— É seguro aqui, Ori — sussurrou ele.
Os dois tiraram as roupas de ninja e as guardaram numa bolsa macia que Hiraga trazia, pendurada ao ombro, substituindo-as por quimonos comuns. Com extremo cuidado, Hiraga limpou sua espada com um pedaço de seda, carregado para esse propósito por todos os espadachins, e enfiou-a na bainha.
— Pronto?
— Pronto.
Hiraga tornou a seguir na frente, pelo labirinto de vielas, em passos seguros, permanecendo sob cobertura onde podia, hesitando diante de cada espaço aberto, até se certificar de que não havia perigo, não veriam ninguém, não encontrariam ninguém, depois seguindo adiante, a caminho da casa segura.
Haviam vigiado a legação desde o início da manhã, os bonzos — sacerdotes budistas — fingindo não notá-los, depois de se convencerem de que não eram ladrões, e de Hiraga ter se identificado e explicado sua missão: espionar os gai-jin. Todos os bonzos eram xenófobos fanáticos, contra os gai-jin, para eles sinônimo de jesuítas, ainda os seus mais odiados e temidos inimigos.
— Ah, vocês são shishi, então são bem-vindos — dissera o velho monge. — ademais esquecemos que os jesuítas nos arruinaram, e que os xóguns de Toranaga foram o nosso flagelo.
De meados do século XV e até o início do século XVI, só os portugueses conheciam o caminho para o Japão. Éditos papais também lhes concederam exclusividade sobre as ilhas, e aos jesuítas portugueses o direito exclusivo de proselitismo. Em poucos anos, eles converteram tantos daimios ao catolicismo, e por conseguinte seus súditos, que o ditador Goroda os usara como uma desculpa para massacrar milhares de monges budistas, que naquele tempo eram militantes dominantes no país, e se opunham a ele.
O tairo Nakamura, que herdara seu poder, expandira-o imensamente e jogara os bonzos contra os jesuítas, com perseguições, sofrimentos e mortes. E depois viera Toranaga.
Tolerante com todas as religiões, embora não com a influência estrangeira Toranaga observara que todos os daimios convertidos haviam inicialmente lutado contra ele, em Sekigahara. Três anos depois tornara-se o xógum, e dois anos mais tarde renunciara em favor do filho, Sudara, embora mantivesse o poder de fato— um antigo costume japonês.
Durante sua vida, controlara com todo rigor os jesuítas e budistas, e eliminara ou neutralizara os daimios católicos. Seu filho, o xógum Sudara, aumentara a repressão, e o filho dele, o xógum Hironaga, arrematara o plano delineado no legado, em que o cristianismo era formalmente proibido no Japão, sob pena de morte. Em 1.638, o xógum Hironaga destruíra o último bastião cristão, em Shimabara, perto de Nagasáqui, onde uns poucos milhares de ronin, trinta mil camponeses e suas famílias se rebelavam contra ele. Os que se recusaram a abjurar foram crucificados ou executados pela espada, como criminosos comuns. Só um punhado se recusou. Depois, ele concentrara sua atenção nos budistas. Em poucos dias determinara que lhe entregassem todas as suas terras de presente e mandara prendê-los.
— São bem-vindos, Hiraga-san, Ori-san — repetira o velho monge. — Somos a favor dos shishi, por Sonno-joi e contra o xogunato. Estão livres para circularem por aqui. Se precisarem de ajuda, basta nos avisarem.
— Pois então mantenha uma contagem do número de soldados, suas idas e vindas, que cômodos estão ocupados e por quem.
Os dois haviam esperado e vigiado durante o dia inteiro. Ao anoitecer, vestiram as roupas de ninja. Por duas vezes, Hiraga se aproximara da legação, numa delas chegara a escalar a cerca, a título de experiência e para fazer um reconhecimento, mas logo batera em retirada, sem ser visto, quando uma patrulha avançara em sua direção.
— Jamais conseguiremos entrar durante a noite, Ori — sussurrara ele. — Nem de dia. Há patrulhas demais agora.
— Quanto tempo acha que eles vão ficar?
Hiraga sorrira.
— Até os expulsarmos.
Agora, estavam quase alcançando a casa segura, uma estalagem a leste do castelo. O amanhecer era iminente, o céu se tomava mais claro, a camada de nuvens mais tênue do que no dia anterior. À frente, a rua se encontrava deserta. A ponte também. Confiante, Hiraga avançou apressado em sua direção e quase derrapando. Uma patrulha de dez homens do Bakufu saíra das sombras. No mesmo instante, os dois lados assumiram a posição de ataque e defesa, as mãos nos cabos das espadas.
— Adiantem-se e mostrem seus papéis de identificação — ordenou o samurai no comando da patrulha.
— Quem são vocês para darem ordens a alguém?
— Está vendo nossos emblemas — disse o homem, furioso, dando alguns passos pelas tábuas da ponte, enquanto seus homens espalhavam-se por trás. — Somos guerreiros de Mito, nono regimento, guardiões do xógum. Identifiquem-se.
— Estivemos espionando a fortificação do inimigo. Deixe-nos passar.
— Parecem mais com ladrões. O que há na bolsa em suas costas, hem? Identifiquem-se!
O ombro de Ori latejava. Já vira a descoloração reveladora, mas escondera de Hiraga, e também não mencionara a dor. Sua cabeça doía, mas percebeu no mesmo instante que nada tinha a perder, e podia ganhar uma morte admirável.
— Sonno-joi! — berrou ele de repente, avançando para o samurai na ponte.
Os outros recuaram para lhes dar espaço, enquanto Ori golpeava com toda a sua força, recuperou-se quando o golpe foi aparado e tornou a atacar, fazendo uma finta e desta vez acertando o alvo. O homem morreu de pé, e só depois é que tombou. Ori avançou para outro homem, que recuou, depois para um terceiro, que também recuou. O círculo de guerreiros começou a se fechar.
— Sonno-joi! — gritou Hiraga, e correu para o lado de Ori. Juntos, eles mantiveram os homens a distância.
— Identifiquem-se! — insistiu um jovem guerreiro, sem se mostrar impressionado. — Sou Hiro Watanabe e não desejo matar ou ser morto por um guerreiro desconhecido.
— Sou um shishi de Satsuma! — anunciou Ori, orgulhoso, acrescentando um pseudônimo, como era o costume: — Riyama Takagaki.
— E eu sou de Choshu, meu nome é Shodan Moto. Sonno-joi! — gritou Hiraga.
Ele avançou para Watanabe, que recuou sem medo, assim como os outros ao redor.
— Nunca ouvi falar de vocês — disse Watanabe, por entre os dentes semi-cerrados. — Não são shishi... são a escória.
Seu golpe foi aparado. Hiraga, um mestre na espada, usou a força e a velocidade do atacante para desequilibrá-lo, deu um passo para o lado e golpeou sob a espada, no lado desprotegido do homem. Retirou a lâmina e, num movimento que parecia contínuo, acertou no pescoço, decapitando o atacante enquanto ele caía, concluindo numa perfeita posição de ataque. O silêncio era profundo.
— Com quem você estudou? — perguntou alguém.
— Toko Fujito foi um dos meus sensei — respondeu Hiraga, pronto para a próxima morte.
— Ei!
Toko Fujito era um dos reverenciados mestres espadachins de Mito, que morrera no koto de Iedo em 1.855, causador de cem mil mortes.
— Eles são shishi, e homens de Mito não matam shishi, sua própria gente murmurou um dos homens. — Sonno-joi!
Cauteloso, esse homem deu um passo para o lado, sem ter certeza da reação dos outros, sua espada ainda em posição de combate. Os companheiros fitaram-no, depois uns aos outros. Outro homem se afastou. Havia agora uma passagem estreita e convidativa entre eles, mas todas as espadas continuavam erguidas.
Hiraga preparou-se para uma traição, mas Ori acenou com a cabeça para si mesmo, a dor esquecida, a vitória ou a morte era a mesma coisa para ele. Sem se apressar, limpou sua lâmina, guardou a espada na bainha. Com toda polidez, fez uma reverência para os mortos e avançou pela passagem estreita, sem olhar para a direita ou esquerda, nem para trás.
Um momento depois, Hiraga seguiu-o, também em passos lentos. Até virarem a esquina. E só então os dois desataram a correr, não parando até se encontrarem bem longe.
10
Os cinco representantes do bakufu entraram sem pressa no pátio da legação, em seus palanquins. Chegavam com uma hora de atraso, precedidos por samurais com estandartes que exibiam seus emblemas oficiais, e cercados por guardas. Sir William se postava no alto dos degraus largos que levavam à entrada imponente. Tinha a seu lado os ministros da França, Rússia e Prússia — seus assessores, Phillip Tyrer, e outros membros da legação, um pouco mais atrás — e mais uma guarda de honra, formada por Highlanders, com alguns soldados franceses, exigidos por Seratard. O almirante Ketterer e o general haviam permanecido a bordo, de sobreaviso.
Os japoneses fizeram uma reverência cerimoniosa. Sir William e os outros levantaram o chapéu. Com o devido ritual, conduziram os japoneses para a grande sala de audiências, tentando disfarçar sua diversão pelos trajes exóticos: pequenos chapéus pretos laqueados, equilibrados no alto de cabeças raspadas e presos com cordões por baixo do queixo, os trajes externos de ombreiras largas, os quimonos de seda cerimoniais, multicoloridos, as calças volumosas, sandálias de tiras de couro, e meias abertas entre os dedos, as tabi, leques no cinto e as duas espadas inevitáveis.
— Esses chapéus não são bastante grandes para se dar uma mijada — comentou o russo.
Sir William sentou no centro da fila de cadeira, junto com os ministros, Phillip Tyrer numa extremidade, para completar a delegação. Os representantes do Bakufu sentaram na fileira em frente, com os intérpretes se instalando em almofadas no chão, entre os dois grupos. Depois de prolongadas discussões, concordaram em cinco guardas para cada lado. Esses homens postaram-se por trás de seus superiores, adversários se fitando com expressões desconfiadas. Nos termos do rigoroso protocolo, os membros das delegações se apresentaram. Toranaga Yoshi foi o último.
— Tomo Watanabe, servidor subalterno, segunda classe — disse ele, fingindo uma humildade que não sentia.
Sua posição era a mais insignificante, na extremidade, as roupas menos requintadas que as dos outros. Todos os guardas haviam sido ordenados, sob pena de punição, a tratá-lo como o menos importante ali.
Ele se acomodou, sentindo a maior estranheza. Como são feios estes inimigos pensou, como são ridículos e cômicos, com seus chapéus enormes, botas esquisitas e trajes pretos e pesados... não é de admirar que sejam tão malcheirosos!
Sir William começou, com todo cuidado e simplicidade:
— Um inglês foi assassinado por samurais de Satsuma...
Por volta das cinco horas, os ânimos europeus estavam em frangalhos, os japoneses ainda polidos, sorridentes, mantendo uma fachada imperturbável. Em uma dúzia de modos diferentes, seus porta-vozes alegaram que... sentimos muito mas não temos jurisdição sobre Satsuma, nem conhecimento dos assassinos, nem qualquer meio de encontrá-los, mas foi de fato lamentável, não sabiam como providenciar reparações, embora em algumas circunstâncias as reparações fossem devidas, o xógum não se encontrava disponível no momento, mas teria o maior prazer em lhes conceder uma audiência assim que voltasse, embora não num futuro previsível, mas vamos solicitar imediatamente que marque um dia exato, só que não pode ser este mês, porque não sabemos com certeza seu atual paradeiro, mas seria o mais breve possível, a próxima reunião e todas as reuniões subsequentes não devem ser em Iedo, mas sim em Kanagawa, sentimos muito, mas não este mês, talvez no próximo, sentimos muito, mas não temos autoridade...
