Depois de comer sozinho, como sempre fazia, Yoshi foi se juntar a Koiko — se comessem juntos, invariavelmente, pelo costume, ela quase nada comeria, fazendo uma refeição antes, a fim de poder se concentrar nas necessidades dele. Naquela noite, Yoshi estava com vontade de jogar Go. Era um jogo complexo de estratégia, com pedras brancas e pretas, cada um dos dois jogadores tentando bloquear e capturar as pedras do outro.



Ambos eram bons jogadores, mas Koiko era uma virtuose, a tal ponto que podia, quase sempre, vencer ou perder a seu critério. Isso tornava o jogo duas vezes mais difícil para ela. Yoshi lhe ordenara que nunca perdesse deliberadamente, mas ele próprio era mau perdedor. Se ela ganhasse num dia errado, ele ficava irritado. Uma vitória num de seus dias ruins acabava com todo o mau humor. Naquela noite ele venceu, por pouco.



— Oh, Sire, me destruiu por completo! E eu pensava que ia vencer!



Estavam em seu quarto, com as pernas no reduzido espaço sob a mesa baixa, com um pequeno braseiro, envoltos por um grosso pano acolchoado, para impedir a entrada de aragens e manter o calor dentro.



— Está bem aquecido, Sire?



— Estou, sim, Koiko, obrigado. Ainda sente dores?



— Não tenho mais nenhuma. A massagista foi muito eficiente esta noite, — Ela gritou: — Sumomo, saquê e chá, por favor!



No outro cômodo, Sumomo pegou o frasco e o bule de chá em outro braseiro, abriu a porta de shoji e entrou. Serviu os dois e Koiko balançou a cabeça, em satisfação.



— Aprendeu a cerimônia do chá, Sumomo? — perguntou Yoshi.



— Aprendi, Sire, mas receio que me falte habilidade.



— Lorde Yoshi é um mestre — comentou Koiko, tomando um gole de saquê. Suas nádegas e costas doíam dos solavancos no palanquim durante o dia, as coxas de dois dias a cavalgar, e a cabeça do esforço para perder, enquanto dava a impressão de que cobiçava a vitória. Tudo isso ela escondia, e também seu desapontamento pelo pouco progresso naquele dia. Era evidente que isso decepcionara Yoshi. Mas ambos sabíamos que outra marcha forçada não será possível, pensou ela. Ele deve continuar sozinho, e eu o seguirei. E será bom me manter a distância por algum tempo. Esta vida é cansativa, por mais maravilhoso que ele seja. beberam em silêncio, rompido por Yoshi:



— Amanhã, bem cedo, partirei com trinta homens, deixando dez para escolta-la sob o comando de Abeh. Poderá me seguir mais devagar.



— Certo. Com sua permissão, posso segui-lo o mais depressa que puder?



Ele sorriu.



— Isso muito me agradaria, mas desde que chegue sem dores, no corpo ou no espírito.



— Mesmo que tal acontecesse, seu sorriso me curaria no mesmo instante. Outro jogo?



— Boa idéia, mas não Go.



Koiko riu.



— Neste caso, devo fazer alguns preparativos.



Ela se levantou, foi para o aposento externo, fechando a porta de shoji. Yoshi ouviu-a falando com Sumomo, mas não prestou atenção, sua mente absorvida pelo dia seguinte, Iedo e os gai-jin.



Suas vozes se perderam na distância, quando elas saíram. Ele terminou o saquê, apreciando-o, foi para o outro quarto, onde os futons e as colchas se achavam estendidos sobre o tatame impecável. Paisagens de inverno e cores fortes eram os ornamentos predominantes. Yoshi tirou a yukata acolchoada, estremeceu e enfiou-se sob as cobertas.



Quando Koiko voltou, ouviu-a andar por um momento no outro cômodo, e depois entrar no banheiro, onde havia recipientes para a noite, caso fossem necessários, assim como jarros com água para se beber e outros para se lavar.



— Mandei Sumomo dormir em outro quarto esta noite — avisou ela. — Também pedi a Abeh para postar um guarda lá fora, com ordens para não deixar ninguém nos incomodar.



— Por que fez isso?



Ela entrou no quarto.



— É a nossa última noite por algum tempo... mencionei para ele que não viajaria em sua companhia amanhã... e o quero todo para mim.



Sem pressa, Koiko tirou o quimono e aconchegou-se ao seu lado. Embora já a tivesse visto nua muitas vezes, sentido seu contato outras tantas, e dormido com ela em inúmeras ocasiões, aquela noite foi a melhor de todas.







QUIOTO





No palácio em Quioto, um dos espiões do lorde camarista bateu na porta de seu quarto, acordando-o, e entregou o recipiente de mensagem levada por pombo-correio.



— Isto acaba de ser interceptado, lorde.



O pequeno cilindro era endereçado ao conselheiro-chefe do Bakufu no palácio, Saito, e tinha o sinete pessoal do tairo Nori Anjo. Ele hesitou, depois rompeu o lacre com a unha bem cuidada.



Anjo enviara a mensagem ao amanhecer:





O líder gai-jin rejeitou insolentemente a ordem imperial para deixar Iocoama e eles estão se preparando para nos invadir. Prepare a ordem de mobilização nacional para assinatura do imperador; por este documento apresento a solicitação formal para que o imperador a assine de imediato. Depois, mande cópias urgentes para todos os daimios. Providencie para que o xógum Nobusada retorne a Iedo sem demora, a fim de comandar nossas forças. A princesa Yazu pode — e de preferência deve — permanecer em Quioto. Lorde Yoshi também deve receber a solicitação formal para voltar o mais depressa possível.





O lorde camarista pensou por um instante, concluindo presunçoso que a iniciativa de Saito seria indeferida, e o imperador aconselhado a nunca assinar uma ordem de mobilização. Com o maior cuidado, ele repôs a mensagem no cilindro e tornou a lacrá-lo, com sua cópia secreta do sinete.



— Pode levar e providencie a chegada ao destinatário — ordenou ele.



Ao ficar sozinho de novo, Wakura riu. Guerra! Ótimo. Anjo fora a escolha perfeita para tairo. Todos se afogarão em sua própria urina, os gai-jin, Yoshi, todos eles.



Exceto a princesa. Ela ficará para se tomar uma viúva... e quanto mais cedo, melhor.


39





ALDEIA HAMAMATSU





Segunda-feira, 8 de dezembro:





Sumomo acordou muito antes da primeira claridade. Tivera um pesadelo. Não estava mais na Tokaidô, com Koiko e lorde Yoshi, mas de volta a Quioto, perseguida por soldados do Bakufu, comandados por Abeh, acuada na casa em chamas dos shishi, gritos por toda parte, sangue por toda parte, armas de fogo disparando, espremendo-se em pânico pelo túnel estreito, por trás de Takeda e Katsumata, o buraco mal dando para passar, rastejando, os lados parecendo comprimi-la, deixando-a toda esfolada, cada vez mais estreito. O ar, impregnado de poeira, não era suficiente para sua respiração. Os pés de Takeda logo à frente, enquanto ele se arrastava, ofegando, alguém ou alguma coisa atrás dela, e depois Takeda se transformou em Yoshi, chutando-a, detendo-a, para em seguida desaparecer... e não havia mais nada à frente, apenas um caixão de terra.



Quando o coração se acalmou e os olhos puderam focalizar, na luz tênue da chama do lampião, ela viu um dos guardas observando-a, de seus futons. Ontem à noite ela acompanhara Koiko para uma conversa com Abeh, que lhe dissera para dormir no aposento comunal, havia espaço suficiente para ela num lado, e era um arranjo bastante satisfatório. Quatro guardas usavam o aposento, dois dormindo, dois de vigia. Fora ali que Sumomo arrumara sua cama e não conseguira dormir com facilidade, pois ouvira Yoshi dizer a Koiko que não mais viajariam juntos. Ouvira também Koiko dizer a Abeh:



— Lorde Yoshi decidiu que, a partir de amanhã, eu e meu grupo viajaremos mais devagar.



— O que ele deseja que se faça, dama?



— Ele disse que quer deixá-lo aqui, com dez homens, para me escoltar até Iedo. Sinto muito ser um problema.



— Não é problema para mim, dama, desde que ele esteja seguro.



Seguro e fora de alcance, pensara Sumomo, consternada pela mudança no plano. Muita coisa poderia sair errada dali até Iedo.



Ela acabara dormindo. Para sonhar. Não costumava sonhar. Ao final da noite e no início da manhã ela sempre dizia uma prece, Namu Amida Butsu, apenas o nome do Buda Amida, o que seria suficiente, se houvesse um deus para se orar. Mas esquecera na noite passada. Agora, em silêncio, ela enunciou as palavras e fechou os olhos.



Em momentos, retornou à cabana dos shishi.



Fora a pior experiência de sua vida, o ataque inesperado, os tiros passando pelas paredes, e no instante seguinte a cabeça do jovem ao seu lado explodira, sem tempo para que ele sequer gritasse. Mas outros gritaram, em parte por pânico, em parte por agonia, enquanto as balas continuavam a ser disparadas. Katsumata, paralisado por um instante, logo orientara a defesa, ordenando que alguns atacassem pela frente, outros pelo fundo. As duas cargas foram rechaçadas. Sumomo não sabia onde se esconder, tinha certeza de que estava tudo perdido, as chamas começavam a envolvê-los, mais gritos soavam, mais sangue era derramado, o fim se aproximava. A prece murmurada, Namu Amida Butsu, Namu Amida Butsu, e depois mãos a agarraram rudemente, empurraram-na para o buraco, atrás de Takeda — que, frenético, puxara outro de sua frente, e Katsumata fizera a mesma coisa —, enquanto seu salvador shishi, cujo rosto ela nunca vira, era morto na luta que se seguira, e que bloqueara o caminho de fuga, até que era tarde demais.



De alguma forma, saíra da escuridão impregnada de ódio para o ar puro. A fuga, a corrida em pânico parecendo interminável, o peito prestes a explodir, e Katsumata os levara, dando muitas voltas, até seu refugio de última instância. A porta dos fundos de Iwakura. E ali, sem demora, fora realizado um conselho de guerra shishi.



Sugiro que nos dispersemos por enquanto — propusera Katsumata. — Vamos nos reagrupar e nos reencontrar na primavera, no terceiro ou quarto mês. Lançaremos nova ofensiva na primavera.



— Por que esperar? — indagara alguém.



— Porque fomos traídos, porque há um espião em nosso meio ou entre nossos protetores. Fomos traídos. Agora, devemos nos resguardar e nos dispersar.



E fora o que acontecera.



— Sumomo, você irá para Koiko...



Mas antes disso, sua desorientação fora terrível, com lágrimas inexplicáveis, o coração disparado, o pânico muito fácil.



— Vai passar, Sumomo — garantira Katsumata.



Mais uma vez, ele acertara. Dera-lhe uma poção, que a fizera dormir e a acalmara. Ao se encontrar com Koiko, já voltara a ser como antes... isto é, quase, não de todo.



— Quando sentir o medo retomando, tome o medicamento, mas só um pequeno gole — recomendara ele. — Dentro de uma ou duas semanas, estar perfeita de novo. Lembre-se sempre de que sonno-joi precisa de você perfeita...



Sumomo saiu de seu devaneio, suando outra vez, ameaçada pelo medo. Ainda era noite. Estendeu a mão para o fardo ao lado de sua cabeça, onde guardava o vidrinho. Mas não encontrou o fardo. Não o trouxera, ao trocar de aposentos. Não importa, pensou ela, não preciso disso, posso muito bem dispensá-lo.



Repetiu essa determinação várias vezes, contorcendo-se na cama, as cobertas úmidas e pegajosas ao seu redor. E depois notou que o guarda continuava a observá-la.



— Um pesadelo, neh?— sussurrou ele, gentil.



Ela acenou com a cabeça, sem dizer nada.



— Eu poderia lhe dar bons sonhos.



O guarda puxou sua colcha para o lado, num convite. Sumomo sacudiu a cabeça. Ele deu de ombros, virou-se para o outro lado e esqueceu-a, considerando-a estúpida por rejeitar tal prazer. Sem se sentir ofendida, ela também virou de costas, apenas um pouco divertida. Estendera a mão para a faca na obi, dentro da bainha. O contato proporcionou-lhe a paz de que precisava. Um último Namu Amida Butsu.



Sumomo fechou os olhos e dormiu sem sonhos.







Koiko estava acordada e satisfeita. Ainda não era o amanhecer. Yoshi dormia ao seu lado, sereno. Era agradável ficar deitada ali, à deriva, sabendo que não teria de suportar o desconforto de outro dia num palanquim, aos solavancos, jogada de um lado para outro, por causa de uma pressa inconveniente. E também porque sua noite fora tranqüila. Yoshi mergulhara num sono profundo. De vez em quando um pequeno ronco o sacudia, mas isso não a incomodava.



— Treinem seus ouvidos, damas — dizia sempre a cortesã aposentada, com uma risada desdentada, para todas as maiko na escola. — Passarão suas vidas profissionais em companhia de velhos. Todos os homens roncam, mas os velhos roncam ainda mais, só que não podemos esquecer que são eles que pagam... os jovens levam flores e também roncam.



Entre todos os homens com os quais ela já deitara, Yoshi era o mais sereno no sono. Desperto, era o mais difícil. Para se antecipar. Para satisfazer. Não fisicamente. Em termos físicos, ele era forte e experiente; por mais que Koiko fosse treinada a permanecer alheia dentro de um abraço, ele sempre a atraía, e na maioria das noites ela também alcançava o esplendor do prazer.



Katsumata era mais como um mago. Acariciava sua imaginação e pensamentos, estimulando-a além de qualquer coisa que ela pudesse imaginar. Ficava exultante quando ela adquiria uma nova habilidade... como treinar os ouvidos para captar as palavras quase inaudíveis.



— É onde se encontra o conhecimento dourado, as partes importantes, sinais de perigo, de segurança, do que existe dentro do coração secreto dentro do coração secreto. Lembre-se de que todos nós neste mundo, homens e mulheres, possuímos três corações, um para o mundo inteiro ver, um para a família, e um só para nós. Alguns homens têm seis corações. Yoshi é assim. Ele é seu objetivo, aquele para quem você deve ser o farol.



Ela riu para si mesma, recordando como dissera que lorde Yoshi se encontrava completamente além de seu alcance. Katsumata sorrira, seu sorriso especial, e a exortara a ter paciência.



— Dispõe de bastante tempo. Está com dezoito anos, e não há muito mais que eu possa lhe ensinar. Deve começar a se expandir por si mesma. Como todo estudante devotado, deve seguir a mais importante lei para todos os que aprendem: recompense seu mestre fazendo com que seja seu dever superá-lo! Seja paciente, Koiko. No momento oportuno, sua mama-san e eu providenciaremos para que lorde Yoshi tome conhecimento de sua existência...



E fora o que acontecera. Em um ano. O primeiro convite para ir ao castelo viera seis meses e cinco dias antes. O coração disparado, com medo de fracassar, mas tal não acontecera. Estava preparada, e cumprira seu dever com o mestre.



Mas sou guia para Yoshi? Sei que ele gosta de mim, aprecia minha companhia e minha mente. Para onde devo guiá-lo? Katsumata jamais disse, apenas me falou que se tornaria evidente.



Sonno-joi resume tudo. Envolva lorde Yoshi. Ajude-o a mudar. Pouco a pouco você o ajudará a se deslocar cada vez mais para o nosso lado. Nunca esqueça, ele não é inimigo; ao contrário, é vital para nós, vai chefiar o novo Bakufu, formado por samurais leais, como tairo... não haverá mais qualquer necessidade de um xógum ou do xogunato... apoiado por nosso novo e permanente Conselho dos Samurais...



Eu me pergunto como será a nova era, se viverei para vê-la, pensou Koiko, deitada ali, confortável. Agora... o que fazer com Sumomo?



Fora desnecessário mandá-la para outro aposento... como se importasse a sua presença no cômodo ao lado, já que não escutaria os gritos e movimentos. Mas não fora esse o motivo. Quando Yoshi dissera que ela não o acompanharia pelo resto da viagem, Koiko tivera a impressão de ouvir movimento no cômodo externo, como se Sumomo chegasse mais perto e tentasse ouvir o que diziam, uma espantosa invasão da privacidade, um comportamento inadmissível.



Só uma intrometida impertinente faria tal coisa, pensara ela. Ou uma espia. Ah! Katsumata se empenha com frieza em um de seus intrincados jogos dentro de Jogos, usando-me para infiltrar uma espia, a fim de vigiar Tora-chan e eu? Lidarei Com ela amanhã; até lá, Sumomo pode dormir em outro lugar.



Isso acertado, dizendo a Sumomo apenas que lorde Yoshi preferia ficar sozinho, ela voltara, revistara apressada o fardo da moça, sem saber por que, pois não tinha certeza se houvera mesmo uma tentativa de espioná-los.



Não havia nada de excepcional ali. Umas poucas roupas, um vidro com algum medicamento, mais nada. O quimono para usar durante o dia, dobrado de uma maneira impecável, era comum, não merecia mais que um olhar superficial.



Aliviada, Koiko arrumara tudo como antes. Quanto ao vidro... poderia ser ala veneno?



Antes de voltar para Yoshi, ela decidira se certificar que não era um veneno. Sumomo tomaria um pouco. Nunca era errado tomar as providências devidas contra um perigo em potencial. Yoshi dissera:



— Foi isso que matou Utani. Ele não postou sentinelas como devia.



Sinto muito, mas o que matou Utani foi a notícia do encontro amoroso sussurrada para a minha criada por um samurai da guarda, e que eu lhe permiti que passasse adiante, para Meikin, que a transmitiu a Hiraga. O que Hiraga anda fazendo neste momento? Como um cliente, nas duas vezes em que o foi, quando eu tinha dezesseis anos, Hiraga não foi melhor ou pior do que os outros anônimos, mas como um shishi, o melhor. Curioso...



Yoshi fungou no sono, mas não despertou. A mão de Koiko o tocou por um instante, absorvendo seu calor. Durma, meu querido, você me agrada mais do que ouso dizer a mim mesma, refletiu ela, e depois continuou a pensar sobre o passado.



Curioso que eu me lembre apenas de dois rostos, entre todos os outros: só Katsumata e Hiraga. Curioso que eu tenha sido preparada para ser a dama de lorde Toranaga Yoshi... por algum tempo. Sou mesmo afortunada. Um ano, talvez dois, não mais do que três, e depois me casarei. Tora-chan escolherá o marido para mim. Quem quer que seja, será um samurai. Quantos filhos terei? A velha adivinha disse três filhos e duas filhas, o monge chinês falou em dois filhos e duas filhas.



Koiko sorriu para si mesma. Serei sensata nos cuidados com a casa de meu marido, uma boa mãe para meus filhos, rigorosa com as filhas, que haverão de casar muito bem.







Ela acordou poucos segundos antes de Yoshi. Ele se levantou prontamente, num momento adormecido, no seguinte pronto para iniciar o dia. Koiko estendeu seu yukata acolchoado, depois ajeitou o próprio quimono, foi abrir uma porta de shoji, depois a outra, ajoelhou-se, ajudou-o a calçar as sandálias de palha. O guarda começou a fazer uma reverência, conteve-se a tempo e observou todos ao redor mais uma vez, enquanto Yoshi saía para a área da privada.



Sumomo estava ajoelhada perto da porta, esperando paciente, uma criada ao seu lado, com um braseiro, chá quente, e as bandejas da primeira refeição.



— Bom dia, ama. Faz frio esta manhã. Posso aprontar o chá?



— Pode, sim, por favor, Sumomo, e depressa como um piscar de olhos. Feche a porta, pois o frio é intenso. — Koiko voltou apressada para o seu aposento interno, acrescentando: — Partiremos no meio da manhã, Sumomo. Podemos trocar para as roupas de viagem na ocasião.



— Pois não, ama.



Sumomo ainda se encontrava parada na porta externa, tentando esconder seu choque. Percebera no mesmo instante que seu fardo fora mexido, o nó que prendi o quadrado de seda não era exatamente igual ao que fizera. Seu quimono do dia estava dobrado ao lado, de um jeito impecável, mas também fora mexido.



Mal respirando, ela esperou que a criada se retirasse, depois desdobrou o quimono. Seu coração só recomeçou a bater quando os dedos sentiram os shuriken escondidos no bolso secreto na manga.



Mas espere, pensou ela, o sangue afluindo ao rosto, só porque continuam no lugar, isso não significa que alguém não os descobriu! Não entre em pânico! Pense! Quem revistaria meu fardo aqui, e por quê? Um ladrão? Nunca! Aheh? Um guarda? Koiko? Yoshi? Se fosse um deles, é lógico concluir que eu já estaria morta a esta altura, ou pelo menos amarrada, respondendo a perguntas, e...



— Sumomo, o chá está pronto?



— Já vou levar, ama...



Apressada, e por causa do frio, ela pôs o quimono por cima do yukata de dormir — já fizera a lavagem matutina, escovara os dentes e os cabelos, ainda presos numa trança convencional —, amarrou a obi e repôs a faca na bainha, a mente funcionando em plena velocidade durante todo o tempo: Foi um deles? Talvez a pessoa que revistou minhas coisas não tenha sido muito meticulosa. Poderia não perceber os shuriken, o que seria fácil se não esperasse encontrá-los. Teria sido alguém sem experiência? Koiko? Por que ela revistaria minhas coisas agora? Claro que isso já ocorrera, por outras criadas, quando se apresentara nos aposentos de Koiko... os shuriken estavam em sua pessoa.



