tal pergunta fora outra:



— Nove vezes em dez. Se o medicamento não funcionar, há outros meios.



— Refere-se a um médico?



— Isso mesmo. A poção geralmente funciona, mas é cara. Devo pagar ao fabricante antes que ele me dê. Precisa comprar as ervas...



André tornou a se concentrar agora em Angelique.





— A mama-san disse que era eficaz... mas cara.



— Eficaz? Todas as vezes? E não é perigosa?



— Todas as vezes, e não é perigosa. Mas é cara. Ela tem de pagar adiantado ao farmacêutico, para que ele compre as ervas.



— Por favor, pague para mim, e dentro de poucos dias o reembolsarei três vezes mais.



Os lábios de André contraíram-se numa linha fina.



— Já adiantei vinte luíses. Não sou rico.



— Mas quanto pode custar um pequeno medicamento, André, um medicamento tão corriqueiro? Não pode ser muito caro, não é?



— Ela disse que para uma moça precisando de tal ajuda, uma ajuda secreta. Que importância tem o custo?



— Concordo, meu caro André. — Angelique empurrou esse problema para o lado, com a maior cordialidade, ao mesmo tempo em que endurecia seu coração por ele ser tão mercenário. — Dentro de trinta dias poderei pagar qualquer coisa, da mesada que Malcolm me prometeu. De qualquer forma, tenho certeza de que você poderá providenciar tudo, já que é um homem tão sensato. Obrigada, meu caro amigo. Por favor, diga a ela que minha regra deveria começar daqui a oito dias, exatamente. Quando receberá o medicamento?



— Já lhe disse, um dia antes do trigésimo. Posso ir buscar pessoalmente ou mandar alguém.



— E... o desconforto? Por quanto tempo deve durar?



André sentia-se muito cansado, constrangido, e agora furioso por ter se deixado envolver, por maiores que fossem as vantagens potenciais e permanentes.



— Ela me disse que depende da mulher, da idade, se já fez isso antes. Se nunca fez, deve ser fácil.



— Mas quantos dias de mal-estar?





Mon Dieu, ela não disse e também não perguntei. Se tem perguntas específicas, escreva-as, e tentarei obter as respostas. E, agora, se me dá licença...



André levantou-se. No mesmo instante, ela permitiu que seus olhos se enchessem de lágrimas.



— Oh, André, obrigada! Tem sido tão gentil em me ajudar, e lamento muito tê-lo incomodado!



Ela desatou a chorar, satisfeita por vê-lo se derreter de novo.



— Não chore, Angelique. Não é culpa sua, mas sim... peço desculpas. De ser terrível para você, mas não se preocupe, por favor. Irei buscar o medicamento no momento certo e farei tudo o que puder para ajudar. Basta escrever as perguntas e trarei as respostas em poucos dias. Sinto muito... é que não tenho me sentido bem ultimamente...



Angelique fingiu confortá-lo. Depois que ele se retirou, avaliou as suas opções, olhando pelas cortinas sujas para a High Street, sem ver nada.



Trinta dias? Não importa. Posso viver com a demora, nada vai atrapalhar, pensou ela, várias vezes, querendo convencer a si mesma. Mais vinte dias não fará a menor diferença.



Para se certificar, ela pegou seu diário, abriu-o, começou a contar. Depois contou e chegou ao mesmo dia, 7 de novembro, sexta-feira. Dia de são Teodoro.



Mesmo assim acenderei uma vela para ele todos os domingos. Não há necessidade de marcar o dia, pensou ela, um tremor lhe percorrendo o corpo. Mesmo assim, fez a pequena cruz no canto. E a confissão?



Deus compreende. Ele compreende tudo.



Posso esperar... mas o que fazer se...





Se não der certo ou se André ficar doente ou se desaparecer ou se morrer ou se a mama-san não cumprir o prometido ou qualquer outra coisa dentre mil e um contratempos?



Isso a inquietou. Abalou sua determinação. Lágrimas de verdade molharam as faces. E, de repente, Angelique recordou o que o pai dissera uma ocasião, há muitos anos, pouco antes de abandoná-la e ao irmão menor, em Paris...





— Isso mesmo, ele nos abandonou — disse ela, em voz alta, a primeira vez em que articulava essa verdade. — Não se pode chamar de outra coisa. E por tudo o que sei agora, Mon Dieu, provavelmente foi melhor assim. Ele teria nos vendido, pelo menos me vendido.



O pai citara seu ídolo, Napoleão Bonaparte:



— Um general sábio sempre tem uma linha de retirada planejada, da qual desfechará o golpe da vitória.



Qual é a minha linha de retirada?





Foi nesse instante que uma coisa que André Poncin lhe dissera, semanas antes, aflorou em sua mente. Ela sorriu e toda a angústia se desvaneceu.













Phillip Tyrer dava os retoques finais no esboço da resposta de Sir William ao roju. Ao contrário das comunicações anteriores, Sir William enviaria o original em inglês e uma cópia em holandês, a ser preparada por Johann.



— Aqui está, Johann, já acabei.



Ele arrematou com um floreado no “B” final de Sir William Aylesbury, K.C.B.





Scheiss in mein Hut! — exclamou Johann, impressionado. — É a melhor caligrafia que já vi. Não é de admirar que Wee Willie queira que você copie todos Os despachos de Londres.





Shigata ga nai! — disse Tyrer, sem pensar. Não importa.



— Está mesmo se empenhando em seu japonês?



— É verdade, e gostando muito, mas não diga nada a Willie. O que acha da manobra dele?



Johann suspirou.



Com os japas, eu não acho nada. Mas tenho a impressão de que ele ficou é de miolo mole com os rodeios dos japas.



A mensagem dizia:



À Sua Excelência, Nori Anjo, chefe roju. Recebi seu despacho de ontem e comunico que está totalmente rejeitado. Se não pagarem a parcela combinada da indenização pelo assassinato de dois soldados britânicos no prazo marcado, a quantia devida será quadruplicada a cada dia de atraso.



Lamento saber que não controlam seu calendário. Corrigirei essa situação de imediato. Partirei para Quioto em minha nave capitânia, com uma esquadra de escolta, daqui a doze dias, a contar de hoje. Atracarei em Osaca. Com uma escolta montada e o obrigatório canhão de sessenta libras, de nossa real artilharia, para as salvas reais, seguirei para Quioto, em busca de uma reparação para vocês de sua jovem majestade, o xógum Nobusada ou mesmo, se ele não estiver disponível, de sua alteza imperial, o imperador Komei, prometendo honras reais, com uma salva de vinte e um tiros de canhão. Por favor, comunique-lhes nossa chegada iminente, (assinado) Ministro e embaixador de sua majestade britânica, Sir William Aylesbury, K.C.B....





— Imperador? Que imperador?— indagou Johann, irritado.— Só há um midaco ou micado ou qualquer outra coisa parecida, que é uma espécie de papa menor, sem muito poder, ao contrário de Pio IX, que se intromete, conspira e faz política, sempre desejando, como todos os Gottverdampt católicos, nos jogar na fogueira!



— Ora, Johann, eles não são tão ruins assim. Agora, os católicos ingleses já podem votar, e até mesmo concorrer ao Parlamento, como todos os outros.



— Quero mais que todos os católicos peguem uma boa sífilis. Sou suíço, e não esquecemos.



— Então por que todos os guardas pessoais do papa são suíços?



— São mercenários católicos. — Johann deu de ombros. — Dê-me logo uma cópia do despacho e começarei a trabalhar.



— Sir Willie diz que não vai renovar o contrato.



— É tempo de seguir adiante, deixar o campo aberto para os mais jovens e mais espertos. — Johann exibiu um sorriso radiante. — Ou seja, você.



— Isso não é nada engraçado. Por favor, mande Nakama entrar. Creio que ele está no jardim. . ,



— Não confie nesse miserável, Phillip. É melhor vigiá-lo com a máxima atenção.



Tyrer se perguntou o que Johann diria se soubesse da verdade sobre Nakama. Um momento depois, Hiraga abriu a porta.





Hai, Taira-san?





Ikimasho, Nakama-sensei, meu velho, hai? Vamos embora, está bem?



Tyrer ainda se sentia admirado com a mudança.





Quando Hiraga chegou naquela manhã, ao raiar o dia, não usava os trajes sujos e puídos e não exibia o corte de cabelo dos samurais: os cabelos curtos eram agora quase iguais a qualquer plebeu. Em seu quimono impecável, engomado, mas comum, com um volumoso chapéu pendendo nas costas, preso pelo cordão, e sandálias com tiras de ouro, ele parecia o filho de um próspero mercador.



— Por Deus, Nakama, você está ótimo assim! — exclamara ele. — O cabelo desse jeito lhe assenta muito melhor!





— Ah, Taira-san — dissera Hiraga, hesitante, com uma humildade simulada, seguindo a trama que formulara junto com Ori —, achar que o que me falar, me ajudar a não querer ser samurai, parar de ser samurai. Breve voltar Choshu, virar camponês, como avô ou trabalhar fábrica cerveja ou saquê.



— Renunciar a ser samurai? Isso é possível?





Hai. Possível. Por favor, não querer dizer mais, sim?



— Está certo. Só quero acrescentar que é uma sábia decisão. Meus parabéns. Involuntariamente, Hiraga passara a mão sobre a cabeça, sentira a estranheza dos cabelos espetando.



— Breve crescer cabelo, Taira-san, como seu.



— Por que não?





Tyrer usava seus cabelos, naturalmente ondulados, até a altura dos ombros. Ao contrário da maioria, era meticuloso com sua higiene pessoal: havia sempre um petti point pendurado por cima de sua cama, bordado pela mãe, dizendo que “A higiene vem logo depois da pureza”.



— Como estão seus machucados?



— Eu esquecer.



— Eu esqueci.





— Ah, obrigado, eu esqueci. Algumas boas notícias, Taira-san. — Com muitos floreios, Hiraga comunicou que estivera na Yoshiwara e arrumara Fujiko para aquela noite. — Ela sua. Bom, neh?



Por um momento, Tyrer ficara atônito, incapaz de falar. Depois, num súbito impulso, apertara a mão de Hiraga.



— Obrigado, meu caro amigo, muito obrigado!



Ele se recostara, pegara o cachimbo, oferecera um pouco de fumo a Hiraga, que recusara, fazendo esforço para não rir.



— Isso é maravilhoso! — A mente de Tyrer já se projetara para o encontro amoroso, o coração palpitando, a virilidade consciente. — Por Deus, que coisa sensacional!



Tyrer encontrara alguma dificuldade para pôr de lado os pensamentos eróticos e se concentrar na agenda do dia.



— Já arrumou algum lugar para ficar na aldeia?



— Sim. Por favor, vamos agora, sim?



Durante a caminhada até a aldeia japonesa, os dois sempre tomando cuidado para consevar a voz baixa e não falar em inglês quando alguém pudesse ouvir, Tyrer voltara a interrogar Hiraga, minerando diamantes, como os nomes do xógum e do imperador.



Hiragat o levou para a casa do shoya ele inspecionara a loja e o quarto pequeno em que Hiraga deveria ficar. Voltara para a legação satisfeito e tranquilizado.



— Notou como quase ninguém lhe prestou atenção na rua, nem mesmo os soldados, agora que não parece mais um samurai?



— Sim, Taira-san. Pode me ajudar, por favor?



— Qualquer coisa ao meu alcance. O que deseja?





— Usar roupas suas, ficar mais parecido com gai-jin, sim?



— Grande idéia!



Chegando à legação, Tyrer seguira direto para falar com Sir William mais excitado, dando-lhe os nomes do xógum e do imperador.





— Achei que ia querer saber logo, senhor. E tenho outra informação, e creio que compreendi corretamente: ele diz que todos os japoneses, até mesmo os daimios, precisam de permissão para visitar Quioto, onde vive o imperador.





— O que são os daimios?





— É como eles chamam seus reis, senhor. Mas todos, até mesmo eles, devem obter permissão para visitar Quioto... ele diz que o Bakufu, que é outro nome para xogunato, como seu serviço público civil, tem medo de permitir o livre acesso a qualquer um. — Tyrer bem que tentara manter a calma, mas as palavras saíram aos borbotões. — Se isso é verdade, e se o xógum se encontra em Quioto no momento, e o imperador reside ali em caráter permanente, se todo o poder se concentra agora na cidade... se o senhor fosse até lá, isso não significa que passaria por cima do Bakufu?



— Uma lógica inspirada — respondeu Sir William, gentilmente, com um suspiro de satisfação, pois já chegara a essa conclusão muito antes da sugestão de Tyrer. — Phillip, creio que vou reformular meu despacho. Volte daqui a uma hora... Fez um bom trabalho.



— Obrigado, senhor. — Tyrer falara então sobre o “novo” Nakama, com um novo corte de cabelo. — Creio que se pudéssemos persuadi-lo a usar roupas européias, ele se tornaria ainda mais maleável... e enquanto ele me ensina japonês, é claro que eu também lhe ensino inglês.



— Uma idéia excelente, Phillip.



— Obrigado, senhor. Providenciarei tudo imediatamente. Posso mandar a conta para nosso cambista pagar?



Um pouco do bom humor de Sir William desaparecera.



— Não temos um excesso de fundos, Phillip, e o Ministério das Finanças... Está bem. Mas apenas um traje, e você é responsável para que a conta seja modesta.



Tyrer se retirara, e agora que concluíra seu trabalho no despacho, levara Hiraga ao alfaiate chinês.



A High Street não se encontrava muito apinhada àquela hora do dia, o da tarde, a maioria dos homens nos escritórios, ainda fazendo a sesta ou no clube. Uns poucos bêbados se agrupavam em lugares abrigados no cais, pois o vento ainda soprava forte. Mais tarde, haveria uma partida de futebol, marinha contra o exército, no campo de desfile, e Tyrer aguardava o jogo com ansiedade. Sentia-se assim pelo encontro que teria com Jamie McFay e que não pudera recusar após visitar o alfaiate.



— Ele é o chefe da Struan aqui, Nakama-san, descobriu de alguma forma a sua presença, e que sabe falar inglês. Mas merece confiança.



— So ka? Struan? O homem que vai casar?





— Quer dizer que os criados já lhe falaram sobre a festa de noivado, hem? McFay é apenas o chefe do escritório aqui. O sr. Struan, o tai-pan, é quem vai casar. Aquele é o seu prédio, armazém, escritório e residência.



— So ka? — Hiraga estudou o prédio. Concluiu que um ataque seria difícil, e a simples entrada seria um problema. As janelas mais baixas eram gradeadas. — Esse Struan, também sua mulher, ficam aqui?



A mente de Tyrer se desviara para Fujiko e ele respondeu, distraído:



— Struan fica, não tenho certeza sobre ela. Em Londres, este prédio não seria grande coisa, em comparação com as casas comuns, milhares e milhares. Londres é a cidade mais rica do mundo.



— Mais rica que Iedo?



Tyrer riu.



— Mais rica do que vinte ou cinqüenta Iedos. Como digo isso em japonês? Hiraga explicou, os olhos perspicazes registrando tudo... não acreditando naquela história sobre Londres, nem na maior parte do que Tyrer lhe dizia, convencido de que eram apenas mentiras para confundi-lo. Passavam agora pelos diversos bangalôs que serviam como legações, esgueirando-se entre o lixo, amontoado por toda parte.



— Por que bandeiras diferentes, por favor?



Tyrer queria praticar o japonês, mas a cada vez que começava, Hiraga respondia em inglês, e no mesmo instante fazia outra pergunta. Mesmo assim, ele explicou, apontando:



— São as legações; aquela é a russa, a americana, a francesa... e ali a prussiana. A Prússia é uma importante nação do continente. Se eu quisesse dizer...



— Ah, sinto muito, ter um mapa do seu mundo, por favor?



— Tenho, sim, e lhe mostrarei com o maior prazer.



Um destacamento de soldados se aproximou e passou, sem lhes dispensar a menor atenção.



— Esses homens da Prússia — disse Hiraga, pronunciando o nome com o maior cuidado — também fazem guerra contra franceses?



— Às vezes. Sem dúvida são belicosos, sempre guerreando contra alguém. Têm um novo rei e seu maior defensor é um príncipe poderoso chamado Bismarck, que está tentando juntar todos os que falam alemão numa grande nação, e...



— Por favor, sinto muito, Taira-san, não tão depressa, sim?



— Ah gomen nasai.



Tyrer repetiu o que dissera, mais devagar, respondeu a mais perguntas, nunca deixando de se espantar com sua quantidade e extensão, admirado com a mente inquisitiva de seu protegido. Ele riu de novo.





— Devemos chegar a um acordo: uma hora sobre o meu mundo, em inglês, a hora sobre o seu, em inglês, e depois uma hora de conversa em japonês. Hai?





Hai. Domo.





Quatro cavaleiros a caminho da pista de corridas alcançaram-nos, eles cumprimentaram Tyrer, olharam para Hiraga com a maior curiosidade. Na extremide da High Street, junto à barreira, filas de cules, com o carregamento da tarde. Mercadorias e alimentos, começavam a passar pela alfândega, sob os olhos vigilantes dos guardas samurais.



— É melhor nos apressarmos, para não nos misturarmos com esse bando disse Tyrer.



Ele atravessou a rua, esgueirando-se entre o estrume de cavalo, parou abruptamente e acenou, ao passarem pela legação francesa. Angelique estava à sua janela, no térreo, as cortinas abertas. Ela sorriu, acenou em resposta. Hiraga fingiu não ter notado o escrutínio a que ela o submeteu.



— Essa é a dama com quem o Sr. Struan vai casar — comentou Tyrer recomeçando a andar. — Muito bonita, não é?





Hai. Aquela sua casa, sim?



— Sim.



— Boa noite, Sr. McFay. Está tudo trancado.



— Boa noite, Vargas.



McFay reprimiu um bocejo e continuou a escrever em seu diário, a última tarefa do dia. Sua escrivaninha se encontrava limpa, a não ser pelos jornais de duas semanas ainda por ler. A bandeja de entrada estava vazia e a de saída continha as respostas para a maior parte da correspondência de hoje, assim como os pedidos, notas de transporte já assinadas, prontas para serem executadas ao amanhecer, quando os negócios começavam.



Vargas coçou distraído uma picada de pulga, uma constante na Ásia, e guardou a chave da casa-forte na escrivaninha.



— Quer que eu traga mais luz?



— Não, obrigado. Já estou quase acabando. Vejo-o amanhã.





— Os Choshus devem chegar amanhã, para tratar das armas.



— Eu não havia esquecido. Boa noite.



Agora que se encontrava sozinho naquela parte do andar térreo, McFay sentiu-se mais feliz, sempre satisfeito por não ter qualquer companhia, sempre seguro dentro de si mesmo. Exceto por Vargas, todos os escriturários, cambistas e demais empregados usavam outra escada, e tinham suas salas nos fundos do prédio. A porta de comunicação entre as duas partes era trancada à noite. Só An Tok e os criados pessoais permaneciam na parte dianteira, que continha os escritórios, a casa-forte, onde ficavam todas as armas, livros de contabilidade e cofres com dólares de prata mexicanos, taéis de ouro e moedas japonesas, e os aposentos, no andar por cima.



A correspondência diária era sempre intensa e ocupava McFay até tarde da noite, aquela em particular mais do que as outras, porque recebera de Nettlesmith o último capítulo de Grandes Esperanças, subira correndo e partilhara sua hora miúda com Malcolm Struan, desfrutando cada página, antes de descer para trabalhar, na maior satisfação, porque tudo acabara bem para Pip e a moça, e agora uma nova epopéia de Dickens seria anunciada na edição do mês seguinte. Pois o relógio de pé tiquetaqueava suavemente. McFay escreveu depressa, com sua letra precisa:



MS ficou furioso com a carta da mãe na correspondência de hoje (Vapor Swift Wind, um dia atrasado, um homem perdido ao cair no mar, ao largo de Xangai, também passou por dificuldades nos estreitos de Shimonoseki, as baterias da praia disparando talvez vinte tiros, que não atingiram o alvo, graças a Deus!). Minha resposta ao canhoneio da Sra. foi conciliatória (ela ainda não teve conhecimento da festa, o que vai causar uma explosão de Hong Kong a Java), mas duvido que possa tranqüilizar as águas agitadas. Informei-a que A se mudara, voltando à legação francesa, mas não creio que isso tenha qualquer importância para a Sra. S, embora MS tenha se mostrado impaciente durante o dia inteiro por A não tê-lo visitado, e gritasse de novo com Ah Tok, deixando-a num ânimo sombrio... que transmitiu a todos os outros criados, infelizmente!



Devo registrar que MS, apesar de toda a sua dor, é muito mais sensato do que eu imaginava, com uma excelente visão dos negócios em geral, inclusive do comércio internacional, e agora aceita minha opinião de que há um grande potencial aqui. Discutimos o problema da Brock e concordamos que não havia nada que pudesse ser feito daqui; mas, assim que ele voltar a HK, tornará a enfrentá-los. Outra vez ele se recusou a considerar o retorno pelo navio de correspondência — Hoag senta em cima da cerca, não é meu aliado, diz que quanto mais Malcolm descansar aqui, melhor será, uma viagem ruim poderia ser traumática.



Tive um primeiro encontro com o tal japonês Nakama (que só pode ser um pseudônimo) e tenho certeza que ele é mais do que finge. Um samurai, um proscrito ronin, que sabe falar um pouco de inglês, corta os cabelos porque decidiu renunciar à sua posição de samurai, que procura usar nossas roupas não pode deixar de ser extraordinário, e precisa ser vigiado com o maior cuidado. Se metade do que ele diz é verdade, então conseguimos — através de Tyrer, abençoado seja — dar um grande passo à frente em matéria de informações. É uma pena que Nakama nada saiba sobre negócios, sua única informação útil sob esse aspecto foi a de que Osaca é o principal centro comercial do Japão, não Iedo, o que constitui uma razão a mais para pressionar pela abertura daquela cidade, o mais depressa possível, Nakama deve ser cultivado, sem qualquer dúvida, e...



Houve uma batida numa das janelas. McFay olhou para o relógio. São dez horas. Uma hora de atraso. Ora, não importa, o tempo asiático é quase como o nosso.



Sem pressa, ele se levantou, pôs o pequeno revólver no bolso da sobrecasaca, foi até sua porta particular e destrancou-a. Havia duas mulheres da fora, usando mantos com capuz, acompanhadas por um criado. Os três fizeram uma reverência. Ele sinalizou para as duas mulheres entrarem, deu trinta moedas ao homem, que agradeceu, fez outra reverência e se afastou pela rua em direção à Yoshiwara. McFay tornou a trancar a porta.



— Ei, Nemi, você sempre bonita, neh?