Cada questão tinha de ser traduzida do inglês para o holandês e o japonês — e as frases nesta última língua eram longamente discutidas entre eles —, e as respostas traduzidas para o holandês e depois para o inglês, com uma inevitável homília, e sempre com pedidos polidos de explicações sobre os pontos mais triviais.
Yoshi achou que todo o procedimento era muito interessante, pois nunca antes estivera diante de tantos gai-jin reunidos, nem comparecera a uma reunião em que eram tão desiguais, surpreendentemente, discutiam assuntos políticos, em vez de escutarem e obedecerem.
Três dos outros quatro eram de fato servidores do Bakufu, embora subalternos. Todos haviam se apresentado com nomes falsos, um costume normal quando se lidava com estrangeiros. O impostor, que secretamente falava inglês, sentava ao lado de Yoshi. Seu nome era Misamoto. Yoshi lhe ordenara que não se esquecesse de nada, que informasse discretamente qualquer coisa importante que não tivesse sido traduzida com precisão, mas afora isso se mantivesse de boca fechada. Era um criminoso sob sentença de morte.
Quando Yoshi mandara buscá-lo, dois dias antes, Misamoto no mesmo instante se prostrara diante dele, tremendo de medo.
— Levante-se e sente ali.
Yoshi apontara com o leque para a beira da plataforma de tatame em que sentava. Misamoto obedecera. Era um homem pequeno, de olhos rasgados, cabelos e barba compridos e grisalhos, o suor escorrendo pelo rosto, as roupas ordinárias, quase em farrapos, as mãos calosas, a pele da cor de mel escuro.
— Vai me contar a verdade. Seus interrogadores informam que fala inglês, fala mesmo?
— Sim, lorde.
— Nasceu em Anjiro, em Izu, e esteve na terra chamada América?
— Sim, lorde.
— Quanto tempo passou lá?
— Quase quatro anos, lorde.
— Em que lugar da América?
— San Francisco, Lorde.
— O que é San Francisco?
— Uma cidade grande, lorde.
— Só lá?
— Sim, lorde.
Yoshi estudara-o, precisando de informações, e depressa. Percebera que o homem se sentia desesperado em agradar, mas ao mesmo tempo apavorado, com ele e com os guardas que o haviam trazido, empurrando sua cabeça para o chão. Por isso, decidira tentar um esquema diferente. Dispensara os guardas, levantara-se, fora se encostar no peitoril da janela, olhando para a cidade.
— Conte-me depressa, com suas próprias palavras, o que lhe aconteceu.
— Eu era pescador na aldeia de Anjiro, em Izu, lorde, onde nasci, há trinta e três anos. — Misamoto falara sem hesitar, deixando patente que já relatara a história uma centena de vezes antes. — Há nove anos, estava pescando, junto com outros cinco, em meu barco, a algumas ri da praia. Fomos apanhados por uma súbita tempestade, que foi se tornando cada vez mais forte, e fomos soprados pelo vento, durante trinta dias ou mais, para leste, pelo grande mar, centenas de ri, talvez mil, lorde. Durante esse tempo, três dos meus companheiros caíram no mar. Depois o mar se acalmou, mas nossas velas haviam sido rasgadas, não havia comida, nem água. Tentamos pescar, mas nada conseguimos pegar, não havia água para beber... Um de nós enlouqueceu, pulou na água, começou a nadar para uma ilha que pensava ter visto e logo se afogou. Não vimos terra nem navio, só água. Muitos dias depois, o outro homem, meu amigo Ishii, morreu, e eu fiquei sozinho. Até que um dia pensei que tinha morrido, porque vi aquele navio estranho, que navegava sem velas, e parecia estar pegando fogo, mas era apenas um vapor de roda, americano, indo de Hong Kong para San Francisco. Eles me salvaram, me deram comida e me trataram, como se fosse um deles... fiquei aterrorizado, lorde, mas partilharam comigo sua comida e sua água, e me deram roupas...
— Esse navio americano levou você para esse lugar San qualquer coisa? O que aconteceu depois?
Misamoto contara como fora levado à casa do irmão do capitão, um negociante de velas de navio, para aprender a língua, fazendo pequenos trabalhos, até as autoridades decidirem o que fazer com ele. Vivera com a família por cerca de três anos, trabalhando na loja e no porto. Um dia fora levado à presença de uma importante autoridade, um homem chamado Natow, que o interrogara, e depois dissera que seria enviado com o navio de guerra Missouri para Shimoda, a fim de servir como intérprete para o cônsul Townsend Harris, que já se encontrava no Japão, negociando um tratado. A esta altura, ele usava roupas ocidentais e aprendera alguns dos costumes ocidentais.
— Aceitei com a maior satisfação, Sire, certo de que poderia ser útil aqui, em particular para o Bakufu. No nono dia do oitavo mês do ano de 1.857, pela contagem deles, há cinco anos, Sire, chegamos a Shimoda, em Izu, não muito longe da minha aldeia natal, que fica ao norte de lá. No momento em que desembarquei, obtive permissão para me ausentar por um dia, e parti no mesmo instante, lorde, a fim de me apresentar à casa da guarda mais próxima, ou encontrar a autoridade do Bakufu mais próxima, pensando que seria bem recebido, por causa dos conhecimentos que adquirira... Mas os guardas da barreira não...
Misamoto fizera uma pausa, o rosto se contraindo em angústia.
— Mas eles não quiseram me escutar, Sire, não tentaram compreender... fui amarrado e trazido para Iedo... isso aconteceu há cerca de cinco anos, lorde, e desde então tenho sido tratado como criminoso, confinado como tal, embora não na prisão, e continuei a explicar e explicar que não era um espião, mas sim um homem leal de Izu, e contei para todo mundo o que tinha me acontecido...
Para repulsa de Yoshi, as lágrimas começaram a escorrer pelo rosto do homem. Ele tratara de interromper a lamúria.
— Pare com isso! Sabe ou não sabe que é proibido, por lei, deixar o Nipão sem autorização?
— Sei, lorde, mas eu pen...
— E sabe que, pela mesma lei, se violada, qualquer que tenha sido o motivo, quem querque seja a pessoa, o culpado está proibido de voltar, sob pena de morte?
— Sei, sim, Sire. Mas não imaginei que me incluiria, Sire. Pensei que seria bem recebido, e meus conhecimentos apreciados, porque me perdi no mar sem querer. Foi a tempestade que...
— Uma lei é uma lei. Esta lei é uma boa lei. Evita a contaminação. Acha que foi tratado injustamente?
— Oh, não, lorde! — exclamara Misamoto, removendo as lágrimas, com um medo ainda maior, a cabeça inclinada para o tatame. — Por favor, desculpe-me. suplico o seu perdão, por favor...
— Limite-se a responder às perguntas. Até que ponto seu inglês é fluente?
— Eu... eu compreendo e falo um pouco de inglês americano, Sire.
— É a mesma língua que os gai-jin aqui falam?
— É, sim, Sire, mais ou menos...
— Quando esteve com o americano Harris, você estava de barba ou sem?
— De barba, Sire. Tinha uma barba aparada, como a maioria dos marujos. Deixei os cabelos crescerem como os deles, e prendi num rabo-de-cavalo.
— Quem você conheceu junto com o gai-jin Harris?
— Só ele, Sire, durante cerca de uma hora. Um dos seus homens estava presente. Não me lembro do nome dele.
Yoshi tornara a avaliar os perigos de seu plano: comparecer à reunião disfarçado, sem a aprovação do conselho, e usar aquele homem como um espião, para ouvir secretamente o que o inimigo dizia. Talvez Misamoto já fosse um espião, para os gai-jin, pensara ele, sombrio, como todos os seus interrogadores acreditam. Não resta a menor dúvida de que ele é um mentiroso, sua história é fácil demais, seus olhos muito astuciosos, e parece uma raposa quando baixa a guarda.
— Muito bem. Mais tarde, quero saber tudo o que você aprendeu, tudo mesmo e... sabe ler e escrever?
— Sei, lorde, mas apenas um pouco em inglês.
— Ótimo. Tenho um uso para você. Se obedecer sem hesitação e me agradar, posso revisar seu caso. Mas se me falhar em qualquer coisa, por menor que seja, garanto que vai se arrepender.
Ele explicara o que queria, e designara instrutores. Quando os guardas trouxeram Misamoto de volta, no dia anterior, de rosto raspado, os cabelos penteados como os de um samurai, e usando as roupas de uma autoridade, inclusive com as duas espadas, embora fossem falsas, sem as lâminas, Yoshi não o reconhecera.
— Está ótimo. Ande de um lado para outro. Misamoto obedecera, e Yoshi se impressionara pela rapidez com que o homem aprendera a postura empertigada que o mestre lhe ensinara, não a atitude servil de um pescador, correta e normal. Depressa demais, refletira ele, convencido agora de que Misamoto era mais ou menos o que queria que os outros vissem.
— Compreende direito o que deve fazer?
— Compreendo, Sire. E juro que não falharei, Sire.
— Sei disso. Meus guardas têm ordens para matá-lo no instante em que sair do meu lado, ou se tornar desastrado... ou indiscreto.
— Vamos fazer uma pausa de dez minutos — disse Sir William, cansado. — Comunique isso a eles, Johann.
Depois da tradução, Johann Favrod, o intérprete suíço, informou:
— Eles perguntam por quê. — Ele deixou escapar um bocejo. — Desculpe. Parece que eles acham que já discutiram todas as questões, etc, etc, que vão transmitir sua mensagem etc, etc, e voltarão a se reunir em Kanagawa com a resposta dos superiores etc, etc, dentro de sessenta dias, como foi sugerido antes etc, etc.
O russo murmurou:
— Deixe-me assumir o comando da esquadra por um dia, e resolverei essa questão e acabarei com todo o problema.
— É bem possível — concordou Sir William, para depois acrescentar, num russo fluente: — Desculpe, meu caro conde, mas estamos aqui para uma solução diplomática, de preferência.
Voltando a falar em inglês, ele instruiu:
— Mostre a eles onde esperar, Johann. Vamos nos retirar, senhores?
Sir William levantou-se, fez uma mesura rígida e seguiu na frente para outra sala. Ao passar por Phillip Tyrer, ele murmurou:
— Fique com os japoneses, mantenha os olhos e ouvidos bem abertos. Todos os ministros se encaminharam para o urinol no canto da outra sala.
— Santo Deus! — exclamou Sir William, aliviado. — Pensei que minha bexiga ia estourar.
Lun entrou em seguida, seguido por outros criados, carregando bandejas.
— Chá e sanduíche, senhor. — Ele sacudiu um polegar, na direção da outra sala, desdenhoso. — A mesma coisa para os macacos ali?
— É melhor não deixar que eles o escutem dizer isso. Talvez um deles fale pidgin.
Lun ficou aturdido.
— O que disse, senhor?
— Ora, não importa.
Lun se retirou, rindo para si mesmo.
— Como já esperávamos, senhores, nenhum progresso.
Seratard acendia seu cachimbo, com André Poncin ao lado, satisfeito com a frustração de Sir William.
— O que propõe fazermos, Sir William?
— Qual é o seu conselho?
— É um problema britânico, apenas parcialmente francês. Se dependesse só de mim, já teria acertado como francês... no mesmo dia em que aconteceu.
— Neste caso, é claro, mein Herr, precisaria de uma esquadra igualmente forte — comentou Von Heimrich, em tom brusco.
— Tem toda razão. Na Europa, contamos com muitas, como sabe. E se a política imperial francesa fosse a de vir para cá com uma grande força, como nossos aliados britânicos, teríamos uma ou duas esquadras nestas águas.
— Bem... — Sir William sentia-se muito cansado. — Parece evidente que o conselho coletivo é ser duro com eles.