Enquanto a mente disparava, ela ajeitou a papa de arroz para mantê-la quente, fez o chá e levou uma taça para o banheiro, onde Koiko terminava de se banhar dos baldes com água quente, fragrante de extrato de flores. A água era entregue ao amanhecer, através de um pequeno alçapão, a fim de que nada se derramasse nos tatames, e os hóspedes não fossem incomodados. Os recipientes noturnos eram removidos da mesma maneira.



— Vou usar meu quimono marrom com a carpa — disse Koiko, tomando um gole do chá, agradecida, o frio enrugando sua pele, por mais que quisesse fingir que o frio não existia — junto com a obi dourada.



Sumomo afastou-se para cumprir a ordem, o coração ainda pesado, pegou as roupas, ajudou Koiko a se vestir.



Depois que a obi foi amarrada, para sua satisfação, Koiko ajoelhou-se sobre um dos futons. Sumomo ajoelhou-se por trás, a fim de escovar seus cabelos lustrosos, que desciam até a cintura.



— Vai muito bem, Sumomo. Está aprendendo. Mas, por favor, faça os movimentos mais longos e mais suaves.



Lá fora, o ritmo do despertar na estalagem aumentava. Criadas, soldados e outras pessoas gritavam. A voz de Abeh, depois a de Yoshi. As duas mulheres prestaram atenção, mas não conseguiram distinguir o que foi dito. As vozes se afastaram.



— Mais vinte escovadelas, depois vou comer e tomar mais um chá. Sente fome?



— Não, ama, obrigada. Já comi.



— Não dormiu bem? — indagou Koiko, notando um certo nervosismo moça.



— Não, dama Koiko. Sinto muito lhe contar meu problema, mas às vezes tenho dificuldade para dormir e tenho pesadelos quando pego no sono — disse Sumomo, ingenuamente, ainda distraída. — O doutor me deu um medicamento para me acalmar. Esqueci de torná-lo ontem à noite, quando mudei de aposento.



— Ah, é isso? — Koiko escondeu seu alívio. — Talvez devesse tomar um pouco agora.



— Pode esperar e...



— Por favor, eu insisto. É importante que você esteja calma.



Obediente e agradecida, Sumomo foi pegar o vidro. Não fora mexido. Ela tomou um gole, tornou a arrolhar. O calor interior começou a se espalhar quase que no mesmo instante.



— Obrigada, ama — murmurou ela, voltando a escovar os cabelos de Koiko.



Depois da papa de arroz quente, picles, enguia assada fria com molho agridoce e bolinhos de arroz, Koiko disse:



— Sente-se, por favor, Sumomo, e sirva-se de chá.



— Obrigada, Ama.



— Lorde Yoshi decidiu que não devo acompanhá-lo mais, e sim segui-lo de palanquim, num ritmo mais moderado.



— Alguns guardas mencionaram isso, enquanto eu a esperava. Tudo estará pronto para o momento em que desejar partir.



— Ótimo. — Agora que descobrira a verdade sobre o vidro, Koiko sentia-se mais tranqüila, mas isso não alterou sua decisão de ser prudente... seu dever com Katsumata já cumprido. — Agora, já saiu de Quioto, sã e salva.



Ela falou com voz suave e Sumomo sentiu o estômago se contrair. Teria entrado em pânico, não fosse pelo elixir, enquanto Koiko acrescentava:



— É tempo de nos separarmos, Sumomo. Hoje. Tem dinheiro?



— Não, ama. — Sumomo queria dar a impressão de que era indiferente a esse problema. — Mas seria possí...



— Não precisa se preocupar, pois posso lhe dar algum. — Koiko sorriu, não compreendendo a confusão da moça, e continuou, em tom firme: — Seus documentos estão em ordem?



— Estão, sim, mas posso...



— É melhor para nós duas. Considerei todas as possibilidades. Será melhor eu viajar sozinha. Você pode ficar aqui ou voltar para sua casa em Satsuma...eu aconselharia isso... ou seguir sozinha para Iedo.



— Mas, por favor, posso ficar com você?



— É mais sensato você seguir seu caminho agora... claro que compreendo que a aceitei como um favor excepcional para seu guardião. Agora, está sã e salva.



— Mas... o que vai fazer sem criada? Quero servi-la e...



— Tem sido muito boa, mas posso contratar alguém. Por favor, não se preocupe com isso. Pretende voltar a Quioto?



Como Sumomo não respondesse, apenas a fitasse em silêncio, aturdida, Koiko acrescentou, gentilmente:



— O que seu guardião disse que deveria fazer ao me deixar?



— Ele... ele não disse.



Koiko franziu o rosto.



— Mas com certeza deve ter um plano.



— Tenho, sim, ama — balbuciou Sumomo, cada vez mais confusa. — Ele me disse que eu deveria acompanhá-la até Iedo. Depois, se esse fosse o seu desejo, eu deveria ir embora.



— Ir para onde?



— Para... para me encontrar com Oda-sama.



— Claro, claro. Mas em que lugar de Iedo?



— Não sei. Posso servir...



— Não tem certeza, Sumomo? — O rosto de Koiko franziu-se ainda mais.



— Tem outra família com que ficar, se ele não estiver lá?



— Hum... há uma estalagem em que devem saber onde ele está ou encontrarei uma mensagem à minha espera. Juro que não serei um fardo durante a viagem, de jeito nenhum... tem me ensinado tanta coisa...



Quanto mais Koiko escutava a moça insistir — tolamente, pensou ela, pois deve ser óbvio que já tomei minha decisão —, menos gostava do que ouvia, da agitação de Sumomo, da maneira como falava e baixava os olhos.



Ela fechou os ouvidos aos argumentos por um instante e aproveitou o tempo para ordenar seus pensamentos. Tornaram-se mais sombrios.



— Seu guardião também foi para Iedo?



— Não sei. Por favor, deixe-me servir...



— Esse Oda-sama é um Satsuma... faz parte da guarnição de Satsuma?



— Não. — Sumomo se censurou no mesmo instante, pois deveria ter respondido “Não sei”. — Os Satsu...



— Então o que ele está fazendo em Iedo?



— Não sei, dama — murmurou Sumomo, hesitante, sem a necessária rapidez de raciocínio, mais assustada a cada momento. — Não o vejo há quase um ano... apenas me informaram que o encontraria em Iedo.



Os olhos de Koiko penetraram nos dela, a voz se tornou incisiva:



— Seu guardião disse que esse Oda-sam era shishi. Portanto, ele...



A voz murchou, como se, ao pronunciar a palavra em voz alta, a enormidade do que fizera e arriscara, ao concordar em aceitar a companhia daquela moça, a sufocasse.



— Os shishi acham que lorde Yoshi é seu principal inimigo — balbuciou ela. — E se ele é o inimigo...



— Não, dama, ele não é, apenas o xogunato, o Bakufu é o inimigo, ele está acima de tudo isso, não é inimigo — protestou Sumomo, com veemência, a mentira saindo fácil, para depois acrescentar, antes que pudesse se controlar: — Katsu... meu guardião incutiu isso em todos nós.



— Em todos vocês? — O rosto de Koiko ficou branco. — Namu Amida Butsu! Você é um de seus acólitos!



Katsumata lhe dissera que umas poucas moças estavam sendo treinadas por ele para integrarem seu bando de guerreiros.



— Ele... ele também a treinou.



— Sou apenas uma humilde servidora leal, dama — murmurou Sumomo fazendo um esforço para manter o controle e exibir um ar inocente.



Koiko olhou ao redor, na maior incredulidade, sua mente quase parou; o mundo ditoso em que vinha habitando desmoronava de repente.



— Você é um deles!



Sumomo sustentou o olhar, sem saber como se livrar do abismo que se abrira à frente delas.



— Dama, por favor, vamos pensar com clareza. Eu... não sou uma ameaça para você, nem você para mim, vamos deixar assim. Jurei protegê-la, e o farei, a lorde Yoshi também, se necessário. Deixe-me viajar em sua companhia. Juro que irei embora no momento em que alcançar Iedo. Por favor. — Seus olhos suplicavam que Koiko concordasse. — Nunca se arrependerá dessa gentileza. Por favor. Meu guardião pediu um favor de vida inteira. Por favor, eu a servirei...



Koiko mal ouvia as palavras. Observava-a como um camundongo olharia uma serpente pronta para o bote, sem qualquer pensamento em sua cabeça agora a não ser como escapar, como fazer com que tudo aquilo fosse um sonho. É um sonho? Seja sensata, sua vida está em jogo, mais do que sua vida, deve manter o controle.



— Dê-me sua faca.



Sumomo não hesitou. Enfiou a mão por dentro da obi, entregou a faca na bainha. Koiko pegou a lâmina como se estivesse em brasa. Sem saber o que mais fazer com aquilo, jamais tendo manipulado, possuído ou precisado antes de uma faca, todas as armas eram proibidas no mundo flutuante, ela a enfiou em sua própria obi.



— O que quer conosco? — indagou ela, a voz quase inaudível. — Por que está aqui?



— Só desejo viajar em sua companhia, dama — respondeu Sumomo, como se falasse a uma criança, sem compreender que seu rosto se tornara duro. — Apenas viajar em sua companhia, não há outro motivo.



— Fazia parte dos assassinos que atacaram o xógum Nobusada?



— Claro que não. Sou apenas uma leal partidária, uma ami...



— Mas foi você a espia que sussurrou que meu lorde ia deixar seu quartel para se encontrar com Ogama... foi você!



— Não, dama, juro que não fui eu. Já disse que ele não é o inimigo, o atacante não passava de um louco solitário, não era um dos nossos...



— Tem de partir... deve partir... — insistiu Koiko, num fio de voz. — Por favor, vá embora. Agora, por favor. Depressa.



— Não há necessidade de se preocupar ou ter medo. Nenhuma.



— Mas eu sinto. Estou apavorada com a possibilidade de que alguém venha a denunciá-la. Yoshi...



As palavras pareceram ficar suspensas no ar, entre as duas. Os olhos se encontraram, Sumomo determinada, Koiko desamparada e se intimidando sob a força daquele olhar. As duas davam a impressão de terem envelhecido, Koiko angustiada por ter sido tão ingênua, por seu ídolo tê-la usado de uma forma tão insidiosa. Sumomo furiosa por ter sido tão estúpida ao não concordar de imediato quando a prostituta intrometida propusera que ela fosse embora. Tola, tola, as duas pensavam naquele momento.



— Farei o que está dizendo — murmurou Sumomo. — Irei embora, apesar...



A porta de shoji foi aberta. Yoshi entrou, lépido, encaminhou-se para o cômodo interno. O transe das duas se dissipou. Fizeram uma reverência apressada. Ele parou no meio de um passo, todos os sentidos bradando perigo.



— O que houve? — indagou ele, ríspido, pois percebera o instante de medo, antes de as cabeças se inclinarem.



— Na... nada, Sire — respondeu Koiko, recuperando o controle, enquanto Sumomo se apressava para o braseiro, a fim de buscar chá fresco. — Deseja um chá? Talvez a primeira refeição?



Os olhos de Yoshi deslocaram-se de uma mulher para outra.



— O que houve? — perguntou ele de novo, devagar, as palavras como pingentes de gelo.



Sumomo ajoelhou-se, humilde.



— Sentimos muito não podermos acompanhá-lo, Sire. Era por isso que a dama Koiko se mostrava tão triste. Posso servir o chá, Sire?



O silêncio foi se tornando opressivo. Yoshi cerrou os punhos na altura dos quadris, o rosto duro, as pernas nuas bem plantadas no chão.



— Koiko! Diga-me tudo! Agora!



A boca de Koiko começou a se mexer, mas as palavras não saíram. O coração de Sumomo parou, e depois trovejou em seus ouvidos, enquanto Koiko se levantava, lágrimas escorrendo, e balbuciava:



— Deve compreender... ela não é o que...



No mesmo instante, Sumomo ficou de pé, a mão direita entrou na manga e saiu com um shuriken. Yoshi rangeu os dentes ao vê-lo. O braço de Sumomo se contraiu para o lançamento — ele estava desarmado, um alvo aberto, suas espadas no cômodo interno. Yoshi desviou-se para a esquerda, na esperança de que o movimento pudesse confundi-la, preparando-se para arremeter contra a moça, os olhos fixados em sua mão. Imperturbável, Sumomo mirou seu peito e lançou o shuriken.



O círculo de aço com pontas afiadas girou pelo ar. Frenético, Yoshi arqueou corpo, desviou-se. Uma das pontas pegou a beira de seu quimono e cortou o pano, mas não atingiu a carne, desaparecendo pela tela de shoji e se cravando num dos postes do cômodo interno, enquanto Yoshi, desequilibrado pelo esforço extremo, esbarrava numa parede e caía ao chão.



Por um instante, tudo parecia um sonho lento...



Sumomo, estendendo a mão pela manga, a fim de pegar o próximo shuriken via apenas o grande inimigo, caído no chão, impotente, e sua prostituta retardada que causara aquela conclusão desnecessária, a fitá-la boquiaberta, um pilar de medo... mas não sentia medo, apenas exultação, certeza de que o momento era seu zênite, a culminação por que nascera, para a qual fora treinada durante toda a sua vida, e que agora, invencível campeã dos shishi, haveria de consumar, morrendo em seguida, para viver por toda a eternidade na lenda...



Koiko, de pé, paralisada, consternada por ter sido enganada por seu guru, que era como um deus, mas a traíra, só lhe dissera mentiras, a moça também uma impostora, e por causa deles acontecia agora aquela conspiração monstruosa: seu benfeitor morreria, e mesmo que não morresse, ela cairia em desgraça, a morte inevitável, pela mão dele ou dos guardas, tudo nesta vida desperdiçado, jamais casaria com seu samurai, nunca teria filhos, nunca nesta vida, era melhor encerrá-la depressa, por sua própria mão, do que deixar que ele cuidasse disso, mas como, como, e foi então que ela se lembrou da faca de Sumomo...



Yoshi, virando-se no chão, frenético para ver o próximo arremesso, ajeitando os pés sob o corpo para a carga que tinha de fazer, ou morrer, tudo levando muito tempo, a mente explodindo, clamando que acolhera uma víbora, e depois seus olhos divisaram a mão de Sumomo, com o segundo shuriken —quantos ela tinha? —, os lábios dela repuxados, os dentes muito brancos à mostra... E o instante de paralisia terminou.



Sumomo hesitou, exultante no triunfo, mas o momento foi longo demais, e ela viu Koiko sair do transe, a faca em sua mão. Numa reação instintiva, mudou o alvo, conteve-se, hesitou de novo, apontou para Yoshi mais uma vez, iniciou o lançamento, mas nesse instante Koiko arremeteu para a frente, tropeçou na bainha e tombou em sua direção.



O shuriken girando cravou-se no peito de Koiko, que gritou, e isso deu tempo a Yoshi para se lançar do chão contra Sumomo. Ele pegou-a pelo tornozelo, derrubou-a, os dedos procuraram sua garganta, mas ela era como uma enguia, desvencilhou-se, treinada em artes marciais, a mão procurando o último shuriken. Antes que pudesse alcançá-lo, os dedos de ferro de Yoshi agarraram parte de seu quimono, rasgaram metade da manga, inibindo-a. Outra vez Sumomo se desvencilhou, ficou de pé, em um segundo, mas agora ele também se levantara.



Ela soltou um estridente grito de batalha, estendeu a mão para trás, efetuou o lançamento. Ele estava paralisado, morto... só que a mão de Sumomo estava vazia-o movimento era apenas uma finta, o último shuriken ainda preso na manga rasgada. Enquanto tentava pegá-lo, a porta de shoji por trás dela foi aberta pelo guarda.



— Depressa! — gritou ela, apontando para Koiko, a se contorcer e gemer no chão.



E quando o guarda correu para a frente, Sumomo tirou sua espada comprid3 da bainha, ergueu-a, golpeou, feriu-o, e no mesmo movimento se virou para Yoshi. Mas ele saltara um passo para trás, passara por cima do corpo de Koiko, e agora corria para o cômodo interno, em busca de suas espadas, irrompendo pela porta de shoji fechada, com Sumomo em seu encalço.



A espada de Yoshi saiu da bainha. Ele girou, aparou o primeiro golpe violento, deu a volta no espaço restrito. Destemida, Sumomo atacou de novo, o golpe também foi aparado, enquanto os dois avaliavam um ao outro. Outra sucessão de golpes, ela era uma hábil espadachim, assim como Yoshi.



Agora ele atacou, foi contido, os dois recuaram, circularam, e depois Sumomo recuou pela porta, em busca de mais espaço, seguida por Yoshi. Os dois circularam, procurando uma abertura. Soaram gritos lá fora. Guardas convergiam, o samurai ferido bloqueava parcialmente a porta. Sabendo que restava pouco tempo, Sumomo aumentou a pressão, avançou, depois girou, ficando de costas para a porta, e os dois se atacaram, golpe e contragolpe. Yoshi virou-se, forçando-a a dar outra volta, mas perdeu a iniciativa. Ele viu Abeh correr para as costas da moça, a espada erguida, e gritou:



— Não! Deixe-a comigo!



Quase foi decapitado por isso, e recuou, numa desordem temporária. Obediente, Abeh parou. Outra escaramuça furiosa, Yoshi recuperando o equilíbrio bem a tempo. Eram adversários à altura, Yoshi muito mais forte, embora não com tanta prática.



Os punhos das espadas engancharam. Sumomo logo se desvencilhou, sabendo que ele prevaleceria nessa posição, recuou, fez uma finta, avançou numa carga cega, heterodoxa, o gume da espada cortou o ombro de Yoshi. Teria estropiado um lutador menos hábil, mas ele previra o golpe, e sofreu apenas um pequeno ferimento, embora gritasse, baixasse a guarda, simulando uma dor intensa. Descuidada, Sumomo adiantou-se para o golpe de misericórdia. Mas o inimigo não se encontrava exatamente onde esperava. Yoshi ergueu a espada do chão, surpreendendo-a. O golpe cortou o pulso esquerdo de Sumomo, jogando-o longe, com a espada, os dedos ainda presos no punho.



Ela olhou para o coto do braço, aturdida, o sangue esguichando, e soltou um terrível grito. Não havia dor. A outra mão segurou o coto, diminuindo o fluxo. Guardas se adiantaram para agarrá-la, mas outra vez Yoshi mandou que se bastassem, o peito arfando, enquanto tentava recuperar o fôlego, observando-a lentamente.



— Quem é você?



Sumomo Fujahito... shishi — balbuciou ela, a coragem e a força se desvanecendo depressa, para depois, com o último alento, arrematar: — Sonno-joi



Sumomo largou o coto, tateou à procura do último shuriken, encontrou-o, espetou uma das pontas envenenadas no braço, inclinou-se para a frente, a fim de cravá-lo. Mas Yoshi estava preparado.



O golpe violento acertou-a com perfeição, no ponto em que o pescoço se encontrava ao corpo, a lâmina foi cortando, saiu por baixo do braço. Todos os espectadores prenderam a respiração, como se fossem um só, convencidos de que haviam testemunhado um acontecimento que seria transmitido de boca em boca por séculos, provando que aquele homem fora um digno descendente do grande xógum e portador de seu nome. Mas todos ficaram também abalados, à visão de tanto sangue. Abeh foi o primeiro a recuperar a voz.



— O que aconteceu, lorde?



— Eu venci — disse Yoshi, sombrio, examinando seu ombro, o sangue manchando o quimono, uma dor no lado, o coração ainda batendo forte. — Chame um médico... e depois partiremos.



Homens saíram correndo para cumprir sua ordem. Abeh desviou os olhos do cadáver de Sumomo. Koiko gemia e se contorcia no chão, as unhas cortando o tatame. Ele avançou em sua direção, mas parou quando Yoshi disse:



— Cuidado, seu tolo! Ela era parte da conspiração! Cauteloso, Abeh chutou a faca de Sumomo para um lado.



— Vire-a! — ordenou Yoshi.



Ele obedeceu, empurrando-a com o pé. Havia apenas um sinal mínimo de sangue. O shuriken prendera o quimono na pele, estancando a hemorragia, mais da metade do aço cravado. Além da agonia pulsante, que contorcia seu rosto em ondas sucessivas, ela continuava fascinante como antes.



Yoshi sentia um ódio intenso.



Nunca estivera tão perto da morte. O outro ataque não fora nada, em comparação com aquele. Não podia entender como conseguira resistir ao ataque traiçoeiro. Sabia que estivera derrotado em meia dúzia de momentos e o terror à beira do abismo não fora como o imaginara. O terror degrada qualquer um, pensou ele, querendo retalhar Koiko em pedaços, na sua fúria, pela traição, ou deixá-la perecer em agonia.



As mãos de Koiko apertavam o peito, em total impotência, onde a dor profunda se concentrava, numa tentativa de arrancar a coisa que a causava. Mas ela não podia. Um tremor sacudiu seu corpo. Os olhos se abriram, focalizaram Yoshi, parado ali, a mão esquerda deixou o peito, subiu para o rosto, procurou ajeitar os cabelos, para ele.



— Ajude-me, Tora-chan — soluçou ela, as palavras truncadas. — Por favor, ajude-me... dói muito...



— Quem a mandou? E a ela? Quem?



— Ajude-me... por favor... dói, dói muito... tentei salvar... salvar...



A voz definhou, e ela se viu outra vez com a faca na mão, Yoshi indefeso, heroicamente cumprindo seu dever, correndo para entregar a faca que ela própria não podia usar, para impedir a traidora de feri-lo com o aço voador, recebendo-o no lugar dele, salvando sua vida, para que ele a recompensasse e perdoasse, não que fosse culpada de qualquer coisa, apenas de servi-lo, agradá-lo, adorá-lo.