McFay sorriu, abraçou uma das mulheres, que o fitou por baixo do capuz com um sorriso radiante, um brilho nos olhos; era sua musume há um ano, mantida por ele durante a metade desse período.





— Ei, Jami-san, você bom, hem? Esta musume minha irmã, Shizuka. Bonita neh?



Nervosa, a outra moça empurrou o capuz para trás, forçou um sorriso. Ele recomeçou a respirar — Shizuka era tão jovem quanto Nemi, tão atraente e fragrante.





Hai!— exclamou ele.





As duas moças sentiram-se aliviadas por Shizuka ter passado pela inspeção inicial. Era a primeira vez que McFay arrumava uma mulher para outro. Contrafeito, pedira a Nemi para explicar à mama-san que a moça seria para o tai-pan, por isso tinha de ser especial. As duas tinham vinte e poucos anos, mal batiam em seu ombro, pareciam um pouco mais à vontade agora, embora conscientes de que o verdadeiro obstáculo ainda teria de ser superado.





— Shizuka, deve compreender, por favor. Tai-pan homem importante. — Virando-se para Nemi e passando a mão pelo lado de seu corpo, na altura do ferimento de Struan, ele acrescentou: — Ela sabe do ferimento, neh?



Nemi acenou com a cabeça, os dentes brancos faiscando.



— Hai, eu explicar, Jami-san. Dozo, deixar casaco aqui, ou lá em cima.



— Lá em cima.





Ele subiu na frente pela escada principal, iluminada por lampiões a óleo, Nemi falando com a nova moça, que prestava atenção a tudo. Era seu costume, de vez em quando, chamar Nemi para passar a noite aqui, o criado voltando pouco antes do amanhecer para escoltá-la até sua pequena habitação, no terreno da estalagem da Alegria Suculenta. O arrendamento da casa por cinco anos, depois de dias negociação, custara-lhe dez soberanos de ouro. Outros dez pelo contrato de Nemi durante o mesmo período, mais um extra para um novo quimono a cada mês, penteados, uma criada pessoal e toda a alimentação, além do saquê.





— Mas o que acontece se o fogo destruir a casa, mama-san? — indagara consternado por concordar com um preço tão alto.



É verdade que a taxa de câmbio excepcionalmente vantajosa lhes proporcionavam lucro de quatrocentos por cento na maioria dos meses... o que significava que quase todos os estrangeiros podiam ter um pônei ou dois, consumir champanhe à vontade e ainda mais importante, no seu caso, contar com a certeza de que os gastos de manutenção de Nemi não representariam mais do que umas poucas despesas.





A mama-san se mostrara chocada.



— Comprar como nova. Você pagar metade preço, justo, neh?



Nemi, presente nas negociações finais, soltara uma risada.





— Bastante: fogo na casa, Jami-san, muito jigjig, hem?



Ao chegar ao topo da escada, McFay tornou a abraçá-la, feliz, sem qualquer motivo, além do fato de que ela provara valer cada moeda que pagara, proporcionando-lhe muito prazer e paz. Havia uma enorme cadeira de encosto alto no patamar. Nemi tirou seu manto com capuz, dizendo à outra moça que fizesse a mesma coisa e que os deixariam ali. Usavam por baixo quimonos impecáveis, os cabelos arrumados — crisálidas transformando-se em borboletas. Satisfeito, McFay bateu na porta.



— Entre.



Malcolm Struan estava sentado em sua cadeira, um charuto aceso entre os dedos, elegante em seu chambre, mas contrafeito.



— Olá, Jamie.





— Boa noite, tai-pan.





As moças se inclinaram, com extrema deferência. McFay não imaginava que quase tudo sobre Malcolm Struan — e também sobre ele próprio, assim como sobre a maioria dos gai-jin — era do conhecimento comum, e o tema de ávidas e constantes conversas na Yoshiwara, sua enorme riqueza, o fato de que recentemente se tornara tai-pan, as circunstâncias de seu ferimento e o iminente casamento.





— Esta é Shizuka, que ficará com você. O criado virá buscá-la pouco antes do amanhecer, tudo como eu falei. Baterei em sua porta quando ele chegar. Shizuka pode ser um pouco tímida, mas não haverá maiores problemas. Esta é a minha musume, Nemi. Eu... ahn... achei melhor que ela viesse também, na primeira vez, para tornar tudo mais fácil.



As duas fizeram outra reverência.





— Ei, tai-pan — disse Nemi, no controle absoluto, satisfeita por conhecê-lo, e confiante em sua escolha —, Shizuka irmã minha, boa musume, ei!



Ela acenou com a cabeça, vigorosamente, deu um pequeno empurrão em Shizuka. A moça adiantou-se, hesitante, ajoelhou-se, fez mais uma reverência.



— Estarei em meu quarto, se precisar de mim.



— Obrigado, Jamie.





McFay fechou a porta e seguiu pelo corredor. Sua suíte era arrumada, masculina e confortável. Três cômodos, sala, quarto, quarto extra, todos com lareiras, e um banheiro. Havia carnes frias no aparador, além de pão fresco e um dos pratos prediletos de Nemi, torta de maçã, as maçãs importadas de Xangai. Havia também saquê numa garrafa de água quente, e uísque Loch Vey, da destilaria da Struan, que ela adorava. No momento em que a porta foi trancada, ela ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o, voraz.



— Não ver seis dias, primeiro cama, depois resto! Era a inversão da ordem habitual. O coração de McFay acelerou, embora não estivesse com pressa.





Ela pegou-o pela mão, levou-o para o quarto e quase que o empurrou na cama. Ajoelhou-se para tirar as botas de McFay, começou a despi-lo, enquanto falava sem parar, no seu pidgin apenas meio compreensível, falando que a Yoshiwara fervilhava de atividade, sobre o mundo flutuante, que não precisava se preocupar com Shizuka, ela era cara, mas a melhor, que história era essa de guerra por favor, não queremos a guerra, apenas negócios, tenho um quimono novo, com a carpa da sorte, muito bonito, embora um pouco caro.





— Mas ichiban, Jami-san, vai gostar muito. Agora cama! Obediente, ele se meteu na cama de baldaquino. A noite era perfeita, nem quente, nem fria. Nemi soltou a obi, deixou o quimono cair, depois a roupa de baixo. Completamente nua, sem qualquer sentimento de culpa ou vergonha por sua nudez, como qualquer musume — uma das muitas características que a distinguiam, e que McFay e todos os gai-jin achavam espantosa e invejável —, ela tirou os alfinetes dos cabelos, sacudiu-os, fazendo com que caíssem até a cintura, e marchou triunfante para o banheiro, a primeira delícia da noite.



Nemi sentou no vaso sanitário, estendeu a mão, pegou a corrente e puxou a descarga. A água desceu pelo vaso de porcelana, ruidosa, e ela bateu palmas de alegria, como sempre. Não acreditara na primeira vez em que vira isso. — Para onde água ir? — indagara ela, desconfiada. McFay explicara, fizera desenhos, mas ainda assim ela não acreditara, até que ele lhe mostrou os canos, e a levou ao ponto do jardim onde ficava a tampa do bueiro da fossa — todos os canos, caixas-d’água, caldeiras, vasos sanitários, pias, torneiras e três banheiros importados da Inglaterra, Hong Kong e Xangai, onde muitas peças já começavam a ser fabricadas, para os vastos mercados indiano e asiático.



Nemi suplicara permissão para mostrar às amigas. Ele concordara, orgulhoso, porque aquela era a primeira instalação do gênero em todo o Japão, para tristeza de Sir William e fúria de Norbert Greyforth, e agora o padrão para cerca de uma dúzia de cópias, funcionando direito ou não, embora nem todas com água quente e fria: só o melhor e o mais moderno — e, portanto, britânico — para a Struan.





Assim, as excursões turísticas guiadas de umas poucas privilegiadas, para conhecer a limpeza de Jami-san, tornaram-se um dos maiores atrativos na Iocoama dos gai-jin, as musume falando sem parar, como aves exóticas, fazendo muitas reverências, prendendo a respiração, puxando a descarga, soltando murmúrios de espanto, aplaudindo.



Nemi lavou as mãos. Com um suspiro de satisfação, foi se deitar nos lençóis, ao lado de McFay.











Phillip Tyrer estava exausto, quase dormindo. Fujiko suportava seu peso sem maiores dificuldades, mas começou a empurrá-lo para o lado, gentilmente.





Iyé, matsu — murmurou ele. — Não, não se mexa... espere.



— Só quero pegar uma toalha, Taira-san. Toalha, entende?



— Ah, sim. Entendo toalha. Você fica, eu pego...



— Oh, não, seria uma vergonha para mim. É meu dever. Deixe-me ir, por favor... não me impeça.



Ela nua, enquanto Tyrer a imobilizava contra seu peito, mas era hábil, conhecia seu ofício muito bem e esperou. Havia sossego no pequeno quarto agora. A noite lá fora era agradável. O vento sussurrava pelas árvores e arbustos. Umas poucas lufadas contornavam as janelas corrediças, ainda não eram frias, nem sequer desagradáveis. O lampião a óleo bruxuleava.



Um momento depois, Fujiko desvencilhou-se, sem interromper a tranqüilidade de Tyrer, e foi para o pequeno banheiro, com sua tina de madeira alta, cheia até a borda de água quente, sobre uma grade de madeira, para permitir que a água escorresse, ao se retirar o batoque. Sabão perfumado, urinol e toalhas limpas. Ela usou uma toalha molhada, enxugou-se em seguida.



Ao retornar ao quarto, levava uma toalha quente, com que limpou Tyrer, para depois enxugá-lo. Ele manteve os olhos fechados durante todo o tempo, quase gemendo de prazer, ao mesmo tempo se sentindo embaraçado porque Fujiko o servia assim, e não o contrário.



— Ah, Fujiko-chan, você é maravilhosa.



— Não, é meu prazer.



Há muito que ela já superara seu espanto e constrangimento pelos estranhos hábitos dos estrangeiros: o fato de raramente se banharem, se sentirem consumidos de vergonha e culpa pelos prazeres do travesseiro, serem possessivos e ficarem furiosos quando ela tinha outros clientes — uma estupidez, pois eles também não eram clientes? — ou se virarem, corando, quando ela se despia para lhes proporcionar prazer ou se cobrirem quando apenas semidespidos, preferindo fornicar no escuro, quando todos sabiam que muito da emoção derivava de ver, examinar e observar ou se tornarem roxos de embaraço quando ela tentava variações normais, Para evitar o tédio e para prolongar e aumentar os momentos com os deuses... o tempo das nuvens e da chuva.





Não, os gai-jin não são como nós. Quase sempre preferem a Primeira Posição com Urgência, de vez em quando a Atraindo a Galinha ou a Tempo da Flor de Brejeira, sem me dar qualquer oportunidade de demonstrar minhas habilidades; e se deixassem a luz acesa, eu poderia me posicionar para muitos jogos de levantar, como Perto e Longe, Por Cima do Dragão, Plantio da Primavera, Furtando o Mel, que até o rapaz mais inexperiente exigiria e apreciaria, mas um gai-jin se desvencilha, com firmeza, embora gentil, puxa-me para o seu lado, beija meu pescoço, me aperta com força e murmura palavras incompreensíveis.





Agora vou massageá-lo até o sono. — murmurou Fujiko.





Não compreendo. Massagear?



— Massagear, Taira-san. Assim.



— Ah, agora entendi. Massagem. Obrigado.



Os dedos de Fujiko eram gentis e maravilhosos e Tyrer resvalou para o sono mal acreditando em sua sorte, orgulhoso de seu desempenho, e porque ela gozara extasiada pelo menos três vezes, contra uma sua... e não importava mais que Raiko tivesse lhe dito naquela manhã que Fujiko precisava visitar sua aldeia, perto de Iedo, para ver o pai doente.



— Mas apenas por poucos dias, Taira-san.



— Oh, sinto muito, Raiko-san. Por favor, quantos dias fora?



— Quantos dias ela ficará fora. Apenas três.



— Ah, obrigado. Quantos dias ela ficará fora?



Tyrer repetira a pergunta também para Fujiko, e seu japonês fora corrigido em todas as ocasiões.





Três dias. Com isso, terei tempo para me recuperar. Por Deus, esta noite foi a melhor de todas! Gostaria de saber o que vai acontecer quando os roju receberem nosso despacho. Tenho certeza de que meu conselho é correto e que Nakama diz a verdade... tenho muito a lhe agradecer, Sir William ficou positivamente radiante, e Fujiko...



Embalada pela massagem, a mente de Tyrer mergulhou numa miscelânea de Nakama e Fujiko, sua presença no Japão, tudo tão diferente, o aprendizado de japonês, palavras e frases incessantes aflorando aos borbotões. Os futons eram duros, difíceis de se acostumar, mas ele sentia-se confortável, estendido de barriga para baixo, desfrutando a proximidade de Fujiko. Ah, como estou cansado... Não posso suportar a idéia de “outros clientes”, pensou ele. Tenho de fazer com que ela seja só minha. Amanhã pedirei a André para me ajudar.



Sem se virar, ele estendeu a mão para trás, pousou-a na coxa de Fujiko. Pele sedosa, adorável.





Onde eu estava? Ah, sim, os roju. Daremos uma lição nos patifes. É lamentável que o navio de correspondência tenha sido o alvo de um bombardeio... temos de fazer com que Shimonoseki se torne seguro e, se o maldito Bakufu não tomar as providências necessárias, isso significa que nós mesmos teremos de destruir aquelas baterias. Devo me lembrar de ter cuidado em relação a isso com Nakama, já que ele é também de Choshu. Será que poderia usá-lo como um intermediário. E se os roju não derem um jeito naqueles demônios de Satsuma, nós mesmos é que teremos de esmagá-los. A desfaçatez do daimio, dizendo que não consegue encontrar os assassinos de Canterbury, apesar de os miseráveis terem saído de suas fileiras; vi quando cortaram o braço de Canterbury, o sangue esguichando.



Os dedos de Fujiko ficaram imóveis.



— Qual é o problema, Taira-san?





Antes que pudesse pensar, ele a abraçava, querendo apagar a lembrança da Tokaidô, e depois que o tremor cessou, Tyrer tornou a se deitar, abraçando-a e sentindo o corpo quente e dócil comprimido contra o seu, amando-a, grato por sua companhia, esperando que os pensamentos terríveis voltassem a seu recesso.





Ela ficou quieta, também esperando, sem pensar em Tyrer, exceto para registrar que, mais uma vez, o gai-jin demonstrara ser mesmo estranho, além da compreensão. Era confortável se aconchegar contra ele, e Fujiko sentia-se contente porque a primeira explosão fora alcançada de um modo apropriado, deixando o cliente satisfeito, e assim podia acreditar que merecia a taxa extra.



Quando distribuíra os serviços de todas, naquela manhã, Raiko lhe dissera que ia aumentar seu preço, e explicara:





— Mas só com Taira, porque você terá trabalho extra. Lembre-se de que ele pode ser um peixe graúdo para você, Fujiko, um cliente a longo prazo, muito melhor que Kant-er-bury-san, se tomarmos cuidado, e se você o agradar. Frenchy diz que ele é um homem importante, por isso deve se empenhar em agradá-lo. Fale apenas japonês, nada de pidgin, torne-se uma mestra, encoraje-o, lembre-se de que ele é ridiculamente tímido e não sabe de nada. Nunca deve mencionar Kant-er-bury. Vamos fingir que você terá de se ausentar por alguns dias... mas não se preocupe. Já tenho dois clientes para você amanhã, um gai-jin à tarde, uma pessoa civilizada à noite...



Com um cliente generoso por um ou dois anos, eu poderia pagar minhas dívidas num instante e a vida seria muito melhor do que ter de aceitar qualquer cliente disponível, pensou Fujiko. Depois, contente, abandonou o presente, como sempre fazia quando se encontrava com um cliente, e projetou-se para o futuro, onde vivia feliz com seu rico marido fazendeiro e quatro ou cinco filhos. Podia contemplar a casa, em meio a vários arrozais, com os brotos verdes do plantio de inverno ou primavera prometendo mais uma colheita abundante, a sogra gentil, satisfeita com ela, um ou dois bois atrelados a um arado, flores no pequeno jardim, e...



— Ah, Fujiko, obrigado! Você é maravilhosa!



Ela se aninhou ainda mais, murmurou que ele era forte e viril.



— O quê? — balbuciou Tyrer, sonolento. Ela respondeu com um movimento íntimo da mão, e ele se contorceu. — Não, Fujiko, por favor, primeiro dormir. Não... por favor, mais tarde...



— Ah, mas um homem forte como você... — insistiu ela, reprimindo seu tédio e continuando, submissa.











Ori bocejou e tirou o olho do buraco.



— Já vi o suficiente — sussurrou ele. — Chocante.





— Concordo. — Hiraga também manteve a voz baixa. — Terrível. O desem-penho de Fujiko foi o pior que já testemunhei. Baka!



— Se eu fosse Taira, exigiria meu dinheiro de volta.





— Concordo. Baka! Fujiko não conseguirá deixá-lo pronto de novo por horas, e quanto a ele... apenas a Primeira Posição uma vez e ainda falam de dez arremetidas, e tudo acaba, Sobre a Lua, como um pato. Ori teve de levar a mão à boca para reprimir o riso. Depois, com extremo zelo, ajeitou pequenos pedaços de papel para tapar os buracos que haviam feito no canto distante da tela de shoji. Juntos, esgueiraram-se entre os arbustos, passaram pelo portão secreto na cerca e voltaram à residência de Ori.





Saquê!





Meio adormecida, a criada pôs a bandeja na frente dos dois, serviu e se afastou ainda tendo dificuldade para não olhar para suas cabeças. Eles brindaram um com o outro, tornaram a encher os copos, o cômodo pequeno e agradável iluminado por velas, com os futons já arrumados no aposento contíguo. As espadas estavam e prateleiras baixas, laqueadas. Raiko violara a regra da Yoshiwara que proibia armas na área porque eles eram shishi, por causa do retrato de Hiraga e implorou a ambos, que haviam jurado por Sonno-joi, que não usariam as armas contra alguém na casa ou qualquer hóspede, e apenas em defesa.



— Não posso acreditar que Taira se deixasse enganar pelo simulado momento com os deuses, Hiraga, um depois do outro, daquele jeito! A encenação dela foi péssima. Será que ele é mesmo tão estúpido assim?





— Obviamente. — Hiraga riu, esfregou a cabeça, atrás e nos lados, com extremo vigor. — Com uma arma daquele tamanho, ele deveria ter feito com que Fujiko gritasse de verdade... todos os gai-jin são assim?



— Quem se importa... no caso dele, é um desperdício.



— Sem a menor sutileza, Ori! Talvez eu devesse arrumar para ele um livro de travesseiro, como uma noiva virgem, hem?



— Melhor matá-lo e incendiar a colônia.



— Seja paciente. Ainda faremos isso. Há bastante tempo.



— Ele é um alvo perfeito e é mais uma oportunidade perfeita — insistiu Ori, uma certa rispidez se insinuando em sua voz.



Hiraga observou-o, toda a sua satisfação desaparecendo no mesmo instante.



— Tem toda razão, mas não agora. Ele é importante demais.



— Você mesmo disse que se os enfurecêssemos bastante, eles bombardeariam Iedo, o que seria maravilhoso para a nossa causa.





— É verdade, mas tempos tempo. — Hiraga não deixava transparecer sua preocupação, pois queria apaziguá-lo, vê-lo sob controle. — Taira vem respondendo a todas as minhas perguntas. Por exemplo, ninguém nos contou que os gai-jin lutam entre si como cães selvagens, ainda pior que os daimios antes de Toranaga... os holandeses esconderam isso de nós, não é?



— São todos mentirosos e bárbaros.





— Sei disso, mas deve haver centenas de informações assim, que vão nos indicar a maneira como teremos de enfrentá-los... e dominá-los. Precisamos aprender tudo, Ori, e depois, quando integrarmos o novo Bakufu, lançaremos os alemães contra os russos, contra os franceses, contra os ingleses, contra os americanos...



Hiraga estremeceu, ao recordar o pouco que Tyrer lhe dissera sobre a tal guerra civil, as batalhas e baixas, todas as armas modernas, com centenas de milhares de homens armados em combate, e a inacreditável vastidão das terras dos gai-jin.



— Esta noite ele disse que a marinha inglesa domina os oceanos do mundo e pela lei deles é duas vezes maior que as duas marinhas seguintes juntas, com centenas de navios de guerra, milhares de canhões.



— Mentiras. Exageros para assustá-lo. Ele e todos os outros querem nos intimidar... e ele também quer os nossos segredos!



— Só dou a ele o que acho que deve saber — protestou Hiraga, irritado. — Ori temos de aprender tudo o que pudermos sobre eles! Esses cães conquistaram a maior parte do mundo... humilharam a China, incendiaram Pequim, e este ano os franceses se tornaram senhores da Cochinchina e vão colonizar o Camboja.



— É verdade, mas os franceses jogaram príncipes nativos contra o príncipes nativos, como os britânicos na índia. Mas aqui é o Japão. Somos diferentes... esta é a terra dos deuses. Jamais, nem mesmo com todos os canhões do mundo, eles serão capazes de nos conquistar!



O rosto de Ori contorceu-se de um jeito estranho, e ele acrescentou:





— Podem até seduzir alguns daimios para o seu lado, mas o resto do povo japonês haverá de massacrá-los.



— Não sem canhões e conhecimentos.



— Sem canhões, sim, Hiraga-san!





Hiraga deu de ombros e serviu saquê para ambos. Havia muitos shishi que partilhavam o fervor de Ori... e esqueciam Sun-tzu: Conheça seu inimigo como conhece a si mesmo, e ganhará cem batalhas.



— Torço para que você esteja certo. Enquanto isso, porém, descobrirei o máximo que puder. Ele me prometeu que amanhã vai mostrar um mapa do mundo... chamou-o de “atlas”.



— Como sabe que não será falso, inventado?





— Não é provável, eles não iriam falsificar um só para me mostrar. Talvez eu consiga até arrumar uma cópia, podíamos mandar traduzir... e também alguns de seus livros escolares. — O excitamento de Hiraga era cada vez maior. — Taira disse ainda que eles têm novas habilidades na arte das contas, ensinadas nas escolas, e medidores de astronomia chamados lon-gi-tude e la-ti-tude... — Ele pronunciou as palavras em inglês com dificuldade. —... que de alguma forma os guiam com fantástica precisão nos oceanos, a mil ri da terra. Baka que eu saiba tão pouco! Baka que eu não possa ler inglês!



— Mas vai aprender — declarou Ori. — Eu nunca saberei. Você será parte do nosso novo governo... eu nunca serei.



— Por que diz isso?





— Idolatro Sonno-joi. Já pensei no meu poema da morte e o falei... para Shorin, na noite do ataque. Baka que ele tenha morrido tão cedo.