— Duro e implacável — declarou o conde Zergeyev.
— Ja.
— Isso mesmo — confirmou Seratard. — Pensei que já tinha chegado a essa decisão, Sir William.
O ministro comeu um sanduíche e terminou de tomar o chá.
— Muito bem. Encerrarei esta reunião agora e convocarei outra para as dez horas de amanhã, com um ultimato: um encontro com o xógum dentro de uma semana, os assassinos, a indenização, ou então... com a aprovação conjunta, é claro.
Seratard disse:
— Sugiro, Sir William, tendo em vista as dificuldades que eles podem ter para marcar uma reunião com o xógum, que deixemos isso para mais tarde, até recebermos reforços... e uma razão autêntica para nos encontrarmos com ele.
Afinal, esta manobra é uma demonstração de força para corrigir um erro, não para implementar a política imperial, a de vocês ou a nossa.
— Bem pensado — comentou o prussiano, com visível relutância.
Sir William refletiu sobre as razões por trás da sugestão, mas não pôde encontrar falha ou risco oculto.
— Está certo. Exigiremos uma reunião com o xógum “o mais depressa possível”. Todos concordam?
Os outros acenaram com a cabeça.
— Com licença, Sir William — interveio André Poncin, muito amável. — Posso sugerir que eu lhes transmita sua decisão... pois reiniciar a reunião e encerrá-la no instante seguinte seria uma perda de prestígio. Concorda?
— Uma boa idéia, André — disse Seratard.
Até onde os outros sabiam, Poncin era apenas um mercador, com algum conhecimento dos costumes japoneses e uma noção da língua, um amigo pessoal e intérprete ocasional. Na verdade, porém, Poncin era um espião de alto nível, empregado para descobrir e neutralizar todos os esforços britânicos, alemães e russos nas ilhas japonesas.
— O que acha, Sir William? — acrescentou o ministro francês.
— Concordo — respondeu Sir William, pensativo. — Você tem toda razão, André. Obrigado. Não devo cuidar disso pessoalmente. Lun!
A porta foi aberta no mesmo instante.
— Pois não, senhor?
— Chame o Sr. Tyrer, agora mesmo! — para os outros, o inglês acrescentou: — Tyrer pode fazer isso por mim, já que é um problema britânico.
Quando Phillip Tyrer retornou à outra sala, dando para o pátio, aproximou-se de Johann com toda a dignidade que era capaz de exibir. Os representantes do Bakufu não lhe dispensaram a menor atenção e continuaram a conversar, Yoshi um pouco apartado, com Misamoto a seu lado, o único que ainda não dissera coisa alguma.
— Johann, transmita a eles os cumprimentos de Sir William e diga-lhes que a reunião insatisfatória de hoje foi suspensa. Devem voltar amanhã, às dez horas, para o que Sir William espera que seja uma conclusão satisfatória para esse problema injustificado: queremos os assassinos, a indenização e a garantia de uma reunião o mais depressa possível com o xógum, ou vamos tomar outra atitude.
Johann empalideceu.
— Exatamente assim?
— Isso mesmo, exatamente assim. — Tyrer também se cansara da indecisão, não podia esquecer a morte violenta de John Canterbury, os graves ferimentos de Malcom Struan e o terror de Angelique. — Diga a eles!
Ele observou Johann comunicar o ultimato curto, num holandês gutural. O intérprete japonês ficou vermelho e iniciou a longa tradução, enquanto Tyrer ouvia atento.
Os Japoneses ouviam com a maior atenção, sem dar a impressão de que o faziam. Quatro se mostraram atentos, o quinto não, o homenzinho de olhos quase fechados, as mãos calosas, o que não notara antes... todos os outros tinham mãos impecáveis. Outra vez esse homem se pôs a sussurrar para o delegado mais jovem e mais bonito, Watanabe, como já ocorrera em diversas ocasiões, ao longo do dia.
Eu bem que gostaria de entender o que eles estão dizendo, pensou Tyrer irritado, mais determinado do que nunca a fazer qualquer coisa que fosse necessária para aprender a língua depressa.
Quando o chocado e embaraçado intérprete terminou, houve silêncio, rompido apenas por respirações profundas, embora todos os rostos permanecessem impassíveis. Durante a tradução, Tyrer percebera que dois dos homens lançavam olhares furtivos para Watanabe.
Por quê?
Agora, eles pareciam esperar. Watanabe baixou os olhos, ocultou-se por trás do leque e murmurou alguma coisa. No mesmo instante, o homem de olhos estreitos ao seu lado se levantou, meio desajeitado, e falou rapidamente. Aliviados, os outros se levantaram também e saíram em silêncio, sem fazerem uma reverência, Watanabe por último, à exceção do intérprete.
— Johann, eles realmente receberam a mensagem desta vez — comentou Tyrer, satisfeito.
— Tem razão. E ficaram bastante irritados.
— É evidente que era isso que Sir William queria.
Johann enxugou o suor da testa. Tinha cabelos castanhos, estatura mediana, era magro, com um rosto forte e vincado.
— Quanto mais cedo você se tornar o intérprete, melhor. Já é tempo de eu voltar para minha casa, nas montanhas, voltar para a neve, enquanto ainda tenho a cabeça intacta. Há muitos desses cretinos por aqui e são imprevisíveis.
— Como intérprete, você ocupa uma posição privilegiada — ressaltou Tyrer, inquieto. — É o primeiro a saber.
— E o portador das más notícias! São todas más notícias, mon vieux. Eles nos odeiam e mal podem esperar para nos expulsar. Fiz um contrato com seu Ministério do Exterior por dois anos, renovável por consentimento mútuo. O contrato expira dentro de dois meses e três dias e vou esquecer meu inglês.
Johann foi até o aparador, perto da janela, e tomou um longo gole da cerveja que pedira, em lugar do chá.
— Não haverá renovação, qualquer que seja a tentação. — Ele exibiu de repente um sorriso radiante. — Merde, terei um problema para sair daqui.
Tyrer riu da expressão maliciosa do intérprete.
— Musume? Sua garota?
— Você aprende depressa.
No pátio, os delegados do Bakufu embarcavam em seus palanquins. Toda a atividade por ali cessara, os seis jardineiros ajoelhados, imóveis, a cabeça na terra-Misamoto esperava ao lado de Yoshi, consciente de que não continuaria de pé se cometesse qualquer erro, torcendo desesperado para ter passado no primeiro teste.
De uma forma ou de outra, serei útil a esse desgraçado, pensou ele, em inglês, até poder embarcar num navio americano e poder retornar ao paraíso. Contarei ao capitão que fui seqüestrado da equipe de Harris por essa escória...
Ele levantou os olhos, descobriu que Yoshi o observava e ficou imóvel.
— O que é, lorde?
— O que você estava pensando?
— Torcia para ter sido de alguma utilidade, Sire. Eu... Cuidado com quem está atrás, Sire!
André Poncin descia os degraus, aproximando-se de Yoshi. No mesmo instante, os guardas formaram um cordão protetor. Sem medo, Poncin fez uma mesura polida e disse, num japonês hesitante, embora compreensível:
— Senhor, permite que eu transmita uma mensagem de meu superior, o ministro francês?
— Que mensagem?
— Ele diz que talvez gostaria de conhecer o interior do navio a vapor, as máquinas, os canhões. Formula um humilde convite, ao senhor e outras autoridades.
Poncin esperou, não viu qualquer reação, apenas um aceno imperioso do leque, dispensando-o.
— Obrigado, lorde. Por favor, desculpe-me.
Ele se afastou, convencido de que acertara em cheio. No primeiro degrau, notou que Tyrer o observava da janela da sala de audiências, reprimiu uma imprecação e acenou com a mão. Tyrer respondeu ao aceno.
Depois que o último samurai deixou o pátio, os jardineiros recomeçaram a trabalhar. Um deles levantou a pá para o ombro e se afastou, claudicando. Hiraga, a cabeça envolta por um pano velho e imundo, o quimono esfarrapado e sujo, sentia-se feliz com o sucesso de sua espionagem. Agora sabia como, quando e onde o ataque do dia seguinte deveria ser desfechado.
Mais uma vez seguro em seu palanquim, de volta para o castelo — com Misamoto, por ordem sua, sentado na outra extremidade — Yoshi deixou a mente vaguear. Ainda estava atônito pela maneira descortês com que haviam sido dispensados, não furioso como os outros, apenas paciente: a vingança será aplicada do modo que eu escolher.
Um convite para visitar um navio de guerra, conhecer suas máquinas? Era Uma oportunidade que não se podia perder. Perigoso aceitar, mas não havia outro Jeito. Seus olhos focalizaram Misamoto, que espiava por uma janela estreita do Palanquim. O prisioneiro Misamoto se mostrara útil até agora. Estupidez dos intérpretes não traduzirem com precisão. Estupidez do russo nos ameaçar. Estupidez de todos serem tão grosseiros. Estupidez do servo chinês nos chamar de macacos. Muita estupidez. Pois cuidarei de todos eles, alguns mais cedo do que outros.
Mas como lidar com os líderes e sua esquadra?
— Misamoto, decidi não mandá-lo de volta para a casa da guarda. Por vinte dias, ficará alojado com meus servidores e continuará a aprender como se comportar que nem um samurai.
Misamoto baixou a cabeça para o chão do palanquim no mesmo instante.
— Obrigado, lorde.
— Se você me agradar. E agora me diga: o que vai acontecer amanhã? Misamoto hesitou, apavorado: a primeira regra da sobrevivência era nunca ser o portador de más notícias para qualquer samurai, nunca dizer nada, nunca informar qualquer coisa voluntariamente, mas se obrigado, responder apenas o que acha que o outro quer ouvir. Ao contrário do que acontece lá, na América, o paraíso neste mundo.
A resposta é óbvia, ele teve vontade de gritar, recaindo em seu hábito de pensar em inglês — a única coisa que o mantivera são durante os anos de confinamento —, se você visse como eles tratavam uns aos outros na família gai-jin com que vivi, como me tratavam, um servo, é verdade, mas mesmo assim como um homem, melhor do que jamais sonhei ser possível, como cada homem pode andar de cabeça erguida, e carregar uma faca ou pistola, exceto a maioria dos pretos, como todos são impacientes em resolver um problema, a fim de passar, apressados, para o próximo — se necessário pelo punho, pistola ou canhoneio —, onde quase todo mundo é igual perante a lei, e não há os nojentos daimios ou samurais, que podem matar um homem quando assim desejam...
— Responda com a verdade, sempre, se preza a sua vida — recomendou Yoshi, suavemente, percebendo seus pensamentos.
— Claro, lorde, sempre. — O apavorado Misamoto tratou de obedecer. — Sinto muito, lorde, mas a menos que eles consigam o que querem, acho que vão... vão arrasar Iedo.
Concordo, pensou Yoshi, mas só se formos estúpidos.
— Seus canhões podem fazer isso?
— Podem, sim, lorde. Não o castelo, mas a cidade seria incendiada.
O que seria um estúpido desperdício dos recursos do clã Toranaga. Teríamos de substituir a todos, camponeses, artesãos, cortesãos e mercadores que nos servem.
— E como você lhes daria um pouco de sopa, mas sem peixe? — indagou Yoshi.
— Perdoe-me, lorde, mas não sei.
— Pois então pense a respeito. E me dê sua resposta ao amanhecer.
— Mas... sim, lorde.
Yoshi recostou-se nas almofadas de seda e concentrou seus pensamentos na reunião do dia anterior. Ao final, Anjo tivera de retirar a ordem de evacuar o castelo, pois sem o apoio da maioria a determinação não seria válida... e ele, como o guardião formal, proibira a partida do xógum.