— O que faremos com ela? — perguntou Abeh, contrafeito, certo que o shuriken era envenenado, e que a morte era inevitável, alguns venenos mais cruéis do que outros.



Jogue-a num monte de esterco, foi o pensamento imediato de Yoshi, o estômago cheio de uma bílis amarga, e deixe-a com sua dor, para os cães se divertirem. Ele franziu o rosto, atormentado agora, vendo que Koiko ainda era bela, ainda era desejável, apenas o gemido ressaltando em sua percepção que uma era terminara.



Agora e para sempre, ele estaria sozinho. Koiko destruíra a confiança. Se aquela mulher, a quem dispensara tanta afeição, fora capaz de traí-lo, qualquer outra pessoa também poderia fazê-lo. Nunca mais poderia confiar numa mulher, nem partilhar tanta coisa. Jamais. Koiko destruíra essa parte dele para sempre. Seu rosto se fechou.



— Jogue-a...



E foi então que ele se lembrou dos poemas tolos e dos poemas felizes de Koiko, todo o riso e prazeres que ela lhe proporcionara, os bons conselhos, incontáveis satisfações. Abruptamente, ele foi dominado por uma imensa tristeza pela crueldade da vida. Ainda tinha a espada na mão. O pescoço dela era bem pequeno. O golpe foi gentil.



Sonno-joi, hem? — murmurou ele, desorientado por sua perda.



Malditos shishi, é culpa deles a morte de Koiko. Quem enviou Sumomo? Katsumata! Só pode ser, os mesmos golpes com a espada, a mesma astúcia. Já por duas vezes seus assassinos quase me mataram. Não haverá uma terceira vez. Exterminarei todos. Até que eu esteja morto, Katsumata é inimigo, todos os shishi são inimigos. Amaldiçoados shishi... e amaldiçoados gai-jin!



É no fundo culpa deles, dos gai-jin. São uma praga. Se não fosse por eles, nada disso teria acontecido, não haveria os repulsivos tratados, nem shishi, nem sonno-joi, nem a ferida infeccionada de Iocoama.



Amaldiçoados gai-jin. Agora eles vão pagar.


40





IOCOAMA





NA tarde do mesmo dia, Jamie McFay saiu furioso do escritório do Yokohama Guardian. Ajeitou a última edição do jornal debaixo do braço e seguiu apressado pela High Street. A brisa era fria, com o cheiro de maresia, o mar estava encapelado, cinzento e inóspito. As passadas eram tão iradas quanto seu ânimo. Eu bem que gostaria que Malcolm tivesse me contado, pensou McFay. Ele perdeu o juízo, enlouqueceu por completo. Vai dar a maior encrenca.



— Qual é o problema? — perguntou Lunkchurch, vendo o jornal dobrado, preocupado com a pressa incomum de Jamie. Ele próprio ia buscar seu jornal, antes da sesta, e parara por um momento para urinar na sarjeta. — O duelo saiu no jornal, foi noticiado?



— Que duelo? — A voz de McFay era ríspida. Circulavam rumores de que ocorreria a qualquer momento, embora até agora ninguém tivesse sussurrado que seria depois de amanhã, na quarta-feira. — Pelo amor de Deus, pare de espalhar essa história!



— Sem ofensa, meu velho. — O homem enorme e corado abotoou-se, levantou o cinto por cima da pança, só para que escorregasse de novo. — Mas qual é o problema? Ele cutucou o jornal, antes de acrescentar:— O que o porra do Nettlesmith escreveu que o deixou tão irritado?



— Apenas a mesma coisa de sempre — respondeu McFay, evitando o verdadeiro motivo. — Seu editorial afirma que a esquadra está quase pronta para atacar, o exército afia suas baionetas, e dez mil sipaios virão da índia para nos ajudar.



— Tudo mentira!



— E isso mesmo. Ainda por cima, o desgraçado do governador está fazendo tudo o que pode, como sempre, para arruinar a economia de Hong Kong. Nettlesmith republicou um editorial do Times elogiando o plano de queimar nossas plantações de ópio em Bengala, replantar tudo com chá, uma idéia que vai provocar ataques cardíacos por toda a Ásia... como se os paladares em qualquer lugar fossem se satisfazer com aquela porcaria de Darjeeling! Os idiotas vão nos arruinar, e também a economia britânica, ao mesmo tempo. Tenho de ir agora. Vejo-o mais tarde, na reunião.



— Essas porras de reuniões! Uma porra de perda de tempo! A porra do Governo! Devíamos ir para as porras das barricadas, como as porras dos franceses! Deveríamos estar bombardeando Iedo neste momento! Wee Willie não tem colhões e quanto a porra do Ketterer...



Lunkchurch continuou a vociferar por muito tempo depois de Jamie ter se afastado. Outras pessoas nas proximidades franziram o rosto e depois aceleraram os passos, a caminho do escritório do jornal.



Malcolm Struan levantou os olhos quando Jamie bateu na porta. Viu o jornal no mesmo instante.



— Ótimo. Eu já ia perguntar pelo jornal.



— Fui buscar um exemplar. Um passarinho me sussurrou que deveria.



— Ahn... — Malcolm sorriu. — Minha carta foi publicada?



— Deveria ter me avisado, a fim de que eu pudesse pensar numa maneira de diminuir o impacto.



— Acalme-se, pelo amor de Deus! — disse Malcolm, jovial. Ele pegou o jornal, abriu na seção de cartas. — Não há nada de errado em assumir uma posição moral. O ópio é imoral, e o mesmo acontece com o contrabando de armas, e não falei nada antes porque queria surpreendê-lo também.



— E pode ter certeza de que conseguiu! Isto vai enfurecer todos os mercadores por aqui e pelo resto da Ásia e vai provocar reações. Precisamos de amigos, tanto quanto eles precisam de nós.



— Concordo. Mas por que minha carta deve provocar reações? Ah, aqui está!



A carta ocupava a posição principal, com o título em destaque: CASA NOBRE ASSUME POSIÇÃO NOBRE!



— Bom título. Gosto disso.



— Desculpe, mas eu não gosto. Vai provocar reações porque todos sabem que temos de usar essas mercadorias ou estamos perdidos. Você é o tai-pan, mas não pode... — Jamie fez uma pausa. Malcolm sorria, imperturbável. — O que me diz dos fuzis para Choshu? Aceitamos o dinheiro deles, embora você concordasse em preteri-los pelo outro homem, Watanabe, lorde qualquer coisa... e a encomenda que aumentou para cinco mil?



— Tudo no momento oportuno.



Malcolm permanecia calmo, embora lembrasse que a mãe cancelara a encomenda, e que ele a reconfirmara no mesmo instante, pelo correio mais rápido possível. Fora uma tolice da mãe, que nada entendia do Japão. Mas não importa, mais uns poucos dias, e ela será contida.



— Enquanto isso, Jamie — acrescentou ele, descontraído —, não há mal nenhum em assumir uma posição moral em público, não é mesmo? Não acha que devemos nos inclinar aos tempos?



McFay piscou os olhos, aturdido.



— Está querendo dizer que se trata de uma artimanha? Para confundir oposição?



— Inclinar aos tempos — repetiu Malcolm, feliz.



A carta defendia a proscrição do ópio e de armas, conforme o almirante queria e o enquadrava como partidário da veemente posição do almirante e do novo plano proposto pelo governo para a Ásia: Devemos encontrar meios imediatos de alterar nosso comércio, para a maior glória de sua majestade a rainha, Deus a abençoe e de nosso império britânico. A Casa Nobre orgulha-se de tomar a dianteira, escrevera ele, entre outras efusões floreadas, assinando O tai-pan da Struan, como seu pai e avô haviam feito, em cartas para a imprensa.



— Achei que expus tudo muito bem, Jamie. Não concorda?



— Claro que sim. Você me convenceu. Mas se é apenas para... — Ele já ia dizer “amansar”, mas a quem e por quê? — Se é apenas uma manobra, por que fazer isso? Não poderia haver pior momento. Você vai ser contestado na reunião.



— Pois que o façam.



— Vão pensar que enlouqueceu.



— Deixe-os pensar o que quiserem. Dentro de poucas semanas terão esquecido e, de qualquer maneira, já estaremos em Hong Kong a essa altura. —Malcolm estava radiante, no maior bom humor. — Não se preocupe. Sei exatamente o que estou fazendo. Faça-me um favor: mande um recado para o almirante, dizendo que eu gostaria de vê-lo antes do jantar. Também quero falar com Marlowe, assim que ele desembarcar. Os dois jantarão conosco às oito horas, não é?



— É, sim. Ambos aceitaram. — McFay suspirou. — Quer dizer que vai continuar a me manter em suspense sobre o motivo?



— Já disse que não precisa se preocupar. Tudo está perfeito. Agora, muito mais importante, precisamos preparar as encomendas de sedas para a próxima temporada. Cuide para que Vargas tenha os livros atualizados. Quero conversar com o nosso cambista sobre a moeda que usaremos e os recursos para a operação o mais depressa possível... e não se esqueça de que amanhã Angel e eu passaremos o dia inteiro ausentes, com Marlowe, a bordo da Pearl.



Ele teria dançado uma jiga, se pudesse, mas as pernas e a barriga doíam mais do que o habitual. Não tem importância, pensou, amanhã é o grande dia. Já estou quase conseguindo o que quero, e depois que se danem todos.



Jamie achava-o muito estranho, não entendia mais nada. Cada navio procedente de Hong Kong trazia cartas para ambos, de Tess Struan, cada vez mais vituperiosas. Apesar disso, Malcolm se mostrava completamente à vontade, tal como era antes da Tokaidô, bem-humorado, lúcido, atento, dedicado aos negócios, embora ainda em extremo desconforto e andando mal. Ainda por cima, havia o risco iminente do duelo na quarta-feira, depois de amanhã.



Por três vezes, McFay procurara Norbert Greyforth, na tentativa de promover um acordo, até recrutando a ajuda de Gornt, mas nada fora capaz de dissuadi-lo.



— Jamie, diga àquele sujeito que tudo depende dele — respondera Norbert. Afinal, foi ele quem começou esta merda. Se me pedir desculpas, eu aceitarei... se for um pedido público, e põe público nisso!



McFay mordeu o lábio. Seu último recurso era sussurrar a hora e o local para Sir William, mas detestava a idéia de violar seu juramento solene.



— Vou me encontrar com o patife do Gornt para acertar os últimos detalhes, às seis horas.



— Ótimo. Lamento que você não goste de Gornt, Jamie, pois ele é um bom sujeito. É mesmo. Convidei-o para esta noite. — Imitando o sotaque escocês, Malcolm acrescentou, divertido: — O prazer da sua companhia ao jantar.



McFay sorriu, acalmado pela cordialidade.



— Posso...



Uma batida na porta interrompeu-o.



— Entre.



Dmitri entrou, como um furacão, deixando a porta aberta em sua esteira.



— Você enlouqueceu, Malc? Como a Struan pode apoiar esses idiotas sobre o ópio e armas?



— Não há mal nenhum em assumir uma posição moral, Dmitri.



— Mas é mesmo uma loucura! Se a Struan assumir essa posição, nós todos teremos de lutar contra a correnteza! O desgraçado do Wee Willie vai usar isso para...



Ele parou de falar, quando Norbert Greyforth também entrou na sala, sem bater.



— Você ficou louco? — berrou Norbert, inclinando-se sobre a mesa e sacudindo o jornal diante do rosto de Malcolm. — O que diz do nosso acordo para agirmos juntos?



Malcolm fitou-o nos olhos, odiando-o, no mesmo instante lívido.



— Se quer um encontro, marque antes — disse ele, com extrema frieza, mas controlado. — Estou ocupado. E agora saia. Por favor!



Norbert corou, também advertido por Sir William de que deveria se comportar ou sofrer as conseqüências. Seu rosto contraiu-se em raiva.



— Quarta-feira, cedo, por Deus! Não deixe de aparecer! Ele virou-se e saiu, batendo a porta.



— Um desgraçado grosseiro — murmurou Malcolm.



Em circunstâncias normais, Dmitri teria rido, mas agora sentia-se preocupado demais.



— Já que estamos no assunto, é melhor eu lhe dizer logo que não vou participar da “reunião” da quarta-feira.



— Isso não é problema, Dmitri. — A cor começava a voltar ao rosto de Malcolm. — Ainda tenho a sua palavra de honra de cavalheiro de que não vazará coisa alguma.



— Claro. — Dmitri não pôde mais se conter e explodiu: — Mas não faça isso! Pode ser gravemente ferido!



— Já estou gravemente ferido agora, meu caro. Por favor, não se preocupe Se Norbert comparecer ao encontro, ele...



Malcolm ia dizer que ele podia ser considerado um homem morto, e tentou explicar o plano de Gornt a Dmitri — já o explicara a McFay, que o aprovara relutante, como viável —, mas decidiu não fazê-lo. Em vez disso, ele comentou:



— Já ofereci um acordo particular a Norbert, mas ele rejeitou. E não vou rastejar em público. E já que você está aqui, Dmitri, o que pode me dizer sobre a Colt Armaments? Ouvi dizer que a Cooper-Tillman tem um bloco de ações que está querendo vender. Eu gostaria de comprar.



— Mas como soube? — Dmitri lançou um olhar para McFay, também atônito, mas conseguindo esconder. — Onde ouviu essa história?



— Um passarinho me contou.



Malcolm não deixou sua exultação transparecer. Edward Gornt lhe dera essa informação, entre outras sobre a Brock e a Cooper-Tillman, para provar sua sinceridade sobre a grande informação que revelaria a respeito dos Brocks.



— Por que esperar para me contar, Sr. Gornt? — indagara ele. — Se a informação é tão boa quanto diz, será preciso cuidar de tudo imediatamente.



— Tem razão, tai-pan, terá de ser o mais depressa possível. Mas vamos deixar como combinamos. Quarta-feira será o dia. Enquanto isso, já que teremos um relacionamento longo e feliz, por que não abandonamos o “senhor”? Chame-me apenas de Gornt e continuarei a tratá-lo de “tai-pan”, até nos encontrarmos em Xangai ou Hong Kong... depois que Sir Morgan estiver arruinado. Talvez então possamos usar o primeiro nome, está bem?



Malcolm observou Dmitri, seu excitamento aumentando. Havia muitas coisas boas ocorrendo agora.



— O que me diz, companheiro? Jeff Cooper está mesmo disposto a vender e você tem a autoridade necessária para negociar?



— Estou autorizado a negociar, mas...



— Não há nenhum mas. A autorização é por escrito?



— É, sim, e ele pode vender a metade. Ao preço certo... 16,50 por ação.



— Nada disso... é sua proposta de negociante. Dou 13,20, nem um centavo a mais. Podemos assinar uma carta de intenções, com a data de hoje. Quarenta mil ações.



Dmitri ficou espantado, mas logo se recuperou... quarenta mil ações eram exatamente a quantidade certa. O preço de 13,20 era baixo. Oferecera as ações a Morgan Brock, que propusera 12,80, um preço de liquidação, com um ano para pagar, o que tornava a proposta inaceitável, embora fosse quase impossível encontrar um comprador para um bloco de ações tão grande. Onde Malc obtivera a informação?



— O preço de 13,20 está longe de ser suficiente.



— Pago 13,20 hoje, amanhã será 13,10. E na quarta-feira retiro a oferta. — Gornt lhe dissera que Cooper precisava vender depressa, para investir em um novo empreendimento nos Estados Unidos, a fabricação de couraçados... a serem vendidos a qualquer marinha. — Tenho bastante tempo, mas o mesmo não acontece com o velho Jeff.



— O que está querendo dizer com isso?



— Apenas o que eu falei, que tenho tempo, e Jeff não tem. — Uma pausa, e Malcolm acrescentou, jovial: — Nem as marinhas da União ou Confederação, com a guerra indo tão mal para os dois lados.



— Besteira de seus espiões — disse Dmitri. — Não há negócio abaixo de 15,20.



— Sonhador. Pago 13,20 em ouro, um saque à vista em nosso banco, assim que chegar a Boston.



Dmitri abriu a boca, mas Jamie McFay apressou-se em intervir:



Tai-pan, pode ser uma boa idéia levar em consideração...



—... obter a aprovação de HK — concluiu Malcolm por ele. — Ora, Jamie, já discutimos isso, e resolvemos o assunto de uma vez por todas. — A voz era calma, num tom que não admitia contestação. — Certo?



— Certo. Desculpe.



Ainda muito calmo, Malcolm indagou:



— E então, Dmitri, sim ou não?



Dmitri fitava-o com um respeito renovado. O pagamento imediato já o levara a tomar sua decisão.



— Negócio fechado.



Ele estendeu a mão e Malcolm apertou-a. McFay disse:



— Prepararei o documento esta tarde; ficará pronto para assinarem às cinco horas. Combinado?



— Ótimo. Obrigado por ter vindo, Dmitri. É sempre bem-vindo. Não se esqueça do jantar às oito e meia.



Depois que Dmitri se retirou, McFay não pôde mais se conter.



— É um bocado de dinheiro.



— Dá 528 mil dólares, para ser mais preciso. Mas a Colt tem uma encomenda de cem mil fuzis de um tipo radicalmente novo. Quando nossa carta de crédito chegar a Boston, as ações já terão dobrado de preço e ganharemos meio milhão de dólares.



— Como pode ter certeza?



— Apenas tenho.



— Vai assinar a nota promissória?



— Vou. E se me disser que não tenho autoridade, por causa do que minha mãe disse ou deixou de dizer, não darei a menor atenção, e assinarei de qualquer maneira. — Malcolm acendeu um charuto, e continuou: — Se a nota promissória não for honrada, vai provocar uma reação, e arruinará a Struan como nenhuma outra coisa em nossa história. Sou o tai-pan, quer goste ou não, até renunciar ou morrer, não importa o que ela diga.



Os dois observaram um anel de fumaça subir e desaparecer, e depois McFay acenou com a cabeça, devagar, suas apreensões superadas pela estranha segurança e autoridade de Malcolm, como nunca experimentara antes.



— Sabe o que está fazendo, não é?



Os olhos de Malcolm se iluminaram.



— Sei de muitas coisas que ignorava quando vim para cá. Por exemplo, Se você insistir em sair... Ora, Jamie, tenho certeza de que no fundo do coração já tomou a decisão. Por que não deveria? Foi tratado de maneira vergonhosa, e sei que não o ajudei muito, mas tudo isso já passou. Quero que saiba que eu faria a mesma coisa se estivesse no seu lugar. Já decidiu, não é mesmo?



McFay engoliu em seco, desarmado.



— Já, sim. Vou sair, mas só depois que os negócios da Struan aqui estiverem no nível ideal, daqui a seis meses, ou por aí, a menos que ela me mande embora antes. Por Deus, não quero sair, mas devo!



Malcolm riu.



— Você assumiu uma posição moral.



McFay riu também.



— É uma loucura.



— Não é, não. Eu faria a mesma coisa. E tenho certeza de que será um grande sucesso, tanto que cem mil dos dólares que acabei de ganhar... tenho de fazer isso, Jamie, ninguém pode fazê-lo... serão um investimento na McFay Trading. Por...



Ele ia dizer quarenta e nove por cento das ações, mas resolveu mudar, para permitir que McFay mantivesse as aparências, e pensou: Você merece, meu amigo. Jamais esquecerei aquela correspondência pela qual poderia ser enforcado, pois tenho certeza que Sir William descobriria.



—... uma participação de sessenta por cento?



— Vinte e cinco — disse McFay, sem pensar.



— Cinqüenta e cinco?



— Trinta e cinco.



— Quarenta e nove por cento?



— Negócio fechado!



Os dois riram e Malcolm disse o que McFay estivera pensando:



— Se as ações dobrarem. — E acrescentou, sério: — Se tal não acontecer, encontrarei outro meio.



McFay fitou-o pelo que pareceu um longo tempo, a mente repleta de perguntas, mas sem respostas. Por que Malcolm mudou? Por causa de Heavenly? O negócio da correspondência? O duelo? Claro que não. Por que ele quer conversar com o almirante? Por que gosta de Gornt, que é acima de tudo um astuto?



E por que falei sim, que pretendo ir embora, antes de pensar duas veze, tomando uma decisão em que venho pensando há meses, que devo assumir o risco antes de morrer? Ele viu Malcolm observando-o, fraco no corpo, mas tranqüilo e firme. Retribuiu o sorriso, contente por estar vivo.



— Sei disso. E tenho certeza que vai conseguir.







Angelique fazia sua sesta antes do jantar, um fogo de carvão brilhando alegre no braseiro. As janelas estavam fechadas contra o vento, e ela se enroscava sob as cobertas e lençol de seda, meio adormecida, meio desperta, uma das mãos entre as pernas, como Colette lhe ensinara no convento, quando se deitavam na mesma cama depois que as freiras haviam deixado o dormitório, a roncar por trás das cortinas de seus cubículos. Acariciando-se, beijando-se, sussurrando e rindo sob as cobertas, as duas jovens partilhavam segredos, sonhos e desejos, fingindo serem amantes adultas... como era descrito nos folhetins românticos que circulavam nas ruas, proibidos, mas contrabandeados pelas criadas, e passando de mão em mão entre as alunas, tudo faz-de-conta, saudável, divertido e inofensivo.