Ori esvaziou seu copo, despejou as últimas gotas e pediu outra garrafa. Tornou a fitar Hiraga, os olhos contraídos.





— Ouvi dizer que lorde Ogama prometeu perdoar qualquer shishi de Choshu que renunciar publicamente a Sonno-joi.



Hiraga confirmou com um aceno de cabeça.





— Meu pai me escreveu para dizer isso. Nada significa para nós... para shishi de Choshu.





— Há um rumor de que Ogama controla os portões, excluindo todos os outros... e até que há novos combates entre suas tropas e os Satsumas.





— Muitos daimios se extraviam de vez em quando — comentou Hiraga calmamente.



Não lhe agradava o rumo da conversa; já havia notado que Ori se tornava cada vez mais belicoso. Raiko tornara a adverti-lo naquela noite de que Ori era um vulcão fumegante.



— Todos concordamos, Ori, não temos muito tempo, que não ficaríamos sujeitos aos feitos e malfeitos de nossos líderes hereditários.





— Se Ogama controla os portões, pode devolver o poder ao imperador e converter Sonno-joi em realidade.



— Talvez ele o faça, talvez até já o tenha feito.



Ori esvaziou o copo.



— Terei o maior prazer em deixar Iocoama. Há veneno no ar. Acho melhor você ir para Quioto comigo. Este ninho de mentirosos pode infeccioná-lo.



— Você estará mais seguro em Quioto sem a minha companhia. Mesmo mudando os cabelos, ainda posso ser reconhecido.





Uma súbita rajada de vento assoviou pelo telhado de colmo e sacudiu uma janela. Eles olharam por um instante e logo voltaram a beber. O saquê os relaxara, mas não dissipara as emoções, os pensamentos de morte, com o cerco cada vez mais apertado, a emboscada planejada contra o xógum Nobusada, Shorin e Sumomo e, acima de tudo, o que fazer com a moça gai-jin? Hiraga ainda não a mencionara, nem Ori fizera qualquer pergunta a respeito, mas ambos esperavam, contornando a questão central, impacientes, indecisos. Foi Ori quem rompeu o silêncio:



— Quando Akimoto chegar, amanhã, o quanto você vai lhe contar?



— Tudo o que sabemos. Ele viajará com você para Quioto.



— Não. É melhor que ele fique, pois você precisará de um guerreiro aqui.



— Por quê?



Ori deu de ombros.



— Dois podem fazer mais do que um. E agora me diga onde ela está. Hiraga descreveu o lugar. Com precisão.



— Não há barras nas janelas, nem na porta lateral, pelo que pude ver. Durante o dia inteiro ele especulara o que fazer com Ori. Se Ori entrasse na casa e matasse a mulher, poderia viver ou morrer, mas de qualquer forma toda colônia ficaria em tumulto e descarregaria seu ódio nos japoneses mais próximos.





— Concordo que ela é um alvo correto para Sonno-joi, Ori, mas ainda não, pelo menos enquanto eu continuar a ser aceito por eles e estiver descobrindo seu segredos.



— Um alvo tão perfeito deve ser atacado de imediato. Katsumata disse que hesitar é perder. Podemos arrancar esses segredos dos livros.



— Já disse que não concordo.



— Na mesma ocasião em que eu a matar, incendiamos a Yoshiwara e a colônia também ficará em chamas. Nós três aproveitaremos a confusão para escapar. Faremos isso daqui a três dias.



— Não.



— Eu disse sim! Dois ou três dias, não mais do que isso!



Hiraga pensou a respeito, avaliou a posição de Ori. Com o maior cuidado. E frieza. Para tomar de novo a mesma decisão:



— Está proibido.



A determinação categórica deixou Ori humilhado. Pela segunda vez em poucos dias. E, mais uma vez, por causa da mulher.





Não havia qualquer som na sala agora. Ambos mantinham-se impassíveis. Podiam ouvir o vento lá fora. De vez em quando, o papel oleado do shoji estalava. Ori tomou um gole de saquê, fervendo de raiva, numa determinação inexorável, mas nada deixando transparecer, sabendo que se tivesse os braços tão fortes quanto antes, com a mesma agilidade, estaria se aprontando para saltar em busca de sua espada, a fim de se defender do ataque, que seria inevitável, a menos que se submetesse.



Ora, não importa. Num confronto direto, mesmo que eu me encontrasse em perfeitas condições, Hiraga sempre conseguiria me acertar primeiro. Assim, ele deve ser afastado de meu caminho por outra forma.



Com uma vontade firme, a de sobrepujar o novo inimigo que estava determinado a frustrá-lo, Ori jurou que não seria o primeiro a romper o silêncio, e assim se humilhar. A pressão entre os dois foi aumentando. Em segundos, tornou-se insuportável, aproximando-se do auge...





Passos correndo. A porta de shoji foi aberta. Raiko apareceu, muito pálida.





— Há patrulhas de vigilantes do Bakufu na ponte e no portão. Vocês devem partir. Depressa!



Os dois ficaram consternados, esquecendo todo o resto. Foram pegar suas espadas.



— Eles virão à Yoshiwara? — perguntou Ori.





— Virão, em grupos de dois e três. Já fizeram isso antes. Evitam os gai-jin, mas não a nós.



A voz de Raiko tremia tanto quanto as mãos.



— Há uma saída segura através do arrozal?



— Não, Ori — respondeu Hiraga por ela, pois no dia anterior examinara o como uma possível rota de fuga. — A terra é plana, sem qualquer cobertura. Por uma ri. Se estão bloqueando a ponte e o portão, devem vigiar esse lado também.





— E o que me diz da área gai-jin, Raiko?



— A colônia? Eles nunca estiveram lá. Vocês de...



Ela virou-se, ainda mais assustada. Os dois homens desembainharam suas espadas pela metade, enquanto uma criada se aproximava, muito pálida.



— Estão vindo para cá, fazendo uma revista de casa em casa — balbuciou.



— Avise às outras.



A criada saiu correndo. Hiraga tentou pôr o cérebro para funcionar.



— Raiko, onde fica seu lugar seguro, seu porão secreto?



— Não temos nenhum — respondeu ela, retorcendo as mãos.



— Mas deve haver um, em algum lugar! Abruptamente, Ori adiantou-se e Raiko recuou, apavorada.



— Onde fica o caminho secreto para a colônia? Depressa!



Raiko quase desmaiou quando ele mudou a posição da mão no cabo da espada Embora Ori não a ameaçasse, ela sabia que se encontrava à beira da morte.



— Eu... para a colônia? Não tenho certeza, mas há muitos anos fui informada... eu tinha até esquecido. Não tenho muita certeza, mas, por favor, sigam-me sem fazer barulho.



Ficaram bem perto dela, embrenhando-se pelas moitas, indiferentes aos galhos que se empenhavam em lhes bloquear a passagem, a lua ainda clara, no alto do céu, entre as nuvens tangidas pelo vento. Quando chegou a uma parte oculta da cerca, entre sua estalagem e a seguinte, Raiko pressionou um nó na madeira. Um trecho da cerca se abriu, rangendo, as dobradiças de madeira meio emperradas da falta de uso.



Sem perturbar as pessoas que ali estavam, Raiko atravessou aquele jardim até o outro lado. Passou por um portão para outro jardim, deu a volta até os fundos, pulou uma estrutura baixa, de tijolos, à prova de fogo, que servia para guardar mercadorias valiosas, e se encaminhou para os tanques d’água, que eram enchidos em parte pela chuva, em parte por linhas de cules carregando baldes todos os dias. Ofegante, Raiko apontou a tampa de madeira de um dos poços.



— Acho... acho que é ali.



Hiraga empurrou a tampa para o lado. Havia toscas barras de ferro, enferrujadas, fincadas na parede de alvenaria, para servir de apoio aos pés e mãos, e nenhum sinal de água lá embaixo. Ainda apavorada, ela sussurrou:



— Disseram-me que leva a um túnel... não tenho certeza, mas pelo que me lembro, passa por baixo do canal. Não sei onde vai dar... esqueci por completo. E agora preciso voltar.



— Espere!



Ori postou-se na frente dela, depois pegou uma pedra, largou-a no poço. Ouviram o barulho distante de água.



— Quem fez isto?





— O Bakufu, pelo que me contaram, quando construíram a colônia.



— Quem a informou a respeito?



— Um dos criados... esqueci seu nome, mas ele os viu...



Todos olharam na direção da rua principal. Vozes iradas soavam ali.



— Tenho de voltar...



Raiko desapareceu pelo caminho por que viera. Apreensivos, os dois olharam para o fundo do poço.





— Se o Bakufu o construiu, Ori, pode ser uma armadilha, para pessoas como nós.



De uma das casas próximas, veio o som de vozes, gritando em inglês:



— Mas o que vocês querem aqui?



— Caiam fora!



Ori enfiou a espada comprida no cinto. Meio sem jeito, por causa do ombro, ele passou por cima da tampa e começou a descer. Hiraga seguiu-o, repondo a tampa no lugar. A escuridão era intensa, e depois de algum tempo os pés de Ori tornaram a pousar em chão firme.



— Tome cuidado. Acho que é uma saliência.



Sua voz soou abafada, com um estranho eco. Hiraga desceu tateando, foi se postar ao seu lado. Tirou alguns fósforos do bolso na manga, riscou um deles.



— Puxa, onde foi que você conseguiu isso? — indagou Ori, excitado.



— São encontrados por toda parte na legação... aqueles cães são tão ricos que os deixam espalhados. Taira disse que eu podia me servir à vontade. Olhe ali!



À última claridade do fósforo, eles divisaram a entrada do túnel. Estava seca, tinha a altura de um homem. A água enchia o poço, três metros abaixo. Havia uma vela antiga num nicho. Hiraga precisou gastar três fósforos para acendê-la.



— Vamos embora.



O túnel descia. Depois de cinqüenta passos, tornou-se úmido, com poças em alguns pontos, inundado em outros trechos. Uma água fétida vazava pelo teto e lados escorados de maneira tosca, a madeira apodrecida, insegura. À medida que foram avançando, o ar tornou-se mais desagradável, a respiração mais difícil.



— Podemos esperar aqui, Ori.



— Não. Vamos continuar.



Estavam suando, em parte por medo, em parte por causa do ar abafado. A chama tremeu, apagou. Praguejando, Hiraga tornou a acender, protegendo com a mão; não restava muito do pavio, nem da vela. Ele seguiu em frente, o nível da água subindo. O túnel continuava a descer, a água agora alcançava seus quadris. Ori escorregou, mas conseguiu recuperar o equilíbrio. Mais vinte ou trinta passos. A água continuava a subir. Chegou à cintura, o teto não muito acima de suas cabeças. E seguiram em frente. A vela diminuindo. Hiraga observava-a, praguejando.



— É melhor voltar e esperar na parte seca.



— Não. Vamos continuar até a vela apagar.



À frente, o túnel se projetava pela escuridão, o teto e a água quase se encontrando. Nauseado, Hiraga foi em frente, tomando cuidado com o fundo escorregadio. Mais passos. O teto quase se comprimia contra sua cabeça. Mais Passos e agora o teto subiu um pouco.



— O nível da água está baixando — murmurou ele, trêmulo de alívio. Passou a andar mais depressa, revolvendo a lama malcheirosa. Uma curva no túnel, o teto mais alto agora. E foram em frente. Pouco antes de a vela se extinguir por completo, avistaram terra seca e o final do túnel, um poço que subia e descia. Hiraga tateou pelo caminho, incapaz de ver qualquer coisa.



— Estou na beira agora, Ori. Preste atenção, pois vou jogar uma pedra.



A pedra demorou segundos e mais segundos, antes de ricochetear e bater no fundo.



— Deve ser uma queda de trinta metros ou mais — murmurou ele, sentindo um frio no estômago.



— Acenda outro fósforo.



— Só me restam três.



Hiraga acendeu um. Viram degraus de ferro, precários, enferrujados, subindo nada mais.



— Como teve certeza de que Raiko sabia disto?



— Foi uma idéia súbita. Tinha de haver um túnel... eu o teria construído, se estivesse no lugar deles. — A voz de Ori era rouca, a respiração pesada. — Podem estar esperando lá em cima, em emboscada. Vão nos empurrar de volta ou teremos de pular.



— É possível.



— Vamos subir logo. Detesto continuar aqui.



Também contrafeito, Hiraga ajeitou a espada comprida no cinto. Ori recuou, nervoso, a mão no cabo da espada. Abruptamente, os dois se fitaram, talvez perto da segurança, mas nada resolvido entre eles.



A chama do fósforo tremeu e apagou.



Na escuridão, não mais viam um ao outro. Sem pensar, ambos recuaram para as paredes do túnel, longe da beira. Hiraga, mais astuto no combate, abaixou-se, apoiado num joelho, a mão no cabo da espada, pronto para desferir um golpe nas pernas de Ori, se ele atacasse, os ouvidos aguçados, à espera do som de uma lâmina deixando a bainha.





— Hiraga! — A voz de Ori ressoou na escuridão, áspera, fora de alcance, distanciando-se pelo túnel. — Quero a mulher morta e irei em seu encalço... por Sonno-joi e por mim. Você quer ficar. Resolva o problema.



Hiraga levantou-se, em silêncio.



— Resolva você — disse ele, mudando de posição, sem fazer qualquer barulho.



— Não posso. Já tentei, mas não consigo encontrar uma solução.



Hiraga hesitou, esperando um truque.



— Primeiro, ponha suas espadas no chão.



— E depois?





— Como ela o obceca acima de Sonno-joi, não ficará armado perto de mim em Iocoama. Partirá para Quioto amanhã e contará tudo a Katsumata, que é o seu líder Satsuma. Quando você voltar, faremos tudo o que disse.



— E se eu não voltar?



— Então eu farei sozinho... no momento que julgar mais oportuno.



A voz de Ori tornou-se ainda mais áspera:



— Mas ela pode escapar, neh? E se ela for embora antes do meu retorno?



— Ficarei atento a qualquer notícia de uma viagem e lhe mandarei um aviso. Se você não puder chegar aqui a tempo, eu decidirei. Ela... e seu marido, se até lá estiverem casados... só irão até Hong Kong. Você... ou nós... podemos segui-los até lá.



Ele ouvia a respiração pesada de Ori e esperou, em guarda contra um súbito ataque, sabendo que não podia confiar no outro enquanto a mulher estivesse viva e próxima, mas aquele parecia ser o melhor plano no momento. Matá-lo seria um desperdício, refletiu Hiraga. Preciso de sua sabedoria.



— Você concorda?



Ele esperou. E esperou. Depois:



— Concordo. O que mais?



— Por último: a cruz, você vai jogá-la no poço.



Hiraga ouviu Ori aspirar fundo, em raiva. O silêncio foi se tornando mais e mais opressivo.



— Concordo, Hiraga-san. Por favor, aceite minhas desculpas.



No instante seguinte, os ouvidos aguçados de Hiraga captaram o leve ruído de pano sendo mexido, alguma coisa passou por ele, o retinir de metal batendo na parede do poço, a cruz despencando para o abismo. O som de espadas largadas no chão.



Hiraga acendeu um fósforo. Ori se encontrava de pé, indefeso agora. No mesmo instante, Hiraga se adiantou correndo. Ori recuou, em pânico, mas Hiraga apenas recolheu as espadas. Antes que o fósforo apagasse, ele teve tempo de jogar também as espadas no poço.



— Por favor, Ori, obedeça-me. Assim, nada terá a temer. Subirei primeiro. Espere até eu chamá-lo.



Os degraus estavam cobertos de ferrugem, alguns meio soltos. Era uma subida precária. Depois, lá em cima, Hiraga divisou, agradecido, a boca do poço, aberta para o céu, as estrelas cintilando entre as nuvens. Sons noturnos, o vento e o mar. Ele continuou a subir, com mais cautela ainda. Precisou de toda a sua força para se erguer acima da balaustrada de pedra e espiar ao redor.



O poço abandonado ficava perto da cerca do canal, numa terra de ninguém, ocupada por mato e juncos. A praia não era longe. Casas em ruínas, enormes buracos nos caminhos de terra. O rosnado de um cachorro à procura de comida nas proximidades. Vozes roucas cantando ao vento. Agora Hiraga sabia onde haviam saído. Na cidade dos bêbados.




22







Sexta-feira, 17 de outubro:









Na claridade da manhã, no castelo de Iedo, Misamoto — O pescador, falso samurai e espião de Yoshi — postava-se de joelhos, tremendo todo, na frente do alarmado Conselho de Anciãos, a versão inglesa da resposta de Sir William balançando em sua mão. Ao seu lado, apavorado, um funcionário do Bakufu.





— Fale, pescador! — repetiu Anjo, o ancião-chefe, a sala de audiência opressiva, tensa e gelada. — Não importa se não compreende todas as palavras em inglês. Queremos saber se o funcionário do Bakufu traduziu a mensagem com toda precisão. É isso exatamente o que a diz a mensagem dos gai-jinl





— É, sim... isto é, mais ou menos, Sire — balbuciou Misamoto, tão assustado que mal conseguia falar. — É como disse o honrado representante do Bakufu... mais ou menos, Sire... mais... ou...



— Tem alga marinha no lugar da língua e vísceras de peixe em vez de cérebro? Depressa! Lorde Toranaga diz que pode ler inglês... pois leia!





Uma hora antes, Anjo fora acordado pelo nervoso funcionário do Bakufu que trouxera a mensagem de Sir William, em inglês e holandês. Anjo convocara às pressas uma reunião do conselho, na qual o funcionário acabara de repetir sua tradução do holandês.



— O que diz o papel em inglês?



— Bom, Sire, é... num...



Outra vez a voz de Misamoto sumiu, sufocada pelo pânico. Exasperado, Anjo olhou para Yoshi.



— Esse cabeça de peixe é seu espião — disse ele, com a frieza na medida certa. — Foi idéia sua chamá-lo. Por favor, faça com que ele fale.



— Diga-nos o que está na mensagem, Misamoto — pediu Yoshi, a voz gelada, embora por dentro estivesse quase cego de frustração e raiva. — Ninguém vai lhe fazer mal. Diga com suas próprias palavras. A verdade.



— Bem, Sire, é mais ou menos... mais ou menos o que o nobre funcionário disse Sire... mas esta carta... não conheço todas as palavras, Sire... mas... mas...



Seu rosto se contraiu em medo. Yoshi esperou por um momento.



— Continue, Misamoto. Não tenha medo. Fale a verdade, qualquer que seja.



Ninguém vai tocar em você. Precisamos conhecer a verdade.





— Bem, Sire, o líder gai-jin... diz que vai para Osaca dentro de onze dias, como explicou o nobre funcionário, mas não para fazer uma “visita cerimonial”...



O pescador estremeceu sob o impacto de todos os olhares, tão apavorado que agora seu nariz corria, a saliva pingava do queixo, e depois acrescentou, falando muito depressa:



— Ele não está nada feliz, na verdade está bastante furioso e vai... vai a Osaca com sua esquadra, entrando em Quioto com toda a sua força, canhões de sessenta libras, cavalaria, soldados, para falar com o filho do céu e o lorde xógum... até deu seus nomes, Sire, imperador Komei e o menino Xógum, Nobusada.





Todos ficaram boquiabertos, até mesmo os guardas... normalmente impassíveis e que não deveriam escutar. Misamoto baixou a cabeça para o tatame e manteve-a assim. Yoshi apontou para o funcionário do Bakufu, que empalideceu por toda a atenção focalizada nele.



— Isso é correto?



— Visita cerimonial, Sire? Para seus augustos ouvidos, essa deve ser a tradução correta... o palavreado bárbaro é grosseiro e agressivo e deve ser interpretado, acredito com toda sinceridade, como uma visita cerimonial, uma...



— A mensagem fala em “canhões e cavalaria”, essas coisas?



— Em princípio, Sire, a men...



Para espanto de todos, Yoshi quase gritou:



— Sim ou não?



O funcionário engoliu em seco, consternado com a ordem para responder de forma tão direta, o que acontecia pela primeira vez em sua vida, desolado por estar sendo contestado devido à ignorância das regras e costumes elementares da diplomacia.



— Lamento informar que, em princípio, menciona essas coisas, mas tal impertinência é, sem dúvida, um equívoco e...



— Por que não traduziu com precisão?



— Para seus augustos ouvidos, Sire, é necessário interpretar...



— Essas pessoas augustas são nomeadas? Sim ou não?



— Seus nomes constam da mensagem, mas deve...



— Tais pessoas são indicadas por seus nomes corretos?



— Ao que me parece, Sire, os nomes devem ser inter...



— Escreva imediatamente uma tradução exata da mensagem!— As palavras firmes foram pronunciadas com suavidade, mas a veemência ricocheteou pelas paredes de pedra sem adornos. — Exata! E quero que todas as comunicações vindas deles ou para eles também sejam exatas. EXATAS! Um erro e sua cabeça vai rolar para o lixo! E agora saia! Misamoto, fez um bom trabalho. Espere lá fora, por favor.





Os dois homens se retiraram apressados, Misamoto praguejando contra seu infortúnio e o dia em que concordara em acompanhar Perry ao Japão, pensando que o Bakufu o receberia com todas as honras por seus conhecimentos excepcionais e lhe daria muito dinheiro... e o funcionário do Bakufu jurando vingança contra Yoshi e aquele pescador mentiroso, antes que o conselho tomasse a decisão por ele, um servidor sábio e correto, não poderia evitar.



Yoshi rompeu o silêncio, a mente trabalhando freneticamente para definir o movimento seguinte no incessante conflito.



— Não podemos permitir uma visita armada a Quioto! Isso prova o que venho dizendo há muito tempo: devemos contar com o apoio de homens que falem inglês e tradutores nos quais possamos confiar... e que nos informarão com precisão o que dizem suas torpes mensagens!





— Isso não é necessário — disse Toyama, a papada tremendo de fúria. — Essa impertinência gai-jin é insultuosa além da imaginação, equivale a uma declaração de guerra. Tamanha impertinência deve ser respondida com sangue.



Os guardas se agitaram, enquanto ele acrescentava:



— É uma declaração de guerra. Muito bem. Dentro de três ou quatro dias, comandarei o ataque de surpresa contra a colônia e acabarei com esse absurdo de uma vez por todas.





— Isso seria baka. Não podemos. Baka! — Anjo repetiu mais para os guardas do que para os outros, pois era muito fácil que um deles fosse um admirador secreto dos shishi, um partidário de sonno-joi. — Quantas vezes devo dizer que não podemos atacar ainda, nem mesmo um ataque de surpresa?



Toyama ficou ainda mais furioso.



— Yoshi-san — disse ele —, podemos esmagá-los e incendiar Iocoama, neh? Podemos, neh? Não posso suportar a vergonha! É demais!