Ganhei desta vez, mas apenas porque aquele velho tolo e teimoso do Anjo insistiu em votar por seu insano plano de ataque, não ficando do meu lado, mas contra mim. Anjo está certo: os outros dois normalmente votam com ele, contra mim. Não pelo mérito, mas porque sou quem sou, o Toranaga que deveria ser o xógum, em vez daquele garoto idiota.
Como se encontrava seguro em seu palanquim, sozinho, a não ser por Misamoto, que não podia saber de seus pensamentos mais profundos, Yoshi permitiu que a mente abrisse o compartimento com a marca de Nobusada, tão secreto, instável, perigoso e permanente.
O que fazer com ele?
Não posso me conter por muito mais tempo. Ele é infantil e agora se tornou uma presa nas mais perigosas de todas as garras, a princesa Yazu, espia do imperador e inimiga fanática do xogunato, que rompeu seu compromisso com o adorado companheiro de infância, um belo e aceitável príncipe, o xogunato que a obrigou ao exílio permanente de Quioto, de toda a sua família e amigos, impondo um casamento com um fraco, cuja ereção é tão inerte quanto uma bandeira na calmaria do verão, e talvez nunca lhe dê filhos.
Agora ela planejou essa visita oficial a Quioto para demonstrar submissão ao imperador, um golpe de mestre que destruirá o equilíbrio de séculos: A autoridade para controlar todo o império é concedida por édito imperial ao xógum e seus descendentes, que é também designado o condestável imperial. Assim, as ordens emitidas pelo xógum para o país são as suas leis.
Uma consulta deve levar a outra, pensou Yoshi, e depois o imperador reina, e nós perdemos o poder. Nobusada jamais compreenderá, os olhos enevoados pela astúcia da mulher.
O que fazer?
Mais uma vez, Yoshi se embrenhou pela trilha que tanto conhecia, mas sobre a qual mantinha sigilo absoluto. Ele é meu suserano legal. Não posso matá-lo diretamente. Está muito bem protegido, a menos que eu me sinta disposto a renunciar à minha vida ao cometer o ato, o que não acontece no momento. Outros meios? Veneno. Mas neste caso eu seria suspeito, com toda razão, e mesmo que pudesse escapar aos grilhões que me cercam — sou tão cativo quanto Misamoto, o país seria mergulhado numa interminável guerra civil, só os gai-jin sairiam vencedores, e o pior de tudo, eu trairia meu juramento de lealdade ao xógum, quem quer que seja, e ao legado.
Tenho de deixar que outros o matem por mim. Os shishi! Poderia ajudá-los, mas é sempre perigoso ajudar inimigos empenhados em sua destruição. Uma outra possibilidade. Os deuses.
Yoshi permitiu-se um sorriso. Sorte e azar, escrevera o xógum Toranaga, aventura e desventura, tais coisas cabem ao céu e às leis naturais; não podem ser alcançadas por orações ou obtidas por qualquer astúcia.
Seja paciente, ele ouviu Toranaga lhe dizer. Seja paciente
Eu serei.
Yoshi fechou esse compartimento, até a próxima vez, e tomou a pensar no conselho. O que lhes direi? Com toda certeza, a esta altura eles já sabem que me encontrei com os gai-jin. Insistirei numa regra inflexível para o futuro: só devemos mandar homens espertos para essas reuniões. O que mais? Posso falar sobre seus soldados, gigantescos, com seus uniformes escarlates, saias curtas e chapéus de plumas, cada homem com sua arma de carregar pela culatra, faiscando de tanto cuidado, armas tão bem tratadas quanto nossas lâminas.
Devo lhes dizer que esses inimigos são tolos, que não têm a menor sutileza e podem ser dominados através de sua impaciência e ódios... Misamoto não me contou o suficiente para concluir que eles são tão rebeldes e irascíveis quanto qualquer daimio? Não, isto guardarei só para mim. Mas lhes direi que nossa delegação vai fracassar amanhã, a menos que encontremos uma desculpa para a protelação que os gai-jin aceitem com prazer.
O que poderia ser?
— Aquele mensageiro, Misamoto — disse Yoshi, descontraído —, o homem alto, de nariz grande. Por que ele falou como uma mulher, usando palavras de mulher? Era meio homem, meio mulher?
— Não sei, Sire. Talvez ele fosse. Há muitos abordo de um navio, Sire, embora eles escondam.
— Por quê?
— Não sei, Sire. É difícil compreendê-los. Não falam abertamente sobre a fornicação, como nós, da melhor posição, ou se um menino é melhor do que uma mulher. Mas sobre falar como uma mulher na língua deles, homens e mulheres falam da mesma forma, isto é, Sire, usam as mesmas palavras, ao contrário dos japoneses. Os poucos marujos que conheci que podiam falar algumas palavras da nossa língua, homens que estiveram em Nagasáqui, falam da mesma maneira que o nariz grande, porque as únicas pessoas com quem falam são as rameiras, aprendem nossas palavras com elas. Não sabem que nossas mulheres falam de maneira diferente dos homens, Sire, que usam palavras diferentes, como as pessoas civilizadas devem fazer.
Yoshi ocultou seu súbito excitamento. Nossas rameiras são o único contato real dos gai-jin, pensou ele. E todos têm suas rameiras, é claro. Portanto, um meio de controlá-los, até mesmo atacá-los, é através de suas rameiras, quer sejam mulheres ou homens.
— Não vou ordenar que minha esquadra bombardeie Iedo sem uma ordem formal por escrito do almirantado ou do Ministério do Exterior — declarou o almirante, o rosto vermelho. — Minhas instruções são para ser circunspecto, como as suas. Nós NÃO estamos numa expedição punitiva.
— Pelo amor de Deus, tivemos um incidente que precisamos enfrentar! Claro que é uma expedição punitiva!
Sir William também se sentia furioso. As oito badaladas da meia-noite soaram. Estavam nos alojamentos do almirante, na nave capitânia, sentados em torno da mesa redonda, e a única outra pessoa presente era o general Thomas Ogilvy. Era uma cabine baixa, espaçosa, de vigas enormes, e pelas janelas da popa podiam-se avistar as luzes das outras embarcações.
— Mais uma vez, devo ressaltar que não acredito que eles façam qualquer coisa sem o uso da força.
— Pois obtenha a ordem, e farei com que eles reajam. — O almirante tornou a encher seu copo com o porto da garrafa de cristal quase vazia. — Thomas?
— Obrigado.
O general estendeu seu copo. Fazendo um esforço para se controlar.
Sir William disse:
— Lorde Russell já nos deu instruções para pressionar o Bakufu por reparações de vinte e cinco mil libras, pelos assassinatos na legação, do sargento e do cabo, o ano passado... e ficará ainda mais furioso com o novo incidente. Eu o conheço, vocês não. — O comentário foi para realçar o efeito. — Não receberei sua aprovação por três meses. E devemos obter uma satisfação agora ou os assassinatos vão continuar. Sem o seu apoio, não posso manobrar.
— Conta com todo o meu apoio, exceto para a guerra. E bombardear a capital deles nos lança em guerra. Não estamos equipados para isso. Não concorda, Thomas?
O general respondeu com extrema cautela:
— Cercar uma aldeia como Hodogaya, eliminar umas poucas centenas de selvagens e acorrentar um pequeno potentado é muito diferente de tentar conquistar esta vasta cidade e atacar o castelo.
Mordaz, Sir William comentou:
— E a sua declaração de que “não há nenhuma operação concebível que as forças sob o meu comando não possam concluir com rapidez”?
Foi a vez do general ficar vermelho.
— O que se diz em público não tem muita relação com a prática, como sabe muito bem! Iedo é diferente.
— Tem toda razão — murmurou o almirante, esvaziando seu copo.
— Então o que vocês propõem?
O silêncio se aprofundou. Subitamente, a haste do copo de Sir William se partiu entre seus dedos, e os outros tiveram um sobressalto, despreparados.
— Droga! — A destruição diminuiu um pouco a sua raiva. Com todo cuidado, Sir William usou o guardanapo para enxugar o vinho. — Sou o ministro aqui. Se achar necessário converter numa ordem, e se vocês se recusarem a obedecer, o que têm todo direito de fazer, é claro, pedirei para que sejam imediatamente substituídos.
O pescoço do almirante ficou roxo.
— Já encaminhei os fatos ao almirantado. Mas, por favor, não me interprete de uma maneira errada: estou mais do que disposto a procurar vingança pela morte do Sr. Canterbury e o ataque aos outros. Se for por um ataque a Iedo, apenas peço a ordem por escrito, como já disse. Não há pressa. Agora ou daqui a três meses, esses selvagens pagarão, como exigimos, com esta cidade ou uma centena de outras.
— Tem toda razão, eles pagarão — disse Sir William, levantando-se. Dou só mais uma informação necessária, antes de você se retirar: não posso prometer que permaneceremos ancorados aqui por muito mais tempo. Minha esquadra está desprotegida, o fundo do mar é perigosamente baixo, o tempo tende a piorar, e estaremos mais seguros em Iocoama.
— Por quanto tempo mais é seguro?
— Um dia... não sei. Não tenho controle sobre o tempo, que neste mês é imprevisível, como sabe muito bem.
— Claro que sei. Muito bem, já vou desembarcar. Peço a presença dos dois na reunião em terra às dez horas da manhã. Por gentileza, dispare uma salva ao amanhecer. Thomas, por favor, desembarque com duzentos dragões, para garantir a área do cais.
— Posso saber por que mais duzentos homens? — indagou o general. — já tenho uma companhia em terra.
— Talvez eu queira tomar alguns reféns. Boa noite.
Sir William saiu, fechou a porta. Os dois homens ficaram olhando para a porta.
— Ele fala sério?
— Não sei, Thomas. Mas com o honorável impetuoso William sanguinário Aylesbury, nunca se sabe.
Na mais profunda escuridão, outro destacamento de samurais fortemente armados saiu pelo portão principal do castelo, correu em silêncio pela ponte levadiça, atravessou a outra ponte, sobre o fosso mais largo, e seguiu para a área da legação. Outras companhias também convergiam para lá. Mais de dois mil samurais tomaram posição, com outros mil prontos para avançarem, quando ordenados.
Sir William subia do cais, com sua guarda, um oficial e dez Highlanders, através das ruas desertas. Sentia-se deprimido e cansado, pensando no dia seguinte, tentando conceber uma maneira de sair do impasse. Outra esquina, mais outra. Ao final daquela rua, ficava o espaço aberto que se tinha de atravessar para alcançar a legação.
— Santo Deus, senhor, olhe ali!
O espaço se encontrava apinhado de samurais silenciosos, imóveis, observando-os. Todos fortemente armados. Espadas, arcos, lanças, uns poucos mosquetes. Um ligeiro ruído, e o grupo de Sir William olhou ao redor. A rua por trás também fora bloqueada por guerreiros silenciosos.
— Essa não! — murmurou o jovem oficial.
— É mesmo uma situação difícil.
Sir William suspirou. Aquela podia ser uma solução, mas que Deus tivesse piedade deles. Se fossem atacados, a esquadra reagiria.
— Vamos seguir em frente. Mande seus homens se prepararem para a luta, se for necessário. Soltem as travas de segurança.
Ele foi à frente, não se sentindo bravo, mas apenas com a sensação de que a alma saíra de seu corpo, observava a si mesmo e aos outros como se estivesse num ponto mais adiante da rua. Havia uma passagem estreita entre os samurais, com um oficial na frente. Quando Sir William chegou a três metros de distância, o homem fez uma mesura polida, de igual para igual. Sir William observou-se a levantar seu chapéu com a mesma polidez e continuar a andar. Os soldados o seguiram, empunhando seus rifles, os dedos nos gatilhos.