Sua mente se projetara para Paris, ao encontro do futuro maravilhoso pela frente, Malcolm contente ao seu lado, ou já tendo saído para o escritório da Struan, agora sediado em Paris, rico e alto, seus problemas de saúde apenas uma lembrança distante, os problemas dela nem sequer uma lembrança, um filho no quarto ao final do corredor da mansão, velado por uma babá e outras criadas, o corpo dela outra vez forte e saudável, como agora, o parto fácil. Faria uma visita com Colette à fábrica de seda fabulosamente bem-sucedida da Struan, que ela persuadira Malcolm a construir, depois de aprender tudo sobre a cultura do bicho-da-seda. Ela acabara de escrever:





Ah, Colette, esses insetos são extraordinários, comem folhas de amoreira como alimento, depois a gente seca os casulos e desenrola a seda... Nunca pensei que pudesse me sentir tão interessada. Vargas é o meu informante secreto, e trouxe o vendedor de seda para me mostrar alguns, mas preciso tomar o maior cuidado. Comecei a falar sobre a minha idéia para uma fábrica com Malcolm e Jamie, e eles riram. Malcolm me disse para não ser tola, a produção de seda era um negócio bastante complexo (como se eu não soubesse) e que não devia preocupar minha cabeça com coisas assim. Acredito que eles querem que sejamos casulos, para nos usarem e abusarem a seu capricho, e isso é tudo. Colette, mande-me todos os livros sobre seda que puder encontrar...





Seria maravilhoso possuir seu próprio escritório, e uma porção de dinheiro, pensou ela. Vivendo em Paris, poderei fazer visitas a Londres, de vez em quando a Hong Kong, com jantares, saraus e bailes espetaculares para meu príncipe encantado e seus amigos especiais...



Ela olhou para a carta, em cima da escrivaninha, já lacrada. Mais segredos partilhados, pelo menos em parte.





Esse Edward Gornt está se tornando um amigo de verdade, encantador e atencioso, um amigo de verdade, não como André. Tenho certeza, minha querida Colette, que ele será um amigo pelo resto da vida, porque Malcolm também parece gostar de sua companhia. O que é muito estranho, já que Edward trabalha para aqueles horríveis Brocks, sobre os quais já lhe escrevi, e para Norbert Greyforth, que parece mais venenoso a cada dia que passa, como o bruxo que ele é! Esta noite teremos outro GRANDE sarau. Todos vão comparecer, André tocará ao piano, Edward é um dançarino e tanto, leve como uma borboleta...





Ela não escrevera que na última vez em que haviam dançado, em um jantar oferecido por Sir William, ele segurara sua mão de maneira diferente, perigosa, com pressões suficientes para serem expressivas, até um momento em que seu dedo mínimo se contraíra para tocar no dela: a linguagem dos amantes, quero você na cama, sim ou não, e quando... não diga não!



Ela retirara a mão, com frieza, firme. Gornt nada dissera, seus olhos sorriam, e ela sabia que ele sabia que não estava realmente zangada, apenas era inacessível, comprometida.



E também não estava zangada com André, zangada de verdade. Poucos dias antes, haviam se encontrado por acaso na legação francesa.



— Você está muito bem, Angelique. Fico contente em vê-la. Podemos conversar por um momento, em particular?



Ela respondera que sim, e quando se encontravam a sós, André falara do dinheiro que lhe emprestara.



— Estou numa situação difícil. Poderia me pagar, por favor?



— Mas pensei... que a outra transação cobriu isso.



O coração de Angelique quase parara, ao lembrar-se do estratagema dos brincos perdidos.



— Lamento, mas não cobriu. Só deu para pagar os conselhos e medicamentos da mama-san.



Ela corara subitamente.



— Combinamos não mencionar o assunto, nunca mais, não se lembra? — murmurara ela, querendo gritar com ele por violar o acordo solene. — Nunca aconteceu, foi isso o que acertamos... não passou de um pesadelo!



— Concordo, nunca aconteceu, mas foi você quem mencionou a transação, Angelique, e eu não falei a respeito, apenas sobre o dinheiro. Sinto muito, mas preciso com urgência.



O rosto de André se tornara frio. Cautelosa, ela reprimira sua raiva, amaldiçoando-o por perturbar sua paz. Convencera-se de que nada jamais acontecera. e exceto pelo único homem que podia contestá-la, nada acontecera mesmo. Essa era a verdade. Exceto para ele.



— Sobre o dinheiro, meu caro amigo, eu o devolverei assim que puder. Malcolm não me dá dinheiro, como sabe, apenas me deixa assinar vales.



—- Neste caso, talvez seja melhor providenciarmos outra “perda”.



— Não! — protestara ela, a voz suave, pondo a mão no braço de André para atenuar o relance de irritação. — Essa não é uma boa idéia.



Embora ela tivesse eliminado todo o incidente da mente, em sua maior parte, sempre que voltava para atormentá-la, em particular à noite, tinha consciência de que fora um erro terrível.



— Talvez eu possa pensar em outro meio.



— Preciso do dinheiro agora, até quarta-feira, o mais tardar. Sinto muito.



— Tentarei arrumá-lo. Juro que tentarei.



E fora o que fizera. No dia anterior falara com Henri Seratard, suplicara em lágrimas, dizendo que precisava do dinheiro para uma surpresa que faria a Malcolm, que sempre ficaria em dívida com ele, e assinara outro papel, apresentando seu anel de noivado de diamante como garantia.



Com toda sensatez, tomara emprestado o dobro do que devia. E naquela manhã pagara André, que lhe agradecera. Não havia motivo para continuar zangada com ele. É um bom amigo, de confiança, e me emprestou o dinheiro. Para que eu precisava? Esqueci, Sans faire rien, era uma dívida saldada. Entregara a metade do resto a McFay.



— Jamie, poderia enviar isto para minha querida tia em Paris? Ela é pobre e meu querido tio também.



Sentira-se satisfeita por finalmente poder ajudá-los, e mais ainda porque, como esperava, McFay contara a Malcolm, que a interrogara a respeito.



— Ah, meu querido, pedi emprestado a monsieur Seratard. Não queria pedir dinheiro a você e não podia mandar um vale assinado. Espero que não se importe, mas ofereci algumas jóias como garantia.



Ele a censurara e dissera que cuidaria da dívida com Seratard, mandaria Jamie providenciar um fundo para ela, contra o qual poderia sacar, bastava avisá-lo do destino do dinheiro, e que dobraria o que desejasse enviar aos tios.



E tudo muito fácil quando se usa a inteligência. Um calor percorreu seu corpo ao recordar como lhe agradecera por sua gentileza, beijando-o afetuosamente e como ele retribuíra. Teria gostado de ir além, muito além.



Seus dedos a distraíram. A sensualidade suave e experiente agradou-a, fechou os olhos e se imaginou com Colette, só que isso não durou muito. Como sempre, ele assomou em primeiro plano à sua mente, intenso, quase vivo, trazendo os detalhes do último encontro, quando ela se tornara deliberadamente devassa e fizera tudo que sonhara ser possível... para salvar sua vida, sem saber que gostaria tanto quanto ele.



Querida Virgem Maria, ambas sabemos que foi apenas para salvar minha vida... não é verdade? Mas também é verdade... ah, como sou afortunada em poder lhe falar com toda franqueza, diretamente, sem ter de passar por aquele horrível padre Leo... mas também é verdade, aqui entre nós, mulheres, que de alguma forma devemos nos livrar dele, da lembrança das duas noites e do êxtase, antes que isso me leveà insanidade.







Raiko estava irritada.



Furansu-san, aceitarei este pagamento parcial, mas nosso acordo foi bastante claro e objetivo.



— Sei disso. — André detestava ficar devendo, uma fobia, para ela mais do que a qualquer outra pessoa, não apenas porque a obrigação de pagar dentro do prazo vinha lhe causando pesadelos, mas também porque Raiko controlava sua Hinodeh por completo, e suspenderia o relacionamento sem hesitação, caso não cumprisse o acordo. E neste caso ele se mataria. — Muito em breve poderei lhe dar um grande pagamento. Brincos.



— Ah, então é isso? Ótimo. — Raiko sorriu. — Posso presumir que Hinodeh continua a seu gosto, ainda o agrada?



Suas preocupações o abandonaram por um momento abençoado.



— Ela... é tudo com que eu sonhava. Mais até. Raiko sorriu de uma maneira estranha.



— É insensato ser tão franco, meu amigo.



Um dar de ombros gaulês.



— Você me prestou o favor de uma vida inteira. Não tenho palavras suficientes para agradecer.



Os olhos faiscaram no rosto redondo de Raiko, já inchado de tanto beber, embora ainda fosse o crepúsculo. A maquilagem era boa, o quimono caro, o fim de tarde frio, mas seus aposentos eram aquecidos, e toda a estalagem convidativa.



— Ouvi dizer que sua princesa gai-jin anda muito saudável.



— É verdade. — Por um momento, André pensou em Angelique, com sua permanente sexualidade. — Acho que ela daria uma excelente dama da noite.



Raiko inclinou a cabeça para um lado, incapaz de resistir à tentação de levar o comentário a sério.



— Seria muito interessante para mim. Poderia obter os melhores preços... os melhores mesmo... muitos em Iedo pagariam alto para experimentar uma pessoa assim. Conheço um rico mercador de arroz, muito rico e muito velho, ela não teria a menor dificuldade para satisfazê-lo, que pagaria uma grande quantia para ser o primeiro a examinar um portão de jade desse tipo, e seria fácil ensinar a ela como se tornar uma virgem de novo, neh?



André riu.



— Falarei com ela. Talvez um dia...



— Ótimo. O melhor preço e tudo em segredo. Esse mercador de arroz... ak quanto ele pagaria! Ela não apresenta outros sinais?



— Outros sinais? Que tipo de sinais?



— O medicamento varia para diferentes damas. Às vezes pode torná-la muito mais... muito mais ardentes, mais difíceis de satisfazer. Às vezes aumenta a possibilidade de engravidar, às vezes destrói toda e qualquer possibilidade. Estranho, neh?



Ele não se sentia mais divertido.



— Não me contou isso antes.



— Faria alguma diferença?



Depois de um momento, André sacudiu a cabeça. Ela tomou um gole de saquê.



— Por favor, perdoe-me por falar em dinheiro, mas um oban de ouro não compra mais o que deveria comprar. As autoridades aviltaram nossa moeda e fedem, como peixe de oito dias misturado com bosta de cachorro!



— Tem toda razão.



Ele não entendera todas as palavras, mas absorvera o sentido de autoridade e peixe podre e sentia a mesma repulsa. Seratard recusara-se a dar o adiantamento obre o salário que esperava, alegando escassez de fundos na legação.



— Mas só estou pedindo o que terá de me pagar ao longo do ano, Henri. Apenas umas poucas moedas de ouro. Não sou o seu mais valioso assessor aqui?



— Claro que é, meu caro André, mas não se pode tirar vinho de um barril vazio... apenas uma enxaqueca!



Ele bem que tentara outro recurso, mas fora em vão. Portanto, agora só lhe restavam dois caminhos. Angelique ou aquela mama-san.



— Raiko-san, você é muito esperta, eu acho. Deve haver uma maneira de nós dois aumentarmos o dinheiro normal, neh? O que podemos vender?



Ela baixou os olhos para a mesa, a fim de esconder a expressão que havia neles, e indagou:



— Saquê?



Serviu sem esperar por uma resposta. Por ele, o saquê era frio. Os olhos de Raiko eram fendas mínimas, e se perguntou até que ponto podia confiar nele. Como um gato pode confiar num camundongo acuado.



— Informação tem um preço. Neh?



Ela falou em tom de indiferença. André fingiu estar surpreso, deliciado por ela ter mordido a isca com tanta facilidade. Até demais? Provavelmente não. Ela ser apanhada pelo Bakufu, ou ele por seus superiores, acarretava a mesma penalidade: uma morte agoniada.



Sir William pagaria muito bem pela informação certa, Henri não pagaria coisa alguma... que Deus despachasse os dois para o inferno!



— Raiko-san, o que está acontecendo em Iedo?



— Mais importante, o que está acontecendo aqui? — disse ela no mesmo instante, iniciando as negociações. — Guerra, não é? Terrível! A cada dia, mais soldados disparando no estande de tiro, mais canhões atirando, assustando minhas damas.



— Por favor, fale mais devagar.



— Ah, sinto muito.



Raiko passou a falar de forma mais pausada, dizendo como a Yoshiwara se encontrava assustada, descrevendo um quadro local interessante, mas sem nada que ele já não soubesse. E André disse coisas sobre a esquadra e o Exército que tinha certeza que ela também já sabia. Beberam em silêncio, e depois Raiko murmurou:



— Acho que certas autoridades pagariam muito para saber o que o líder gai-jin planeja fazer, e quando.



Ele acenou com a cabeça.



— Sei disso. Também acho que o nosso líder pagaria muito para saber tudo sobre as forças samurais do Nipão, onde se concentram, quem comanda, sobre esse tairo que envia mensagens tão grosseiras.



Raiko exibiu um sorriso radiante, levantou sua taça de porcelana.



— A uma nova sociedade. Muito dinheiro por uma pequena conversa. Ele brindou e disse, cauteloso:



— Uma pequena conversa, sem dúvida, mas deve ser uma pequena coisa importante, para se obter um dinheiro de verdade.



Raiko simulou estar chocada.



— Por acaso sou uma prostituta de terceira classe sem qualquer cérebro? Sem honra? Sem compreensão? Sem ligações, sem... — Mas ela não pôde continuar assim, e soltou uma risada. — Nós dois nos entendemos muito bem. Venha amanhã, ao meio-dia, e conversaremos. Agora, vá ver sua adorável Hinodeh. Aproveite-a, e aproveite também a vida, enquanto todos nós ainda a temos.



— Obrigado, mas não agora. Por favor, avise-a que chegarei mais tarde. — André sorriu para ela, apreciando-a. — E você, Raiko?



— Não tenho nenhuma Hinodeh para procurar, com que sonhar, para escrever poemas, e me encher de êxtase. Outrora foi diferente, mas agora sou mais sensata, gosto de saquê e de ganhar dinheiro, de ganhar dinheiro e saquê. Saia agora. — Ela soltou uma risada brusca. — Mas volte amanhã. Ao meio-dia.



Depois que ele se retirou, Raiko mandou que as criadas trouxessem mais saquê, só que desta vez quente, e não mais a incomodassem. Vendo tanta cordialidade no rosto de André, misturada com a profundeza de sua paixão por Hinodeh, ela experimentara o início da tristeza, e por isso o despachara.



Não podia permitir uma testemunha de sua angústia, das lágrimas abjetas que derramou, incapaz de contê-las, incapaz de controlar seu sofrimento, ao mesmo tempo em que desprezava a fraqueza interior que lhe impunha um frenético anseio por sua juventude, pela moça que já fora, desaparecida há bem pouco tempo atrás, para nunca mais voltar.



Não é justo, não é justo, não é justo, lamentou-se ela, erguendo a taça. Não sou a velha megera que contemplo no espelho, eu sou eu, Raiko, a bela, cortesã de segunda classe, eu sou eu, sou eu, sou eu...







— Ah, Otami-sama — disse o shoya. — Boa noite. Sente-se, por favor. Chá? Saquê? Lamento incomodá-lo de novo, mas acabo de receber uma mensagem de meus superiores. Chá?



Hiraga sentou na almofada em frente, na sala agradável, contendo sua impaciência. Agradeceu e aceitou a xícara obrigatória.



— Como vai? — perguntou ele, polido, o coração batendo mais depressa do que gostaria.



— Preocupado, Otami-sama. Parece que os gai-jin estão muito determinados desta vez, há movimentos de tropas em demasia, os navios preparam seus canhões, correm rumores sobre a chegada de mais navios. Soube alguma coisa de seu gai-jin Taira?



Hiraga já pensara a respeito. Tyrer e todo o pessoal da legação andavam agtados desde o ultimato do tairo Anjo, Sir William gritando mais do que o habitual, Johann o intérprete passando horas trancado com Tyrer, reescrevendo cartas para o Bakufu, só de vez em quando lhe pedindo para refinar uma frase.



— É mais fácil se me mostrar a carta, Taira-sama — dizia ele, sempre, querendo saber o que seria enviado.



— Está certo, mas só esta frase, por enquanto... — sempre respondia Taira, inquieto, todos os dias a mesma coisa, o que aumentava a apreensão de Hiraga.



Era evidente que já não confiavam nele como antes, e isso depois que passara dia e noite trabalhando para aprender a língua deles, e lhes dera uma porção de informações. Cães gai-jin desprezíveis, pensara ele, com medo de que a qualquer dia Sir William pudesse ordenar sua expulsão, já que seu cartaz ainda ocupava lugar de destaque na casa da guarda dos samurais, com as patrulhas de vigilantes verificando todos os japoneses que entravam e saíam da colônia.



As patrulhas de vigilantes não deveriam ser permitidas. Os gai-jin são idiotas demais... com o poder marítimo que possuem, eu não permitiria “guardas inimigos” num raio de uma légua! Anjo também é um idiota, por se enfurecer com eles, usando maneiras tão vis, tanta arrogância, quando a esquadra ainda se encontra aqui. Todos enlouqueceram no Conselho de Anciãos!



— As autoridades gai-jin me dizem muitas coisas, shoya — murmurou ele. — Por sorte, estou a par de seus segredos. É possível que eu possa avisá-lo a tempo se algum perigo lhe ameaçar. Enquanto isso, aconselhei-os a tomarem cuidado para não incomodá-lo, nem à aldeia.



O shoya inclinou-se até o tatame, agradecendo, e depois comentou:



— Estes são momentos terríveis, a guerra é terrível, e os impostos serão aumentados de novo.



Otimo, pensou Hiraga, a cabeça doendo, tem condições de pagar, mas isso não vai fazer com que você ou qualquer outro da Gyokoyama coma ou beba menos, nem que suas esposas e mulheres se vistam com menos luxo, mas apenas seus fregueses. Parasitas! Já estão violando as antigas leis da extravagância ao permitirem que suas mulheres usem cores proibidas nas roupas, como o vermelho, e ao fazerem o que bem quiserem em suas casas, sem qualquer repressão do Bakufu, o que é uma estupidez. Quando assumirmos o poder, haverá um ajuste de contas.



Vamos, velho tolo, fale logo o que quer. Não posso desperdiçar a noite inteira aqui, e não vou me rebaixar e perguntar. Tenho mais estudos a fazer esta noite e outro livro para tentar ler.



Talvez eu possa resguardar seus interesses — disse ele, incisivo.



Mais uma vez, o shoya agradeceu.



A mensagem que recebi se relacionava com a moça sobre a qual você perguntou. Há quatro dias lorde Yoshi deixou Quioto, em segredo, pouco antes do amanhecer, com um pequena escolta, disfarçado como um dos soldados. Ela também foi. No grupo... Está se sentindo bem, Otami-sama?



— Estou, sim — balbuciou Hiraga. — Por favor, continue, shoya.



— Claro. No grupo ainda seguia, montada, a cortesã Koiko, a moça que é sua nova maiko...



— Nova o quê? — murmurou Hiraga, o nome “Koiko”, com tudo o que implicava, ressoando por todos os cantos de sua mente.



— Por favor, posso lhe oferecer chá ou saquê? — indagou o shoya, percebendo o impacto de sua notícia. — Ou talvez uma toalha quente. Posso pedir alguma coisa...



— Não, continue — pediu Hiraga, a voz rouca.



— Não há muito mais. Como sabe, a dama Koiko é a mais famosa das cortesãs de Iedo e, agora, a companheira de lorde Yoshi. A moça lhe foi encaminhada há dez dias.



— Por quem?



— Ainda não sabemos, Otami-sama — disse o shoya, guardando essa informação para outra ocasião. — Parece que a dama Koiko aceitou a moça como maiko depois que ela foi pessoalmente entrevistada e aprovada por lorde Yoshi. É a única outra mulher na comitiva. Seu nome é Sumomo Fujahito.



Não há equívoco, Hiraga teve vontade de gritar, esse é o codinome que Katsumata deu a ela; portanto, ele a despachou para o ninho das vespas, mas por quê?



— Em que direção lorde Yoshi seguiu?



— Há quarenta samurais acompanhando-o, todos montados, mas sem carregar estandartes, e o próprio lorde Yoshi, como eu disse, está disfarçado. Saíram de Quioto pouco antes do amanhecer, há três dias, seguindo pela Tokaidô em marcha forçada, a caminho de Iedo, pelo que presumem meus superiores.



O shoya ocultou seu espanto pela veemência no rosto do jovem.



— Marcha forçada, hem? Quando eles poderiam alcançar Kanagawa? — Era a última estação de posta antes de Iedo. — Daqui a dez ou doze dias?



— É bem provável, embora com duas mulheres viajando... minha mensagem dizia que as duas cavalgavam... mas já mencionei isso... ah, sim, esqueci, lorde Yoshi disfarçava-se como um ashigaru comum. Mas suponho que é possível alcançarem Kanagawa nesse prazo.



Atordoado, Hiraga tomou mais saquê, mal sentindo o gosto, agradeceu pela informação, disse que tornariam a se encontrar no dia seguinte e saiu, seguindo para a choupana na aldeia que partilhava com Akimoto.



As ruas da aldeia estavam quietas. As lojas fechavam ao anoitecer. As luzes por trás das telas de shoji faziam com que as habitações parecessem convidativas. Exausto, em turbilhão pela notícia, ele tirou a cartola, passou os dedos pelos cabelos, coçou o crânio, ainda não de todo acostumado à cabeleira ao estilo europeu, embora já mal notasse o desconforto da calça e do colete e se sentisse contente por usá-los, contra o frio da estação. Nem mesmo coçar vigorosamente atenuou a confusão e a dor na cabeça; por isso, ele sentou num banco próximo — difícil se agachar naquela calça justa — e contemplou o céu.