— Tem razão, claro que podemos destruir Iocoama, com facilidade, mas Anjo-dono também está correto... não podemos atingir a esquadra. Sugiro que continuemos como antes... — Yoshi falava com uma serenidade que não sentia. — ... fornecendo-lhes sopa aguada, e sem peixe: ofereceremos uma reunião com o Conselho de Anciãos dentro de trinta dias, permitiremos que esse prazo seja reduzido nas negociações para oito dias e o protelamos pelo máximo possível.



— Só me encontrarei com aqueles cães no campo de batalha.



Yoshi conteve sua irritação.





— Tenho certeza que fará o que for decidido pelo roju, mas proponho que seja representado nessa reunião por um impostor... Misamoto.



— Hem?



Todos o fitaram, surpresos.



— Ele será um perfeito substituto.



Anjo interveio:



— Esse estúpido pescador nunca será...



— Vestido com roupas cerimoniais, que aprenderá a usar, em oito dias, tempo mais do que suficiente. Ele parece com um samurai agora, embora não aja como tal. Por sorte, não é estúpido, e se sente tão assustado que fará tudo o que ordenarmos. Mais importante ainda, ele nos dirá depois a verdade, que anda escassa por aqui.



Yoshi viu Anjo ficar vermelho. Os outros fingiram não perceber.



— E que mais, Yoshi-san?



— Realizaremos a reunião aqui no castelo.



— Inadmissível! — gritou Anjo.



— Claro que primeiro vamos propor Kanagawa — explicou-lhe Yoshi, exasperado — e depois nos permitiremos concordar em recebê-los aqui.



— Inadmissível! — insistiu Anjo, com a concordância dos outros.





— Com o castelo como isca, podemos protelar de novo, talvez até por mais um mês... a curiosidade deles vai prevalecer... e ao final só permitimos o acesso a uma área externa. Por que não o castelo? Todos os líderes gai-jin, por sua livre e espontânea vontade, ao nosso alcance? Podemos tomá-los como reféns, sua presença aqui nos dá uma dúzia de possibilidades de envolvê-los ainda mais.



Todos o fitaram, aturdidos.



— Tomá-los como reféns?





— Uma possibilidade, entre muitas — explicou Yoshi, paciente, sabendo que precisava de aliados na luta iminente.— Devemos usar astúcia e cordões de seda, a própria fraqueza dos gai-jin contra eles, não a guerra... até que possamos igualar com suas frotas.



— E até lá? — indagou Adachi. O homenzinho rotundo era o mais rico de todos e sua linhagem Toranaga comparável à de Yoshi. — Acredita realmente que devemos negociar com esses cães até termos esquadras equivalentes às deles?





— Ou canhões bastante grandes para mantê-los à distância de nossas praias. Só precisamos de um ou dois sacos de ouro para que eles se atropelem no empenho de nos vender os meios com que os expulsaremos de nossas águas. — Yoshi fez uma pausa, a expressão se tornando sombria. — Ouvi o rumor de que alguns emissários de Choshu já estão tentando comprar fuzis dos gai-jin.





— Aqueles cães! — exclamou Toyama, furioso. — Sempre Choshu. Quanto mais cedo os esmagarmos, melhor.





— E Satsuma também — murmurou Anjo, com a concordância geral. Ele olhou para Yoshi, antes de acrescentar: — E os outros!



Yoshi fingiu não compreender a insinuação de seu adversário. Não importa, pensou ele, o dia está chegando.



— Podemos lidar com todos os inimigos, um de cada vez... não juntos. Toyama declarou, em tom ríspido:





— Voto para ordenarmos a todos os daimios amigos que aumentem os impostos e tratem de se armar. Eu começarei amanhã.



— “Aconselhar” é uma palavra melhor — interveio Adachi, cauteloso, e esvaziou sua xícara de chá. Flores delicadas ornamentavam as bandejas laqueadas postas diante de todos. Ele reprimiu um bocejo, entediado, ansioso em voltar para a cama. — Por favor, Yoshi-dono, continue a apresentar seu plano. Se não conhecermos todos os detalhes, como poderemos votá-lo?





— Na manhã da reunião, Anjo-sama cairá doente, infelizmente, sentimos muito. Como nem todos os roju estarão presentes, não poderemos tomar decisões definitivas, mas escutaremos tudo, e tentaremos chegar a um acordo. Se não for possível, então concordaremos, com a deferência apropriada, em “apresentar seu desejos ao conselho pleno, assim que possível”... e continuaremos a protelar, até deixá-los tão furiosos que eles é que cometerão um erro, e não nós.





— Por que eles haveriam de concordar com outro adiamento? — perguntou Anjo, contente porque não teria um confronto pessoal com os gai-jin, mas desconfiando de Yoshi, e especulando qual seria a manobra escusa.



— Os cães já provaram que preferem conversar a lutar, são covardes — disse Yoshi. — Embora pudessem nos dominar com facilidade, é evidente que não têm coragem suficiente para isso.



— E se eles não concordarem, e esse insolente macaco inglês cumprir sua ameaça, e partir para Quioto? O que faremos então? Não podemos permitir isso, em quaisquer circunstâncias!



— Concordo — disse Yoshi, decidido, e todos ficaram tensos. — Isso significa guerra... uma guerra que acabaremos perdendo.



Toyama protestou no mesmo instante:



— É melhor guerrearmos como homens do que nos tornarmos escravos, como os chineses, indianos e todas as outras tribos de bárbaros! — O velho examinou Yoshi. — Se eles desembarcarem, você votará pela guerra?



— Mas claro que sim! Qualquer tentativa de desembarcar à força... em qualquer lugar... será enfrentada.



— Ainda bem — disse Toyama, satisfeito.— Neste caso, torço para que eles tentem desembarcar.





— A guerra seria ruim. Creio que eles vão preferir conversar e podemos manobrá-los para que desistam dessa loucura. — A voz de Yoshi tornou-se mais áspera. — E será possível, se formos bastante espertos. Enquanto isso, devemos nos concentrar em questões mais importantes... como Quioto, e recuperar o controle dos portões, como os daimios hostis, como obter ouro suficiente para comprar armas, modernizar e equipar nossas forças... e as forças de nosso aliados de confiança... e não permitir que Choshu, Tosa e Satsuma se armem sob o pretexto de nos apoiarem, mas com a intenção secreta de nos atacarem.



— O traidor Ogama deve ser proscrito — declarou Toyama. — Por que não o condenamos publicamente e retomamos os portões?





— Atacá-lo agora seria baka! — respondeu Anjo, irritado. — Serviria apenas para empurrar Satsuma e Tosa para seus braços, assim como outros que se mantém em cima da cerca.



Ele mudou de posição, desconfortável, o estômago doendo, a cabeça doendo, sem encontrar alívio com o novo médico chinês que consultara em segredo.





— Vamos combinar o seguinte: Yoshi-dono, por favor, prepare uma resposta aos gai-jin, a ser aprovada na reunião de amanhã.



— Certo. Mas o que eu quero saber agora é quem está lhes revelando nossos segredos. Quem é o espião dos gai-jin? É a primeira vez que eles mencionam o “jovem” xógum e dão o seu nome, assim como o do imperador. Alguém está nos traindo.



— Vamos empenhar todos os nossos espiões para descobrir isso! Otimo! Voltaremos a nos reunir amanhã de manhã como sempre, analisaremos o esboço da resposta e decidiremos quanto ao seu plano.— Os olhos de Anjo se estreitaram. — E cuidaremos dos preparativos finais da partida do xógum Nobusada para Quioto.



O sangue se esvaiu do rosto de Yoshi.



— Já discutimos isso uma dúzia de vezes. Em nossa última re...





— A visita será realizada! Ele viajará pela estrada do norte, em vez da Tokaidô. Será mais seguro.



— Como guardião, eu me oponho à visita, pelas razões já enunciadas várias vezes... por qualquer estrada!



Toyama interveio:



— É melhor para meu filho ficar em Quioto. Estaremos em guerra muito em breve. Nossos guerreiros não poderão ser contidos por muito mais tempo.



— Não haverá guerra nem visita! — insistiu Yoshi, furioso. — Qualquer das duas coisas nos destruirá. No momento em que um xógum demonstrar submissão, como Nobusada pretende fazer, nossa posição estará arruinada para sempre. O legado declara...



Anjo interrompeu-o:



— O legado não pode prevalecer neste caso.



— O legado Toranaga é nossa única âncora e não podemos...



— Não concordo!



Quase sufocando de raiva, Yoshi fez menção de se levantar, mas foi detido pelas palavras seguintes de Anjo:



— Há uma última questão a decidir hoje: a designação imediata do novo ancião, o substituto de Utani.



Surgiu uma tensão intensa no conselho. Desde o assassinato de Utani, assim como pela maneira de sua morte — o quarto em que ele e o rapaz haviam sido ernpalados não fora completamente destruído pelas chamas — e o fracasso das legiões de espiões e soldados em capturar os assassinos, todos os anciãos dormiam com profunda apreensão. Anjo, em particular, ainda se afligia por seu quase assassinato. Exceto por Yoshi, que de vez em quando recebia o apoio de Utani, Nenhum dos outros lamentava sua morte ou como ocorrera, Anjo ainda menos, porque ficara chocado ao descobrir a identidade do amante e passara a abominar Utani ainda mais, pelo roubo em segredo de seu prazer ocasional.



— Vamos votar agora.



— Uma questão de tamanha importância deve esperar até amanhã.



— Sinto muito, Yoshi-sama, mas este é o momento perfeito.



Adachi acenou com a cabeça.



— A menos que o conselho esteja completo, não podemos tomar decisões importantes. Quem você propõe?



— Faço a indicação formal de Zukumura de Gai.





Apesar de seu controle, Yoshi não pôde reprimir uma exclamação de espanto, já que o daimio era um simplório, parente e aliado ostensivo de Anjo.



— Já manifestei minha desaprovação a ele... uma dúzia melhores — declarou Yoshi. — E concordamos com Gen Taira.



— Eu não concordei. — Anjo sorriu apenas com um movimento da boca — Só disse que o consideraria com o devido cuidado. Foi o que fiz e concluí que Zukumura é uma escolha melhor. Agora, vamos votar.



— Não creio que uma votação neste momento seja sensata ou acon...



— Vamos votar! Como conselheiro-chefe, é meu direito submeter qualquer questão à votação! E digo que temos de votar agora!



— Eu voto não! — disse Yoshi, lançando um olhar furioso para os outros dois.



Adachi desviou os olhos, e murmurou:



— Gai tem sido aliado de Muto desde Sekigahara. Sim. Toyama deu de ombros.



— O que vocês quiserem.











Yoshi golpeou violentamente seus dois oponentes com a espada de madeira, o suor escorrendo pelo rosto, recuou, girou, atacou de novo. Os dois homens, hábeis espadachins, desviaram-se para o lado e desfecharam seu próprio ataque, sob a ordem de saírem vitoriosos, o fracasso lhes custando um mês de confinamento nos alojamentos e três meses de pagamento.



Com a maior astúcia, um dos homens fez uma finta, a fim de proporcionar uma abertura ao outro, mas Yoshi se encontrava preparado, esquivou-se sob o golpe e acertou o homem no peito, a espada quebrando com a força do golpe — se a lâmina fosse de verdade, teria quase cortado o homem em dois — e assim eliminando-o da disputa.



No mesmo instante, o outro se adiantou, confiante, para o golpe final, mas Yoshi já não se postava mais no lugar onde deveria estar, abaixando-se quase até o chão e desferindo um golpe de karatê com o pé. O atacante gemeu em agonia quando o lado do pé de Yoshi, duro como ferro, atingiu-o no escroto, fazendo-cair ao chão a se contorcer de dor. Ainda dominado pela raiva, a adrenalina fluindo —Yoshi saltou para o homem caído, erguendo a espada partida, que seria cravada no pescoço do oponente, para o golpe mortal. Mas ele deteve o golpe a uma fração do pescoço, o coração batendo forte, extasiado com sua habilidade e controle, por não ter falhado desta vez, a vitória nada significando. Sua fúria acumulada se dissipou.



Contente agora, ele jogou para o lado a espada de madeira quebrada e começou a relaxar, a sala de exercício despojada, como o resto do castelo. Todos se recuperavam do esforço intenso, o homem no chão ainda se contorcia em dor. Foi nesse instante que Yoshi se surpreendeu ao ouvir palmas suaves. Virou-se, furioso — por seu costume, ninguém jamais era convidado a testemunhar aqueles exercícios, nos quais se podia avaliar a extensão de suas proezas, determinar suas fraquezas e medir sua brutalidade —, mas a raiva também se desvaneceu.



— Hosaki! Quando você chegou? — disse ele, tentando recuperar o fôlego. — Por que não enviou um mensageiro para me avisar de sua vinda?



Yoshi fez uma pausa, o sorriso sumindo.



— Problemas?



— Não, Sire — respondeu a esposa, feliz, ajoelhando-se ao lado da porta. — Nenhum problema, apenas uma abundância de prazer por vê-lo de novo.



Ela fez uma reverência profunda, a saia e o blusão de montaria de seda verde, trajes modestos e marcados por muitas viagens, assim como o sobremanto acolchoado, também verde, o chapéu largo, amarrado sob o queixo, e a espada curta na obi.



— Por favor, desculpe-me por aparecer assim, sem ser convidada e sem trocar de roupa antes, mas não podia esperar para vê-lo... e agora me sinto ainda mais satisfeita, por saber que é um espadachim melhor do que nunca.



Ele fingiu não estar deliciado, adiantou-se, fitou-a nos olhos, inquisitivo.



— Realmente nenhum problema?



— Nenhum, Sire.



Ela estava radiante, com uma adoração ostensiva. Dentes brancos, olhos escuros, num rosto clássico, que não era atraente nem comum, mas não seria esquecido, toda a sua presença irradiando extrema dignidade. Nove anos antes, quando Yoshi tinha dezessete anos, o pai lhe dissera:



— Yoshi, escolhi uma esposa para você. Sua linhagem é Toranaga, como a nossa, embora do ramo menor de Mitowara. Ela se chama Hosaki, significando uma “espiga de trigo”, na língua antiga, um presságio de abundânciae fertilidade, e também “ponta de lança”. Não creio que ela venha a lhe falhar em qualquer das duas capacidades...



E não falhara mesmo, pensou Yoshi, orgulhoso. Já tinham dois lindos filhos e uma filha, e ela ainda é forte, sempre sábia, uma competente administradora de nossas finanças, e, o que é raro numa esposa, bastante agradável na cama, embora sem o fogo da minha consorte ou parceiras de prazer, Koiko em particular.



Ele aceitou uma toalha seca do oponente que saíra ileso e acenou com a mão para dispensá-los. O homem fez uma reverência, em silêncio, ajudou o outro a se levantar, e os dois saíram.



Yoshi ajoelhou-se perto da esposa, enxugando o suor.



— E então?



— Não é seguro aqui, neh? — sussurrou ela.



— Nenhum lugar é seguro.



— Primeiro — acrescentou Hosaki, em voz normal —, primeiro, Yoshi-chan, vamos cuidar de seu corpo: um banho, uma massagem e, depois, conversaremos.



— Boa idéia. Há muito que conversar.



— Há, sim. — Sorrindo, ela se levantou e, em resposta a seu olhar inquisitivo tomou a tranquilizá-lo: — Está tudo bem no Dente do Dragão, seus filhos com plena saúde, sua consorte e o filho dela felizes, seus capitães e servidores atentos e bem armados... tudo como você haveria de querer. Apenas decidi fazer uma visita, num súbito capricho... só para vê-lo e conversar sobre a administração do castelo.



E também por querer ir para a cama com você, meu belo, pensou Hosaki e seu coração secreto, contemplando-o, as narinas absorvendo seu cheiro masculino consciente de sua proximidade, e ansiando, como sempre, por sua força.



Enquanto se encontra longe, Yoshi-chan, posso me manter calma, na maior parte do tempo, mas perto de você... Torna-se então muito difícil, embora eu finja — e como finjo! —, não consigo esconder o ciúme das outras e me comportar como uma esposa perfeita. Mas isso não significa que eu, como todas as esposas não sinta um ciúme violento, às vezes no nível da loucura, desejando matar ou ainda melhor, mutilar as outras, querendo ser desejada e levada para a cama com uma paixão igual.



— Passou muito tempo ausente, marido — murmurou ela, gentilmente, querendo que Yoshi a possuísse agora, no chão, impetuoso, como imaginava que os jovens camponeses faziam.



Era quase meio-dia e um vento suave varria o céu. Estavam no santuário mais íntimo de Yoshi, um conjunto de três aposentos, com tatames, e um banheiro, junto de uma ameia no canto. Hosaki servia-lhe chá, com a elegância de sempre. Desde criança que estudara a cerimônia do chá, assim como Yoshi, mas agora ela se tomara uma sensei, uma mestra do chá. Ambos haviam se banhado e sido massageados. As portas se achavam trancadas, os guardas de vigia, as criadas dispensadas. Yoshi usava um quimono engomado, ela um quimono largo, de dormir, os cabelos soltos.



— Depois de nossa conversa, acho que vou descansar. Assim, estarei com a cabeça desanuviada para esta noite.



— Montou durante todo o percurso?



— Isso mesmo, Sire.



A viagem fora bastante árdua, com pouco sono, troca de cavalos a cada três ri, cerca de quinze quilômetros.



— Quanto tempo levou?



— Dois dias e meio. Trouxe apenas vinte servidores, sob o comando do capitão Ishimoto.— Hosaki riu. — Eu precisava mesmo da massagem e do banho. Mas, primeiro...



— Quase dez ri por dia? Por que a marcha forçada?



— Em grande parte para o meu prazer — respondeu ela, jovial, sabendo que havia tempo suficiente para as más notícias. — Mas, primeiro, Yoshi-chan, para o seu prazer.



— Obrigado.



Yoshi tomou o chá verde fino da xícara ming, largou-a ao terminar, observando e esperando, impressionado com o controle e tranquilidade da esposa. Após ervir de novo, tomar um gole de seu chá, ela também largou a xícara e disse suavemente:





— Decidi vir até aqui sem demora porque ouvi rumores inquietantes e precisava tranquilizar a mim mesma e a seus capitães de que você estava bem... rumores de que você corria perigo, que Anjo mobilizava o conselho contra você, que o atentado dos shishi contra ele e o assassinato de Utani eram parte de uma grande escalada de Sonno-joi, que a guerra é iminente, partindo de dentro e de fora, e que Anjo continua a trair, a você e a todo o xogunato. Ele deve estar insano para permitir que o xógum e sua esposa imperial viajem para Quioto, numa demonstração de submissão.





— Tudo isso é verdade ou verdade parcial — respondeu Yoshi, com igual serenidade, deixando a esposa angustiada. — As más notícias viajam com as asas do falcão, Hosaki, neh? Tudo é pior por causa dos gai-jin.





Ele relatou seu encontro com os estrangeiros, falou sobre Misamoto, o espião, e contou com mais detalhes as intrigas no castelo... mas não sobre a suspeita da ligação de Koiko com os shishi. Hosaki jamais compreenderia como ela é excitante e essa informação a torna ainda mais excitante, pensou Yoshi. Minha esposa aconselharia o imediato afastamento de Koiko, a investigação e punição, não me dando sossego enquanto isso não fosse feito. Ele concluiu com a presença da esquadra estrangeira às suas portas, a mensagem e a ameaça de Sir William e a reunião daquele dia.



— Zukumura? Um ancião? Aquele cabeça de peixe senil? Um dos seus filhos não casou com uma sobrinha de Anjo? O velho Toyama não votou por ele, não é mesmo?



— Toyama limitou-se a dar de ombros e disse: “Ele ou outro, nada significa, entraremos em guerra em breve. Tenham quem quiserem.”



— Ou seja, na melhor das hipóteses, serão três contra dois, você perdendo.



— Isso mesmo. Agora, não há como conter Anjo. Ele pode fazer o que quiser, votar para aumentar seus poderes, promover-se a tairo, qualquer estupidez que imaginar... como a absurda viagem de Nobusada a Quioto.



Yoshi sentiu outra vez uma pressão no peito, mas tratou de ignorá-la, satisfeito pela oportunidade de falar com franqueza... ao máximo de que era capaz, confiando nela mais do que em qualquer outra pessoa.



— Os bárbaros eram como os imaginava, Sire?



Tudo neles a fascinava. “Conheça seu inimigo como a si mesmo...” Sun-tzu



Era o principal livro de aprendizado de Hosaki e suas quatro irmãs e três irmãos, tanto como as artes marciais, caligrafia e a cerimônia do chá. Ela e as irmãs também haviam estudado, com a mãe e as tias, tudo sobre a terra e administração financeira, assim como métodos práticos de lidar com homens de todas as classes, e o futuro e a suprema importância. Ela nunca se destacara nas artes marciais, embora soubesse usar uma faca bastante bem.



Yoshi contou a ela tudo o que podia se lembrar, inclusive o que Misamoto dissera sobre a parte das Américas conhecida como Califórnia... e às vezes chamada de terra da montanha de ouro. Os olhos de Hosaki se contraíram, mas ele não percebeu.



Quando Yoshi acabou, ela ainda tinha mil perguntas, mas controlou-se deixando-as para mais tarde, não querendo cansá-lo.



— Ajuda-me a ver tudo com clareza, Yoshi-chan, é um observador extraordinário. O que decidiu?



— Nada, por enquanto... Eu gostaria que meu pai estivesse vivo, sinto falta de seus conselhos... e também dos conselhos da mãe.



— Posso compreender.



Hosaki sentia-se contente por ambos estarem mortos, o pai dois anos antes os problemas da velhice agravados pelo confinamento a que fora submetido por Li — ele tinha cinqüenta e cinco anos —, e a mãe na epidemia de varíola do ano passado. Ambos haviam tornado angustiante a vida de Hosaki, ao mesmo tempo em que mantinham Yoshi sob seu encantamento. Na opinião dela, o pai não cumpria seu dever com a família, tomando decisões erradas com mais frequência do que as certas, enquanto a mãe sempre fora a sogra mais destemperada e difícil de agradar que já conhecera, pior com ela do que com as esposas dos três irmãos de Yoshi.



A única coisa inteligente que eles fizeram em toda a sua vida, refletiu Hosaki, foi concordarem com a proposta de casamento com Yoshi Toranaga apresentada por meu pai. Por isso, tenho de lhes agradecer. Agora, reino sobre o Dente do Dragão e nossas terras, que passarão para meus filhos, fortes, inviolados e dignos do lorde xógum Toranaga.



— É uma pena que eles tenham partido — murmurou Hosaki. — Vou ao santuário deles todos os dias e suplico para ser digna da confiança que me dispensavam.