E foram subindo pela ladeira. O mesmo silêncio, a mesma vigilância. Até o portão. Uma vasta concentração de samurais, imóveis. Mas nenhum no pátio da legação. O pátio e os jardins se achavam ocupados por Highlanders, armados e prontos para o combate, com outros no telhado e nas janelas. Soldados abriram o portão para Sir William entrar e o trancaram em seguida.
Tyrer e os outros esperavam no vestíbulo, alguns em trajes de dormir, alguns parcialmente vestidos, e se agruparam em torno de Sir William.
— Por Deus, Sir William — disse Tyrer, em nome de todos os outros — ficamos apavorados com a idéia de que poderiam tê-lo capturado.
— Há quanto tempo eles estão aqui?
— Chegaram por volta de meia-noite, senhor — informou um oficial. — Tínhamos sentinelas lá embaixo. Quando eles se aproximaram, os rapazes nos deram o aviso e recuaram. Não tínhamos como alertá-lo ou transmitir qualquer sinal para a esquadra. Se eles esperarem até o amanhecer poderemos resistir até recebermos reforços e a esquadra iniciar o bombardeio.
— Ótimo — disse Sir William, calmamente. — Neste caso, sugiro que todos devemos nos recolher, deixando uns poucos homens de guarda. Os outros podem ir dormir.
— Como, senhor? — murmurou o oficial, perplexo.
— Se eles quisessem nos atacar, já o teriam feito, sem o tratamento silencioso e o exibicionismo. — Sir William percebeu que todos o fitavam, aturdidos, e sentiu-se um pouco melhor, não mais tão deprimido. Encaminhou-se para a escada. — Boa noite.
— Mas, senhor, não acha...
A frase não foi concluída. Sir William suspirou, cansado.
— Se deseja manter seus homens acordados, faça-o, por favor... se isso o deixa mais feliz.
Um sargento entrou apressado no vestíbulo e avisou:
— Senhor, eles estão indo embora! Os japoneses começaram a se retirar! Olhando pela janela do patamar, Sir William constatou que os samurais estavam mesmo desaparecendo na escuridão da noite.
Pela primeira vez, ele teve medo. Não esperava que sumissem assim. Em poucos momentos, a ladeira ficou deserta, o espaço lá embaixo vazio. Mas ele teve o pressentimento de que não haviam ido muito longe, que cada vão de porta e rua transversal se achavam apinhados de inimigos, esperando para desfechar o ataque.
Graças a Deus que os outros ministros e a maioria dos nossos homens se encontram a bordo dos navios, sãos e salvos. Graças a Deus, pensou Sir William, continuou a subir a escada, em passos bastante firmes, para encorajar os homens que o observavam.
11
Quinta-feira, 18 de setembro:
A estalagem dos quarenta e sete ronin ficava numa viela suja, não muito longe do castelo de Iedo, afastada da estrada de terra, e quase escondida por uma cerca alta e malcuidada. Da rua, a estalagem parecia sórdida e ordinária. Mas o interior era opulento, a cerca sólida. Jardins bem cuidados cercavam o prédio amplo, de um só andar, e os muitos bangalôs isolados, de um só cômodo, erguidos sobre estacas baixas, e reservados a hóspedes especiais... e para a privacidade. Os frequentadores da estalagem eram prósperos mercadores, mas também era uma casa segura para determinados shishi.
Agora, pouco antes do amanhecer, prevalecia o sossego, com todos os fregueses, cortesãs, mama-san, criadas e servos dormindo. Exceto pelos shishi. Em silêncio, eles se armavam.
Ori sentava na varanda de um dos bangalôs , o quimono arriado na cintura. Com extrema dificuldade, trocava a bandagem do ferimento no ombro. O ferimento exibia agora uma coloração vermelha acentuada e se tornara bastante doloroso. Todo o seu braço latejava e ele sabia que precisava urgente de um médico. Mesmo assim, dissera a Hiraga que era perigoso demais trazer um até ali ou sair à sua procura:
— Posso ser seguido. Não devemos nos arriscar, pois há muitos espiões por aqui. Iedo é um santuário de Toranaga.
— Concordo. Volte para Kanagawa.
— Depois que a missão for concluída.
O dedo de Ori escorregou e roçou no ferimento infeccionado, provocando uma pontada de dor que percorreu todo o seu corpo. Não há pressa, um médico pode lancetar e remover todo o veneno, pensou ele, apenas parcialmente acreditando nisso. Karma. E karma se continuar a apodrecer. Ele estava tão distraído que não notou o ninja passar por cima da cerca e se erguer por trás dele. Seu coração disparou no susto quando o ninja pôs a mão em sua boca, a fim de impedir qualquer barulho.
— Sou eu! — sussurrou Hiraga, furioso, soltando-o em seguida. — Eu poderia tê-lo matado vinte vezes.
— É verdade. — Ori forçou um sorriso e apontou. Entre as moitas, havia outro samurai, a flecha em posição no arco.— Mas é ele quem monta guarda, não eu.
— Otimo. — Hiraga cumprimentou o guarda, apaziguado, removeu a máscara que cobria seu rosto. — Os outros estão lá dentro e prontos, Ori?
— Estão, sim.
— E seu braço? — Não sinto nada.
Ori suspirou e o rosto se contorceu em dor, no momento em que Hiraga estendeu a mão e apertou seu ombro. Lágrimas afloraram aos olhos, mas ele permaneceu em silêncio.
— Você seria um peso morto. Não pode ir conosco hoje. Terá de voltar para Kanagawa.
Hiraga atravessou a varanda, entrou no bangalô. Desanimado, Ori seguiu-o. Havia onze shishi sentados no tatame, armados. Nove eram de Choshu, compatriotas de Hiraga. Os dois recém-chegados eram da patrulha de Mori que os deixara passar no dia anterior, para mais tarde desertarem e pedirem permissão para se juntarem a eles. Hiraga sentou, exausto.
— Não consegui chegar nem a duzentos passos do templo ou da legação. Não poderemos atirar e matar lorde Yoshi e os outros quando chegarem. Teremos de emboscá-los em outro lugar.
— Com licença, Hiraga-san, mas tem certeza de que é mesmo lorde Yoshi? — indagou um dos homens de Mori.
— Tenho, sim.
— Ainda não posso acreditar que ele se arriscasse a sair do castelo com uns poucos guardas só para se encontrar com alguns gai-jin fedorentos, mesmo disfarçado. Ele é esperto demais, não pode deixar de saber que é o supremo alvo para os shishi, abaixo apenas do xógum, maior até do que o traidor Anjo.
— Ele não é tão esperto assim e pude reconhecê-lo — garantiu Hiraga, que não confiava nos samurais de Mori. — Já estive perto dele uma ocasião, em Quioto. Qualquer que fosse o seu motivo, ele só se arriscou a ir à legação sem guardas uma vez, não duas. Deve ser por isso que a área fervilha de samurais do Bakufu. Mas, amanhã, ele tornará a sair do castelo. É uma oportunidade que não podemos perder. Podemos fazer uma emboscada em outro lugar? Alguém sabe?
— Depende do número de samurais no cortejo — disse um dos samurais de Mori. — Se houver uma reunião, como querem os gai-jin.
— Se? Lorde Yoshi tentaria algum estratagema?
— Eu tentaria, se estivesse em seu lugar. E ele é conhecido como Raposa.
— O que você faria?
O homem coçou o queixo.
— Encontraria algum jeito de adiar o encontro.
Hiraga franziu o rosto.
— Mas se ele for à legação, como ontem, onde ficaria mais vulnerável?
— Ao sair de seu palanquim — respondeu Ori. — No pátio dos gai-jin.
— Não podemos chegar lá, mesmo com um ataque suicida. O silêncio se prolongou, até que Ori voltou a falar:
— Quanto mais próximo dos portões do castelo, mais seguros seus comandantes se sentiriam, menos seriam os guardas mais próximos, e menor a vigilância na entrada... ou na volta.
Hiraga acenou com a cabeça, satisfeito, sorriu para Ori e disse a um de seus compatriotas:
— Assim que a casa despertar, diga a mama-san que chame um médico para Ori, em segredo e depressa.
Ori se apressou em protestar:
— Concordamos que não seria seguro.
— Alguém como você deve ser protegido. Sua idéia é perfeita.
Ori fez uma reverência em agradecimento.
— Melhor eu ir ao médico, neh?
À primeira claridade do amanhecer, Phillip Tyrer meio que correu, meio que andou até o cais, acompanhado por dois Highlanders, um sargento e um soldado.
— Por Deus, Phillip, dois guardas são mais do que suficientes — dissera Sir William, um momento antes. — Se os japoneses tencionam atacar toda a nossa guarnição, não haverá guardas em número suficiente para protegê-lo. Mas a mensagem tem de ser entregue a Ketterer e você é o escolhido. Adeus!
Como Sir William, ele também teve de passar por centenas de samurais silenciosos, que haviam voltado pouco antes do amanhecer. Ninguém o molestou, nem mesmo pareciam admitir a sua presença, a não ser por ocasionais desvios dos olhos. E agora, à sua frente, surgia o mar. Tyrer acelerou os passos.
— Alto, quem vem aí ou vou explodir sua cabeça! — gritou uma voz das sombras.
Tyrer parou de repente, quase caiu, o coração palpitando de medo.
— Quem você pensa que poderia ser? Sou eu, com uma mensagem urgente para o almirante e o general!
— Desculpe, senhor.
Tyrer embarcou apressado num cúter a caminho da nave capitânia. Sentia-se tão contente por ter escapado da armadilha da legação que quase podia chorar, e exortou os remadores a serem mais rápidos, subindo pela escada de dois em dois degraus.
— Olá, Phillip. — Marlowe era o oficial de vigia no convés principal. — O que aconteceu?
— Olá, John. Onde está o almirante? Tenho um despacho urgente de Sir William para ele. A legação foi cercada por milhares de bastardos.
— Santo Deus! — Na maior ansiedade, Marlowe desceu na frente por uma escada. — Como você escapou?
— Fui andando. Eles me deixaram passar por suas fileiras, sem dizer nada, nenhum deles, apenas me deixaram passar. Não me importo de lhe dizer que fiquei apavorado... eles estão por toda parte, menos dentro de nossos muros e no cais.
A sentinela dos fuzileiros, diante da porta do camarote, bateu continência.
— Bom dia, senhor.
— Despacho urgente para o almirante.
No mesmo instante, uma voz brusca passou pela porta:
— Então, Marlowe, traga-o logo, pelo amor de Deus! Despacho de quem?
Marlowe suspirou, abriu a porta.
— De Sir William, senhor.
— O que aquele idiota fe... — O almirante Ketterer interrompeu a frase no meio, ao perceber a presença de Tyrer. — Ah, você é o assistente dele, não é mesmo?
— Aprendiz de intérprete, senhor, Phillip Tyrer. — Ele estendeu a carta. — Ahn... com os cumprimentos de Sir William, senhor.
O almirante abriu a carta. Usava um camisolão comprido de flanela e touca de dormir, com uma borla. Ajeitou os óculos de leitura e contraiu os lábios enquanto lia:
Considero melhor cancelar sua participação na reunião de hoje, assim como a do general e dos outros ministros. Estamos totalmente cercados por centenas, se não mesmo milhares de samurais armados. Até agora, eles não cometeram nenhum ato de hostilidade e ainda não impediram a saída de ninguém. Não resta a menor dúvida de que eles têm o direito de pôr suas tropas onde quiserem... talvez seja apenas um blefe para nos deixar nervosos. Como segurança, no entanto, tratarei sozinho com o Bakufu, se é que vão aparecer, como exigimos. (Se isso ocorrer, hastearei um estandarte azul e me empenharei em mantê-lo informado de todos os acontecimentos.) Se a delegação do Bakufu não vier, esperarei por mais um ou dois dias, e depois talvez tenha de ordenar uma retirada ignominiosa. Enquanto isso, se avistar a bandeira hasteada ao contrário, significará que fomos atacados. Poderá então assumir qualquer ação que julgar conveniente. Com todo o respeito...