Koiko! Lembrava-se das duas ocasiões em que estivera com ela, uma ocasião à tarde, e a outra durante a noite. As duas haviam sido caras, bem caras, mas valeram a pena. Katsumata lhe dissera que nunca mais encontraria uma textura de pele assim, nem cabelos tão sedosos, nem tamanha fragrância, nem uma risada tão gentil nos olhos de uma mulher, jamais conseguiria experimentar outra vez tanto calor, explodindo pelo corpo, deixando-o com vontade de morrer, numa alegria intensa.



— Ah, Hiraga, morrer naquele momento — dissera Katsumata —, no auge, e levar isso com você para o além... se é que existe um além... seria a perfeição. Ou se não há nenhum além, ter a certeza ao saltar para o nada que experimentou o melhor, morrer no zênite... não seria uma totalidade de vida?



— É verdade, mas acho que é um tremendo desperdício. Por que treiná-la para Yoshi?



— Porque ele é a grande chave para sonno-joi, a favor ou contra, e porque ela é a única que já conheci que pode encantá-lo e, assim, atraí-lo para o nosso lado ou despachá-lo para o além. Ele pode ser a chave para sonno-joi, a favor ou contra... e esse é um segredo nosso, meu e seu... mas é claro que morrerá de qualquer maneira, no momento que nós decidirmos.



Isso significa que Katsumata enviou Sumomo para ser a adaga do ato? Ou foi para manter Koiko a salvo de traidores? Ou até mesmo para resguardar Yoshi de um traidor interno?



Eram muitas perguntas sem respostas.



Hiraga levantou-se, recomeçou a andar, a cabeça doendo mais do que nunca. Amanhã Akimoto irá com Taira a um navio de guerra. Hiraga pedira para ir também, mas não fora atendido.



— Sinto muito — dissera-lhe Tyrer. — Sir William autorizou seu amigo, Sr. Saito, a me acompanhar, mas só ele. E sem armas, é claro. É verdade que a família dele é a maior construtora de navios de Shimonoseki?



— É, sim, Taira-sama. O pai dele é o chefe da família.



— Mas os samurais não têm permissão para tratar de negócios.



— Isso é correto, Taira-sama — dissera ele, pois Tyrer era um discípulo esperto demais, e tinha de fazer com que a mentira parecesse verdadeira. — Mas muitas famílias de samurais fazem acertos com emprestadores de dinheiro e fazedores de barcos para cuidarem do trabalho, neh? A família dele é muito importante.



Uma semana antes, ele introduzira o caso de Akimoto, com essa ficção, duranteuma de suas intermináveis reuniões com Sir William, na qual ficara de pé, respondendo a perguntas, e descobrindo bem pouca coisa em resposta.



— Seu nome é Saito, Sir William, família rica, vir aqui para ver navios da grande marinha britânica, ouvir grandes histórias sobre a grande marinha britânica. Talvez os dois poder trabalhar juntos, poder fazer fábrica de grandes navios.



Não chegava a ser uma mentira total. Por gerações, os antepassados de Akimoto viveram numa aldeia de pescadores, uma das três famílias de ashigari que agiam ali como uma espécie de policiais para o pai de Hiraga, chefe da família de hirazamurai mais próxima, também há gerações. Akimoto, pessoalmente sempre se interessara pelo mar e navios de guerra. O pai de Hiraga arrumara para que Akimoto ingressasse na escola de samurais de Choshu, ordenando-lhe que aprendesse tudo o que pudesse do marujo holandês que era o sensei, porque muito em breve o daimio Ogama precisaria de oficiais para comandar os navios de Choshu e para liderar sua marinha.



— Ah, primo, ainda não posso acreditar que conseguiu persuadi-los a me deixar aprender seus segredos de guerra — comentara Akimoto anteontem.



Hiraga suspirou. Já percebera que qualquer coisa relacionada com “negócios” atraía a atenção imediata dos gai-jin. Poesia, nem um pouco, caligrafia, muito menos, a fabricação de espadas apenas um pouco, política, sim, mas apenas no que afetava o comércio, mas a oportunidade de fazer alguma coisa para vender por lucro — qualquer coisa, um navio ou um canhão, uma taça, uma faca, uma peça de seda — proporcionava resultados imediatos. Eles são piores que os ricos mercadores! Alimentam-se de dinheiro!



Ontem à noite, Akimoto bebera além da conta, o que era raro, e começara a divagar sobre dinheiro e os gai-jin.



— Você tem razão, Hiraga, esse é um dos segredos deles: o culto ao dinheiro. Dinheiro! Você é muito esperto ao perceber isso tão depressa! Olhe só para aquele cão que é o shoya! Repare como ele se torna todo ouvidos quando você conta o que Taira ou aquele outro cão gai-jin disseram sobre seus métodos sujos de negócios, como extorquem dinheiro dos outros por todos os meios que puderem, chamando de lucro, como se lucro fosse uma palavra pura, alimentando uns aos outros como piolhos. Quando você fala sobre dinheiro, aquele cabeça de peixe podre que é o shoya não oferece seu melhor saquê, para encorajá-lo a dizer mais e mais? Claro que sim. Ele é como os gai-jin, idolatra o dinheiro, arrancando-o de nós, samurais, deixando-nos a cada ano mais endividados, quando não cria nada, absolutamente nada! Deveríamos matá-lo e fazer o que Ori disse, incendiar esta cloaca fedorenta...



— Acalme-se! Qual é o problema?



— Não quero me acalmar. Quero ação, uma luta, ataque! Estou cansado de ficar sentado a esperar.



Akimoto estava afogueado, a respiração pesada, olhos injetados, e não apenas de saquê. Seu punho enorme batera no tatame.



— E estou cansado de ver você estudar durante a noite inteira, a cabeça num livro. Se não tomar cuidado, vai estragar seus olhos, arruinar o braço da espada, e será um homem morto. Atacar, é para isso que estamos aqui... quero sonno-joi agora, não mais tarde!



— Sem conhecimento e paciência... quantas vezes tenho de lhe dizer isso?



Parece com Ori ou aquele tolo do Shorin. Por que se mostra tão ansioso em por a cabeça no garrote dos vigilantes?



— Não é isso, mas... Você tem razão, Hiraga. Por favor, desculpe, mas...



A voz definhara, e Akimoto tomara mais saquê.



— O que lhe está realmente perturbando? A verdade.



Akimoto hesitara.



— Soube por meu pai. — Depois de um momento, as palavras saíram num fluxo rápido. — A carta chegou através da mama-san de Kanagawa... há fome na aldeia, em todo o distrito, sua família também foi afetada, lamento informar. Dois de meus primos pequenos já morreram. Três dos meus tios renunciaram à condição de samurais e suas espadas... venderam-nas como parte do pagamento ao emprestador de dinheiro, espadas que usaram em Sekigahara... para se tornarem pescadores, pelo menos estão trabalhando nas redes para os donos dos barcos, do amanhecer ao anoitecer, só para ganhar um pouco de dinheiro! Tomiko, a filha viúva de uma tia, que vive conosco, teve de vender sua menina pequena para um. corretor de crianças. Recebeu o suficiente para alimentar o resto da família por meio ano... os dois filhos e o pai inválido. Uma semana depois ela deixou o dinheiro no bule do chá, para que minha mãe o encontrasse, e jogou-se do penhasco. O bilhete dizia que tinha o coração partido por ser obrigada a vender a própria filha, mas o dinheiro podia ajudar a família, e não devia ser desperdiçado com outra boca inútil...



As lágrimas escorriam por suas faces, mas não havia qualquer som de choro na voz, apenas raiva.



— Uma ótima moça, excelente esposa de meu amigo Murai... lembra dele, um dos nossos ronin de Choshu, que morreu no ataque ao tairo Li? Estou lhe dizendo, primo, é horrível ser samurai quando você perde a honra, não recebe um estipêndio, não tem para onde ir, e ser ronin é ainda pior. Mesmo assim, eu... mas você tem razão mais uma vez... acho que teremos de imitar os repulsivos gai-jin se quisermos navios de guerra, até eu sei que eles não crescem em arrozais, e devemos encontrar meios para ganhar o sórdido dinheiro e ser como os sórdidos mercadores de arroz e emprestadores de dinheiro. O sórdido dinheiro, os sórdidos gai-jin, os sór...



— Pare com isso! — interrompera-o Hiraga, o tom ríspido, estendendo outro frasco com saquê. — Você está vivo, trabalhando por sonno-joi, amanhã visitará urn navio de guerra para aprender, e isso é suficiente, primo.



Atordoado, Akimoto balançara a cabeça, enxugando as lágrimas.



— Havia mais notícias? De meu pai, minha família?



— Leia você mesmo.



E ele lera: Se Hiraga estiver com você, diga a ele que sua família se encontra numa situação difícil, a mãe está doente, eles não têm dinheiro nem crédito. Se de tiver condições de mandar algum, ou arrumar um crédito, salvará vidas... mas é claro que o pai dele jamais pedirá. Diga-lhe, também, que sua futura esposa ainda não chegou aqui, e que seu pai teme pela segurança dela.



Não há nada que eu possa fazer por eles agora, pensou Hiraga, aproximando-se do refugio na aldeia, outra vez angustiado. O vento da noite aumentou, agitando os telhados de colmo, mais frio do que antes. Não há nada que eu possa fazer, o sórdido dinheiro! Akimoto está certo. Devemos executar o plano de Ori. Uma noite como esta seria ideal. Duas ou três cabanas incendiadas e o vento sopraria as chamas de casa em casa, provocando um grande incêndio. Por que não esta noite? Assim, os sórdidos gai-jin teriam de embarcar em seus navios, e iriam embora Ou será que não? Não estarei apenas me iludindo, e nosso karma é ser dominado por eles?



O que fazer?



Katsumata sempre disse: Quando em dúvida, aja!



Sumomo? A caminho de Iedo? Sua pulsação acelerou, mas nem mesmo a lembrança dela removeu o remorso por sua família. Devemos casar agora, casar aqui, enquanto há tempo? É impossível voltar para casa, a viagem levaria meses, e é vital continuar aqui, o pai compreenderá.



Ou será que não? É mesmo vital ou apenas tento me enganar? E por que Katsumata mandou Sumomo ficar junto de Yoshi? Ele não a arriscaria por nada.



Nada! Eu não sou nada. Do nada para o nada, fome de novo, sem dinheiro, sem crédito, sem qualquer meio de ajudar. Sem sonno-joi, não há nada que possamos fazer...



E, de repente, foi como se uma pele que encobria parte de sua mente se desfizesse, e ele recordou Jamie explicando alguns aspectos dos negócios dos gai-jin que o haviam chocado. Momentos depois, Hiraga bateu de novo na porta do shoya, e sentou-se à sua frente.



Shoya, achei que deveria mencionar, para que possa se preparar. Creio que persuadi o mestre em negócios dos gai-jin a recebê-lo em sua mansão, depois de amanhã, pela manhã, para responder a perguntas. Serei seu intérprete.



O shoya agradeceu, e se inclinou para ocultar sua intensa satisfação. Hiraga continuou, a voz suave:



Jami Mukfey me disse que era um costume gai-jin cobrar um pagamento, por isso e por todas as outras informações que já lhe forneceu. O equivalente a dez koku.



Ele enunciou a quantia espetacular como se fosse uma ninharia, e viu o shoyn empalidecer, mas não explodir, como esperava, por ouvir tamanha mentira.



— Impossível! — disse o shoya, a voz estrangulada.



— Foi o que eu disse a ele, mas Mukfey insistiu que você, como homem de negócios e banqueiro, compreenderia como suas informações eram valiosas, e que até consideraria a possibilidade... — Mais uma vez Hiraga fez um esforço para se controlar. —... de ajudá-lo a começar um negócio, o primeiro de seu tipo, ao estilo gai-jin, para negociar com outros países.



Não chegava também a ser uma mentira total. McFay dissera-lhe que teria interesse em se encontrar e conversar com um banqueiro japonês — Hiraga exagerara a importância do shoya e sua posição na Gyokoyama — que mais ou menos qualquer dia seria conveniente, com um aviso prévio de um dia, e que haveria muitas oportunidades para cooperação.



Ele observou o shoya, exultante ao ver tanta transparência, o homem visivelmente excitado pelas oportunidades potenciais de usar os conhecimentos de Mukfey para o lucro e ser o primeiro a realizar um negócio assim.



— Muito importante ser o primeiro — explicara Mukfey. — Seu amigo japonês compreenderá isso, se for de fato um homem de negócios. É fácil para mim ajudá-lo com os nossos negócios com seda e fácil também para seu amigo japonês fazer a mesma coisa com outros produtos e conhecimentos japoneses.



Hiraga precisara fazer um tremendo esforço para compreender o que o homem dizia. Deixou agora o shoya sonhar e se preocupar por um momento, antes de acrescentar:



— Embora eu não entenda as questões de negócios, shoya, talvez consiga reduzir esse preço.



— Se conseguisse isso, Otami-sama, agradaria muito a um pobre velho, um mero servidor da Gyokoyama, pois eu teria de suplicar a permissão de meus superiores para pagar qualquer coisa.



— Talvez eu possa reduzir para três koku.



— Meio koku talvez seja possível.



Hiraga censurou a si mesmo. Esquecera a Regra de Ouro Número Um, como Mukfey a chamara:



— Ao negociar, seja paciente. Sempre pode reduzir o preço, mas nunca pode tornar a subi-lo. Outra coisa: nunca tenha medo de rir, chorar, gritar ou fingir que vai embora.



Agora, ele disse:



— Pedindo dez, duvido que Mukfey queira reduzir abaixo de três.



— Meio já é muito alto.



Se tivesse uma espada, ele poria a mão no punho e diria: “Três ou corto sua cabeça asquerosa!” Em vez disso, balançou a cabeça, com um ar de tristeza.



— Tem toda razão.



Hiraga começou a se levantar.



— Talvez meus superiores concordem com um.



Hiraga já estava quase na porta.



Sinto muito, shoya, mas eu ficaria constrangido se tentasse barganhar tão barato um...



— Três!



O shoya ficara vermelho. Hiraga tornou a sentar. Demorou um pouco a se ajustar ao novo mundo e só depois disse:



— Tentarei fazer o acerto em três. Estes são momentos difíceis. Acabo de saber que há fome na minha aldeia, em Choshu. Terrível, neh?



Ele viu os olhos do shoya se contraírem.



— É, sim, Otami-sama. Muito em breve haverá fome por toda parte, até mesmo aqui.



Hiraga balançou a cabeça.



— Sei disso.



Ele esperou, deixando que o silêncio se tornasse opressivo. Mukfey explicara o valor do silêncio na negociação, que uma boca fechada no momento oportuno faz com que o oponente se sinta nervoso — pois a negociação é uma luta como qualquer outra — e obtém concessões que você nunca sonharia em pedir.



O shoya sabia que se encontrava acuado, mas ainda não determinara qual a extensão da armadilha, nem o preço que teria de pagar. As informações que recebera até agora valiam dez vezes mais que aquela quantia. Mas seja cauteloso, esse homem é perigoso, esse Hiraga Otami-sama aprende muito depressa, pode ou não estar dizendo a verdade, pode ou não ser um mentiroso. De qualquer forma é melhor ter um samurai astuto do seu lado do que contra.



— Nos tempos difíceis, amigos devem ajudar amigos. É possível que a Gyokoyama possa arrumar um pequeno crédito para ajudar. Como já falei antes, Otami-sama, seu pai e a família são clientes respeitados e valiosos.



Hiraga reprimiu as palavras iradas com que, em circunstâncias normais, teria reagido a tratamento tão condescendente.



— Seria esperar demais — disse ele, tateando o caminho naquele novo mundo de lucro e perda... o lucro de uma pessoa é o prejuízo de outra, explicara Mukfey muitas vezes. — Qualquer coisa que a grande Gyokoyama puder fazer contará com meu reconhecimento. Mas a rapidez é muito importante. Posso ter a certeza de que eles compreenderão isso?



— Seria imediato. Providenciarei tudo.



— Obrigado. Talvez até eles considerem um crédito substancial, talvez um empréstimo direto, quem sabe de um koku... — Ele percebeu o brilho de raiva nos olhos, controlado no mesmo instante, e se perguntou se não teria ido longe demais. — ...por serviços prestados pela família.



Outro silêncio, e depois o shoya disse:



— No passado... e no futuro.



Os olhos de Hiraga se tornaram tão frios quanto os do shoya, embora sua boca também sorrisse. E ainda no novo mundo, não sacou o pequeno revólver que agora sempre carregava, não abriu um buraco nele por sua grosseria.



— Claro. — Uma pausa, e Hiraga acrescentou, a voz suave: — Até depois de amanhã, neh?



O shoya acenou com a cabeça, fez uma reverência.



— Até lá, Otami-sama.



Outra vez na rua, oculto pela noite, Hiraga permitiu que seu triunfo se elevasse com sua alma. Um koku inteiro e os créditos, agora só precisava imaginar como trocar os três koku que o gai-jin Mukfey não pedira, nem precisava, em arroz de verdade, ou dinheiro de verdade, que também pudesse enviar para o pai.



Tanto por tão pouco, pensou ele, exultante, ao mesmo tempo em que se sentia conspurcado, precisando de um banho.





Ah, almirante — disse Malcolm Struan —, podemos ter uma conversa em particular?



— Pois não, senhor.



O almirante Ketterer levantou-se, um dos vinte convidados ainda à mesa na sala grande do prédio da Struan, saboreando o porto, que Angelique deixara, antes de se retirar. Ketterer usava o uniforme para a noite, calça até os joelhos, meias brancas de seda, fivelas de prata nos sapatos, mais rubicundo do que o habitual, depois de devorar uma sopa hindu com caril, peixe grelhado, uma porção dupla de rosbife, pastelão de Yorkshire com batatas assadas, legumes importados da Califórnia, um bolo de galinha e faisão, pedaços de salame de porco fritos, seguindo-se uma torta de maçã seca californiana, com bastante do agora famoso creme da Casa Nobre, e, para encerrar, o rerebit, queijo derretido com cerveja e servido sobre torradas. Champanhe, xerez, clarete — Château Lafite de 1837, o ano em que a rainha Victoria subira ao torno —, porto e madeira.



— Bem que estou precisando de respirar um pouco de ar fresco —acrescentou o almirante.



Malcolm seguiu à frente para as portas laterais de vidro, a boa comida e o vinho amortecendo a dor. Fazia um pouco de frio lá fora, mas era revigorante, depois do ar abafado na sala.



— Charuto?



— Obrigado.



Número Um Chen pairava ao fundo com a caixa. Depois que os charutos foram acesos, ele desapareceu na fumaça.



— Viu minha carta hoje no Guardian, senhor?



— Vi, sim. Apresentou seus argumentos muito bem.



Malcolm sorriu.



— Se o ninho de vespas de protestos que agitou na reunião desta tarde serve de indicação, a carta expôs a sua posição com bastante clareza.



— Minha posição? Espero que seja a sua também.



— Claro, claro. Amanhã...



Ketterer interrompeu-o, um tanto brusco:



— Já que partilha uma posição absolutamente correta e moral, eu esperava que um homem com seu incontestável poder e influência assumiria a dianteira, de maneira formal, proibindo todo e qualquer contrabando nos navios da Struan, acabando logo com esse problema.



— Todo o contrabando já foi proscrito, almirante. Mas, devagar se vai bem longe. Dentro de um ou dois meses, isso acontecerá com a maioria.



O almirante limitou-se a altear as sobrancelhas hirsutas, soprou a fumaça do charuto, desviou sua atenção para o mar. A esquadra era imponente, sob as luzes de ancoragem.



— Parece que pode haver uma tempestade esta noite ou amanhã. Eu diria que não é o tempo apropriado para um passeio, ainda mais em se tratando de uma dama.



Ansioso, Malcolm levantou os olhos para o céu, farejou o vento. Não havia sinais de perigo. O tempo no dia seguinte era uma grande preocupação e ele fizera de tudo para verificá-lo. E constatara, para sua alegria, que a previsão era a mesmo dos últimos dias, mar sereno, ventos amenos. Marlowe confirmara antes do jantar e embora ainda não tivesse recebido a aprovação final para zarpar — nem estivesse a par do verdadeiro motivo pelo qual Malcolm precisava embarcar, com Angelique —, a viagem estava marcada, no que lhe dizia respeito.



— É essa a sua previsão, almirante? — perguntou Malcolm.



— Do meu experto em meteorologia, Sr. Struan. Ele aconselhou a cancelar qualquer viagem experimental amanhã. É melhor aproveitar esse tempo para preparar o ataque a Iedo. Não concorda?



O tom do almirante era de jovialidade forçada.



— Sou contra a destruição de Iedo — disse Malcolm, distraído, a mente concentrada naquele novo e inesperado problema, a recusa do almirante em aceitar apenas sua carta, que ele estava confiante que seria mais do que suficiente.



Tudo corre à perfeição, exceto por esse homem, pensou ele, contendo sua raiva, tentando pensar numa saída para o dilema. O Prancing Cloud chegara no prazo previsto e descarregava as mercadorias que trouxera, o capitão Strongbow já informado das novas ordens secretas sobre o horário de partida diferente na quarta-feira, e Edward Gornt também preparado para transmitir a informação sobre os Brocks, assim que o duelo terminasse.



— Também me oponho — disse o almirante. — Não temos ordens formais para a guerra. Mas estou curioso para saber suas razões.



— Usar um martelo para matar uma vespa não apenas é uma tolice, mas também pode provocar hemorróidas.



Ketterer riu.



— Essa é muito boa, Struan! Hemorróidas, hem? Mais da sua filosofia de chinês?