Yoshi suspirou. Desde a morte da mãe que sentia um vazio, mais ainda do que depois da morte do pai, a quem admirava, mas temia. Sempre que tinha um problema, ou estava com medo, sabia que podia procurá-la, e seria tranquilizado, orientado, receberia uma nova força. Ele murmurou, muito triste:



— Karma que a mãe tenha morrido tão jovem.



— Tem razão, Sire.



Hosaki compreendia a tristeza do marido, pois a mesma coisa ocorria com todos os filhos, cujo primeiro dever é obedecer e respeitar a mãe acima de todas as pessoas... e pela vida inteira. Nunca poderei preencher esse vazio, assim como as esposas dos meus filhos jamais preencherão o que vou deixar.



— Qual é o seu conselho, Hosaki?



— Tenho pensamentos demais para tantos problemas — respondeu preocupada, a mente absorvendo o mosaico de perigos que vinham de todos os lados.— Sinto-me inútil neste momento. Deixe-me pensar com cuidado, esta noite e amanhã... talvez eu possa sugerir alguma coisa que lhe dará uma indicação do que deve fazer e depois, com sua permissão, voltarei para casa no dia seguinte, já que pelo menos uma coisa é certa: precisamos reforçar nossas defesas. Deve me dizer o que fazer. Enquanto isso, permita-me algumas observações imediatas, para sua consideração: aumentar a vigilância de seus guardas e mobilizar discretamente todas as suas forças.



— Eu já havia tomado essa decisão.





— Esse gai-jin que o abordou depois da reunião, um francês, pelo que disse... sugiro que aceite seu oferecimento, para ver com seus próprios olhos o interior de um navio de guerra. É muito importante que você mesmo veja... talvez até possa fingir que se torna amigo deles, para depois jogá-los contra os ingleses, neh?



— Também já havia decidido isso.



Ela sorriu para si mesma, baixou a voz ainda mais:





— Por mais difícil que seja, Anjo deve ser removido, em caráter permanente... e quanto mais cedo, melhor. Como é provável agora, você não pode evitar que o xógum e a princesa partam para Quioto... Concordo que ela é, corretamente, do seu ponto de vista, a espiã da corte, uma títere e inimiga. Assim, você deve partir em segredo, logo depois deles, e correr para Quioto, pela Tokaidô, que é mais curta, e chegar lá antes... Sorri, Sire?



— Só porque você me agrada. E quando chegar a Quioto?





— Deve se tornar o confidente do imperador... temos amigos na corte que o ajudarão. Depois, uma possibilidade entre dezenas: fazer um acordo secreto com Ogama de Choshu, deixá-lo com o controle dos portões... — Hosaki hesitou, enquanto o marido ficava vermelho. — ...mas apenas enquanto ele for seu aliado declarado contra Satsuma e Tosa.



— Ogama jamais acreditaria que eu cumpriria esse acordo... e pode ter certeza que eu não o faria, pois precisamos recuperar os portões a qualquer custo.





— Concordo. Mas a parte final do pacto pode ser outra, se ele concordar numa aliança para um ataque de surpresa a lorde Sanjiro, de Satsuma, no momento em que você escolher. Depois que Sanjiro for derrotado, Ogama lhe devolve os portões, e fica em troca com Satsuma.



Yoshi franziu o rosto ainda mais.





— É muito difícil derrotar Sanjiro por terra, quando ele se entrincheira por trás de suas montanhas... nem mesmo o xógum Toranaga atacou Satsuma depois de Sekigahara, apenas aceitou a submissão pública, os juramentos de fidelidade e controlou-os com gentilezas. E não podemos desfechar um ataque por mar.



Ele pensou por um momento.



— É um sonho, não uma possibilidade concreta. Muito difícil, mas... quem sabe? A próxima sugestão.



— Remover Nobusada em seu caminho para Quioto... é uma chance única.



— Nunca! — Yoshi sentia-se chocado por Hosaki ter pensado da mesma forma que ele ou, então, o que seria ainda pior, ter percebido seu desejo mais secreto. — Seria trair o legado, minha herança, tudo pelo que o lorde xógum Toranaga se empenhou. Aceitei-o como meu suserano, como não podia deixar de fazer.



— Tem toda razão — disse ela no mesmo instante, apaziguando-o, já fazendo uma reverência, preparada e esperando tal reação, mas precisando articulá-la para ele. — Foi baka de minha parte. Concordo completamente. Sinto mui...



— Ainda bem. Nunca mais pense ou diga isso.



— Claro. Por favor, perdoe-me.



Hosaki manteve a cabeça inclinada pelo tempo apropriado, murmurando desculpas, depois inclinou-se para a frente, tornou a encher a xícara de Yoshi recostou-se, olhos abaixados, esperando que ele lhe pedisse para continuar.



Nobusada deveria ter sido eliminado por seu pai, Yoshi, pensou ela, calmamente... e me espanta que você nunca tenha compreendido isso. Seu pai e mãe — que deveriam lhe dar os conselhos corretos — falharam em seu dever quando aquele menino estúpido foi proposto para xógum, em seu detrimento, pelo traidor Li. Foi Li quem nos impôs a prisão domiciliar, destruiu nossa paz por anos, quase causou a morte de nosso filho mais velho, por causa dos meses em que ficamos tão confinados que todos passamos fome. Sabíamos que ele faria isso muito antes que acontecesse. Afastar Nobusada sempre foi o caminho óbvio, por mais herética e desagradável que seja tal ação, o único meio de proteger nosso futuro. Se você não quer considerar isso, Yoshi, eu mesma encontrarei uma maneira...



— Foi um mau pensamento, Hosaki. Terrível!



— Concordo, Sire. Por favor, aceite minhas humildes desculpas. — Ela tornou a encostar a cabeça no tatame. — Foi uma estupidez. Não sei de onde vem tanta estupidez. Tem toda razão, é claro. Talvez seja porque me sinta angustiada com os perigos que lhe cercam. Por favor, Sire, permite que eu me retire?



— Daqui apouco. Agora...



Um pouco abrandado, Yoshi gesticulou para que ela servisse mais chá, ainda atordoado pela esposa ter ousado expressar tamanho sacrilégio, até mesmo para ele.



— Posso mencionar um outro pensamento, Sire, antes de ir embora?



— Pode, desde que não seja tão estúpido quanto o último.



Ela quase riu da farpa petulante de menino, que não chegava a penetrar nem mesmo em suas defesas externas.





— Disse, Sire, que o problema mais importante e imediato a resolver com os gai-jin é como afundar suas esquadras ou manter seus canhões longe de nossas praias, neh?



— Isso mesmo.



— Pode-se montar canhões em barcaças?



— Como? — Ele franziu o rosto, desviando o pensamento de Nobusada devido a esse novo rumo na conversa. — Acho que sim. Por quê?



— Podemos descobrir com os holandeses. Eles nos ajudariam. Talvez pudéssemos construir uma frota defensiva, mesmo difícil de manobrar, ancorando barcaças no mar, em acessos estratégicos às nossas áreas mais importantes, como nos estreitos de Shimonoseki, e fortificando as entradas de todas as nossas enseadas — Por sorte, são bem poucas, neh?



— Talvez seja possível — admitiu Yoshi, a idéia nunca tendo lhe ocorrido. — Mas não disponho de dinheiro ou ouro em quantidade suficiente para comprar todos os canhões necessários às baterias em terra, muito menos para construir uma frota assim. Nem tempo suficiente, conhecimento ou riqueza para abrir nossas próprias fábricas... nem os homens para operá-las.





— É verdade, Sire. Está sendo sábio. — Uma pausa, e Hosaki, com uma cara triste, respirou fundo. — Todos os daimios estão empobrecidos, cheios de dívidas... e nós tanto quanto os outros.



— Hem? — gritou ele. — A colheita?



— Sinto muito trazer más notícias. Menor que a do ano passado.



— Quanto menor?



— Um terço.



— É uma péssima notícia, logo no momento em que eu precisava de uma receita extra! — Yoshi cerrou o punho. — Os camponeses são todos baka!



— Sinto muito, mas a culpa não é deles, Yoshi-chan. As chuvas vieram muito tarde ou muito cedo, o sol também. Os deuses não sorriram para nós este ano.



— Não há deuses, Hosaki-chan, mas há karma. É karma termos uma péssima colheita... mas mesmo assim você terá de pagar os tributos.



Os olhos de Hosaki brilhavam com lágrimas.



— Haverá fome no Kwanto antes da próxima colheita... e se isso acontece conosco, que temos a terra mais fértil para o plantio de arroz em todo o Nipão, o que será dos outros?



A lembrança da grande fome, quatro anos antes, ressurgiu na mente de ambos. Milhares de pessoas morreram de fome, dezenas de milhares nas epidemias inevitáveis que se seguiram. E na outra grande fome, ainda maior, vinte anos antes, centenas de milhares haviam morrido.



— Esta é de fato a terra das lágrimas.



Yoshi balançou a cabeça, distraído. Quando falou, a voz saiu áspera:





— Você vai aumentar os tributos por uma décima parte, todos os samurais receberão uma décima parte a menos. Falaremos com os emprestadores de dinheiro. Eles podem aumentar nossos empréstimos. O dinheiro será gasto em armamentos.



— Está certo. — Uma pausa e Hosaki acrescentou, com extremo cuidado: — Estamos numa situação melhor do que a maioria, só comprometemos a colheita do próximo ano. Mas será difícil conseguir taxas de juros normais.



— O que sei ou me importo com taxas de juros? — disse ele irritado, a cara garrada. — Faça o melhor acordo que puder. Talvez tenha chegado o momento de propor ao conselho um ajuste das “taxas de juros”, como meu bisavô.





Há sessenta e tantos anos, o xógum, sufocado sob o peso das dívidas do pai, oito anos de futuras colheitas empenhados, como todos os daimios, e espicaçado pela crescente arrogância e desdém da classe dos mercadores, decretara abruptamente que todas as dívidas estavam canceladas e todas as colheitas futuras livres de dívidas.





Em dois séculos e meio, desde Sekigahara, esse decreto extremo fora promulgado quatro vezes. Causava o caos em todo o país. O sofrimento em todas as classes era imenso, em particular entre os samurais. Os mercadores de arroz, que eram os principais emprestadores de dinheiro, pouco podiam fazer. Muitos foram à bancarrota. Uns poucos cometeram seppuku. Os demais se retraíram da melhor forma que podiam e sofreram também com o desespero geral.





Até a próxima colheita. Os plantadores precisavam, então, dos mercadores e todas as pessoas precisavam de arroz; assim, com o maior cuidado, as vendas eram efetuadas e o dinheiro escasso — e, por isso mesmo, bastante caro — era emprestado para sementes e ferramentas, contra a próxima colheita. Aos poucos de forma modesta, o dinheiro e o crédito alcançavam os samurais, contra seus rendimentos esperados, para subsistência e diversão, sedas e espadas. Não demorava muito para que o excesso de gastos dos samurais se tornasse endêmico. Com uma cautela ainda maior, os emprestadores de dinheiro retomavam suas atividades. Logo era preciso lhes oferecer atrativos, mesmo com relutância, como certidões de samurai, adquiridas para alguns filhos, e tudo em breve voltava a ser como antes, com os feudos penhorados.



— Talvez deva mesmo fazer isso, Sire.— Hosaki sentia a mesma repugnância que o marido pelos emprestadores de dinheiro. — Tenho estoques secretos de arroz contra a fome. Seus homens poderiam ficar famintos, mas não morreriam de inanição.



— Ótimo. Negocie esses estoques por armas de fogo.





— Sinto muito, mas a quantidade não seria significativa — disse ela, gentilmente, consternada com a ingenuidade de Yoshi, e se apressou em acrescentar, para desviá-lo desse assunto: — Por outro lado, os tributos não proporcionarão o dinheiro que os gai-jin vão exigir.



— Neste caso, teremos de recorrer aos emprestadores de dinheiro. Faça qualquer coisa que for necessária. Preciso das armas.



— Está bem. — Hosaki deixou o silêncio se prolongar e, depois, bem devagar, começou a expor um plano por muito tempo ponderado: — Algo que me disse antes de sair de casa me deu uma idéia, Sire. A pequena mina de ouro em nossas montanhas ao norte. Proponho aumentarmos a força de trabalho.



— Mas disse-me muitas vezes que a mina já foi quase exaurida e produz menos receita a cada ano.





— É verdade, mas você me fez compreender que nossos mineiros não são especialistas e me ocorreu que, onde há um veio, pode haver outros também se tivéssemos especialistas para procurá-los. Talvez nossos métodos sejam antiquados. Pode haver técnicos no assunto entre os gai-jin.



Ele fitou-a nos olhos.



— Como assim?





— Conversei com Velho Fedorento... — Era o apelido de um holandês, que anos antes fora mercador em Deshima, contratado para ser um dos tutores de Yoshi e induzido a ficar, com o presente de criadas, uma jovem consorte e muito saquê, até se tornar tarde demais para partir.— Ele me contou sobre uma enorme corrida do ouro na terra da montanha de ouro que você mencionou, há apenas treze anos, quando gai-jin de todas as nações foram roubar uma fortuna da Terra. Houve outra corrida do ouro parecida, há poucos anos, num lugar ao sul daqui... ele chamou-o de terra de van Diemen. Deve haver homens em Iocoama que participaram de uma ou de outra. Especialistas!



— E se eles existirem? — indagou Yoshi, pensando em Misamoto.



— Sugiro que lhes ofereça passagem segura e metade do ouro que descobrirem no prazo de um ano. Há muitos americanos e aventureiros na colônia, pelo que fui informada.





— Gostaria de ver os gai-jin vagueando por nossas terras, espionando tudo?



Hosaki balançou a cabeça, depois inclinou-se para a frente, sabendo que tinha a atenção total do marido.





— Mais uma vez, foi você quem proporcionou a solução, Yoshi-chan. Poderia procurar esse importante mercador de Iocoama, em segredo, o mesmo que me contou que achava que ia fornecer fuzis a Choshu... concordo que devemos obter fuzis e canhões modernos a qualquer custo, ao mesmo tempo em que impedimos os inimigos de adquiri-los. Poderia lhe oferecer a concessão para a exploração do ouro, com exclusividade. Em troca, ele providencia tudo o que for necessário para a pesquisa e mineração. Só aceitaria um ou dois peritos desarmados e é claro que eles seriam vigiados de perto. Como compensação, receberia adiantado muitos canhões e fuzis, contra a metade do ouro encontrado, e esse mercador concorda em vender armas apenas a você. Nunca a Choshu, Tosa ou Satsuma. Sorri, Sire?



— E nosso intermediário seria Misamoto?



— Sem a sua sagacidade em descobri-lo e treiná-lo, isto não seria possível.



Ela falou com total deferência e recostou-se, secretamente satisfeita, escutando os comentários de Yoshi e suas respostas, sabendo que ele iniciaria a execução do plano o mais depressa possível, que acabariam conseguindo as armas de alguma forma, sem abrir mão de suas preciosas reservas de arroz. Pouco depois, Hosaki já pôde fingir que se sentia exausta e pedir permissão para descansar.



— Deveria também repousar, Sire, depois de um exercício tão maravilhoso, embora extenuante...



Claro que ele deveria, um homem tão excepcional, pensou Hosaki. E, uma vez no quarto, com muitos elogios, pedindo permissão para massagear os músculos cansados dos ombros, pouco a pouco, com a devida cautela, se tornando mais insinuante, deixando escapar um ou outro suspiro, faria com que ele se tornasse tão íntimo quanto podia desejar. A mesma intimidade que ele tinha com Koiko.



Antes, Koiko pedira permissão para visitá-la, fizera uma reverência, agradecera, dissera que esperava que seus serviços agradassem ao grande lorde, que sentia-se honrada por poder ingressar naquela família, mesmo que por um breve período. Conversaram por algum tempo e, depois, ela se retirou.



Uma beleza e tanto, pensou Hosaki, sem ciúme, nem inveja. Yoshi tem direito a uma diversão, por mais dispendiosa que seja, de vez em quando. A beleza dessas mulheres é muito frágil, transitória, uma vida tão triste, autênticas flores de cerejeira, da árvore da vida. O mundo de um homem é muito mais excitante fisicamente, do que o nosso. Ah, ser capaz de ir de flor em flor, sem angústia ou preocupação...



Se a punição até por uma pequena aventura de nossa parte não fosse tão imediata e severa, as mulheres considerariam a possibilidade com mais frequência Não é verdade? E por que não? Se fosse seguro.



Às vezes, quando Yoshi está ausente, o pensamento de perigo tão intenso e morte imediata é um afrodisíaco quase irresistível. Uma tolice, por um prazer tão fugaz. Ou será que não?



Ela esperou, observando-o, experimentando profunda satisfação, adorando o jogo da vida, enquanto sua mente fervilhava com variações do plano, e como usar a criação de Yoshi, Misamoto.



Começarei logo, pensava ele. Hosaki possui uma boa mente e é hábil em articular minhas idéias. Mas ter aquele pensamento sobre o menino foi baka demais, por mais correta que tal ação pudesse ser, como um ato de interesse do Estado. As mulheres não têm qualquer sutileza.











Na colônia, naquela madrugada, pouco antes da alvorada, Jamie McFay deu um beijo final em Nemi, depois seguindo juntos pelo corredor até a suíte de Malcolm Struan. Ele bateu de leve na porta, que foi aberta no mesmo instante. A jovem, Shizuka, saiu, fechou a porta, exibiu um sorriso curioso e começou a sussurrar para Nemi que, em seguida, pegou McFay pelo braço e levou-o até o patamar.



— O que foi? Má notícia? — indagou ele, nervoso.



Vislumbrara Struan na cama enorme, mergulhado num sono profundo, antes de a porta ser fechada, e tivera a impressão de que estava tudo bem. Nemi não lhe deu qualquer atenção e continuou a interrogar a outra moça. Exasperado, McFay insistiu:



— O que foi, Nemi? Qual a má notícia?



Ela hesitou, e depois, com um fluxo inicial de desculpas em japonês, fitou-o radiante.



— Não má, Jami-san, você ir Yoshiwara amanhã, sim, não?



Ela pôs o manto, começou a descer a escada, mas McFay a deteve.



— Qual é a má notícia, Nemi? — indagou ele, desconfiado.



A moça fitou-o em silêncio por um momento, depois mais japonês que ele não entendeu. Ao final, deu de ombros e arrematou:



— S’gr’d, wakarimasu ka?



— S’gr’dl O que isso significa?



— S’grid, Jami-san, hai?



— Ah, segredo, pelo amor de Deus! Wakarimasu! Qual é o segredo? Ela suspirou de alívio, tornou a sorrir.



— S’gr’d, bom! S’gr’d, Jami-san, Shizuka, Nemi. Hai? Hai?



— Hai. Manter segredo. E agora o que foi?



Mais japonês e pidgin, incompreensíveis enquanto as duas vestiam os mantos para sair. Frustrada porque não conseguia explicar direito, ou pelo simples fato de ter de explicar, Nemi imitou bastante movimento, e sussurrou:



— Shizuka boa, trabalhar bem noite.





Tai-pan, bem?



Ela revirou os olhos.



— Hai, Jami-san, Shizuka boa!



Todas as perguntas adicionais de McFay só produziram reverências e sorrisos das duas, por isso ele agradeceu a Shizuka, cujos honorários já haviam sido acertados.





— “crédito tai-pan grande muito bom”, dissera-lhe a mama-san. Pela última vez, Nemi fez com que ele jurasse segredo. O criado à espera levou-as de volta à Yoshiwara.



Perturbado, mas sem saber por que, embora certo de que não lhe fora revelada toda a verdade, McFay voltou na ponta dos pés, parou ao lado da cama, mas Struan continuava num sono profundo, a respiração tranquila. Por isso, ele foi para o escritório e começou a trabalhar.



Até pouco depois das dez horas.











— Olá, doutor. Entre. É um prazer vê-lo de novo. Quais são as novidades?



A expressão de Hoag era sombria.



— Ah Tok mandou me chamar, e acabei de ver Malcolm... essa é a novidade. Eu gostaria que você tivesse me perguntado antes de... ora, Jamie, pelo amor de Deus! — Ele viu McFay corar e se apressou em acrescentar: — Sei que foi ele quem pediu a você para arrumar tudo, mas deveria ter pensado em me perguntar primeiro... Eu diria que era óbvio que seria perigoso, um absurdo tentar tão cedo, depois de um ferimento assim, com metade de suas entranhas costurada, quase ao ponto de rompimento...



Hoag fez uma pausa, sentou e murmurou, mais calmo:



— Desculpe, mas eu tinha de descarregar.



— Não tem problema... É grave?



— Não sei. Há um pouco de sangue na urina e ele sente muita dor nos rins. Parece que a mulher foi muito vigorosa, ele se deixou arrebatar e disse que, quando alcançou o orgasmo, teve um espasmo no estômago, ficou com cãibras. Pobre coitado... embora sinta muita dor agora, diz que valeu a pena.



— Ele disse isso?



— E com detalhes... mas não diga que lhe contei, está bem? Dei uma poção para acabar com a dor e ele deve dormir por uma ou duas horas. Voltarei mais tarde. — Hoag suspirou, levantou-se, com um sorriso desolado. — Recebi outra carta da Sra. Struan. E você?



— Também recebi. Igual às anteriores. Vai ordenar que ele volte a Hong Kong agora?



— Não posso ordenar que ele faça qualquer coisa. Malcolm irá quando quiser; não podemos esquecer que esta é a temporada das tempestades. Ele seria sensato em permanecer aqui... a menos que haja alguma coisa premente em Hon Kong.



— Há dezenas de motivos para voltar... é o centro do poder e não há nada para ele fazer aqui.



Hoag deu de ombros.



— Concordo que Hong Kong seria melhor. Eu planejava voltar no navio de correspondência, mas depois da noite passada acho que esperarei com ele por mais alguns dias.



— Por favor, leve-o com você, no navio de correspondência.



— Já sugeri isso, e recebi como resposta um “não” pouco polido. Esqueça, Jamie. Não há nada de errado em Malcolm continuar repousando aqui, e uma viagem marítima difícil seria extremamente prejudicial, poderia até matá-lo. Por falar nisso, ouvi dizer que pode haver outro baile na próxima terça-feira, com Peitos-de-Anjo como a convidada de honra.



— Malcolm não mencionou nada.



— Sob os auspícios do embaixador Seratard, de ancestral duvidoso, pai de todos os franceses. Bom, tenho de ir agora... mantenha-me informado de tudo o que acontecer por aqui, e se Malcolm pedir por outro encontro similar, consulte-me primeiro, em particular.



— Está certo. Obrigado, doutor.



Mais tarde, Vargas bateu na porta.





— Senhor, Ah Tok diz o que tai-pan quer lhe falar.