O almirante releu a carta, com uma atenção redobrada, e depois disse, decidido:
— Sr. Marlowe, peça ao comandante e ao general para virem se encontrar aqui comigo imediatamente. Transmita a seguinte mensagem a todos os navios: “Devem assumir sem demora posições para entrar em ação. Todos os comandantes devem se apresentar na nave capitânia ao meio-dia.” Em seguida, envie um avis aos ministros, pedindo que façam a gentileza de virem se encontrar comigo aqui o mais depressa possível. Sr. Tyrer, vá comer alguma coisa, e esteja pronto levar uma resposta dentro de poucos minutos.
— Mas não acha, senhor...
O almirante já berrava para a porta fechada:
— Johnson!
Seu ordenança abriu a porta.
— O barbeiro se encontra a caminho, senhor, seu uniforme passado, o desjejum pronto no instante em que sentar à mesa, o mingau quente!
O olhar de Ketterer desviou-se para Marlowe e Tyrer.
— O que ainda estão esperando?
Em Iocoama, o cúter da Struan — a única pequena embarcação a vapor impulsionada por hélice que existia no Japão — encostou no cais, com o vento firme encapelando um pouco o mar cinzento sob o céu nublado. Jamie McFay subiu os degraus com a maior agilidade, atravessou-o apressado e seguiu para o prédio de dois andares que dominava a High Street. Ainda não eram oito horas da manhã, mas ele já saíra para receber o navio que trazia a correspondência, de dois em dois meses, a fim de buscar as cartas, despachos e jornais, que seu assistente chinês começava a empilhar numa carroça. McFay tinha na mão dois envelopes, um aberto, o outro lacrado.
— Bom dia, Jamie.
Gabriel Nettlesmith interceptou-o, afastando-se de um pequeno grupo de mercadores sonolentos, esperando por seus barcos. Era um homem baixo, gorducho, desmazelado, malcheiroso, recendendo a tinta, roupas sujas e aos charutos que fumava sem parar, editor e redator do Yokohama Guardian, o jornal da colônia, um dos muitos na Ásia que a Struan possuía, do conhecimento geral ou em segredo.
— O que há de errado?
— Muita coisa... se quiser, acompanhe-me para o desjejum. Sinto muito, mas não posso parar.
Mesmo sem a esquadra ancorada ali, a enseada já tinha o maior movimento, com cúteres se deslocando para cima e para baixo e mais de meia centena de navios mercantes, outros flutuando em torno do navio de correspondência, ainda outros seguindo em sua direção ou voltando. Jamie foi o primeiro a desembarcar, uma questão de princípio para ele, uma utilidade nos negócios, já que os preços de produtos essenciais, sempre escassos, podiam oscilar bastante, dependendo da correspondência. O vapor de correspondência levava nove dias para ir direto de Hong Kong a Iocoama, cerca de onze dias quando passava por Xangai, o tempo permitindo. A correspondência da Inglaterra demorava de oito a doze semanas, o tempo e os piratas permitindo, e o dia de chegada da correspondência era sempre um momento de ansiedade, alegria ou tristeza ou quaisquer outros sentimentos intermediários, mas também um momento aguardado, bem-vindo, pelo qual até se rezava.
Norbert Greyforth, da Brock and Sons, a principal rival da Struan, ainda se encontrava a cem metros do cais, sentado confortavelmente no meio de seu barco, impelido por remadas vigorosas, observando-o através de uma luneta. McFay sabia que era observado, mas hoje não se incomodava. Greyforth vai saber em breve, se é que já não sabe, pensou ele, sentindo um medo excepcional. Medo por Malcolm Struan, pela companhia, por si mesmo, pelo futuro e por sua ai-jin — pessoa amada — que o esperava com toda paciência na pequena casa em Yoshiwara, no outro lado do canal, fora da cerca.
Ele aumentou o ritmo das passadas. Havia três ou quatro bêbados caídos na sarjeta da High Street, como velhos sacos de carvão, outros espalhados aqui e ali, pela beira do cais. McFay passou por cima de um homem, evitou um bando ruidoso de marujos ébrios a caminho de seus barcos, cambaleando, galgou apressado os degraus para o enorme vestíbulo do prédio da companhia, subiu a escada para o segundo andar e atravessou o corredor que levava aos aposentos no fundo. Abriu a porta sem fazer barulho e deu uma espiada.
— Olá, Jamie — disse Malcolm Struan, da cama.
— Olá, Malcolm. Bom dia. Eu não sabia se já tinha acordado.
McFay entrou no quarto, fechou a porta, notou que a porta do quarto ao lado se encontrava entreaberta e se aproximou da enorme cama de teca, com quatro colunas, trazida de navio, pois todos os móveis vinham de Hong Kong ou da Inglaterra. Malcolm Struan tinha o rosto pálido e contraído, repousando sobre travesseiros. A viagem de barco desde Kanagawa, no dia anterior, esgotara uma boa parte de suas preciosas forças, embora o Dr. Babcott o mantivesse sedado.
— Como se sente hoje?
Struan fítou-o atentamente, os olhos azuis parecendo desbotados, bem fundos, por cima de enormes olheiras.
— A correspondência de Hong Kong não é boa, hem?
As palavras eram incisivas e não deixavam a McFay a possibilidade de transmitir a notícia com mais facilidade.
— Sinto muito. Ouviu o sinal de canhão?
Sempre que o navio de correspondência aparecia, era costume o capitão do porto disparar um tiro de canhão, a fim de alertar a colônia... um procedimento que se repetia no mundo inteiro, onde quer que houvesse colônias.
— Ouvi, sim — respondeu Struan. — Antes de me dar a má notícia, feche aquela porta, e me traga o urinol.
McFay obedeceu. Do outro lado da porta havia uma sala e, mais além, outro cômodo, o melhor de todo o prédio, normalmente reservado ao tai-pan, o pai de Malcolrn. No dia anterior, por insistência de Malcolm, e com sua feliz submissão, Angelique fora instalada ali. No mesmo instante, a notícia circulara pela colônia, gerando outras notícias e rumores, de que Angelique se tornara a nova dama do lampião; como todos os homens sonhavam em subir à sua cama, as aposta eram de que se encontrava junto de Malcolm por mais de um motivo.
— Vocês enlouqueceram — declarara McFay a alguns, no clube, durante a noite passada. — O pobre coitado se acha num estado lamentável.
O Dr. Babcott garantira:
— Ele vai estar de pé e andando muito antes do que você imagina.
— Já posso ouvir os sinos nupciais! — exclamara alguém.
— Drinques por conta da casa! — gritara outro, expansivo. — Temos um casamento aqui, nosso primeiro casamento!
— Já tivemos muitos casamentos, Charlie. Esqueceu as nossas musumes?
— Ora, pelo amor de Deus! Elas não contam. Estou me referindo a um verdadeiro casamento na igreja... um batizado cristão...
— Por Jeová, insinua por acaso que já tem alguma coisa no forno?
— O rumor é de que os dois se comportavam como pombinhos no navio, ao virem para cá... não que eu o culpe por isso...
— Mas eles nem mesmo estavam noivos nessa ocasião! Diga isso de novo, insultando a honra da moça, e vai pagar caro!
McFay suspirara. Uns poucos murros embriagados, garrafas quebradas e os dois homens foram expulsos, para voltar rastejando, uma hora depois, com uma recepção estrondosa. Ao retornar ao prédio, ele resolvera dar uma olhada, antes de ir para a cama. Malcolm dormia, e Angelique cochilava numa cadeira, ao lado da cama. Acordara-a, gentilmente, e murmurara:
— É melhor ir dormir um pouco, Srta. Angelique. Ele não vai acordar agora.
— Tem razão, Jamie. Obrigada.
McFay observara-a se espreguiçar, como uma jovem felina satisfeita, os cabelos espalhando-se sobre os ombros nus, o vestido de cintura alta e folgado, caindo em dobras, no estilo que a imperatriz Josephine tanto apreciava, cinqüenta anos antes, e que o pessoal da haute couture parisiense tentava agora reintroduzir. Toda ela vibrava com uma força vital que atraía os homens. O quarto dele ficava mais adiante. Durante longo tempo não conseguiu dormir.
O suor aflorou em Struan. Era imenso o esforço para usar o urinol, com pouco resultado por toda a dor, nada de fezes, e apenas um pouco de urina, misturada com sangue.
— Agora, Jamie, pode me dizer qual é a má notícia?
— Deve compreender...
— Pelo amor de Deus, Jamie, diga logo!
— Seu pai faleceu há nove dias, no mesmo dia em que o navio de correspondência deixou Hong Kong, vindo direto para cá, sem passar por Xangai. O funeral seria três dias depois. Sua mãe pede-me para providenciar seu retorno imediato. Nosso navio de correspondência, que levou notícias suas, não vai chegar a Hong Kong antes de quatro ou cinco dias, no mínimo. Sinto muito.
Struan só ouvira a primeira frase. A notícia não era inesperada, mas ainda assim foi um golpe tão violento quanto o ferimento que recebera no flanco.
Sentia-se ao mesmo tempo muito contente e muito feliz, excitado porque finalmente poderia dirigir de fato a companhia, uma função para a qual fora preparado durante toda a sua vida. Há anos que a companhia vinha se esvaindo, há anos que era sustentada pela mãe, que persuadia, adulava, orientava e ajudava o pai, nos momentos difíceis. Tais momentos eram constantes, devido em grande parte à bebida, o medicamento que o pai usava para atenuar as dores de cabeça e os acessos da doença do Happy Valley, a malária, a febre misteriosa e mortal que dizimara a população inicial de Hong Kong, mas agora, às vezes, era contida pelo extrato de uma casca de árvore, o quinino.
Não posso me lembrar de um único ano em que o pai não tenha ficado de cama pelo menos duas vezes, com as tremedeiras, por um mês ou mais, a mente vagueando por dias a fio. Nem mesmo as infusões da casca de cinchona, de valor inestimável, que o avô trouxe do Peru, conseguiram curá-lo, embora impedissem que a febre o matasse, assim como a quase todos os outros. Mas não salvaram a pobre Mary, com apenas quatro anos de idade na ocasião, quando eu tinha sete. Nunca mais esqueci sua morte, seu significado, a fragilidade da vida.
Ele soltou um suspiro profundo. Graças a Deus que nada afetava a mãe, nem a praga, nem a febre, nem a idade, nem o infortúnio, ainda uma jovem, com menos de trinta e oito anos, ainda esguia, depois de sete filhos, um suporte de aço para todos nós, capaz de se sobrepor a todos os desastres, todas as tempestades, até mesmo ao ódio e hostilidade amargos e perpétuos entre ela e o pai, Tyler Brock, que ele apodreça no inferno... nem mesmo a tragédia do ano passado, quando os gêmeos queridos, Rob e Dunross, morreram afogados em Shek-O, onde fica nossa casa de veraneio. E agora o pobre pai. Tantas mortes...
Tai-pan. Agora sou o Tai-pan da Casa Nobre.
— O que foi mesmo que disse, Jamie?
— Apenas disse que sinto muito, tai-pan. Trouxe uma carta de sua mãe. Com algum esforço, Struan pegou o envelope.
— Qual é o meio mais rápido para eu voltar a Hong Kong?
— Pelo Sea Cloud, mas só deve aparecer aqui dentro de duas ou três semanas. Os únicos navios mercantes que temos no porto neste momento são lentos, e nenhum deve seguir para Hong Kong em menos de uma semana. O navio de correspondência seria o meio mais rápido. Pode partir de imediato, mas terá de passar por Xangai na viagem de volta.