— Não, senhor. Dickens. — Ele esticou as costas, tornou a se apoiar nas bengalas. — Eu ficaria muito satisfeito, senhor, e Angelique também, se pudéssemos embarcar no Pearl, com o capitão Marlowe, e partirmos até ficar fora de vista da terra, amanhã, mesmo que seja por um curto período.



Heavenly o aconselhara: como o precedente que Malcolm vinha usando, o casamento de seus pais, ocorrera entre Macau e Hong Kong, fora de vista da terra, ele deveria fazer a mesma coisa, por medida de segurança.



— Com sua bênção, é claro, almirante.



— Muito me agradaria ver a Casa Nobre tomar a dianteira no Japão. É óbvio que você não dispõe do tempo suficiente. Sugiro que dez dias seriam o necessário para se tomar todas as providências práticas.



Ketterer virou-se para voltar à sala.



— Espere! — exclamou Malcolm, dominado pelo pânico. — Digamos que faça um anúncio neste momento, para todos os presentes, de que vamos cancelar os embarques de armas para o Japão, daqui por diante. Isso o satisfaria?



— Mais importante, isso satisfaria a você? — perguntou o almirante, gostando de ver o homem que representava tudo o que ele desprezava a se contorcer no espeto. — O que me diz?



— O que... o que posso fazer ou dizer, senhor?



— Não cabe a mim dirigir seu “negócio”. — A maneira como Ketterer pronunciou a palavra, impregnada de desdém, fazia com que fosse uma coisa obscena. — Parece-me que tudo o que é bom para o Japão também é bom para a China. Se proibir as armas aqui, por que não fazer a mesma coisa na China, em todos os seus navios... e tomar a mesma decisão em relação ao ópio?



— Não posso fazer isso — disse Malcolm. — Isso acabaria conosco. O ópio não é contra a lei. Mais do que isso, as duas atividades são legais...



— Interessante... — Outra vez, a palavra estava impregnada de sarcasmo. — Devo lhe agradecer por um excelente jantar, como sempre, Sr. Struan. E agora, peço que me dê licença, pois terei muito o que fazer amanhã.



— Espere! — pediu Malcolm, trêmulo. — Por favor, ajude-me. O dia de amanhã é importante demais para mim. Juro que o apoiarei em tudo, seguirei à frente dos outros, mas tem de me ajudar amanhã. Por favor!



O almirante Ketterer contraiu os lábios, pronto para encerrar aquela conversa inútil. Pois não se trata de outra coisa, embora não reste a menor dúvida de que poderia muito bem aproveitar um partidário entre aqueles desgraçados asquerosos, se há um décimo de verdade nas injúrias que teriam dito na tal reunião. Suponho que este não é dos piores, se fosse possível confiar nele... em comparação com os outros, em comparação com aquele monstro do Greyforth.



— Quando é seu duelo?



Malcolm ia responder com a verdade, mas conteve-se a tempo.



— Responderei se insistir, senhor, e lembro o que disse sobre duelos. Mas devo ressaltar que, em questões de honra, minha família tem sido muito séria há pelo menos duas gerações e não quero que pensem que sou deficiente nesse ponto. É uma tradição, como a da marinha, imagino. Muito da magia da marinha real tem a ver com isso, tradição e honra, não é mesmo?



— Sem isso, a marinha real não seria a marinha real.



Ketterer tirou outra baforada do charuto. Pelo menos o jovem patife compreende, embora isso não altere a balança. A verdade é que a mãe do pobre tolo tem toda razão ao desaprovar o casamento... a moça é muito bonita, sem dúvida, mas não a escolha certa, tem sangue ruim, uma linhagem francesa. Estou lhe prestando um favor.



Será mesmo?



Não se lembra de Consuela di Mardos Perez, de Cádiz?



Ele a conhecera quando era um aspirante no Royal Sovereign, durante uma visita de cortesia àquele porto. O almirantado lhe recusara permissão para casar, o pai também se opusera, quando, finalmente, conseguira superar as resistências, e obtivera os conhecimentos necessários, voltara correndo para descobrir que a moça ficara noiva de outro. Ela também era católica, pensou o almirante, triste, ainda a amando, depois de tanto tempo.



O fato de a moça ser católica deixa todo mundo enlouquecido, como a mãe de Struan, sou capaz de apostar. Como se isso fizesse alguma diferença. É verdade que a família de Consuela era boa, o que não acontece com a família dessa moça. E é verdade também que ainda a amo. Depois dela, não houve mais ninguém. Jamais desejei casar, não depois de perdê-la, por algum motivo não podia. O que me levou a empenhar tudo na marinha, o que evitou que minha vida fosse um total desperdício.



Será mesmo?



— Vou tomar outro porto — anunciou o almirante. — O que deve demorar de dez a quinze minutos. O que você pode fazer para assumir uma posição de vanguarda em dez ou quinze minutos?


41





Gornt desceu apressado os degraus do prédio da Struan e saiu para a noite, seguindo os outros convidados que deixavam a festa, numa conversa animada, agasalhados, segurando o chapéu contra o vento. Criados esperavam com lanternas para guiar alguns até suas casas. Depois de um boa-noite polido, mas apressado, ele foi para o prédio ao lado, o da Brock. O guarda, um sique alto, de turbante, bateu continência, observou-o subir a escada de dois em dois degraus e ir bater na porta de Norbert Greyforth.



— Quem é?



— Sou eu, senhor, Edward. Desculpe, mas é importante.



Houve um resmungo irritado, e depois a tranca foi aberta. Norbert tinha os cabelos desgrenhados, usava um camisolão, touca e meias de dormir.



— O que aconteceu?



— Struan. Ele acaba de anunciar que daqui por diante vai empenhar a Casa Nobre no embargo de todas as armas e de todo o ópio no Japão, ordenar a mesma coisa no comércio com a China, e por toda a Ásia.



— O que é isso? Uma piada?



— Não, Sr. Greyforth, não é uma piada. Foi durante a festa... o que ele disse na presença de todos, há poucos minutos, Sir William, a maioria dos embaixadores estrangeiros, o almirante, Dmitri... as palavras exatas de Struan, senhor: “Quero fazer uma declaração formal. De acordo com a minha carta Publicada hoje no Guardian, decidi que não mais transportaremos armas de fogo ou ópio em nossos navios ou a Struan os negociará, daqui por diante, no Japão e na China.”



Norbert começou a rir.



— Entre. Isso merece uma comemoração. Ele acaba de liquidar a Struan. E nos transformar na Casa Nobre.



Ele estendeu a cabeça para o corredor e chamou seu empregado número um.



— Lee! Champanhe, depressa! Entre, Edward, e feche a porta. Está ventando, e faz bastante frio para congelar os ovos de um macaco de bronze.



Norbert acendeu o lampião a óleo. Seu quarto era grande, com uma vasta cama de dossel, o chão atapetado, óleos nas paredes de navios da Brock... sua frota menor que a da Struan, mas com o dobro de vapores. Alguns quadros haviam sido chamuscados pelo incêndio, e o teto também ainda não fora reparado de todo. Havia livros empilhados nas mesas de canto, e um aberto em cima da cama.



— O pobre coitado endoidou de vez. — Norbert soltou outra risada. — A primeira coisa que temos a fazer é cancelar o duelo, para mantê-lo vivo. Agora, é isso que...



O sorriso desapareceu.



— Ei, espere um pouco, do que estou falando? É tudo uma tempestade num penico. Ele não é o tai-pan da Struan mais do que eu. Você bancou o tolo. Qualquer coisa que ele disser nada significa; e por mais que sua mãe, que não larga a Bíblia deseje fazer isso, jamais concordaria. Nem poderia, pois sabe que tal atitude arruinaria a companhia.



Gornt sorriu.



— Eu discordo.



Norbert fitou-o nos olhos.



— Como?



— Ela vai concordar.



— É mesmo? Por quê?



— Segredo.



— Que tipo de segredo?



Norbert olhou para a porta, aberta nesse instante. Lee, um idoso cantonês, com um rabicho comprido e grosso, vestindo uma libré impecável — casaco branco, calça preta — entrou com os copos, champanhe num balde com gelo, uma toalha no braço. Momentos depois, a champanhe foi servida. Depois que Lee se retirou, fechando a porta, Norbert levantou seu copo.



— Saúde e morte a todos os Struans. Que segredo?



— Disse-me para tentar fazer amizade com ele. Foi o que fiz. Agora, ele confia em mim. Primeiro...



— Confia mesmo?



— Até certo ponto, mas melhora a cada dia que passa. Primeiro, sobre esta noite. O motivo para ele escrever a carta e fazer o anúncio foi obter o favor do almirante, em segredo.



— Como assim?



— Posso?



Gornt apontou para a garrafa de champanhe.



— Claro. Sente-se e explique.



— Ele precisa da aprovação do almirante para embarcar na Pearl e esse é p mo...



— Mas do que está falando?



— Ouvi-os por acaso, conversando em particular... eles saíram depois do jantar. Eu olhava alguns quadros ali perto... tinha notado duas obras de Aristotle Quance... e escutei o que diziam. — Gornt relatou quase que palavra por palavra. — Ao final, Ketterer disse: “Vamos ver o que você pode fazer em dez ou quinze minutos”



— Isso foi tudo? Nada sobre o que há a bordo, o que há de tão importante na Pearl?



— Não, senhor.



— Estranho, muito estranho. O que poderia ser?



— Não sei. Toda a noite foi estranha. Durante o jantar, percebi Struan olhando na direção do almirante por várias vezes, mas nunca seus olhos se encontraram. Era como se o almirante evitasse deliberadamente, mas sem ser óbvio demais. Foi isso que despertou minha curiosidade, senhor.



— Onde o almirante estava sentado?



— Ao lado de Angelique, no lugar de honra, à sua direita, com Sir William no outro lado. Deveria ser o contrário... outro fato curioso. Fiquei ao lado de Marlowe, que contemplava Angelique extasiado, e falou sobre assuntos navais, tudo muito aborrecido, nada sobre qualquer viagem amanhã, embora eu tenha a impressão de que Struan já planejara tudo, na dependência da aprovação do almirante. Depois que o almirante foi embora, puxei conversa com Marlowe sobre amanhã, mas ele disse apenas: “Talvez eu faça uma pequena viagem experimental, meu caro, se o Velho aprovar. Por que pergunta?” Expliquei que gostava de navios e indaguei se podia ir também. Ele riu, disse que arrumaria uma viagem para mim no futuro, e depois se retirou também.



— Nada sobre Struan e a moça?



— Não, senhor. Mas Marlowe não despregava os olhos dela.



— Por causa dos peitos dela. — Norbert soltou um grunhido. — Quando Struan fez o comunicado, o que aconteceu?



— Primeiro, houve silêncio, depois o pandemônio, perguntas, algumas risadas, umas poucas vaias. Marlowe e os outros oficiais da marinha aplaudiram, em meio a muitas manifestações de raiva. McFay empalideceu, Dmitri quase cuspiu, Sir William ficou olhando para Struan, balançou a cabeça, como se o pobre coitado fosse alvo de compaixão. Concentrei-me em Ketterer. Ele não deixou transparecer coisa alguma, não disse nada a Struan, além de murmurar um “Interessante”, levantou-se em seguida, agradeceu o jantar e foi embora. Struan fez menção de detê-lo, começou a perguntar por amanhã, mas o almirante não ouviu, ou fingiu que não ouvia, e saiu, deixando Struan trêmulo. Ao mesmo tempo, senhor, todos falavam, e ninguém escutava, como em um mercado chinês, não poucos furiosos, gritando com Struan que ele era louco, e como podíamos continuar no comércio... sabe como é, o óbvio e a verdade.



Norbert esvaziou seu copo. Gornt pegou a garrafa para servi-lo de novo, mas ele sacudiu a cabeça.



— Não gosto de tomar muito champanhe de noite, pois me faz peidar. Sirva-me um scotch... a garrafa está ali. — O ali era um aparador, de carvalho, escalavrado pelo tempo, com um velho relógio marítimo em cima. — O que há a bordo da Pearl que ele tanto deseja?



— Não sei.



— O que Struan fez depois que Ketterer saiu?



— Apenas sentou, tomou um drinque grande, com o olhar perdido no espaço, murmurou boa noite, distraído, quando as pessoas começaram a se retirar, sem prestar qualquer atenção a Angelique, outro fato esquisito. Quanto a ela, apenas observava tudo de olhos arregalados, deixando de ser por uma vez o centro das atenções, sem entender o que acontecia, o que me leva a supor que Struan nada lhe confidenciara. Achei melhor vir correndo lhe dar a notícia, e por isso não fiquei por mais tempo.



— Falou sobre um segredo, não é mesmo? Que segredo? Por que a megera da Tess Struan concordaria em cometer um suicídio comercial?



— Por causa do plano de Sir Morgan, senhor.



— Como?



— Sir Morgan. — Gornt exibiu um sorriso largo. — Antes de nossa partida de Xangai, Sir Morgan me disse, em particular, que ele e o Sr. Brock haviam planejado e estavam executando um esquema para arruinar a Struan, e acabar com a companhia de uma vez por todas. Contou que o plano envolvia o açúcar havaiano, o Victoria Bank, e...



— O quê? — Norbert estava surpreso, lembrando que Sir Morgan dissera expressamente que não revelara a Gornt nenhum detalhe do golpe, e não queria que ele soubesse de nada, “embora o rapaz seja de confiança, e não haja mal algum em deixá-lo se insinuar no círculo de Struan para ver o que pode descobrir”. — Morgan contou os detalhes? Explicou a operação?



— Não, senhor. Pelo menos só me disse o que tinha de transmitir a Struan, tão secretamente quanto possível.



— Por Deus! — exclamou Norbert, exasperado. — É melhor você começar desde o início.



— Ele disse que eu não deveria lhe contar nada sobre a minha participação até que o consumasse, até fazer tudo o que me mandou. E consegui. Conquistei a confiança de Malcolm Struan, por isso agora posso contar. — Gornt tomou um gole do champanhe. — Excelente champanhe, senhor.



— Fale logo!



— Sir Morgan me mandou contar uma série de histórias a Malcolm Struan... disse que eram bem próximas da verdade, para fisgar Struan, e por seu intermédio a verdadeira tai-pan, Tess Struan. E posso quase garantir, senhor, que o último tai-pan Struan ficou firmemente fisgado. — Em poucas palavras, Gornt relatou a substância do que dissera a Malcolm Struan. Ao final, soltou uma risada e acrescentou: — Devo lhe fornecer “os detalhes secretos” depois do duelo, a caminho de seu navio.



— O que dirá a ele?



O homem mais velho escutou com toda atenção. Conhecendo os detalhes verdadeiros, sentiu-se fascinado ao ouvir mais da astúcia de Morgan. Se Tess Struan agisse sob aquelas falsas informações, proporcionaria a Sir Morgan as poucas semanas extras que ele queria.



— Mas já é infalível agora, Sir Morgan — dissera Norbert em Xangai, ao tomar conhecimento do plano —, não precisa de tempo extra. Posso fazer minha parte em Iocoama antes do Natal.



— Sei que pode e o fará. Mas papai e eu gostamos de ser mais seguros do que seguros; o tempo extra manterá nossos pescoços longe do laço e nossos rabos fora da prisão.



Norbert reprimiu um tremor ao pensamento de ser apanhado. Não haveria o laço do carrasco, mas a prisão por fraude era mais do que provável e a cadeia dos devedores uma certeza. Sir Morgan é mesmo um patife astuto, é típico dele me dizer uma coisa e outra a Gornt. Ele me salvou de um risco, o de matar Struan. Portanto, será a Inglaterra para mim, com cinco mil por ano, mas perco o melhor, um solar, ficar rico. Melhor seguro do que arrependido depois.



Ele suspirou. Aguardava ansioso a oportunidade de meter uma bala em Malcolm e colher o creme. As palavras do velho Brock estavam gravadas em sua memória:



— Norbert, você ficará com o creme na aposentadoria. Sua gratificação será de cinco mil guinéus por ano se o matar. Por um ferimento grave, mil guinéus.



Sorrindo, ele comentou agora:



— Morgan é muito esperto, formulou um plano infalível. — Para se certificar, testando o rapaz, Norbert acrescentou: — Não concorda?



— Como, senhor?



— As pequenas mudanças fazem toda a diferença, não é?



Ele observava Gornt com a maior atenção.



— Lamento, senhor, mas não conheço os detalhes... a não ser o que ele me disse e me mandou transmitir para Struan.



— Vou tomar outro scotch... sirva-se de champanhe — disse Norbert, satisfeito.



Ele bebeu em silêncio, até ter pensado em tudo, antes de voltar a falar:



— Continue a agir como se não tivesse me contado nada. Cancelarei o duelo amanhã. Não posso agora matá-lo, nem deixá-lo fora de ação.



— Tem toda razão, senhor, foi o que também pensei. — Gornt entregou-lhe a carta de Malcolm Struan, igual à que Gornt já assinara. — Ele me pediu para trazer isto. Mas sugiro que não cancele amanhã, pois pode deixá-lo desconfiado... e talez possamos descobrir o que há de tão importante na Pearl, se ele for, ou se nao for.



— É isso mesmo, Edward, boa idéia. — Norbert soltou uma risadinha. — portanto, na quarta-feira, o jovem Struan se lança no caminho do desastre, hem?



Gornt sorriu.



— E segue feliz, senhor. A Casa Nobre deles está liquidada e a nossa começa.



— É verdade. — O calor do scotch misturava-se ao calor do futuro. — Então decidiu se juntar a nós?



— Se me aprovar, senhor. Sir Morgan disse que teria de me aprovar.



— Continue assim, e está aprovado. Fez um bom trabalho hoje, de primeira. Boa noite.



Norbert trancou a porta depois que Gornt saiu. Antes de voltar para a cama, usou o urinol, e sentiu-se ainda melhor. Seu copo estava na mesinha ao lado da cama, sobre uma pilha de livros e revistas, ainda um quarto cheio. Recostou-se nos travesseiros altos que preferia e pegou o livro aberto, Cidade dos Santos, o relato de Burton sobre sua visita aos misteriosos e polígamos mórmons em Salt Lake City, Utah. Burton era o mais famoso aventureiro e explorador do mundo falava trinta ou mais línguas e suas façanhas e idiossincracias eram lidas avidamente nos menores detalhes.



Ele leu alguns parágrafos e depois, distraído, largou o livro. Não é tão bom quanto Peregrinação a El-Medina e Meca, pensou, ou o relato da descoberta do lago Tanganica.



Entre tantas bocetas mórmons, era de se pensar que Burton, defensor ostensivo da poligamia, que qualquer tolo sabe ser a coisa certa, descreveria suas conquistas, pois já fez isso muitas vezes, em outros livros, com detalhes suficientes para deixar um velho todo excitado. Alguns jornais haviam noticiado que ele tivera treze, todas ao mesmo tempo, oferecidas pessoalmente por Brigham Young, líder da Igreja dos “Santos do Último Dia” e governador de Utah. Que mentirosos!



Mas, por Deus, que homem... ele fez mais e viu mais do que qualquer outro inglês vivo, e deixa qualquer um ainda mais orgulhoso de ser inglês. E com toda a liberdade de ir para onde quiser, de viver como quiser, não dá para entender por que tinha de voltar para a Inglaterra e casar com uma boa inglesa, como algum homem normal. É verdade que ele a deixou depois de um mês; dizem que agora se encontra em algum lugar desconhecido, talvez em Hindu Kush, ou na terra secreta no topo do mundo, vivendo com os gigantes da neve...



Norbert tomou mais um gole do scotch e pensou em Gornt. Esse rapaz não é tão esperto quanto pensa. Qualquer um pode perceber o que vai acontecer na Pearl e por quê. Ketterer pode manter em segredo, Wee Willie também, mas Michaelmas Tweet não pode, nem Heavenly, quando bebe demais, e assim tomei conhecimento das cartas de Tess Struan, e que ela pressionou Wee Willie, bloqueou a igreja, bloqueou todos os capitães de navios, e até a marinha, por intermédio de Ketterer... só que ela não tem poder sobre a marinha! E é Marlowe quem manda a bordo da Pearl. Marlowe pode casá-los... se Ketterer permitir.



Norbert riu.



Mas Ketterer odeia os Struans porque eles venderam canhões aos piratas do Lótus Branco, como nós, que vendemos a qualquer maldito belipotentado que quiser comprá-los, e continuaremos a fazer isso, mesmo que a Struan desista, e por que que não? É um negócio legal, e sempre será. O Parlamento precisa das fábricas de armamentos, porque se trata de um grande negócio, e todos os governos gostam da guerra... porque as guerras constituem um grande negócio, e acima de tudo porque a guerra encobre a sua própria incompetência.



Que se danem os governos!



Ketterer odeia a Struan. Apesar de toda a sua arrogância, ele não é nenhum tolo e vai querer resultados práticos por um favor. O que não pode obter — as declarações daquele jovem tolo nada significavam — e por isso faz um jogo de gato e rato com Struan. Talvez deixe que Struan e sua jovem amante embarquem, talvez não, mas de qualquer forma Marlowe não terá permissão para casá-los... Ketterer quer ver Struan rastejar. O patife também me faria rastejar, se tivesse alguma chance, e ainda por cima me presentearia com cem vergastadas.



Um gole grande do bom scotch deixou-o no melhor humor e ele riu. O jovem Struan está bloqueado: não terá um casamento na Pearl e voltará para Hong Kong, com ou sem sua amante, ao controle da mãe. É curioso que eu tenha de deixá-lo vivo, quando planejava obter a recompensa oferecida pelo Velho, que me disse:



— Mas não conte nada a Morgan, Norbert, pois ele é contra mortes, embora queira ver o jovem Struan afundado na merda e a mãe também! Não se esqueça disso ou arrancarei suas tripas para fazer ligas.