Subindo a escada, Jamie sentiu uma súbita contração no estômago, imaginando-se no lugar de Malcolm.





— Senhor McFay! — gritou Vargas lá de baixo. — Com licença, mas os samurais de Choshu acabam de chegar, para tratar daquela encomenda de rifles.



— Voltarei num instante. McFay bateu e abriu a porta.





— Olá, tai-pan — disse ele, gentilmente. Struan estava recostado nos travesseiros, com uma expressão estranha, um sorriso apático. — Como se sente hoje?



— Falou com Hoag?



— Falei.



— Neste caso, já sabe que ela foi bastante satisfatória e... Obrigado, Jamie. Ela ajudou muito, mas... — Struan soltou uma risada nervosa. — ...mas o final me deixou um pouco abalado. Um corpo espetacular. Foi tudo bastante satisfatório. Mas creio que não precisarei de uma repetição do desempenho, até me sentir melhor. Mas pelo menos ela me livrou... do tremendo acúmulo.



Ele fez uma pausa, soltou de novo a risada curta e nervosa.



— Não imaginava, Jamie, como uma mulher tão pequena podia ser tão boa ou tão... pode compreender, não é?



— Claro que posso. Tudo transcorreu de acordo com o plano?



Por um instante, Struan hesitou, mas logo disse, com firmeza:



— Melhor até... quero que você dobre o pagamento dela.



— Está certo.



McFay podia perceber a ansiedade latente e seu coração se confrangeu por Malcolm. Independente do que pudesse acontecer, o encontro com Shizuka tinha de ser mantido em segredo. Se é assim que ele quer, tudo bem. Não cabe a mim decidir. O que está feito está feito. Apenas mais um segredo para acrescentar aos demais.



— Fico contente que tudo tenha corrido bem.



— Melhor do que bem. A moça disse alguma coisa?



— Apenas que ela... ahn... trabalhou a noite inteira... para tentar satisfazê-lo.



Uma batida na porta e Angelique entrou, transbordando de saúde, muito elegante num vestido cor de alfazema, novo, sombrinha, chapéu com plumas, luvas e xale.





— Olá, meu amor, olá, Jamie. Como se sente hoje? Oh, Malcolm, fico tão feliz em vê-lo! — Ela se inclinou para beijar Struan, com extrema ternura. — Oh, chéri, como sinto sua falta!





No momento em que a porta se abrira, os corações dos dois homens dispararam. O nervosismo de McFay aumentara e, no mesmo instante, seus olhos examinaram a cama e o resto do quarto, à procura de sinais denunciadores. Mas tudo se encontrava em ordem, impecável, os lençóis e fronhas trocados todos os dias — devido mais à meticulosidade de Struan com a higiene, em um nível absurdo, pensou ele —, assim como a camisa. Era ridículo, uma ou duas vezes por mês seriam mais do que suficientes. Por outro lado, ele sabia que o hábito fora instituído por Dirk Struan, e tudo o que o tai-pan determinava era lei para Tess Struan e, por conseguinte, para sua família. Struan acabara de fazer a barba, usava um camisolão limpo, e as janelas estavam abertas para a brisa marinha, que dissiparia quaisquer vestígios de perfume. McFay passou a respirar com mais facilidade e foi nesse instante que Angelique anunciou:



— Falei com o Dr. Hoag.



Os dois quase tiveram outro espasmo.





— Meu pobre querido — continuou ela, quase sem pausa —, ele me contou que teve uma péssima noite e que não poderá ir à soirée de Sir William hoje. Por isso, achei que devia ficar aqui com você, fazendo-lhe companhia, até a hora do almoço.



Outra vez o sorriso deslumbrante, que seduziu os dois, e Angelique se instalou numa cadeira de encosto alto. Struan sentia-se tonto de amor por ela, ao mesmo tempo em que experimentava uma náusea de culpa. Eu devia estar louco ao querer uma prostituta para substituir o amor da minha vida, pensou ele, deleitando-se com o calor que Angelique irradiava, querendo falar sobre Shizuka e suplicar seu perdão.



A noite começara bastante bem, com Shizuka despindo-se, sorrindo, comprimindo-se contra ele, acariciando, estimulando. Struan também a tocara, acariciando ao mesmo tempo orgulhoso e ansioso. Fora um tanto difícil e doloroso assumir a posição normal, efetuar os movimentos normais, para começar, mas não impossível... até que de repente o rosto e a presença de Angelique dominaram-no por completo, uma pressão involuntária e indesejada. Sua virilidade murchara. E por mais que Shizuka tentasse, e ele também, não voltara mais.



Descansaram um pouco, tentaram de novo, a ânsia horrível agora para ele agravada por uma raiva frenética e impotente, pela necessidade de provar sua capacidade. Mais carícias e tentativas... ela era experiente com as mãos, lábios e corpo, mas nada conseguira que provocasse uma reação de desejo e necessidade muito menos de amor e seu indefinível mistério. Nem qualquer coisa que Shizuka fizesse seria capaz de dissipar o espectro. Ou prevalecer sobre a dor.



Ao final, ela acabara desistindo, o corpo jovem brilhando de suor, ofegante de tanto esforço.





— Gomen nasai, tai-pan — sussurrara Shizuka, várias vezes, desculpando-se.





Ao mesmo tempo, ela ocultara sua fúria, quase em lágrimas pela impotência de Struan, pois nunca falhara antes, e esperara que ele chamasse os criados a qualquer momento, para expulsá-la pelo fracasso, por não conseguir despertá-lo, como uma pessoa civilizada deveria fazer. E mais do que qualquer outra coisa, ela sentira-se assediada pela ansiedade, sem saber como explicaria sua inadequação à mama-san. Que Buda fosse testemunha: o homem é que fracassou, não eu!



— Gomen nasai, gomen nasai — continuara a balbuciar.



— É o acidente — murmurara Struan.





Ele desprezava a si mesmo, achando que a dor era grotesca. Falara sobre a Tokaidô, sobre seus ferimentos, embora soubesse que a mulher não entenderia suas palavras, agoniado de frustração. Passada a tempestade, suas lágrimas secando, Struan fê-la deitar-se ao seu lado, impedira-a de tentar mais uma vez e a fizera compreender que receberia o pagamento em dobro se mantivesse tudo em segredo.



— Segredo, wakarimasu ka? — suplicara ele.





— Hai, tai-pan, wakarimasu — concordara Shizuka, feliz, ao pegar o medicamento que ele pedira, e o embalara até que dormisse.



— Malcolm... — murmurou Angelique.



— O que é? — perguntou Struan no mesmo instante, concentrando-se, o coração batendo forte, lembrando a si mesmo que consumira o resto da poção para dormir de Hoag e que devia pedir a Ah Tok para substituir a mistura... por apenas um dia, ou pouco mais. — Também me sinto satisfeito em vê-la.



— Eu também. Gosta do meu vestido?



— É maravilhoso... e você também.





— Tenho de me retirar agora, tai-pan — interveio McFay, vendo como Struam ficara feliz, satisfeito por ele, embora ainda transpirasse. — Os representantes Choshu estão lá embaixo... posso continuar as negociações com eles?



— Como decidimos. Mais uma vez, Jamie, obrigado. Mantenha-me informado.



— Malcolm — disse Angelique —, já que Jamie está aqui... pediu-me para lembrá-lo, quando estivéssemos todos juntos, sobre a minha... hum... pequena mesada.



— Claro, claro. Jamie... — Seu ânimo era expansivo, enquanto pegava a mão de Angelique, o prazer evidente da jovem relegando a noite ao esquecimento... para sempre, pensou ele, feliz. Foi uma noite que nunca ocorreu! — Ponha os vales da minha noiva na minha conta pessoal.



Ele experimentou uma pontada de felicidade pela palavra e acrescentou:



— Angel, basta assinar os vales, tudo o que quiser. Jamie cuidará do resto.





— Obrigada, chéri, isso é maravilhoso, mas, por favor, posso ter algum dinheiro?



Struan riu, Jamie sorriu.



— Não precisa de dinheiro aqui. Não há necessidade... nenhum de nós anda com dinheiro.



— Mas, Malcolm, eu que...



— Angelique — declarou ele, a voz mais firme —, pagamos tudo em vales, no clube ou em qualquer loja da colônia. É o que todo mundo faz, até mesmo em Hong Kong. Não pode ter esquecido. Impede os comerciantes de trapacearem e você fica com um registro permanente.





— Mas sempre andei com algum dinheiro, chéri, dinheiro meu, para pagar minhas contas pessoais — explicou ela, com uma demonstração externa de absoluta honestidade. — E como meu pai... ora, tenho certeza que compreende.



— Pagar suas próprias contas? Mas que idéia horrível! É uma coisa sem precedentes na boa sociedade. Não precisa se preocupar. — Ele sorriu. — Isso cabe aos homens e os vales são uma solução perfeita.



— Talvez os franceses sejam diferentes. Sempre andamos com dinheiro e...



— Nós também, na Inglaterra e em outros lugares, mas na Ásia todos assinam vales. Qualquer coisa que quiser comprar, basta assinar... ainda melhor, deve ter seu sinete pessoal. Escolheremos o perfeito nome chinês para você.



De um modo geral, era um pedaço retangular de marfim ou osso, tendo esculpidos na base caracteres chineses, que soavam como o nome do proprietário. Quando comprimidos contra uma almofada de tinta, e depois no papel, produziam uma impressão singular, quase impossível de falsificar.



— Jamie providenciará tudo para você.





— Obrigada, Malcolm, mas posso ter minha própria conta, chéri, já que sou muito eficiente para cuidar de dinheiro.



— Tenho certeza que sim, mas não precisa preocupar sua linda cabecinha com essas coisas. Depois que casarmos, providenciarei tudo, mas aqui é desnecessário.



Angelique mal escutava o que dizia, enquanto distraía Struan com os mexericos da legação francesa, o que lera nos jornais, o que sua amiga de Paris escrevera sobre uma magnífica residência — lá chamada hotel — nos Champs Élysées, pertencente a uma condessa, mas que em breve estaria disponível, e era muito barata. Plantava as sementes para o futuro glorioso dos dois, fazendo-o rir, esperando que ele se sentisse sonolento, quando então partiria para o almoço no clube com os oficiais franceses, que lhe fariam companhia mais tarde num passeio a cavalo, junto com oficiais da marinha inglesa, depois uma siesta e os preparativos para o sarau de Sir William... não havia motivo para deixar de comparecer, mas antes voltaria para desejar boa noite a seu futuro marido.





Tudo era maravilhoso e terrível ao mesmo tempo, a maior parte de sua mente se concentrava no novo dilema: como conseguir dinheiro. O que vou fazer? Preciso de dinheiro para pagar o medicamento, aquele porco do André Poncin não o adiantará para mim, sei que não. Que se dane ele, e que se dane meu pai também por roubar meu dinheiro! E que se dane AQUELE da Tokaidô, nas chamas eternas do inferno!



Pare com isso, e trate de pensar. Lembre-se de que está sozinha e é a única que pode resolver seus problemas!



Meu único objeto de valor é o anel de noivado e não posso vendê-lo, de jeito nenhum. Oh, Deus, tudo ia tão bem, fiquei noiva oficialmente, Malcolm está melhorando, André vem me ajudando, mas o medicamento é muito caro e não tenho dinheiro, dinheiro de verdade, oh, Deus, o que vou fazer?



Lágrimas afloraram a seus olhos.



— Por Deus, Angelique, o que foi?





— Apenas... apenas me sinto tão infeliz... — soluçou ela, baixando a cabeça para as cobertas da cama. — ...infeliz porque a Tokaidô aconteceu... por você ter ficado ferido, e eu... eu também... não é justo!











O cúter de dez remos de Sir William deslizava depressa pelas ondas, a caminho da nave capitânia, ancorada ao largo de Iocoama. Ele se encontrava sozinho na cabine, de pé, usando sobrecasaca e cartola. Mar sereno, a luz se desvanecendo a oeste, as nuvens já cinzentas, mas sem qualquer ameaça aparente de tempestade. Quando o cúter encostou no navio, todos os remos subiram para uma posição vertical. Sir William subiu apressado para o convés principal.



— Boa tarde, senhor — disse o tenente Marlowe, batendo continência. — Por aqui, por favor.



Passaram por fileiras de canhões reluzentes no tombadilho superior — o convés principal, com uma atividade intensa por toda parte, canhões sendo imobilizados em suas posições, cabos enrolados, velas inspecionadas, fumaça saindo pela chaminé — subiram por uma passagem, desceram por outra, para o segundo convés de canhões, onde outros marujos também cuidavam dos equipamentos, e chegaram ao camarote do almirante, na popa. O fuzileiro de sentinela assumiu posição de sentido, enquanto Marlowe batia na porta.



— Sir William?



— Abra logo essa porta, Marlowe, pelo amor de Deus!



Marlowe abriu a porta para Sir William e começou a fechá-la.



— Fique aqui, Marlowe! — ordenou o almirante.



O camarote grande estendia-se por toda a popa do navio, com várias vigias, na mesa grande, cadeiras presas ao chão, um pequeno beliche, vaso sanitário, aparador largo, cheio de garrafas de cristal. O almirante e o general meio que ergueram, numa polidez simbólica, e tornaram a sentar. Marlowe permaneceu junto da porta.



— Obrigado por vir tão depressa, Sir William. Conhaque? Xerez?



— Conhaque, almirante Ketterer. Obrigado. Algum problema?



O homem de rosto vermelho lançou um olhar irritado para Marlowe.



— Faça o favor de servir um conhaque para Sir William, Marlowe.— Depois, ele jogou um papel em cima da mesa. — Despacho de Hong Kong.



Depois das saudações floreadas habituais, o despacho dizia:



Deve seguir imediatamente, com a nave capitânia e mais quatro ou cinco navios de guerra, para o porto de Boh Chih Seh, ao norte de Xangai (coordenadas no verso), onde se encontra agora abrigada a frota principal do pirata Wu Sung Choi. Há uma semana, um enxame de juncos desse pirata, hasteando com toda arrogância sua bandeira — do Lótus Branco —, interceptou e afundou o navio de correspondência Bonny Sailor, nas águas ao largo da baía de Mirs, o refúgio pirata ao norte de Hong Kong. A esquadra aqui cuidará da baía de Mirs. Você deve destruir Boh Chih Seh e afundar todas as embarcações que não sejam de pesca, caso o líder, que acreditamos ser Chu Fang Choy, se recusar a arriar sua bandeira e se entregar à justiça de sua majestade.



Cumprida essa missão, envie um navio para cá, com um relatório, e retorne a Iocoama, colocando-se à disposição, como sempre, dos servidores de sua majestade. Mostre este comunicado a Sir William e lhe entregue, por favor, a mensagem anexa. As. Stanshope, K.C.B., governador do Extremo Oriente.



PS: O Bonny Sailor afundou com todas as pessoas a bordo, setenta e seis oficiais e marujos, dez passageiros, inclusive uma inglesa, esposa de um mercador aqui, uma carga de ouro, ópio e arroz no valor de dez mil guinéus. Chu Fang Choy teve a desfaçatez de mandar entregar na casa do governo um saco contendo o diário de bordo e quarenta e três pares de orelhas, com uma carta pedindo desculpas por não ter sido capaz de recuperar as demais. As orelhas da mulher não estavam incluídas e tememos o pior por ela.



— Desgraçados! — murmurou Sir William, experimentando uma náusea adicional ao pensamento de que, já que os piratas eram endêmicos em todas as águas asiáticas, em particular do norte de Cingapura até Pequim, e as frotas do Lótus Branco as mais abundantes e notórias, a mulher poderia muito bem ter sido sua esposa, que deveria chegar a Hong Kong a qualquer semana, procedente da Inglaterra, com três de seus filhos. — Vão partir com a maré cheia?



— Isso mesmo.



O almirante estendeu um envelope por cima da mesa. Sir William rompeu o lacre e leu:



Prezado Willie: O próximo navio de correspondência levará os recursos para as despesas da legação. Aqui entre nós, Willie, sinto muito, mas não posso lhe fornecer mais soldados no momento, nem navios. Talvez seja possível na primavera. Ordenei o retorno de tropas e navios à índia, onde as autoridades temem a repetição do grande motim de cinco anos atrás. Além disso, o Punjab está fermentando de novo, os piratas assediam o golfo Pérsico, os malditos nômades da Mesopotâmia cortaram mais uma vez as linhas telegráficas... e outra força expedicionária já começa a ser mobilizada para destruí-los de uma vez por todas!



Como vai o pobre do Struan? É inevitável que haja indagações no Parlamento sobre o “fracasso em proteger nossos cidadãos”. As notícias do desastre na Tokaidô devem chegar a Londres dentro de duas semanas e a resposta deles deve demorar mais dois meses. Confio que eles aprovem represálias rigorosas e nos enviem dinheiro, tropas e navios para executar suas ordens. Enquanto isso, enfrente a tempestade, se houver alguma, da melhor forma que puder. O ataque teve a maior repercussão em Hong Kong. A mãe de Struan ficou furiosa e toda a ralé de mercadores da China aqui (embora ricos do infame comércio de ópio) se mostra revoltada, sua imprensa insidiosa e caluniosa exigindo sua renúncia. Alguma vez foi diferente? Como diria Disraeli. Concluo às pressas, Deus lhe guarde, as. Stanshope, K.C.B., governador.



Sir William tomou um gole grande, torcendo para que seu rosto não deixasse transparecer a ansiedade que sentia.



— Excelente conhaque, almirante.



— Também acho... do meu melhor estoque pessoal, em sua homenagem. O almirante estava furioso porque Marlowe servira quase meio copo a Sir William e não usara o conhaque de segunda classe que guardava para os visitantes. É tão idiota que nunca chegará a almirante, pensou ele.



— O que me diz da ida a Osaca? — perguntou Sir William.



— Osaca? Ah, sim... lamento, mas terá de protelar até meu retorno.



O sorriso quase não pôde ser disfarçado.



— E quando deve voltar?



A angústia de Sir William era cada vez mais profunda.



— Para chegar a nosso destino, seis ou sete dias, dependendo dos ventos. Dois ou três dias em Boh Chih Seh devem ser suficientes. Terei de reabastecer em Xangai. Eu diria que deveremos chegar de volta a Iocoama, a menos que chegue novas ordens, em... — O almirante emborcou o resto de seu vinho, serviu-se de mais. — Voltaremos em quatro ou cinco semanas.



Sir William terminou de tomar o conhaque, o que o ajudou a atenuar-lhe as náuseas.



— Tenente, pode fazer a gentileza? Obrigado.



Marlowe pegou o copo, com a devida polidez, e tornou a enchê-lo, com o melhor conhaque do almirante, reprimindo sua repulsa por ser um lacaio, cansado de seu posto como ajudante-de-ordens... ansioso em voltar a seu próprio navio, para supervisionar a reparação dos estragos causados pela tempestade. Mas pelo menos participarei finalmente de alguma ação, pensou ele, com satisfação, imaginando o ataque ao refúgio dos piratas, com todos os canhões disparando.



— Se não pudermos cumprir nossa ameaça, almirante — disse Sir William — perderemos o prestígio e a iniciativa e correremos um grave perigo.



— A ameaça foi sua, Sir William, não nossa. Quanto ao prestígio, acho que lhe atribui valor excessivo; quanto ao perigo... presumo que se refere à colônia, mas tenho certeza de que os nativos do Japão não ousariam criar qualquer problema de maiores proporções. Não chegaram a incomodá-lo na legação em Iedo, não farão isso em Iocoama.



— Com a esquadra ausente, ficamos desamparados.



— Não exatamente, Sir William — protestou o general, com uma certa irritação. — O exército está aqui, com alguma força.



— É verdade — concordou o almirante. — Mas Sir William também está absolutamente correto ao dizer que é a marinha real que mantém a paz. Planejo levar quatro navios de guerra, senhor, não cinco, e deixar uma fragata aqui. Deve ser suficiente. A Pearl.



Antes de poder se controlar, Marlowe disse:



— Com licença, senhor, mas a Pearl ainda se encontra sob reparos importantes.



— Folgo em saber que se mantém a par da situação de nossa esquadra, Sr. Marlowe, e com os ouvidos bem abertos — disse o almirante, cáustico. — Obviamente, a Pearl não pode participar desta expedição, e por isso é melhor você ir a bordo, providenciar para que fique em condições de navegação oceânica, pronta para qualquer missão, até o pôr-do-sol de amanhã, ou não terá um navio.



— Sim, senhor.



Marlowe engoliu em seco, bateu continência e se retirou apressado. O almirante soltou um grunhido e comentou para o general:



— Um bom oficial, mas ainda imaturo... de uma excelente família naval, dois irmãos, também oficiais, e o pai é almirante em Plymouth. — Ele olhou para Sir William. — Não se preocupe. A fragata estará pronta amanhã, em perfeitas condições... ele é o melhor dos meus comandantes, mas pelo amor de Deus não lhe diga que eu falei isso. Marlowe vai protegê-lo até meu retorno. Se não há mais nada a discutir, senhores, zarparei imediatamente... e lamento muito não poder acornpanhá-los no jantar.



Sir William e o general terminaram seus drinques e se levantaram.



— Deus o guarde, almirante Ketterer, e que possa voltar são e salvo, com todos os seus tripulantes — disse Sir William, com absoluta sinceridade.



O general ecoou suas palavras. Um momento depois, o rosto de Sir William se endureceu, e ele acrescentou:





— Se não receber qualquer satisfação do Bakufu, partirei para Osaca com foi planejando, com ou sem a Pearl, à frente do exército ou não... mas, por Deus seguirei para Osaca e Quioto de qualquer maneira!



— É melhor esperar até a minha volta, é melhor ser prudente, é melhor não invocar o nome do Senhor para uma ação tão desaconselhável, Sir William — declarou o almirante, em tom brusco. — Deus pode decidir de outra forma.











Naquela noitada, pouco antes de meia-noite, Angelique, Phillip Tyrer e Pallidar deixaram a legação britânica e desceram pela High Street a caminho do prédio Struan.



— Ah, não resta a menor dúvida de que Sir William tem um chef modesto! — comentou Angelique, feliz.



Os três estavam vestidos a rigor, e riram do jantar ter sido tão abundante e inglês, especialmente delicioso — rosbife, bandejas de linguiça de porco, siris frescos trazidos no gelo de Xangai pelo navio de correspondência, como parte do serviço diplomático, e por isso imunes à inspeção alfandegária e a impostos. As carnes haviam sido servidas com legumes cozidos, batatas assadas, também importadas de Xangai, e pastelão de Yorkshire, seguindo-se tortas de maçã e tortas de frutas cristalizadas picadas, com todo o clarete, Pouilly Fume, Porto e champanhe que os vinte convidados podiam beber.