Depois de ontem, a perspectiva de uma viagem de onze dias, com o mar encapelado, como era mais do que provável, talvez mesmo com um tufão, horrorizava Malcolm. Mesmo assim, ele disse:
— Fale com o capitão. Convença-o a seguir direto para Hong Kong. O que mais tem na correspondência?
— Ainda não examinei tudo, mas aqui...
Bastante preocupado com a súbita palidez de Struan, McFay estendeu o Hong Kong Observer.
— Receio que só haja más notícias. A guerra civil americana está se tornando cada vez mais acirrada, oscilando para um lado e outro, com dezenas de milhares de mortes... batalhas em Shiloh, Fair Oaks, dezenas de lugares, outra em Buli Run com o exército da União derrotado, dizimado. A guerra mudou para sempre, com os novos fuzis de carregar pela culatra, metralhadoras, canhões estriados. O preço do algodão disparou, com o bloqueio da União ao sul. Outro pânico nas bolsas de valores de Londres e Paris... rumores de uma iminente invasão da França pela Prússia. Desde que o príncipe consorte morreu, em dezembro, a rainha Victoria ainda não apareceu em público... corre o rumor de que definha para a morte Retiramos nossas forças do México e agora parece evidente que o doido do Napoleão III está determinado a converter o país num domínio francês. Fome e distúrbios por toda a Europa. — McFay hesitou. — Quer que eu providencie alguma coisa?
— Um estômago novo. — Struan olhou para o envelope em sua mão cerrada. — Deixe-me o jornal, Jamie, vá examinar o resto da correspondência, e depois volte para decidirmos o que fazer antes da minha partida...
Um ligeiro ruído, e ambos olharam para a porta do cômodo adjacente, agora entreaberta. Angelique se encontrava parada ali, com um elegante penhoar sobre a camisola.
— Olá, chéri — disse ela. — Pensei ter ouvido vozes. Como se sente hoje? Bom dia, Jamie. Malcolm, você parece muito melhor. Quer que eu vá buscar alguma coisa?
— Não, obrigado. Entre e sente-se. Está maravilhosa. Dormiu bem?
— Não muito, mas isso não importa — respondeu ela, embora tivesse dormido muito bem. Exalando uma onda de perfume, Angelique se adiantou, tocou de leve no rosto de Malcolm e sentou. — Vamos comer o desjejum juntos?
McFay esforçou-se para desviar sua atenção da moça.
— Voltarei depois de tomar as providências necessárias. Avisarei a George Babcott que você já acordou.
Depois que a porta foi fechada, Angelique alisou a testa de Struan, que pegou sua mão, amando-a. O envelope caiu ao chão. Ela pegou-o. Franziu a testa.
— Por que está tão triste?
— Meu pai morreu.
A tristeza de Malcolm trouxe lágrimas aos olhos da moça. Sempre tivera a maior facilidade para chorar, de exibir lágrimas quase que à vontade, percebendo desde criança seu efeito nas outras pessoas, em particular na tia e no tio. Só precisava pensar na mãe, que morrera ao dar à luz a seu irmão. A tia sempre lhe dizia, chorosa:
— Ora, Angelique, o pobre Gerard é seu único irmão, nunca terá outro, não um irmão inteiro, mesmo que o imprestável do seu pai torne a casar.
— Eu o odeio.
— Não foi culpa dele, pobre menino. Teve um nascimento terrível.
— Não me interessa! Foi ele quem matou mamãe!
— Não chore, Angelique...
E agora Struan disse as mesmas palavras, as lágrimas fáceis porque Angelique sentia uma pena sincera dele. Pobre Malcolm, perder o pai... ele era simpático, foi bom comigo. O pobre Malcolm tenta se mostrar corajoso. Muito em breve ele ficará bom, e agora é mais fácil permanecer ao seu lado, pois o cheiro já desapareceu ou quase todo. Um súbito espectro de seu próprio pai aflorou na mente de Angelique e ela ouviu suas palavras:
— Não se esqueça de que esse Malcolm vai herdar tudo em breve, os navios e o poder...
Não quero pensar nisso. Nem... nem na outra coisa.
Ela enxugou os olhos.
— Pronto. Agora me conte tudo.
— Não há muito o que contar. Meu pai morreu. O funeral foi há alguns dias e tenho de voltar a Hong Kong o mais depressa possível.
— Claro... mas não até se recuperar. — Angelique inclinou-se para a frente, beijou-o de leve. — O que fará quando chegarmos lá?
Struan respondeu depois de uma breve pausa:
— Sou o herdeiro, o tai-pan.
— O tai-pan da Casa Nobre? — Ela fez com que sua surpresa parecesse genuína e acrescentou, delicada: — Malcolm, meu caro, é uma coisa horrível a morte de seu pai, mas... mas, de certa forma, não era inesperado, não é mesmo? Meu pai me contou que ele estava doente há muito tempo.
— Era de fato esperado.
— É triste, mas... tai-pan da Casa Nobre, apesar de tudo, permita que eu seja a primeira a lhe dar os parabéns.
Angelique fez uma mesura elegante, como se estivesse na presença de um rei, e tornou a sentar, satisfeita consigo mesma. Malcolm observava-a de uma maneira estranha.
— Oque é?
— Apenas que você me fez sentir muito bem, orgulhoso. Vai casar comigo?
O coração de Angelique parou por uma fração de segundo, o rosto corou. Mas a mente ordenou-lhe que fosse prudente, não se apressasse, e ela ponderou se deveria se mostrar tão solene quanto ele, ou dar vazão à exuberância explosiva que experimentava pela pergunta e sua vitória, e fazê-lo sorrir.
— Ah! — exclamou ela, jovial, provocando-o, enquanto se abanava com o lenço. — Está bem, casarei com você, monsieur Struan, mas apenas...
Uma hesitação, e ela tratou de acrescentar:
—... apenas se ficar bom depressa, jurar que vai me obedecer sempre, me amar até a loucura, construir para nós um castelo no Peak, em Hong Kong, um palácio nos Champs-Elysées, aprontar um clíper como leito nupcial, fazer um quarto de bebê em ouro e comprar uma propriedade rural de um milhão de hectares!
— Fale sério, Angelique. Estou sendo sério.
E eu também, pensou ela, exultante porque agora o via sorrir. Um beijo lhe deu, mas desta vez nos lábios, pleno de promessas.
— Juro por Deus que não estou brincando. Quer casar comigo? — Palavra fortes, mas ele ainda não tinha forças para sentar na cama, estender as mãos puxá-la para seu peito. — Por favor.
Os olhos de Angelique ainda zombavam.
— Talvez, quando você estiver melhor... e apenas se jurar que vai me obedecer, me amar...
— Uma obediência total, se é isso o que você quer.
— É, sim. Uma obediência total... e todo o resto. — Outra vez o sorriso adorável. — Talvez sim, monsieur Struan, mas primeiro devemos nos conhecer melhor e depois combinar o noivado, e em seguida, monsieur le tai-pan de la Noble Maison... quem sabe?
A alegria dominou-o.
— Então a resposta é sim?
Os olhos de Angelique observavam-no, fazendo-o esperar. E só depois de um momento é que ela disse, com toda a ternura de que era capaz:
— Considerarei o pedido a sério... mas primeiro deve prometer que ficará bom depressa.
— Juro que ficarei.
Ela tornou a enxugar os olhos.
— E agora, Malcolm, leia a carta de sua mãe, por favor. Ficarei sentada aqui. O coração de Struan batia forte, e o júbilo dissipava a dor. Mas os dedos não eram tão obedientes, e teve alguma dificuldade para romper o lacre.
— Tome aqui, Anjo. Pode fazer o favor de ler para mim?
Angelique rompeu o lacre, esquadrinhou a letra singular, que cobria uma única folha, e começou a ler:
“— Meu amado filho, é com grande tristeza que devo lhe comunicar que seu pai morreu, e agora nosso futuro depende de você. Ele morreu no sono, o pobre coitado, o funeral será daqui a três dias, os mortos devem acalentar os mortos, e nós, os vivos, devemos continuar a luta, enquanto ainda nos resta vida. O testamento de seu pai confirma-o como o herdeiro e tai-pan, mas para que a sucessão seja legal tem de ser efetuada numa cerimônia testemunhada por mim e pelo compradore Chen, de acordo com o legado de seu amado avô. Acerte os nossos interesses japoneses da maneira como discutimos e volte o mais depressa que puder.
Sua devotada mãe.”
Os olhos de Angelique tornaram a se encher de lágrimas, pela súbita fantasia de que era ela quem escrevia para seu filho.
— Isso é tudo? Não tem nenhum pós-escrito?
— Não, chéri, não tem mais nada além de “sua devotada mãe”. Ela se mostra muito corajosa. Eu gostaria de ser tão brava assim.
Indiferente a tudo, exceto às implicações daqueles acontecimentos, ela devolveu a carta, foi até a janela que dava para a enseada, abriu-a, enxugou os olhos uma vez. O ar era fresco, dissipou o cheiro de doença. O que fazer agora?
Forçá-lo a voltar às pressas para Hong Kong... deixar este lugar horrível. Espere um pouco. A mãe vai consentir em nosso casamento? Não sei. O que eu faria se estivesse em seu lugar? Sei que ela não gostou de mim, nas poucas vezes em que nos encontramos, uma mulher alta e distante, embora Malcolm garantisse que ela se comportava assim com todas as pessoas fora da família.
— Espere só até conhecê-la melhor, Angelique. Ela é maravilhosa e forte...
Por trás dela, a porta foi aberta, e Ah Tok entrou, sem bater, com uma pequena bandeja de chá numa das mãos.
— Fleh hoh mah, amo — disse ela, desejando bom dia, com um sorriso radiante, que deixava à mostra dois dentes de ouro, dos quais muito se orgulhava. — O amo dormiu bem?
Em cantonês fluente, Malcolm disse:
— Pare de falar desse jeito.
— Está bem.
Ah Tok era a ama pessoal de Malcolm, cuidava dele desde que nascera, e ditava sua própria lei. Mal reconheceu a presença de Angelique, toda a concentração em Struan. Corpulenta, forte, com cinqüenta e seis anos, usando a tradicional bata branca e calça preta, o longo rabicho descendo pelas costas, a indicar que escolhera ser ama como sua profissão, e por isso jurara permanecer casta pela vida inteira, nunca ter filhos que pudessem desviar sua lealdade. Dois criados cantoneses entraram em seguida, com toalhas quentes e água para o banho. Em voz bem alta, ela ordenou-lhes que fechassem a porta, e depois perguntou a Angelique, incisiva:
— Vai ficar?
— Voltarei mais tarde, chéri.
Struan não respondeu, apenas acenou com a cabeça, retribuiu o sorriso e tornou a olhar para a carta, absorto em pensamentos. Angelique deixou sua porta entreaberta. Ah Tok soltou um resmungo de desaprovação, foi fechar a porta com firmeza, mandou que os dois aprontassem logo o banho, serviu o chá.
— Obrigado, mãe — disse ele, em cantonês, usando o título honorífico costumeiro para uma pessoa tão especial, que o acalentara, carregara e protegera quando era indefeso.
— Má notícia, meu filho — disse Ah Tok, pois a informação já se espalhara pela comunidade chinesa.
— Má notícia.
Struan tomou um gole do chá. O gosto era ótimo.
— Vai se sentir melhor depois que tomar um banho e poderemos conversar. Seu honorável pai já estava atrasado para o encontro com os deuses. Ele se encontra lá em cima agora, e você é o tai-pan. Assim, o que era ruim se tornou bom. Mais tarde, ainda esta manhã, eu lhe trarei um chá extra especial, que farei para curar todos os seus males.
— Obrigado.
— Deve-me um tael de prata pelo medicamento.