Devo suspender o duelo? Pensarei a respeito. Com o maior cuidado. Preciso da gratificação extra.



É típico de Morgan dar instruções secretas a Gornt e me manter na ignorância. O que mais ele disse que Gornt não me contou? Não importa, Morgan é astuto, com toda a coragem do Velho, só que mais insinuante, mais moderno, sem loucuras, sem riscos... sem nenhuma das obsessões brutais e implacáveis de seu pai. Morgan é o nosso verdadeiro tai-pan e será o tai-pan da nova Casa Nobre. Foram necessários apenas vinte anos para destruir a companhia de Dirk, a maior que já existiu na Ásia.



Satisfeito, Norbert terminou de tomar o scotch, apagou a luz e acomodou-se, com um bocejo. Lamento não ter conhecido o Velho em seu auge, nem o tai-pan, O Demônio de Olhos Verdes, que só os ventos malignos do Grande Tufão conseguiram matar. Ainda bem que este jovem tolo não herdou nenhuma de suas qualidades.







O último convidado já se retirara. Apenas Angelique, Jamie McFay e Malcolm continuavam na sala. As brasas na enorme lareira de canto luziam quando uma aragem descia pela chaminé, para depois se apagarem. Malcolm, em silêncio, o rosto franzido, olhava para a lareira, vendo imagens nas brasas. Angelique sentava no braço de sua poltrona, apreensiva. McFay estava encostado na mesa.



Boa noite, tai-pan — disse ele.



Malcolm saiu de seu devaneio.



— Hum... Espere um pouco. — Ele sorriu para Angelique. — Desculpe Angel, mas tenho algumas coisas para discutir com Jamie. Você se importa de nos deixar a sós?



— Claro que não. Boa noite, Jamie. — Ela inclinou-se, beijou Struan afetuosamente. — Boa noite, Malcolm. Durma bem.



— Boa noite, querida. Devemos partir cedo.



— Está bem... mas, por favor, Malcolm, posso perguntar o motivo de toda aquela gritaria? Não entendi nada. Pode me explicar?



— Foi inveja, nada mais.



— Mas é claro! Como você se mostrou forte e moderno! E tem toda razão sobre os canhões e o ópio... foi muito sensato, chéri. Obrigada. — Ela tornou a beijá-lo. — A que horas vamos sair amanhã de manhã? Estou tão excitada... a viagem será uma change superbe.



— Pouco depois do amanhecer. Cuidarei para que seja acordada a tempo, mas não se surpreenda se... se houver uma mudança de plano. Marlowe disse que o tempo pode mudar.



— Mas ele jurou que o vento amainaria e seria um dia maravilhoso para um passeio.



— Eu disse “pode mudar”, Angel. — Malcolm abraçou-a. — Se não for amanhã, será no primeiro dia possível. Ele prometeu.



— Espero que seja amanhã. Je t’aime, chéri.



Je t’aime.



Depois que ela saiu, o silêncio na sala se tornou ainda mais opressivo. Chen tornou a dar uma espiada pela porta e Malcolm ordenou:



— Feche a droga dessa porta e não volte.



A porta foi fechada com vigor. Jamie fez menção de falar, mas Malcolm levantou a mão.



— Não diga nada sobre navios, canhões ou ópio. Por favor.



— Está bem.



— Sente-se, Jamie.



Malcolm pensara em todas as respostas do almirante e formulara um plano para cada uma das várias possibilidades: se o almirante decidisse que podiam fazer a viagem com sua bênção, ou se a viagem se realizasse, mas com Marlowe proibido de celebrar a cerimônia, ou se a viagem fosse adiada para algum momento do futuro. Por enquanto, ele pôs de lado as contramedidas.



— Gostaria que mandasse nosso cúter a vapor se aproximar da Pearl pouco antes do amanhecer. O contramestre deve descobrir com Marlowe se nossa viagem continua de pé, ou não. Qualquer que seja a resposta, peça ao contramestre para vir até aqui me informar. Certo?



— Claro.



— Escrevi a carta para Norbert e entreguei a Gornt esta noite. Portanto, essa parte ficou resolvida. Esqueci alguma coisa?



— Sobre quartá-feira?



— Isso mesmo.



— Nada, ao que eu saiba. Já definiu os caminhos e horários, as pistolas serão comuns, não haverá médicos presentes, já que tanto Babcott quanto Hoag são considerados inseguros. As cartas são suas únicas defesas. Não haverá testemunhas, além de Gornt e eu.



— Ótimo. Está pronto para partir com o Prancing Cloud?



— Mandarei uma valise para bordo junto com a nossa correspondência amanhã. Ninguém deve notar. E seus baús?



— Só vou levar um. Despache para bordo amanhã... e se alguém disser qualquer coisa, são algumas roupas que estou enviando na frente, à espera do meu retomo a Hong Kong para o Natal.



— Chen vai arrumar tudo para você?



— Não há outro jeito. Pedirei que ele jure segredo, mas é claro que isso só funcionará para a nossa sociedade, não entre os chineses. Terei de levá-lo comigo. Ah Tok é um problema, mas pode permanecer aqui, à espera de nossa “mudança de verdade”. Será preciso revelar o segredo a Ah Soh. Ela irá conosco para Hong Kong.



— E Angelique?



— Não há necessidade de dizer nada a ela. Se sairmos na Pearl, Ah Soh pode arrumar roupas num baú, e mandar para bordo com a mesma desculpa, depois do anoitecer de amanhã, como precaução. Certo?



— Certo.



— Na manhã de quarta-feira, nós dois sairemos pelos fundos, como planejamos. Pouco depois, Chen, Ah Soh e Angelique, usando um capuz, atravessarão a estrada para o nosso cais, onde você terá o cúter a vapor esperando para levá-los ao clíper...



— Desculpe me intrometer, mas se esse é o plano final, acho melhor um cúter a remo, pois faz menos barulho. Por segurança, o cúter a vapor deve ficar à nossa disposição no cais da cidade dos bêbados.



— Tem toda razão, Jamie, é melhor assim. Obrigado. Portanto, um cúter a remo. Depois de resolver o problema de Norbert, iremos para bordo o mais depressa possível. Diga a Vargas amanhã para marcar uma reunião com nossos fornecedores japoneses de seda na sexta-feira. Procure dar a impressão de que ternos uma agenda lotada para o resto desta semana e a outra, certo?



— Certo.



Mais alguma coisa, Jamie?



— Posso fazer uma sugestão?



— Claro.



Depois da viagem de amanhã na Pearl... — McFay hesitou. — Você disse que pode haver uma mudança de plano... por causa do tempo? A previsão é de tempo bom, não é mesmo?



— É, sim. Falei isso apenas para o caso de Marlowe ter de permanecer no porto. Com todos os preparativos da esquadra para bombardear Iedo, ou apenas ameaçar, nunca se sabe o que Ketterer ou Sir William podem decidir. Qual é a sua sugestão, Jamie?



— Para dizer a verdade, tenho duas. Depois que voltar amanhã... Marlowe garantiu que estariam aqui ao pôr-do-sol... por que você e Angelique não vão jantar no Prancing Cloud, com o capitão Strongbow, e até passam a noite a bordo? Ao amanhecer, nós dois poderíamos desembarcar, e...



— Esse plano é melhor, Jamie, muito melhor! — disse Struan no mesmo instante, radiante. — Assim, Angelique já estará a bordo, junto com sua bagagem e não teremos de nos preocupar com ela. Depois de Norbert, poderemos voltar direto. Grande idéia, Jamie. Nossas coisas podem ser mandadas para bordo com Chen e Ah Soh, não há motivo para que eles não fiquem a bordo também. Ninguém deve desconfiar de coisa alguma.



O sorriso de Malcolm era efusivo e genuíno.



— Foi muito hábil de sua parte pensar nisso. Você é inteligente e é por isso que não quero que deixe a Struan.



Jamie deu um sorriso triste.



— Veremos.



— Antes que eu me esqueça, caso haja um acidente — disse Malcolm, os olhos serenos, sem medo. — Se eu for ferido, mas tiver mobilidade suficiente para embarcar, é o que quero fazer. Se houver uma emergência mais grave, chame Babcott ou Hoag. De qualquer forma, planejo levar Hoag para bordo. Vamos levá-lo de volta a Hong Kong.



— Verifiquei na clínica em Kanagawa, mas eles só vão para lá na quinta-feira. Portanto, os dois estarão aqui.



— Você pensa em tudo.



— Nem tudo. Gostaria de poder, e assim encontraria um meio de cancelar o duelo.



— Não haverá nenhum acidente.



— Rezo para que você esteja certo. Mas, independentemente do que acontecer, é melhor eu ficar aqui, até você voltar, ou mandar me chamar.



— Mas a mãe disse em sua carta...



— Eu sei. Vamos ser francos, tai-pan. Estou fora, de um jeito ou de outro. E melhor eu continuar aqui, para lhe dar cobertura, se Norbert escapar, ou se não escapar, e ficar de olho em Gornt. Sinto muito, mas ainda não confio naquele sujeito. Meu trabalho é aqui, não em Hong Kong. Sairei na primavera. É o melhor e devemos combinar tudo agora... e depois esperar até você completar vinte e um anos.



Os dois se fitaram nos olhos. Romperam o contato visual abruptamente, quando carvões em brasa caíram na lareira, faiscando por um momento, e depois morrendo sem perigo.



— Você é um amigo maravilhoso, Jamie. Com toda sinceridade.



— Não sou, não, apenas tento cumprir meu juramento... ao tai-pan da Casa^ Nobre.







André e Phillip Tyrer estavam na frente da legação britânica.



— A idéia de Malcolm de um embargo, embora moral, seria um desastre para todas as companhias comerciais da Ásia — comentou Tyrer —, inclusive de vocês, mesmo que não sigam o exemplo, nem os alemães, os russos e os ianques.



O vento agitava seus cabelos, mas ele não sentia frio, com todo o álcool que consumira, com o intenso excitamento.



— Sir William duvida que o governador de Hong Kong aprove quaisquer ordens do Parlamento nesse sentido, vai tentar ganhar todo o tempo possível. É claro que não posso falar oficialmente por qualquer dos dois, e além do mais o Parlamento é a própria lei. — Tyrer deixou escapar um bocejo. — Estou exausto. E você?



— Tenho um encontro.



— Ahn... — Tyrer percebeu o brilho de expectativa. — Um homem de sorte! Ultimamente tem parecido mais feliz, muito mais feliz. Estávamos todos preocupados.



André passou para o francês, baixou a voz:



— Estou bem agora, o melhor que já me senti. Não dá para descrever como me sinto feliz. A moça me trata como um rei... é a melhor que já encontrei. Chega de aventuras para mim. Tenho uma exclusiva.



— Isso é ótimo.



— Por falar nisso, como vai você com Fujiko? Raiko está ficando nervosa e ela também. Soube que a pobre moça anda angustiada, chora o tempo todo.



— É mesmo? — Tyrer sentiu uma pontada na virilha. — Então seu conselho foi acertado.



Ele mal percebeu que respondera em francês; passara a maior parte da noite conversando inglês misturado com francês com Seratard, Zergeyev e os outros ministros.



— Eu diria que você foi bastante duro pelo tempo necessário. Não precisa magoar ninguém, pois são boas pessoas. E ambas se arrependem de tê-lo irritado.



Poucas noites antes, Raiko o interceptara, indagando mais uma vez pelo pagamento atrasado. Depois que ele a acalmara com a promessa de que esperava receber fundos substanciais a qualquer momento — apostando que Angelique arrumaria o dinheiro —, Raiko o interrogara sobre Tyrer.



— O que há de errado com o homem? Seria um serviço para ele, para mim, para Fujiko e também para você, velho amigo, corrigir qualquer coisa que precise ser corrigida. É evidente que ele foi seduzido pelas prostitutas da Estalagem dos Lírios. Nestes tempos difíceis, isso nos ajudaria muito, assim como a você, se o convencesse a voltar. A pobre moça já pensa em suicídio.



Ele não acreditara nisso, mas Raiko se mostrara disposta a torcer a faca chamada Hinodeh.



— Phillip, você fez o jogo com perfeição. Marcarei um encontro e reabriremos as negociações.



— Não sei, não, André. Eu... hum... devo confessar que experimentei outra garota, uma vez... a estalagem que você recomendou não é tão ruim assim... e estive pensando que talvez uma mulher permanente não seja uma boa idéia. Afinal é uma despesa enorme e preciso de um pônei para o pólo...



— Há pontos favoráveis e pontos desfavoráveis em ter sua garota exclusiva — disse André, escondendo sua angústia. — Talvez a melhor idéia seja iniciar as conversas para um contrato dependendo de “uma melhoria no relacionamento”.



— Ou seja, pegar o bolo e comê-lo?



— Por que não? Afinal, todas não se encontram ali para o nosso prazer? É verdade que Fujiko e Raiko são muito especiais.



André falava em tom persuasivo, não querendo que Tyrer escapasse do anzol de Fujiko, assim como também não queria ficar submetido a Raiko. Ter uma associação secreta com ela era uma coisa, colocar-se à sua mercê era outra muito diferente. Marcaria o encontro e o resto dependeria delas, teriam de seduzir Tyrer a seu estado de paixão anterior.



— Deixe as duas comigo. Que tal amanhã? Posso prometer que terá uma recepção calorosa.



— É mesmo? Hum... está bem.



— Phillip... — André tornou a olhar ao redor. — Henri está mais do que ansioso em apoiar as iniciativas de Sir William para punir com rigor esse idiota do tairo Anjo... o cretino foi longe demais desta vez. Sir William poderia recebê-lo para uma conversa particular amanhã? Henri tem algumas idéias que gostaria de expor, confidencialmente.



— Tenho certeza que sim.



Tyrer se tornou atento no mesmo instante, esquecendo o cansaço, pois era uma agradável surpresa. De um modo geral, Seratard lançava uma iniciativa francesa, da qual eles só tomavam conhecimento quando se encontrava em execução. Como o convite secreto a lorde Yoshi para visitar a nave capitânea francesa, que haviam acabado de descobrir, por intermédio de suas próprias fontes... criados chineses na legação francesa tinham ouvido André e Seratard planejando, transmitiram a número um Chen, que dissera a Struan, que contara a ele, que relatara tudo a Sir William.



— Um conselho de guerra? Os dois?



— Sugiro nós quatro — disse André. — Eles vão precisar de ajudantes para pôr suas idéias em execução, mas quanto menos gente, melhor. Se mais tarde quiserem chamar o almirante e o general, tudo bem. Mas só mais tarde, entende?



— Uma Entente Cordiale! Falarei com o Velho pela manhã. Que tal às onze horas?



— Não pode ser às dez? Tenho um compromisso ao meio-dia.



André já acertara tudo com Seratard, ao voltar do encontro com Raiko:



— Henri, a reunião pode ser muito importante, e quanto mais a mantivermos em segredo dos outros ministros, melhor. Desta vez temos de fingir que estamos cem por cento com os britânicos. Eles é que têm os navios de guerra, não nós. Devemos encorajá-los a entrarem em guerra.



— Por quê?



— Estou deduzindo, pelas informações que Tyrer obteve de seu samurai domado Nakama... Henri, o japonês de Tyrer é espantosamente bom para o pouco tempo em que ele se encontra aqui. Tyrer possui uma aptidão extraordinária, e por isso devemos observá-lo com atenção, reforçar os laços de amizade. Tyrer descobriu que não há nenhum amor perdido entre esse Anjo e Toranaga Yoshi, que é um aristocrata como você, enquanto Anjo é mais um plebeu.



Divertira-o ver Seratard estufar com a lisonja... e não era mais aristocrata do que ele.



— Secretamente, encorajamos os britânicos a esmagar Anjo, enquanto nos distanciamos no último momento do conflito real, e ao mesmo tempo cultivamos Yoshi, como uma política nacional urgente e sigilosa. Vamos convertê-lo em aliado, devemos fazer isso, e depois, por seu intermédio, jogaremos os britânicos de volta ao esgoto, e controlaremos a presença estrangeira aqui.



— Como faríamos isso, André? Como podemos cultivá-lo?



— Deixe tudo comigo. — Ele apostava de novo que, através de Raiko, fornecendo a ela informações importantes, assim como dinheiro, poderia fazer os contatos certos para se aproximar de Yoshi. — Ele será nossa chave para abrir o Japão. Teremos de investir algum dinheiro, não muito. Mas no bolso certo...



Ele fizera uma pausa, soltara uma risadinha.



— Garanto o sucesso. Ele será nosso cavaleiro da reluzente armadura. Vamos ajudá-lo a se tornar Sir Galahad para arruinar os planos do rei Arthur de Wee Willie.



Por que não, ele disse a si mesmo, mais uma vez, parado ali, com Tyrer, outra peça essencial no tabuleiro de xadrez do domínio francês na Ásia. Phillip vai...



Por Deus! Ele quase explodiu quando a idéia incrível aflorou em sua mente: Se Struan morrer no duelo, e Angelique se tornar uma carta livre, ela poderia vir a ser uma Guinevere para esse japonês Yoshi? Por que não? Talvez ele apreciasse uma iguaria diferente. Através de Raiko, quem sabe se Angelique... pois ela ficaria perigosamente sem recursos e com isso seria vulnerável.



André riu, pôs a idéia de lado, como inebriante demais para considerar naquela noite.



— Phillip — disse ele, querendo que o inglês o considerasse seu melhor amigo —, se pudermos ajudar nossos superiores a chegar a uma solução definitiva e a pusermos em prática... o que acha disso?



— Seria maravilhoso, André!



— Um dia você será o embaixador aqui.



Tyrer riu.



— Não diga bobagem.



— Falo sério. — Apesar do fato de que sempre estariam em lados opostos e de sua necessidade de influenciá-lo, ele gostava sinceramente de Tyrer. — Dentro de um ano, você estará falando e escrevendo um japonês fluente, terá a confiança de Wee Willie, e contará com seu trunfo, Nakama, para ajudá-lo. Por que não?



— Por que não? — repetiu André, sorrindo. — É uma idéia agradável para encerrar uma noite. Bons sonhos, André.







Quase ninguém na colônia dormia tão contente quanto Angelique — a bomba lançada por Struan naquela noite, somada à ansiedade pela guerra iminente, no Japão e na Europa, manteve a maioria acordada.



— Como se não fosse suficiente ter de me preocupar com a nossa própria guerra civil — murmurou Dmitri para seu travesseiro, na profunda escuridão de seu quarto, no prédio da Cooper-Tillman.



As notícias que chegavam dos Estados Unidos eram cada vez piores, qualquer que fosse o lado que se apoiasse, e ele tinha parentes tanto no Sul quanto no Norte.



As baixas eram terríveis nos dois lados, havia pilhagens e incêndios, atrocidades, brutalidades, corrupções, tragédias monstruosas. Um tio escrevera de Maryland para informar que cidades inteiras eram incendiadas e saqueadas pelos guerrilheiros de Quantrill, do Sul, e pelos Jayhawkers, do Norte, e que os homens mais importantes do Norte haviam comprado para si mesmos e para seus filhos, legalmente, a isenção do serviço militar: A guerra está sendo travada pelos pobres, os desnutridos, os mal equipados. É o fim de nosso país, Dmitri...



Seu pai escrevera de Richmond, dizendo a mesma coisa: Não restará mais nada se a guerra se prolongar por outro ano. Absolutamente nada. É terrível ter de lhe contar, meu filho querido, mas seu irmão Janny foi morto na segunda batalha de Buli Run, pobre rapaz, nossa cavalaria foi dizimada, houve uma carnificina...



Dmitri revirava-se na cama, tentando pôr de lado o sofrimento de sua nação, mas não conseguia.







No clube, ainda havia discussões ruidosas e embriagadas entre os poucos mercadores que ainda se encontravam no bar. Uns poucos oficiais do exército e da marinha, Tweet e outros sentavam-se às mesas espalhadas pela sala, tomando o último drinque da noite.



Perto da janela, o conde Zergeyev e o recém-chegado ministro suíço, Fritz Erlicher, sentavam-se a uma mesa. O russo escondia seu divertimento e inclinou-se por cima dos copos de porto.



— São todos tolos, Herr Erlicher — disse ele, acima do burburinho.



— Acha que o jovem Struan pretende mesmo fazer o que disse?



— Ele falou sério, mas resta saber se essa política será ou não implementada. — Falavam em francês e Zergeyev explicou o conflito entre mãe e filho na Struan. — É esse o rumor atual, ela controla tudo, embora ele tenha o título legalmente.



— Se for implementada, seria bom para nós.



— Ah! Tem uma proposta?



— Uma idéia, conde Zergeyev.



Erlicher desfez o nó da gravata, passou a respirar com mais facilidade. O ar no clube era enfumaçado e abafado, o cheiro de cerveja e urina intenso, e a serragem no chão precisava ser trocada.



— Somos uma nação pequena e independente, com poucos recursos, mas com muita coragem e habilidade. Os britânicos, por quem vocês não sentem o menor amor, monopolizam a maior parte da fabricação de armamentos e a venda por toda a Europa... embora a fábrica de Krupp pareça promissora. — O homem barbudo e corpulento sorriu. — Soubemos que a Mãe Rússia possui substancial interesse nessa fábrica.



— Você me espanta.



Erlicher riu.