— E quando madame Lunkchurch jogou um siri no marido, pensei que ia morrer! — acrescentou ela, rindo ainda mais.



Tyrer, embaraçado, murmurou:



— Receio que alguns dos supostos mercadores e suas esposas são propensos a se mostrarem turbulentos. Por favor, não julgue todos os ingleses pelo comportamento deles.



— É isso mesmo.



Pallidar sentia-se radiante, satisfeito por também ter sido aceito como parte da escolta de Angelique, consciente de que seu uniforme de gala e quepe emplumado faziam com que a sobrecasaca de Tyrer parecesse insípida, a gravata de seda antiquada, e a cartola ainda mais fúnebre.



— Pessoas lamentáveis. Sem a sua presença, a noite teria sido horrível, com toda certeza.



A High Street e suas transversais ainda se achavam movimentadas, com mercadores, escriturários e outras pessoas voltando para casa ou passeando, os bêbados ocasionais deitados no chão, à luz dos lampiões de óleo que as iluminavam. Alguns grupos de pescadores japoneses, carregando remos e redes, com lanternas de papel para iluminar o caminho, subiam da praia, onde haviam deixado seus barcos, na areia ou desciam da aldeia para a pescaria noturna. Angelique parou na porta do prédio da Struan e estendeu a mão para ser beijada.



— Obrigada e boa noite, meus caros amigos. Por favor, não precisam esperar.



Um dos criados poderá me acompanhar até a legação.



— De jeito nenhum! — exclamou Pallidar no mesmo instante, segurando a mão de Angelique, apertando-a por um momento.



— Eu... teremos o maior prazer em esperar — garantiu Tyrer.



— Mas posso demorar uma hora ou uns poucos minutos, dependendo do estado de meu noivo.



Mas os dois insistiram, ela agradeceu, passou pelo vigia noturno armado, vestindo libré, subiu a escada, o vestido farfalhando, o xale em sua esteira... ainda extasiada com o excitamento da noite e a adoração que a cercara.



— Olá, querido. Só vim lhe desejar boa noite.



Struan usava um elegante chambre vermelho de seda, por cima de camisa e calça folgadas, botas de couro macio, gravata. Levantou-se, a dor abrandada pelo elixir que Ah Tok lhe dera, meia hora antes.



— Sinto-me melhor que em muitos dias, minha querida. Um pouco trêmulo, mas bem... ah, como você está adorável!



A luz do lampião a óleo tornava o rosto encovado de Struan mais bonito do que nunca e Angelique ainda mais desejável. Ele pôs as mãos nos ombros dela para se firmar, sentindo a cabeça e o corpo estranhamente leves. A pele de Angelique era macia, quente ao seu contato. Seus olhos faiscavam e Struan fitou-a, com amor intenso, beijando-a. Gentilmente, a princípio, e depois, quando ela retribuiu, exultando com o sabor e a acolhida de Angelique.



— Eu amo você — murmurou ele, entre beijos.





— Eu também amo você — respondeu ela, acreditando nisso, tonta de prazer, muito feliz por ele parecer melhor, seus lábios fortes, procurando, as mãos fortes, procurando também, mas dentro dos limites... limites que ela, de repente, em delírio, quis ultrapassar. — Je t’aime, chéri..je t’aime...



Por um momento, permaneceram abraçados, e depois, com uma força que não sabia que possuía, Struan levantou-a do chão, foi sentar na cadeira grande, ajeitou-a em seu colo, os lábios unidos, um braço seu enlaçando a cintura pequena, uma das mãos num seio, a seda parecendo realçar o calor por baixo. E o espanto dominou-o. Espanto porque agora, quando todas as partes da mulher estavam cobertas, eram proibidas, enquanto na outra noite tudo ficara à mostra, oferecido, também jovem, ele se sentia mais eufórico e estimulado do que nunca, embora ao mesmo tempo controlado, não mais frenético de desejo.



— Muito estranho...



E Struan pensou: não, não é tão estranho assim, a dor foi encoberta pelo medicamento; o resto não, e o resto é meu amor por ela.





Chéri?



— É estranho que eu precise tanto de você, mas sou capaz de esperar. Não por muito tempo, mas posso esperar.



— Por favor, não por muito tempo...



Os lábios de Angelique tornaram a procurar os dele, nada em sua mente além daquele homem, o calor bloqueando sua memória, apagando as preocupações, Os problemas desaparecendo. Para os dois. Até o súbito estampido de um tiro, lá fora nas proximidades.



O clima se desvaneceu, ela se empertigou no colo de Struan e no instante seguinte correu para a janela entreaberta. Lá embaixo, avistou Tyrer e Pallidar. Oh, droga, tinha me esquecido dos dois, pensou ela. Eles olhavam para o interior depois se viraram na direção da cidade dos bêbados.



Angelique esticou a cabeça além da janela, mas viu apenas um vago grupo de homens, na outra extremidade da rua, seus gritos estridentes se perdendo no vento.



— Parece que não é nada demais, Malcolm, apenas uma confusão na cidade dos bêbados...



Brigas e tiros, até mesmo duelos, não eram raros naquela parte de Iocoama. Sentindo-se estranha e enregelada, ao mesmo tempo febril, ela voltou até Struan e fitou-o. Com um pequeno suspiro, ajoelhou-se, pegou a mão dele, comprimiu-a contra a sua face, baixou a cabeça para seu colo; mas a gentileza e os dedos de Struan, acariciando seus cabelos e sua nunca, não afastaram os demônios.



— Devo ir para casa, meu amor.



— É verdade.



Os dedos continuaram a acariciá-la.



— Quero ficar.



— Sei disso.



Struan tinha a impressão de que podia ver a si mesmo de fora, o perfeito cavalheiro, calmo, controlado, ajudando-a a levantar, esperando enquanto ela ajeitava o corpete e os cabelos, arrumava o xale. Depois, de mãos dadas, acompanhou-a até o alto da escada, onde se permitiu ser persuadido a ficar, deixando que a criada a escoltasse até lá embaixo. Na porta, Angelique virou-se, acenou numa despedida amorosa, ele respondeu e depois ela se foi.



Malcolm teve a impressão de que não precisou de qualquer esforço para voltar e se despir. Deixou que a criada tirasse suas botas. Deitou-se, sem ajuda, recostou-se em paz, consigo mesmo e com o mundo. A cabeça ótima, o corpo ótimo, relaxado.



— Como está meu filho? — sussurrou Ah Tok, da porta.



— Na terra da papoula.



— Isso é ótimo. Não há dor para meu filho aí. Ela soprou a chama e deixou-o sozinho.



Mais abaixo, na High Street, o soldado francês de sentinela, o uniforme tão desleixado quanto seu comportamento, abriu a porta da legação para ela.





Bonsoir, mademoiselle.





Bonsoir, monsieur. Boa noite, Phillip, boa noite, Settry.



Fechada a porta, Angelique recostou-se nela por um momento, a fim de se controlar. O prazer da noite desaparecera. Em seu lugar, os espectros pressionavam por atenção. Absorvida em seus pensamentos, ela seguiu pelo corredor para sua suíte, avistou uma luz por baixo da porta de Seratard. Parou e, num súbito impulso, refletindo que podia ser a ocasião perfeita para pedir um empréstimo, bateu na porta e entrou.





— Oh, André! Desculpe. Eu esperava encontrar monsieur Henri.



— Ele ainda está com Sir William. Eu estava acabando de preparar um despacho para ele.





André sentava à escrivaninha de Seratard, com muitos papéis espalhados por cima. O despacho era sobre a Struan, sua possível transação de armas com Choshu e a possível ajuda que uma possível esposa francesa poderia prestar à incipiente indústria de armamentos da França.



— Divertiu-se bastante? Como está seu noivo?



— Muito melhor, obrigado. O jantar foi magnífico, para quem gosta de comida pesada. Ah, que saudade de Paris...



— Tem razão.



Por Deus, como ela é sedutora, pensou ele, o que o lembrou da infame doença infecciosa que o corroía.



— O que foi? — indagou Angelique, sobressaltada com a repentina palidez de André.



— Nada. — Ele limpou a garganta, fazendo um esforço para controlar o horror. — Apenas os problemas de sempre... nada de grave.



André parecia tão vulnerável, tão desamparado, que abruptamente ela decidiu confiar nele de novo. Fechou a porta, sentou ao seu lado, contou sua história.



— O que vou fazer agora, meu caro André? Não consigo obter nenhum dinheiro... o que posso fazer?





— Enxugue as lágrimas, Angelique, porque a resposta é muito simples. Amanhã ou depois, eu lhe acompanhei para fazer compras — disse ele, a mente lúcida para os problemas mundanos. — Pediu-me para ajudá-la nas compras, procurar um presente de noivado para monsieur Struan, não é mesmo? Abotoaduras de ouro com pérolas e brincos de pérolas para você.



André fez uma pausa, a voz entristeceu quando acrescentou:





— Ah, uma coisa horrível, em algum lugar, no caminho de volta do joalheiro, você perde um par... procuramos por toda parte, mas em vão. Horrível! — Os olhos castanho-claros fixavam-se nos de Angelique. — Enquanto isso, a mama-san recebe seu pagamento secreto. Cuidarei para que o par que você “perdeu” mais do que cubra o medicamento e todos os outros custos.



— Você é maravilhoso! — Angelique abraçou-o. — O que eu faria sem a sua ajuda?



Ela tornou a abraçá-lo, agradeceu mais uma vez e saiu da sala quase dançando. André ficou olhando para a porta fechada por um longo tempo. É isso mesmo, pensou, com uma estranha inquietação, cobrirá o medicamento, meus vinte luíses e todas as outras despesas que eu decidir. Pobre criança, não imagina como é fácil manipulá-la. Está metida num sorvedouro cada vez mais profundo. Não percebe que agora se torna uma ladra e, pior ainda, uma criminosa planejando uma fraude deliberada.



E você, André, é um cúmplice na conspiração.





Ele soltou uma risada, uma risada amarga e irônica. Prove! Ela falará ao tribunal sobre um aborto, com a mama-san como testemunha contra mim? O tribunal acreditará na história da filha e sobrinha de criminosos contra a minha?



Não, mas Deus saberá, e muito em breve estarei diante d'Ele.



E Ele saberá que fiz muito pior. E tenciono fazer ainda mais.



As lágrimas começaram a escorrer por seu rosto.











— Ah, miss — disse Ah Soh, tentando ajudar Angelique a se despir, encontrando dificuldade porque ela não parava por um instante sequer, outra vez alegre e buliçosa, seu problema imediato resolvido. — Miss?



— Está bem, está bem... mas tenho pressa.



Angelique parou ao lado da cama, mas continuou a cantarolar a animada polca, o quarto mais feminino e aconchegante à luz do lampião de óleo do que durante o dia, as janelas de vidro entreabertas, por trás das grades enviesadas.



— Miss, divertiu, hem?



Com extrema habilidade, Ah Soh começou a desprender as tiras da cintura da saia.



— E muito, obrigada — respondeu Angelique, polida.



Não chegava a gostar de Ah Soh, uma mulher de meia-idade, quadris largos, uma criada, em vez de uma autêntica ama.



— Mas ela é muito velha, Malcolm! Não pode arrumar alguém que seja jovem, bonita, e que saiba rir?



— Gordon Chen, nosso compradore, escolheu-a, Angel. Ele garante que é uma pessoa de confiança absoluta; ela pode escovar seus cabelos, ajudá-la no banho, cuidar de suas roupas européias. É um presente meu para você, enquanto estiver no Japão...



As tiras afrouxaram e a crinolina caiu. Ah Soh fez a mesma coisa com a anágua e, por fim, cuidou da armação de ossos e metais que sustentava a crinolina. Um calção comprido, meias de seda, combinação curta, o espartilho e o corpete que reduziam sua cintura de cinqüenta centímetros para quarenta e seis e empurravam os seios para cima, como determinava a moda. Enquanto a criada desfazia o espartilho, Angelique deixou escapar um suspiro de satisfação, saiu do mar de peças de roupa, arriou na cama e permitiu, como uma criança, que Ah Soh a despisse por completo. Obediente, ergueu os braços, para que a camisola estampada fosse enfiada pela cabeça.



— Sente, miss.



— Não esta noite, Ah Soh. Meus cabelos podem esperar.



— Ah, amanhã não bom! Ah Soh brandiu a escova.



— Está bem, está bem...



Angelique tornou a suspirar, saiu da cama, foi sentar à penteadeira, deixou que a criada tirasse os grampos, começasse a escovar seus cabelos. Era uma sensação bastante agradável. Ah, como André é esperto! Torna tudo tão simples... agora posso obter todo o dinheiro de que preciso... como ele é esperto!



De vez em quando, uma brisa amena soprava do mar, fazendo as janelas rangerem. A cem metros dali, no outro lado da rua, as ondas subiam pela praia de seixos, recuavam, tornavam a avançar, com um som agradável, que prometia outra noite suave, acolhida com satisfação por todos na colônia. A esquadra partira ao crepúsculo. As pessoas que não se encontravam embriagadas ou na cama observaram os navios zarpar com graus variados de ansiedade. Todos desejavam boa viagem e rápido retorno. Exceto os japoneses. Ori fora um deles e agora tinha os olhos comprimidos numa fresta de uma das janelas de Angelique, oculto e camuflado pelas camélias altas, que cresciam em abundância ali, plantadas por Seratard, um entusiasta da jardinagem.



Muito antes da meia-noite, Ori postara-se ali, esperando pela mulher. Enquanto o tempo passava, bem devagar, pensara e repensara esquemas diversos, cansado, nervoso, verificando a todo instante se a espada curta estava solta na bainha e a pistola segura na manga do quimono de pescador. Mas quando a vira se aproximando da legação, em companhia dos dois gai-jin, toda a sua exaustão desaparecera.



Por um momento, cogitara sair correndo e matar a todos, mas descartara essa tolice, sabendo que era improvável que pudesse matar os três, mais a sentinela, antes de ser morto. Além do mais, refletira, sombrio, isso liquidaria meu plano de possuí-la mais uma vez, antes de morrer, e depois incendiar a colônia. Sem a minha presença para espicaçá-lo, Hiraga nunca faria isso. Ele é fraco demais agora... contagiado pelos gai-jin. Se Hiraga, o Forte pode sucumbir tão depressa, o que acontecerá com os outros? O imperador está certo ao odiar os gai-jin e querer que sejam expulsos!



Assim, ele contivera sua raiva e se encolhera ainda mais no esconderijo, deixando o tempo passar, planejando para qualquer eventualidade. Não havia a menor possibilidade de passar pelas janelas, a menos que a mulher abrisse as grades. A porta dos fundos não era vigiada, e seria uma possibilidade... além de haver ali diversos apoios para alcançar o andar de cima, se não conseguisse abri-la. Observara Angelique ser despida, em todos os detalhes, a apenas dois passos de distância, no outro lado da parede. Agora, ela se acomodava para dormir, sob os cuidados da criada. A impaciência de Ori tornou-se quase insuportável.



Antes, uma das patrulhas de soldados e marujos, que circulavam pela colônia durante a noite, a fim de manter a ordem, o detivera de repente, num caminho por trás da High Street. Ele parara sem medo, pois não havia toque de recolher, nem Qualquer parte da colônia era proibida aos japoneses, embora eles procurassem se Manter em sua própria área, numa atitude sensata, e optassem por não provocar o temperamento explosivo dos gai-jin. Infelizmente, porém, o sargento empurrara uma lanterna para cima de seu rosto, fazendo-o dar um pulo para trás, sobressaltado. A espada curta escondida caíra ao chão, com o maior barulho e o sargento gritara:





— Ora, seu desgraçado, sabe muito bem que andar com uma faca assim é proibido, kinjiru?



Embora Ori não entendesse as palavras, a regra e a penalidade eram do conhecimento geral. No mesmo instante, ele pegara a espada curta e fugira. O sargento atirara, mas a bala ricocheteara numa parede, inofensiva. Ori pulara um muro baixo e se embrenhara no labirinto de vielas e habitações. A patrulha não se dera ao trabalho de persegui-lo, os homens se limitando a gritar alguns insultos, afinal, andar com uma faca era uma violação sem maior importância, valia apenas uma surra imediata e o confisco da arma.



Ele tornara a esperar, escondido, até poder se juntar a um grupo de pescadores que desciam para a praia. Voltara depois, escalara a cerca da legação e logo encontrara um lugar seguro. Uma vez ali, encolhera-se ao máximo e começara a esperar.



Naquela manhã, fingira que estava pronto para deixar a Yoshiwara, a caminho de Quioto, como Hiraga exigira.



— Assim que fizer contato com Katsumata, eu lhe enviarei uma mensagem — dissera ele, os lábios semicerrados, numa atitude deliberada. — Cuide para que a mulher não escape!





— Ela é a mulher do tai-pan e, por isso, todos os seus passos são vigiados, não haverá a menor dificuldade em descobri-la — respondera Hiraga, com a mesma frieza. — Tome todo cuidado, pois a Tokaidô será perigosa... as patrulhas de vigilantes e guardas nas barreiras estarão em alerta total.





— Melhor honrarmos Sonno-joi, melhor você permitir que eu fique, melhor incendiarmos Iocoama, Akimoto chega hoje, podemos fazê-lo com a maior facilidade.





— É o que faremos, quando você voltar. Se permanecer agora, cometerá um erro. A mulher virou sua cabeça pelo avesso e tornou-o perigoso, para si mesmo, seus amigos e Sonno-joi.



— E o que me diz de você, Hiraga? Os gai-jin lhe transformaram, distorceram seu julgamento.



— Não é assim e digo isso pela última vez.



Sem se preocupar em provocar Hiraga ainda mais, ele explodira:



— Você viu como os gai-jin são a escória, bêbados e repugnantes, brigando como animais, refestelando-se na sujeira da cidade dos bêbados... são esses os homens que você quer conhecer melhor, com os quais deseja parecer?



— Parta logo!





Também furioso, Ori pegara a espada curta e a pistola. Por sugestão de Raiko, juntara-se à procissão diária de criados a caminho do mercado em Kanagawa, onde se podia comprar o melhor Saquê e os melhores alimentos. No meio deles, passara pelas barreiras da Yoshiwara e da colônia, a patrulha de vigilantes ainda espreitando entre os guardas, deixando-os tão nervosos quanto os aldeões. No meio do percurso para Kanagawa, o movimento na estrada intenso, ele se desviara para a praia. Ali, subornara um pescador para levá-lo em seu bote à outra extremidade da colônia, perto da cidade dos bêbados, onde se escondera até o anoitecer. Estou fazendo a coisa certa, pensou ele, com absoluta convicção, a brisa que soprava do mar dispersando os insetos noturnos. A mulher é o alvo perfeito para Sonno-joi. Não importa o que Hiraga diz, talvez eu nunca mais tenha outra oportunidade de remover seu encantamento. Isso mesmo, caí sob seu encantamento Ela deve ser um kami, um espírito, uma mulher-lobo que renasceu como gai-jin; nenhuma outra mulher poderia ser virgem, e drogada, e ainda assim tão receptiva, nenhuma outra poderia fazer um homem explodir como eu explodi ou me manter tão transtornado de desejo.



Esta noite a possuirei pela segunda vez. E depois a matarei. Se eu escapar, karma. Se não escapar, karma. Mas ela morrerá por minha mão.



O suor escorria pelo rosto e costas. Mais uma vez, Ori concentrou-se, observando-a através da fresta, tão perto que, se não fosse pela parede, poderia estender a mão e tocá-la. Ela se ajeitou na cama, com uma camisola reveladora. A criada diminuiu a chama do lampião a óleo, deixando apenas tênue claridade.



— Boa noite, miss.



— Boa noite, Ah Soh.



Feliz por ficar sozinha, Angelique aconchegou-se sob as cobertas, vendo as sombras produzidas pela chama dançarem com a aragem, a cabeça encostada no braço. Antes de Kanagawa, o escuro nunca a perturbara; num instante resvalava para o mundo dos sonhos, acordando revigorada. Desde Kanagawa, no entanto, o padrão mudara. Agora insistia em ter uma luz acesa durante a noite. O sono não vinha com facilidade. A mente logo a conduzia por caminhos de suposições delirantes. As mãos apalpavam os seios. Tornaram-se um pouco mais cheios do que ontem, os mamilos mais sensíveis? Estão, sim... não, é apenas imaginação. E a barriga? Ficou mais redonda? Não, não há qualquer diferença, mas...



Mas havia uma vasta diferença, como a.C. e d.C, e pelo menos uma vez por dia especulo se seria um menino ou uma menina. Ou um demônio, saindo ao pai estuprador. Não, não, nenhuma criança gerada por mim poderia ser um demônio!



Demônio. Isso me lembra que hoje é sexta-feira e daqui a dois dias tenho de ir à igreja, me confessar de novo. As palavras não se tomaram mais fáceis. Como detesto a confissão agora e abomino o padre Leo, um velho gordo, grosseiro, lascivo, fedendo a tabaco. Ele me lembra o confessor de tia Emma em Paris... o velho escocês, recendendo a uísque, cujo francês era tão horrível quanto sua batina. Sorte minha que nem ela nem tio Michel eram fanáticos, apenas simples católicos de domingo. Gostaria de saber como ela está, e também o pobre tio Michel. Amanhã falarei com Malcolm...



O querido Malcolm, tão maravilhoso esta noite, tão forte e sensato... Ah, como eu o desejava! Fico contente em poder conversar com ele. Ainda bem que tia Emma Se recusou a aprender francês, por isso tive de aprender inglês. Como ela conseguiu sobreviver em Paris, durante tantos anos, falando apenas inglês? E o que de tio Michel para casar com ela e suportar tantas dificuldades? Embora eu não posso deixar de reconhecer que ela é uma desmazelada e, ele, um vulgar.



Amor! É isso o que ele sempre diria, e ela também, o que aconteceu quando se conheceram, na Normandia, nas férias de verão, ele um servidor público subalterno, ela uma atriz numa companhia shakespeariana itinerante. Foi amor à primeira vista, os dois sempre diriam, e acrescentariam que ela era linda, ele muito bonito. Fugiram juntos, casaram em uma semana, tão romântico, mas não foram felizes para sempre.





Mas nós seremos, Malcolm e eu. Com toda certeza! Amarei Malcolm como uma esposa moderna deve fazer, teremos muitos filhos, serão criados como católicos, não tem importância para ele, que também não é um fanático: “Não sou mesmo, Angelique. Claro que casaremos de acordo com as tradições protestantes a mãe não admitiria outra coisa. Mas depois podemos ter uma cerimônia católica em particular, se você assim desejar...”