— Espanto a mim mesmo às vezes, Herr conde. Mas eu queria mencionar que dominamos os fundamentos da fundição de canhões e outras armas. Em particular, posso informá-lo que estamos negociando com a Gatling para fabricar sua metralhadora, sob licença. Já temos condições de abastecê-los com quaisquer armas que possam precisar, a longo prazo.



— Obrigado, meu caro senhor, mas não precisamos disso. O czar Alexandre II é um reformador, amante da paz, no ano passado emancipou nossos escravos, e este ano iniciou a reforma do exército, marinha, burocracia, judiciário, educação, de tudo enfim.



Erlicher sorriu.



— E, enquanto isso, ele preside a maior conquista territorial da história, subjugando mais povos do que qualquer outro soberano, à exceção de Genghis Khan e suas hordas mongóis. Genghis avançou para oeste... — O sorriso se alargou. — ...enquanto as hordas do seu czar espalham-se para leste. Por todo o continente! Imagine só! Por todo o continente, até o mar, através da Sibéria, até a península de Kamchatka. E isso não é o fim, não é mesmo?



— Não é? — murmurou o conde, sorrindo.



— Ouvimos dizer que o czar espera passar por sua nova fortaleza em Vladivostok para as ilhas japonesas, seguir para o norte, até as Kurilas, mais para o norte, até as Aleutas, para fazer a junção com o Alasca russo, que se estenderá até o norte da Califórnia. Enquanto o mundo dorme. Espantoso. — Erlicher tirou do bolso sua caixa de charutos, ofereceu. — Por favor... são os melhores cubanos.



Zergeyev pegou um charuto, cheirou-o, rolou-o entre os dedos, aceitou a chama estendida.



— Obrigado. E mesmo excelente. Todos os suíços são sonhadores como você?



— Não, conde. Somos amantes da paz, bons anfitriões de amantes da paz, mas permanecemos em nossas montanhas, bem-armados, observando o mundo exterior. Por sorte, nossas montanhas são inóspitas para aqueles que aparecem sem serem convidados.



Outra explosão de gritos distraiu-os por um momento, Lunkchurch, Swann, Grimm e outros mais clamorosos do que o habitual.



— Nunca estive na Suíça. Você deveria conhecer a Rússia. Temos muitas vistas para regalar os olhos.



— Já estive em sua linda São Petersburgo. Há três anos, passei alguns meses em nossa embaixada ali. A melhor cidade da Europa, em minha opinião, para quem é da nobreza, rico ou diplomata. Deve sentir muita saudade.



— Morro de saudade, mais do que pode imaginar. — Zergeyev suspirou. — Não demora muito agora para que eu volte. Já fui informado de que meu próximo posto será Londres... e aproveitarei para visitar suas montanhas.



— Eu me sentirei honrado em ser seu anfitrião. — Erlicher puxou o charuto, soltou um anel de fumaça. — Então, minha sugestão de um negócio não o interessa?



— É verdade que os britânicos monopolizam todos os tipos de empreendimentos, todas as rotas marítimas e os mares, todas as riquezas das terras subjugadas... — Não havia qualquer condescendência no sorriso de Zergeyev. — ...coisas que deveriam ser partilhadas.



— Neste caso, não deveríamos voltar a conversar num ambiente mais tranquilo?



— Durante o almoço, por que não? Sem dúvida, eu comunicaria tudo a meus superiores. Se houver uma necessidade futura, onde posso encontrá-lo ou a seus superiores?



— Aqui está meu cartão. Se perguntar por mim em Zurique, não terá qualquer dificuldade para me encontrar.



Erlicher observou-o ler a caligrafia magnífica do novo e milagroso processo de impressão que haviam acabado de inventar. O conde Zergeyev tinha feições elegantes, um aristocrata em todos os poros, com roupas impecáveis, enquanto sabia que as suas eram medíocres e que seus antepassados haviam sido meros camponeses. Mas não o invejava. {



Sou um suíço, pensou ele. Sou livre. Não tenho de fazer uma reverência, ajoelhar ou tirar o chapéu para qualquer rei, czar, sacerdote ou homem — se não quiser. De certa forma, este pobre coitado ainda é um servo. Graças a Deus por minhas montanhas e meus vales, por meus irmãos e irmãs, por viver entre eles, todos livres, como eu sou livre, e assim permanecerei.



Perto do balcão, meio bêbado, cambaleando, Lunkchurch apoiava-se comicamente em outro homem e berrava a plenos pulmões:



— Que a porra do Struan perdeu a porra do juízo é uma porra...



— Por favor, Barnaby, pare de usar essa linguagem infame! — gritou o reverendo Tweet, abrindo caminho para a porta, o colarinho um pouco torto, o rosto vermelho e suado. — Quando se pensa a respeito, de um ponto de vista justo e inglês, não se pode deixar de reconhecer que o jovem Struan assumiu a posição moral correta.



Lunkchurch, completamente embriagado, fez um gesto grosseiro para o reverendo.



— Enfie a porra da santimônia na porra do rabo!



Roxo de raiva, o reverendo Tweet cerrou o punho e desferiu um golpe ineficaz. Os mais próximos de Lunkchurch o arrancaram do caminho, como sempre, enquanto outros cercavam Tweet, procurando acalmá-lo. Depois, Charlie Grimm, sempre disposto a aceitar um desafio, qualquer desafio, berrou acima do tumulto, e de seu próprio nevoeiro da embriaguez:



— Barnaby, prepare-se para encontrar seu criador!



Atenciosos, os homens ao redor se afastaram para lhes dar espaço, e os dois, sob aclamações, começaram a se esmurrar, com o maior empenho.



— Drinques por conta da casa! — ordenou o chefe dos barmen, para os que ainda se encontravam no clube. — Scotch para o reverendo, porto para o conde e seu convidado. E agora vocês dois parem de brigar!



Tweet aceitou o uísque e cambaleou para uma mesa bem distante dos dois brigões, que agora rolavam pelo chão, a beligerância ainda intensa. O barman suspirou, esvaziou um balde de água suja sobre eles, contornou o balcão, pegou um em cada mão e expulsou-os para a High Street, sob mais aplausos.



— Senhores, por favor, está na hora de fechar! — anunciou ele, sob vaias que logo cessaram.



Todos terminaram seus drinques e começaram a se retirar. Zergeyev e Fritz Erlicher ergueram o chapéu polidamente para o clérigo.



— Reverendo — disse Swann, o mercador magro que atuava como diácono —, que tal procurar pelos pecadores na cidade dos bêbados?



— Como se diz, Sr. Swann, já estou indo.







Em sua pequena casa, na Yoshiwara, Hinodeh esperava. Furansu-san dissera que viria naquela noite, mas podia se atrasar. Ela estava vestida para se despir, o quimono de noite e os quimonos interiores da melhor qualidade, os cabelos a rebrilhar, travessas de casco de tartaruga e de prata ornamentando o penteado armado, que deixava à mostra nuca impecável, as travessas ali só para serem tiradas... para permitir que os cabelos caíssem até a cintura, escondendo o erótico.



Gostaria de saber o que há de tão erótico na nuca de uma mulher para excitar os homens, especulou ela; e por que escondê-la é também erótico? Ah, como os homens são estranhos! Mas Hinodeh sabia que deixar os cabelos caírem excitava Furansu-san, tanto quanto qualquer outro cliente, e essa era a sua única concessão ao pacto entre os dois. Não fazia qualquer outra coisa na luz.



No escuro, antes do amanhecer, quando estavam juntos, sua maiko acordava, e ela se vestia sem acender qualquer luz, quer ele despertasse também, ou não. Depois, ia para o outro quarto, fechava a porta, que a maiko ficava vigiando, e voltava a dormir, se por acaso se sentia cansada. Furansu-san concordara que nunca entraria naquele santuário... depois da primeira vez, ela insistira:



— Dessa maneira, a privacidade da noite pode se estender pelo dia.



— Como assim?



— Com isso, o que você viu uma vez nunca vai mudar, não importa o que os deuses determinem.



Um tremor percorreu seu corpo. Por mais que tentasse, não podia reprimir a sensação de que a semente do vil deus Pústula, implantada por Furansu-san dentro dela, estava adquirindo força, crescendo, preparando-se para irromper por toda parte. Todos os dias, ela se examinava. De uma forma meticulosa. Só podia confiar em Raiko para verificar naqueles pontos que ela não podia ver e que ainda continuavam imaculados.



— Todos os dias é demais, Hinodeh — dissera Raiko, antes de concordar com o contrato. — Pode não acontecer nada por anos...



— Sinto muito, Raiko-san. Todos os dias é uma condição.



— Por que resolveu concordar? Tem um bom futuro em nosso mundo. Talvez nunca alcance a primeira classe, mas é instruída, sua mama-san diz que tem uma longa lista de clientes, que está satisfeita com você, disse que poderia casar com um próspero mercador, fazendeiro ou fabricante de espadas, que é sensata, e não lhe faltaria uma boa união.



— Agradeço sua preocupação, Raiko-san, mas acertou com minha mama-san que nunca me interrogaria, nem bisbilhotaria meu passado, para descobrir de onde vim ou procurar explicações. Em troca, partilha com ela uma porcentagem do dinheiro que ganharei este ano, e talvez no outro. Deixe-me repetir: aceitei o contrato porque é o que desejo.



Isso mesmo, é o que desejo, e me sinto afortunada.



Tinha agora vinte e dois anos. Nascera numa fazenda nos arredores de Nagasáqui, na província de Hizen, na ilha do Sul. Aos cinco anos, fora convidada a ingressar no mundo flutuante por uma das muitas intermediárias que viajavam pelo país à procura de crianças que pudessem se tornar gueixas, pessoas das artes, as que podiam ser treinadas, como Koiko, nas artes, e não apenas como uma netsujo-jin, uma pessoa para a paixão. Seus pais concordaram, receberam dinheiro e uma nota promissória para cinco pagamentos anuais, a começar dez anos depois, a quantia dependendo do sucesso da criança.



Como uma pessoa da arte, ela não fora bem-sucedida — nem na samisen, a guitarra de três cordas, no canto, na dança, ou como atriz —, mas como uma pessoa de prazer, desde os quinze anos, quando fizera sua estréia, mais instruída do que suas contemporâneas, logo se tornara importante para sua mama-san e para si mesma. Naquele tempo, seu nome era Gekko, Raio de Luar, e embora houvesse muitos estrangeiros em Nagasáqui na ocasião, ela não conhecia nenhum, pois sua casa atendia apenas a japoneses, da mais alta ordem.



Em certo mês de outubro, o mês sem deuses, ela recebera um novo cliente. Era um ano mais velho do que ela, dezoito anos, um goshi, filho de um goshi — um espadachim médio, soldado médio, mas para ela a pessoa dos sonhos. Seu nome era Shin Komoda.



A paixão entre os dois desabrochara. Por mais que a mama-san tentasse reprimir o magnetismo mútuo — o rapaz era pobre, suas contas não eram pagas —, nada que ela pudesse dizer ou fazer tivera qualquer efeito. Até a primavera do ano seguinte. Sem dizer a Gekko, a mama-san fora à casa do rapaz, fizera uma reverência diante de sua mãe e pedira o pagamento, polidamente. Não havia dinheiro para pagar. A mãe pedira tempo. O rapaz fora proibido de ver Gekko outra vez. Ele simulou acatar a ordem dos pais, mas tal não aconteceu. Uma semana depois, disfarçados, eles fugiram juntos, desaparecendo no vasto porto. Ali, com os nomes trocados, e com algum dinheiro que Gekko guardara, além das jóias que trouxera, compraram passagens de terceira classe num navio de cabotagem que partia naquele dia para Iedo.



Em uma semana, Shin Komoda fora desonrado em sua aldeia e declarado ronin. A mama-san procurara de novo sua mãe. Era uma questão de honra que as contas do filho fossem pagas. Os cabelos compridos e belos constituíam o único bem de valor e o orgulho da mãe. Com a concordância do marido, ela fora a um fabricante de perucas de Nagasáqui. O homem comprara seus cabelos sem hesitação. O dinheiro fora suficiente para saldar as dívidas do filho. Assim, para eles, a honra fora resguardada.



Em Iedo, ao final do dinheiro, Gekko e Shin conseguiram encontrar alojamentos seguros nos cortiços da cidade. E um sacerdote budista para casá-los. Sem documentos, qualquer dos dois, e seu verdadeiro passado apagado, a vida era difícil, quase impossível, mas por um ano viveram felizes, conseguindo se sustentar no limiar da pobreza. O que não importava, pois se deleitavam na companhia um do outro, o amor aumentou e foi frutuoso. Embora o dinheiro de Gekko minguasse até acabar, por mais que ela tentasse ser prudente, e o pagamento de Shin mal desse para alimentá-los — só conseguira arrumar trabalho como guarda bordel de baixa classe, que nem ao menos ficava na Yoshiwara de Iedo —, não tinha importância.



Nada mais importava. Estavam juntos. Sobrevivendo. Ela mantinha os dois pequenos aposentos impecáveis, converteu-os num palácio e santuário para ele e a criança. Por mais que Gekko propusesse, ele sempre recusava.



— Nunca, mas nunca mesmo, nenhum outro homem haverá de conhecê-la! Quero que jure!



E ela jurara. Quando o filho tinha um ano de idade, Shin morrera numa briga. Com sua morte, a luz se apagara em Gekko.



Uma semana depois, a mama-san do bordel lhe fizera uma proposta. Ela agradecera e recusara, dizendo que voltaria para sua casa em Nara. Comprara no mercado uma vela nova, vermelha, e acendera-a naquela noite, quando o menino dormia, para observá-la e pensar no que deveria fazer, até que a chama se extinguisse, prometendo aos deuses que, ao final, decidiria o que era melhor para o filho, pedindo-lhes ajuda para tomar a decisão mais sábia.



A chama se extinguira, e a decisão fora simples e correta: Deveria mandar o filho para os pais de Shin. O menino iria sozinho — fingiria que ela e o marido haviam cometido o jinsai, o suicídio ritual conjunto, como expiação aos pais de Shin pelo sofrimento que haviam lhe causado. Para ser aceito, o filho deveria ter pelo menos um ano de dinheiro, de preferência mais. Deveria estar bem vestido e viajar com uma ama de confiança, o que implicava mais dinheiro. Só assim ele poderia obter sua herança, virar um samurai. Por último, não havia sentido em obedecer ao juramento feito a um morto, quando o futuro do filho vivo se encontrava em jogo.



Pela manhã, ela deixara o filho com uma vizinha, com o resto do dinheiro comprara o melhor quimono e a melhor sombrinha que pudera encontrar no mercado dos ladrões. Depois, sem mais nenhum dinheiro, fora à melhor cabeleireira, perto dos portões da Yoshiwara de Iedo. Ali, trocara um mês de ganhos futuros pelo penteado mais moderno, massagem, maquilagem, manicure, pedicure e outros cuidados... e informações.



As informações custaram mais um mês.



Naquela tarde, ela passara pelos portões, e fora direto para a casa da Glicínia. A mama-san era igual a todas as outras que já conhecera, sempre a perfeição no traje e no penteado, sempre um pouco corpulenta demais, com uma maquilagem que mais parecia uma máscara, olhos gentis com os fregueses, mas que podiam se tornar duros como granito de um momento para outro, olhos que podiam fazer as moças tremerem de medo, e sempre exalando a fragrância do melhor perfume que podia comprar, mas nem assim encobrindo o cheiro persistente de saquê. Aquela mama-san era magra, e seu nome era Meikin.



— Sinto muito, mas não aceito damas sem documentos nem história — dissera a mama-san. — Respeitamos a lei aqui.



— Sinto-me honrada em saber disso, madame, mas tenho uma história, e com sua ajuda posso inventar outra, para satisfazer os mais inquisitivos representantes do Bakufu, e ao mesmo tempo resistir à investigação mais meticulosa de um bisbilhoteiro.



Meikin riu. Os olhos permaneceram sérios.



— Que treinamento você teve, onde? E qual é o seu nome?



— Meu nome é Hinodeh. O onde não tem importância, não é?



Gekko falara sobre as mestras de gueixa, e seu fracasso em corresponder às expectativas. Depois, relatara seu treinamento prático, os tipos de clientes que tivera e quantos.



— Interessante. Mas, sinto muito, não tenho vaga aqui, Hinodeh — dissera a mulher, com extrema gentileza. — Volte amanhã. Farei indagações, talvez alguma amiga possa aceitá-la.



— Por favor, posso pedir que reconsidere? — Claro que no dia seguinte ela também não seria admitida, sob algum pretexto. — Afinal, é a melhor, a mais digna de confiança.



Ela rangera os dentes e acrescentara, a voz suave, torcendo para que a informação fosse correta:



— Até mesmo os shishi sabem disso.



A cor se esvaíra do rosto da mama-san, embora sua expressão não se alterasse.



— Você e seu amante fugiram e agora ele a abandonou?



— Não, madame.



— Neste caso, ele morreu.



— Isso mesmo, madame.



— E teve uma criança ou crianças?



— Um filho.



A mulher mais velha suspirou.



— Um filho. Ele está com você?



— Está com a família do pai.



— Qual é a idade dele?



— Um ano e três meses.



Meikin pedirá chá e beberam em silêncio. Gekko tremia por dentro, com medo de ter ido longe demais na ameaça, convencida de que a outra mulher especulava de onde vinha a informação, e como ela, uma estranha — um fato bastante perigoso, por si só —, tomara conhecimento. Ou se ela era uma espiã do xogunato. Se eu fosse uma espiã, raciocinara Gekko, com toda certeza não diria isso, não na primeira entrevista. Ao final, a mama-san dissera:



— Não poderá ficar aqui, Hinodeh, mas tenho uma irmã que possui uma excelente casa na rua seguinte. Há um preço para a apresentação.



— De antemão, devo lhe agradecer humildemente por ajudar.



— Primeiro, tem de jurar que vai eliminar os maus pensamentos de sua cabeça. Para sempre.



— Por minha vida.



— Pela vida de seu filho é melhor.



— Pela vida de meu filho.



— Segundo, será uma exemplar dama do nosso mundo, calma, obediente, merecedora de confiança.



— Por minha vida e pela vida do meu filho.



— Terceiro... o terceiro pode esperar até sabermos se minha irmã concorda em socorrer a pessoa que vejo diante de mim.



O terceiro era uma questão de dinheiro, a divisão entre as duas mama-sans. Tudo fora acertado de maneira satisfatória. Gekko fizera um acordo financeiro com a vizinha, para que cuidasse de seu filho, visitando-o em segredo a cada duas semanas, pela manhã, no seu dia de folga, a mentira que dissera a Meikin não chegando a ser uma mentira total, já que ele seria enviado mesmo para a família do pai.



E logo, mais uma vez, ela se tornara popular, mas não bastante popular, o pagamento à cabeleireira tornara-se contínuo, o que também acontecia com a massagista, com a mulher que fazia suas roupas. Nunca restava o suficiente para guardar. A esta altura, o filho era um segredo aberto, pois as duas mama-sans a vigiavam, mandaram segui-la. Nunca lhe mencionaram o filho, compreendendo a situação, com compaixão. Até que um dia sua mama-san a chamara e falara sobre o gai-jin que pagaria bastante, adiantado, para enviar o filho ao seu futuro, com dinheiro para dois anos de sustento, no mínimo dois, e ainda restaria o suficiente para garantir sua viagem são e salvo até o lugar em que viveria.



Ela aceitara com alegria.



Depois da primeira noite terrível, sentira vontade de acabar com sua vida, o homem era bestial. Por mais que chorasse e suplicasse, Raiko recusara, implacável, pois avisara-a antes que isso não seria possível, pelo menos por um mês. Por sorte, houvera dias para a recuperação e para as duas planejarem uma defesa. E essa defesa conquistara o animal, como ela se referia ao gai-jin, e conseguira mudá-lo, temporariamente. Agora, ele se mostrava dócil, chorava muito, exigia paixão em todas as suas aberrações, mas por baixo de seu comportamento manso e agradável dava para sentir a violência, ainda borbulhando, pronta para explodir.



No ambiente tranqüilo e agradável, Hinodeh agora esperava, os nervos tensos. No momento em que ele bateu no portão da rua, sua maiko veio correndo para avisá-la. Como ainda tinha tempo, ela sentou na posição do lótus, para meditar, enviou sua mente para zen. E logo estava preparada.



A união com o animal era suportável. Curioso como ele é diferente, pensou Hinodeh, com uma compleição diferente de uma pessoa civilizada, um pouco mais comprido e mais largo, mas sem a firmeza e a força de uma pessoa civilizada.



Muito diferente de Shin, que era doce, suave e forte. Curiosamente, não havia em seu marido qualquer sinal de seu ancestral gai-jin, Anjin-san, que dois séculos e meio antes assumira o nome de Komoda para sua segunda família, em Nagasaqui; a primeira família vivia em Izu, onde ele construíra navios para seu suserano, o xógum Toranaga.



Graças a todos os deuses por ele. Por sua causa, meu Shin pôde nascer, e nasceu samurai, assim como nosso filho.



Ela sorriu, feliz. O filho partira há quase três semanas, com dois criados de confiança. Levavam um título financeiro, a ser sacado da Gyokoyama, em nome da mãe de Shin, para quase três anos de casa e comida para o menino, e também para os avós.



Tudo resolvido, pensou ela, orgulhosa. Cumpri meu dever para com nosso filho, Shin-sama. Protegi sua honra. Tudo estava em ordem. Até mesmo a indagação final de Raiko, antes de acertarem a derradeira cláusula do contrato com o animal:



— Por último, Hinodeh, o que devo fazer com o seu corpo?



— Jogue-o na pilha de estrume, pois nada importa, Raiko-san, ele já está profanado. Deixe-o para os cães.


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