Não importa que seja secreta, será o verdadeiro casamento — ao contrário do outro —, as crianças serão aceitas na Santa Madre Igreja, viveremos em Paris durante a maior parte do tempo, Malcolm me amará e eu o amarei, faremos amor de forma maravilhosa, pensou ela, o coração começando a palpitar de uma maneira cada vez mais agradável, enquanto a mente vagueava. Mais e mais profundamente. E depois, porque a noite fora maravilhosa, e ela se sentia maravilhosa, além de segura, permitiu que as partes agradáveis do sonho daquela noite aflorassem.



Não podia se lembrar de nenhuma com exatidão. A indignação dissolvia imagens dentro de imagens eróticas dentro de imagens eróticas. Um pequeno ardor, que se transformava em calor irradiando por todo o corpo. Sabendo, mas não sabendo. Sentindo, mas não sentindo, braços fortes que a envolviam, dominada por uma sensualidade nunca antes experimentada, uma abertura, de cabeça, corpo, vida, gloriosamente livre para abandonar todos os freios, para se deleitar com tudo, porque era... apenas um sonho.



Mas acordei, ou quase acordei, e fingi que não, perguntou ela a si mesma, mais uma vez, sempre com um calafrio. Não poderia reagir com tanta lascívia se estivesse acordada — tenho certeza —, mas o sonho era muito intenso e fui levada por uma tempestade a querer mais e mais...



Ela ouviu a porta externa da suíte ser aberta e fechada. Um momento depois, viu a maçaneta girar, a porta do quarto ser aberta, André entrar, sem fazer barulho, e tornar a fechá-la. Ele se encostou na porta, com um sorriso zombeteiro. Angelique sentiu súbito medo.



— O que você quer, André?



Ele não respondeu por um longo momento, depois aproximou-se da cama, fitou-a nos olhos e murmurou:



— Ahn... conversar... está bem? Devemos, não é? Conversar, ou... ou o que...



— Não compreendo...



Mas ela compreendia muito bem, podia perceber o brilho desconcertante em seus olhos, onde poucos minutos antes havia apenas compaixão. Esforçou-se para manter a voz sob controle, criticando-se por não ter trancado a porta... não havia necessidade onde só havia criados e funcionários da legação, nenhum dos quais ousaria entrar sem permissão.



— Por favor, André, não...



— Precisamos conversar sobre amanhã... e nos tornarmos amigos.



— Por favor, meu caro André, já é tarde, qualquer coisa pode esperar até amanhã. Sinto muito, mas você não tem o direito de entrar aqui sem bater...



Num pânico momentâneo, Angelique recuou para o outro lado da cama, enquanto ele sentava à beira e estendia as mãos em sua direção.



— Pare ou vou gritar!



A risada de André foi baixa e irónica.



— Se gritar, minha cara Angelique, isso atrairá os criados. Abrirei a porta e direi que você me convidou a vir aqui... queria privacidade para conversar sobre sua necessidade de dinheiro... dinheiro para um aborto. — Outra vez o sorriso sarcástico. — O que acha?



— Oh, André, não seja assim, por favor, vá embora... se alguém o visse aqui...



— Primeiro... primeiro um beijo. Ela corou.



— Saia! Como ousa?



— Cale a boca e escute — sussurrou ele, a voz ríspida, a mão segurando o pulso de Angelique, apertando-a com força. — Posso ousar qualquer coisa, e se quiser mais do que um beijo, você vai me dar, de bom grado ou não. Sem a minha ajuda, será descoberta, sem...



— André... por favor, largue-me.



Por mais que tentasse, ela não conseguia se desvencilhar. Com outro sorriso irônico, ele soltou-a.



— Você me machucou — balbuciou Angelique, quase em lágrimas.



— Não quero machucá-la — murmurou ele, a voz gutural parecendo estranha para si mesmo.



Sabia que era uma loucura estar ali, agindo daquela maneira, mas fora dominado por um horror tão súbito e intenso que prevalecera sobre a razão, os pés trazendo-o até ali como se tivessem vontade própria, a fim de forçá-la a... a fazer o quê? Partilhar a degradação dele. Por que não? Clamou o cérebro de André. A culpa é dela, ostentando os peitos e sua clamorosa sexualidade, lembrando-me! Ela não é melhor que uma vagabunda das ruas, talvez não tenha sido estuprada... e não está a fim de capturar Struan e seus milhões por quaisquer meios possíveis?



— Sou seu amigo, Angelique... e não a estou ajudando? Venha até aqui. Um beijo não é um pagamento tão grande assim...



— Não!



— Por Deus, faça isso de bom grado ou pararei de ajudá-la e daqui a um ou dois dias darei um aviso anônimo a Struan e Babcott. É isso o que você quer?



— André, por favor...



Angelique olhou ao redor, procurando desesperada por algum meio de escapar. Não havia nenhum. André se adiantou pela cama, estendeu a mão para o seio, mas ela empurrou-o, começou a resistir, a lutar, a golpear com as unhas direção de seus olhos. Mas ele a imobilizou, deixou-a impotente, por mais que se debatesse. Angelique tinha medo de gritar, sabia que se encontrava acuada, perdida, teria de se submeter. Abruptamente, soaram batidas violentas na janela.



O estrépito repentino arrancou André de sua loucura e fez com que ela soltasse um grito de susto. Transtornado, ele se levantou de um pulo, correu para a porta, destrancou-a, atravessou a sala da suíte, abriu também a porta que dava para o corredor. Depois virou-se, voltou correndo para as janelas, abrindo-as. Em segundos, soltou as trancas, empurrou-as para fora. Nada. Não havia ninguém ali. Apenas os arbustos, ondulando ao vento, o barulho, sem qualquer pessoa no caminho além da cerca.



O soldado de sentinela veio correndo.



— O que está acontecendo?





— Eu é que deveria lhe perguntar, soldado — disse André, o coração apertado, as palavras se atropelando. — Viu alguém... alguma coisa? Eu passava pela porta de mademoiselle e ouvi... ou pensei ter ouvido... alguém batendo na janela. Depressa, verifique ao redor!





Por trás dele, Piore Vervene, o chargéi'affiaies, uma vela na mão, entrou no quarto, apressado e ansioso, um chambre por cima do camisolão, a touca torta na cabeça. Outros começaram a se agrupar na porta.





— O que está acontecendo... oh, André! Mas... o que houve? Deu um grito, mademoiselle?



— Dei... ele... — balbuciou Angelique.— André... alguém bateu nas janelas e André...



— Eu passava pela porta — explicou André — e entrei correndo... não é verdade, Angelique?



Ela baixou os olhos, aconchegando-se contra as cobertas.



— É, sim... é verdade — murmurou, com medo e odiando-o, mas fazendo um esforço para esconder.



Vervene juntou-se a André na janela, olhou ao redor.



— Talvez tenha sido o vento. Temos súbitas rajadas aqui e as janelas não são muito novas.



Ele sacudiu uma das persianas. Estava mesmo um pouco solta e fez o maior barulho. Vervene gritou para o soldado:



— Dê uma busca meticulosa e volte aqui para comunicar o que descobrir — Ele fechou a janela e trancou-a. — Pronto? Não há mais nada com que se preocupar.



— Sei disso, mas...



Lágrimas de alívio afloraram aos olhos de Angelique.





Mon Dieu, mademoiselle, não há motivos para se preocupar. Não chore.



Está perfeitamente segura, não precisa se preocupar com coisa alguma.



Vervene tirou a touca da cabeça, coçou a calva, aturdido. Foi então que avistou Ah Soh entre as pessoas na porta e gesticulou agradecido para ela.



— Ah Soh, você vai dormir aqui com a miss, está bem?



— Sim, amo.



Ah Soh afastou-se apressada para pegar algumas roupas de cama, e os outros começaram a se dispersar.





— Esperarei com mademoiselle Angelique até ela voltar. — Vervene bocejou. — Provavelmente os dois se enganaram e foi apenas o vento. Quem haveria de bater na janela? Não há pirralhos de rua na colônia para fazer brincadeiras assim, ou para tentar furtar qualquer coisa, graças a Deus. Só pode ter sido o vento, não é mesmo?



— Tem toda razão — declarou André, seu pavor agora controlado, temendo que alguém estivesse lá fora, observando... vira a fresta na janela, mas nenhum outro sinal. — Não concorda, Angelique?



— Eu... hum... é possível.



Ela sentia-se perturbada, ainda não recuperada do medo, tanto de André quanto do barulho repentino. Por que ocorrera naquele exato momento? Teria sido alguém ou apenas um vento enviado por Deus... uma autêntica dádiva divina? Vento ou não, pessoa ou não, isso não importa, concluiu ela. O importante é que escapei, amanhã voltarei para junto de Malcolm, não ouso continuar aqui, não devo ficar tão perto de André, é perigoso demais.



— Soou como alguém batendo, mas... mas posso estar enganada. Talvez tenha sido uma súbita rajada.



— Tenho certeza que foi — garantiu Vervene, confiante. — Minhas janelas estão sempre batendo assim e me acordam várias vezes.



Ele tossiu, sentou, olhou gentilmente para André, cujo rosto ainda estava branco.



— Não precisa ficar esperando comigo, meu amigo. Não parece estar muito bem... dá a impressão, que Deus o guarde, de ter uma crise do fígado.



— É possível... e não estou mesmo me sentindo bem. — André olhou para Angelique. — Sinto muito.



Ele fitou-a nos olhos, a voz calma e suave. Parecia ser de novo o velho André, toda estranheza, desejo e violência desaparecidos.





— Boa noite, Angelique. Não precisa mais ter medo de coisa alguma... nunca mais. Monsieur Vervene tem toda razão.



— Ahn... concordo. Obrigada, André.



Angelique forçou um sorriso, e ele saiu. Fitara-o bem fundo, querendo encontrar a verdade por trás de seus olhos. A expressão era cordial, nada mais. Mas ela não confiava no que vira. Mesmo assim, sabia que teria de fazer as pazes com André, aceitar seu inevitável pedido de desculpas — fingindo esquecer tudo, concordando que o ataque fora uma loucura momentânea —, e se tornar amigos de novo. Na superfície.



Ela estremeceu. Em seu íntimo, também sabia que tudo o que André exigisse ela teria de ceder. Enquanto ele vivesse.











Ori tremia todo, agachado sob um barco emborcado, na praia de seixos. As ondas se desmanchavam a vinte metros dali.



— Você está completamente baka — balbuciou ele, a fúria dirigida contra ele mesmo.



Antes de compreender o que fazia, batera nas janelas e depois, transtornado com sua estupidez, saíra correndo, pulara a cerca, encontrara o remo usado como camuflagem, ajeitara-o ao ombro e, sem ser detido, atravessara a rua, enquanto vozes gai-jin soavam lá atrás.



Hiraga deve estar certo, pensou ele, nauseado, confuso, o coração doendo no peito, o ombro latejando, e um filete de sangue quente escorrendo da abertura no ferimento causada por sua fuga precipitada. Talvez aquela mulher tenha realmente me deixado louco. Sem qualquer dúvida, foi uma loucura bater na janela... de que isso me serviria? Qual o problema se ela deitasse com outro? Por que isso deveria me enfurecer tanto, fazer o coração explodir em meus ouvidos? Não sou dono dela, nem quero ser, que diferença faz se outro gai-jin a possui, com ou sem violência? Algumas mulheres precisam de uma certa violência para excitá-las, como muitos homens... ah, espere, teria sido melhor se ela lutasse comigo, em vez de me acolher daquele jeito, por mais drogada que estivesse... ou fingisse estar?



Fingisse?





Era a primeira vez que tal pensamento lhe ocorria. Um pouco da raiva se esvaiu, embora o coração continuasse disparado, as têmporas ainda latejassem. Seria possível que ela estivesse fingindo? Claro que sim, pois seus braços me enlaçaram, suas pernas me envolveram, e seu corpo se mexeu como o de nenhuma outra... todas as parceiras de travesseiro se mexem com sensualidade, soltam gemidos e suspiros, às vezes exibem umas poucas lágrimas e murmuram “Ah, como você é forte, como me esgota, nunca tive o privilégio de conhecer um homem assim antes...”, mas todos os clientes sabem que são palavras superficiais, decoradas, parte do treinamento, nada mais do que isso, inexpressivas.



Ela não se comportou assim e cada momento teve um significado para mim. Não importa se ela fingia ou não... provavelmente fingia, pois as mulheres são cheias de astúcia. Não me importo, mas não deveria ter golpeado a janela como um tolo alucinado, revelando minha presença e esconderijo, provavelmente arruinando para sempre toda e qualquer possibilidade de, novamente, ter acesso àquele lugar.



Outra vez a raiva o dominou. Bateu com o punho na madeira do casco.



— Baka! — sussurrou, com vontade de gritar bem alto.



Passos sobre os seixos. Cauteloso, Ori se encolheu ainda mais nas sombras esquivando-se da claridade desastrosa da lua. Ouviu as vozes de pescadores se aproximando, conversando, censurando-se mais uma vez por não se ter mantido mais alerta. Quase que no mesmo instante, um pescador rude, de meia-idade, contornou a popa do barco e parou.



— Cuidado! Quem é você, estranho?— indagou o homem, furioso, segurando o mastro curto que tinha nas mãos como se fosse um porrete. — O que está fazendo aqui?



Ori não se mexeu, apenas fitou-o com uma expressão irada e aos outros que vieram se postar ao lado do primeiro. Um também era de meia-idade, o outro um jovem, não muito mais velho que Ori.



— Não deve perguntar algo assim a seus superiores — disse ele. — Onde estão suas maneiras?



— Quem é você? Não é um samu...



O homem parou de falar, paralisado, enquanto Ori se levantava de um pulo, a mão na espada, a lâmina começando a sair da bainha, ameaçadora.



— De joelhos, ralé, antes que eu arranque seus corações baka... um corte de cabelos diferente não faz com que eu seja menos samurai!



No mesmo instante, os pescadores caíram de joelhos, baixando a cabeça para a areia, balbuciando desculpas, convencidos da autoridade de Ori, pela maneira como a espada curta era empunhada.



— Calem-se! — gritou Ori. — Para onde estão indo?



— Vamos sair para pescar, lorde, por meia légua de mar. Por favor, perdoe-nos, mas no escuro, com seus cabelos...



— Cale-se! Levem o barco para a água! Depressa!



Saindo pelo mar, são e salvo, a raiva ofuscante controlada, o ar marinho purificando-o, Ori olhou para a colônia. As luzes continuavam acesas nas legações francesa e britânica, no prédio Struan e no clube que Hiraga lhe indicara. Lampiões a óleo ao longo da praia, umas poucas janelas iluminadas em outros bangalôs e armazéns, a cidade dos bêbados com a agitação normal, que se prolongaria noite adentro, os lugares que vendiam bebida nunca adormecendo por completo.



Mas toda a sua atenção se concentrou na legação francesa. Por quê? Ele não parava de perguntar a si mesmo. Por que eu haveria de me sentir tão possuído pelo... ciúme? Essa era a verdadeira palavra. Um ciúme insano. Sentir ciúme por causa de travesseiro é baka.





Teria sido por causa do que Hiraga me contou? “Taira diz que o costume deles é como o nosso na classe dirigente, um homem não vai para a cama com a mulher com quem casará antes do casamento...” Isso significa que o tai-pan não a levará para a cama, e como ela está prometida, ninguém mais tem esse direito. Bati nas janelas para impedir que aquele homem a possuísse... ou para protegê-la?



Ou foi apenas porque não queria que nenhum outro homem a tivesse até que eu pudesse fazê-lo de novo... o que seria uma estupidez ainda maior? Reagi assim Porque fui o primeiro? Isso faz com que seja diferente... por ter sido o único que a possuiu? Lembre-se, os chineses sempre acreditaram que a virgindade é o mais poderoso afrodisíaco entre o céu e a terra. Foi por isso que agi assim?



Não. Foi um súbito impulso. Acho que ela é uma mulher-lobo e deve ser morta... de preferência após deitar com ela mais uma vez... para que eu possa escapar a seu encantamento.



Mas como e quando? Deveria ser agora.



Só que é perigoso demais permanecer na colônia ou na Yoshiwara. Hiraga acabará descobrindo que não fui embora. E serei um homem morto se ele me encontrar. Dá para arriscar mais três dias e, depois, se não conseguir alcançá-la, partir apressado para Quioto, sem que Hiraga descubra? É mais seguro ir agora. O que fazer?



— Você, velho, onde mora?



— Segunda rua, quinta casa, lorde — balbuciou o pescador.





Todos sentiam profundo medo, sabendo que aquele devia ser um dos ronin que se esconderam na colônia, a fim de escapar aos vigilantes de Toranaga.




23







Domingo, 19 de outubro:









Os sinos da igreja chamavam os fiéis na manhã clara e agradável.



— Não há muitos fiéis em Iocoama — comentou Jamie McFay para Struan. Os ombros e as costas de McFay doíam, a igreja e o serviço iminente não eram de seu gosto, muito diferente do austero presbiterianismo escocês de sua infância. Uma pausa, e ele acrescentou, cauteloso, inseguro sobre a reação de Struan, depois da briga violenta que haviam tido no dia anterior:



— Não que eu seja um fiel que sempre vai à igreja... não sou mais. Minha mãe continua tão rigorosa como sempre, freqüenta três serviços aos domingos.



— Igual à minha, só que na igreja anglicana — murmurou Struan, cansado. Ele andava devagar, meio trôpego, encurvado, apoiado nas bengalas, em meio aos homens que convergiam para a igreja, no final da High Street, um pouco recuada, com seu próprio jardim, num terreno seleto, de frente para o mar.



— Mas a igreja aqui é muito bonita e faz com que Iocoama pareça permanente.



A Santíssima Trindade ou Santíssima Mama, como era reservadamente apelidada, era o orgulho da colônia. Fora consagrada, no ano anterior, pelo bispo de Hong Kong. O campanário era alto e o sino repicava suavemente, lembrando a todos de sua terra natal... tão distante. Madeira, tijolos e reboco de Xangai. Jardim bem cuidado, um pequeno cemitério, com apenas sete sepulturas, pois as doenças eram raras em Iocoama... ao contrário de Hong Kong, com suas pragas e a letal febre do Happy Valley, a malária. Todas as sete mortes haviam sido causadas por Ridente, exceto uma, por velhice. Vinte anos trabalhando na Ásia era algo raro, e mais raro ainda o homem que passava da idade da aposentadoria.



O sino tornou a repicar, ainda não insistente, havia tempo suficiente para que ocupassem os seus lugares, no banco da Casa Nobre, na primeira fila. Preciso de toda ajuda que puder obter, pensou Struan, fervoroso, nunca um devoto, mas sempre um crente. Fico contente que a igreja seja nossa mais que dos outros mercadores.



O terreno e o prédio haviam sido doados à igreja anglicana por todos os mercadores. Fora com entusiasmo que votaram a coleta, quatro horas depois o Yokohama Club abrira suas portas para os negócios, no mesmo dia em que fundara a colônia... por insistência de McFay, agindo sob as ordens de Tess Strum, que garantira cinqüenta por cento do custo. Ela assumira também o compromisso de fornecer o sino e mandara fazê-lo na nova fundição da companhia, em Hong Kong. Quando Tyler Brock soubera, tratara de encomendar, para não ser superado por sua filha apartada e odiada, um vitral em Londres, assim como bancos de carvalho inglês.



— Não tem problema ir à igreja no domingo, uma vez por mês, meu pai costumava dizer, mas nunca na frente da mãe. — Struan sorriu, desolado — Quando era mais jovem, no entanto, ele freqüentava a igreja tanto quanto a mãe agora...



Ele parou por um instante, a fim de recuperar o fôlego, e olhou para o mar Estava encapelado, azul-cinza, o céu salpicado de cúmulos. Uma dúzia ou por aí de navios mercantes se encontravam ancorados no estreito, os ingleses predominando, mas também um americano, um russo, o vapor de correspondência que chegara no dia anterior, a nave capitânia francesa, um vapor de roda e a fragata a vapor de vinte e um canhões Pearl, ainda sem o mastro de proa.



— A gente fica com uma sensação de nudez sem a esquadra, não acha?



— Tem razão. Não são muitos os que deixarão de fazer suas preces hoje. McFay girou a cabeça lentamente, a fim de atenuar a dor no pescoço.



— Quanto tempo acha que eles ficarão longe?



— Um mês é minha aposta... Bom dia, Sra. Lunkchurch.



Ambos tiraram o chapéu, polidos, Struan meio desajeitado, enquanto ela passava, de anquinhas e touca, o marido a reboque, suado, o rosto coberto de equimoses.



— O que aconteceu com ele?



— Uma briga — respondeu McFay, cauteloso, ainda tentando avaliar o ânimo de Struan, pois não o vira nem tivera notícias desde o dia anterior, exceto por um recado lacônico, naquela manhã, pedindo que o acompanhasse na ida à igreja. Struan recomeçou a andar e ele também. — Parece que ele, Dmitri e uns poucos outros decidiram visitar a cidade dos bêbados ontem à noite, para uma farra de noite de sábado.



— Ou seja, uma briga a socos?



— Infelizmente, era essa a idéia básica. Dmitri disse que se divertiram um bocado.



Struan notou o súbito brilho nos olhos de McFay.



— Também esteve lá, Jamie? — indagou ele, secamente, para sorrir em seguida.



McFay viu o sorriso e experimentou um profundo alívio.





— Ahn... estive, sim, tai-pan... também fui... mas apenas para evitar que Dmitri se metesse em alguma encrenca.



— E ele se meteu? — perguntou Struan, com uma pontada de inveja.





— Não, mas... ora, tai-pan, foi muito divertido.



— Você é um homem de sorte! Vamos, Jamie, conte-me tudo!



Jamie ouviu e viu a cordialidade e camaradagem francas que receara ter perdido para sempre e ficou radiante, as dores esquecidas, as raivas esquecidas, assim como as preocupações pelo futuro.



— Houve uma espetacular briga de gado no Buli and Cock, a melhor que já tivemos por aqui. Eles têm, agora, uma nova rinha e uma cerveja de Nagasáqui que é melhor do que a nossa Highland Dark! Dois treinadores do exército enfrentaram dois dos nossos rapazes, Chandler Sykes e Old Bloody.



— Quem?





— É um dos nossos marujos aposentados, um mestre artilheiro, chamado Charlie Bent, ex-tripulante do Lasting Cloud... o mesmo artilheiro que explodiu o junco de guerra de Wu Fang Choi para seu pai, em 1.843. Agora ele tem o apelido de “Old Bloody”, o velho sangrento, porque parece um matadouro. Apostei nele até o fim, tai-pan, e ganhei vinte e cinco libras. Depois, fomos ao palácio Yokopoko... é a maior taverna da cidade dos bêbados, frequentada principalmente pelo pessoal do exército, a marinha prefere o Friar Tuck, e as duas partes não costumam se encontrar.



Ele riu, antes de continuar:

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