— Uma quinta parte.
— Pelo menos a metade.
— Uma quinta parte, mãe. — Ele barganhava sem pensar, de uma forma automática, mas não sem gentileza. — E se insistir, terei de lembrá-la que me deve seis meses de salário pagos adiantados, para o funeral de sua mãe... o segundo.
Um dos criados riu, por trás de Ah Tok, mas ela fingiu não perceber.
— Se assim diz, tai-pan.
Ah Tok usou o título com extrema delicadeza, a primeira vez em que o empregava para Malcolm, observando-o, sem perder nada, e depois acrescentou ríspida, para os dois homens que o lavavam com esponjas, de um modo eficiente e cuidadoso:
— Apressem o trabalho. Meu filho, o tai-pan, terá de suportar seus cuidados ineptos durante o dia inteiro?
Um dos homens teve a insensatez de soltar um grunhido em resposta.
— Tome cuidado, seu fornicador sem mãe — disse ela, suavemente, em um dialeto que Struan não entendia. — Acabe logo com isso, e se cortar meu filho, ao lhe fazer a barba, lançarei um mau-olhado contra você. Trate meu filho como jade imperial, ou seu fruto será pulverizado... e respeite quem é melhor do que você!
— Melhor? Ora, velhota, você vem de Ning Tok, uma aldeia de bosta de tartaruga que só é famosa pelos peidos.
— Um tael de prata diz que esta pessoa civilizada pode vencê-lo cinco em sete vezes no mahjong esta noite.
— Negócio fechado! — respondeu o homem, truculento, embora Ah Tok fosse uma excepcional jogadora.
— Do que estão falando? — perguntou Struan.
— Conversa de criados, meu filho, nada de importante.
Depois que terminaram, eles vestiram-no com um camisolão limpo.
— Obrigado — disse Struan, sentindo-se muito melhor.
Os dois criados fizeram uma reverência polida e se retiraram.
— Ah Tok, tranque a porta, sem fazer barulho.
Ela obedeceu. Seus ouvidos aguçados captaram o farfalhar de saias no cômodo ao lado e Ah Tok resolveu aumentar sua vigilância. A estrangeira era uma prostituta intrometida e diabólica, seu portão de jade tão faminto pelo amo que uma pessoa civilizada quase que podia ouvi-lo a salivar...
— Acenda a vela para mim, por favor.
— Para quê? Sente os olhos doendo, meu filho?
— Não, não é nada disso. Há fósforos de segurança na cômoda.
Os fósforos de segurança, uma recente patente sueca, eram em geral trancados, por serem muito procurados. Assim, tinham venda fácil e o hábito de furta-los às vezes os faziam desaparecer. Os pequenos furtos eram endêmicos na Ásia. Apreensiva, Ah Tok usou um fósforo, sem entender por que não acendiam se não fossem riscados no lado da caixa. Malcolm explicara o motivo, mas ela se limitara a murmurar que se tratava de mais uma magia diabólica dos estrangeiros.
— Onde você quer a vela, meu filho?
Ele apontou para a mesinha-de-cabeceira, ao seu fácil alcance.
— Aqui. E agora me deixe sozinho por algum tempo.
— Mas precisamos conversar. Há muito o que planejar.
— Sei disso. Espere do outro lado da porta e não deixe ninguém entrar até eu chamar.
Resmungando, Ah Tok saiu. Struan ficara exausto, da terrível notícia e de tanta conversa. Mesmo assim, sentindo alguma dor, ajeitou a vela no lado da cama e depois recostou-se por um momento.
Quatro anos antes, ao completar dezesseis anos, a mãe o levara ao Peak para uma conversa particular.
— Agora você já tem idade suficiente para aprender alguns segredos da Casa Nobre. Sempre haverá segredos. Seu pai e eu guardaremos alguns de você até que se torne tai-pan. Alguns eu guardo dele, e alguns de você. Alguns partilharei agora com você, mas não com ele, nem com seus irmãos e irmãs. Em nenhuma circunstância, esses segredos podem ser partilhados com mais alguém. Deve jurar por Deus.
— Eu juro, mãe.
— Primeiro: talvez um dia precisemos transmitir um ao outro uma informação pessoal ou perigosa numa carta particular... nunca se esqueça de que qualquer coisa por escrito pode ser lida por olhos estranhos. Sempre que eu escrever para você, acrescentarei “PS. Eu amo você”. Você também fará a mesma coisa, sempre, sem falha. Mas se não houver nenhum “PS. Eu amo você”, isso significa que a carta contém uma informação importante e secreta, que só deve ser lida por você ou por mim. Observe!
Levantando o papel que preparara, ela acendera alguns fósforos de segurança e os aproximara por baixo, não para queimá-lo, mas apenas chamuscá-lo, linha por linha. Milagrosamente, a mensagem oculta aparecera: Feliz aniversário. Vai encontrar debaixo de seu travesseiro uma ordem de pagamento de dez mil libras. Mantenha o dinheiro em segredo, gaste com sabedoria.
— Oh, mãe, está mesmo lá? Há dez mil libras debaixo do meu travesseiro?
— Há, sim.
— Viva! Mas como consegue fazer isso? A escrita?
— Pegue uma pena limpa, escreva sua mensagem com todo cuidado usando um líquido que vou lhe dar ou com leite, e deixe secar. Quando esquentar o papel, como eu fiz, a escrita vai aparecer.
Ela acendera outro fósforo e ateara fogo ao canto do papel. Em silêncio, observaram-no queimar. A mãe desmanchara as cinzas com a ponta da bota de Cano alto e acrescentara, numa estranha advertência:
— Quando for o tai-pan, não confie em ninguém, nem mesmo em mim.
Agora, Struan suspendeu a triste carta da mãe sobre a chama da vela. a palavras apareceram, e era fácil reconhecer sua letra:
Lamento informá-lo que seu pai morreu delirando, embriagado de uísque. Ele deve ter subornado um criado para lhe providenciar a garrafa. Tenho muito mais a contar pessoalmente. Graças a Deus que ele se livrou de seu sofrimento, mas foram os Brocks, meu amaldiçoado pai e meu irmão Morgan, que não nos deram sossego e causaram seus derrames... o último ocorreu logo depois de sua partida, quando descobrimos, tarde demais, os detalhes do golpe havaiano secreto que eles tramaram contra nós. Jamie sabe de alguns detalhes.
Por um momento, Malcolm parou de ler, tremendo de raiva. Muito em breve haverá um acerto de contas, ele prometeu a si mesmo, e depois continuou a ler:
Tome cuidado com nosso amigo, Dmitri Syborodin. Descobrimos que ele é um agente secreto para aquele revolucionário, o presidente Lincoln, não do sul, como simula. Tome cuidado com Angelique Richaud...
O coração de Malcolm se contraiu em súbito medo.
Nossos agentes em Paris escrevem que o tio dela, Michel Richaud, foi à bancarrota pouco depois que ela partiu e agora se encontra na prisão dos devedores. Mais fatos: o pai da moça anda em péssimas companhias, tem elevadas dívidas de jogo e se gaba secretamente para os íntimos que muito em breve representará todos os nossos interesses franceses. Recebi sua carta do dia 4, recomendando isso, presumo que por instigação de Angelique. Ele não pode nos representar, pois está insolvente. Outro dos “segredos” que ele revela aos amigos: será seu sogro dentro de um ano. Claro que isso é ridículo, você é jovem demais para o casamento e eu não poderia imaginar uma ligação pior. Sozinhos ou juntos, eles querem prendê-lo em sua armadilha, meu filho. Seja cauteloso e tome cuidado com a astúcia feminina.
Pela primeira vez em sua vida, ele sentiu-se furioso com a mãe. Trêmulo, estendeu o papel para a chama, manteve-o ali, enquanto queimava, depois pulverizou as cinzas ao nada, apagou a flama, jogou a vela para longe, tornou a se recostar, nauseado, o coração disparado, enquanto a mente clamava, durante todo o tempo: Como ela ousa investigar Angelique e sua família sem me pedir permissão? Como ela ousa assumir uma atitude tão errada? Quaisquer que sejam os pecados que a família cometeu, Angelique não tem culpa. Logo a mãe, entre todas as pessoas, deveria saber que os pecados dos pais não podem ser lançados aos filhos! Meu amado avô não foi muito pior, não foi assassino e não muito um Pirata, como o pai dela ainda é? Ela não passa de uma hipócrita! Nao interessa com quem vou casar. A vida é minha, e se quiser casar com Anjo no próximo ano, é o que farei. A mãe nada sabe sobre Angelique - e quando souber, vai amá-la tanto quanto eu - ou, por Deus, ela... Oh, não! — balbuciou ele, enquanto a dor o dilacerava.
12
McFay levantou os olhos das pilhas de cartas, documentos e jornais em sua mesa.
— Como ele está? — indagou, ansioso, enquanto o Dr. Babcott entrava e fechava a porta.
A sala era espaçosa, de frente para a High Street e o mar.
— Foi alguma espécie de ataque estomacal, Jamie. Era de se esperar, infelizmente, pelo estado do pobre coitado. Fiz um novo curativo... ele tinha arrebentado alguns pontos. E lhe dei um pouco de láudano.
Babcott esfregou os olhos, avermelhados pela fadiga, a sobrecasaca pesada, puída nas mangas, manchada aqui e ali de substâncias químicas e sangue ressequido.
— Não há muito mais que eu possa fazer por ele no momento. Quais são as últimas notícias da esquadra?
— A situação continua a mesma: a esquadra ocupa posições para ação, a legação ainda está cercada, e o Bakufu deve aparecer em breve.
— O que acontece se eles não aparecerem?
McFay deu de ombros.
— Recebi ordens para mandar Malcolm de volta a Hong Kong o mais depressa possível... é muito importante para ele. Posso embarcá-lo no navio de co...
— Proíbo categoricamente! — exclamou Babcott, com mais raiva do que tencionava. — Seria uma estupidez, e muito perigoso... mas muito mesmo. Se pegarem uma tempestade, como é provável nesta época do ano... o vômito intenso e prolongado reabriria os ferimentos, e isso o mataria. Ele não pode viajar agora.
— E quando será seguro?
O médico olhou pelas janelas. O mar encapelado além do promontório, mas não dentro da baía. Céu nublado. Avaliou sua impotência contra seu conhecimento.
— Pelo menos uma semana, talvez um mês. Só Deus sabe, Jamie, eu não.
— Se você também viajasse no navio de correspondência, isso ajudaria?
— Pelo amor de Deus, não! Será que me ouviu direito? Não! Não! Ele não pode viajar. Nove dias num navio o matariam.
O rosto de McFay se contraiu.
— Quais são as chances de Malcolm? Com toda sinceridade. É muito Importante eu saber.
— Ainda boas. A temperatura está mais ou menos normal e não há qualquer sinal de infecção.
Babcott tornou a esfregar os olhos e bocejou.
— Desculpe. Não tinha a intenção de ser grosseiro com você. Estou acordado desde a meia-noite, remendando as consequências de uma briga entre um marujo e um soldado, e atendendo uma emergência de madrugada em Yoshiwara, onde costurei uma moça que se cortou para tentar alcançar o outro mundo. — Ele suspirou. — Ajudaria mantê-lo tão calmo quanto possível. Eu diria que sua má notícia provavelmente acarretou o ataque.
A notícia e as implicações da morte de Culum Struan, e por conseguinte a nova posição de Malcolm como tai-pan — uma preocupação vital e imediata para todos os seus rivais —, espalharam-se pela colônia. Na Brock, Norbert Greyforth interrompeu uma reunião para abrir a primeira garrafa de champanhe da caixa que mantinha gelada há muitas semanas, à espera deste dia... gelada em sua nova e lucrativa Casa do Gelo, ao lado do armazém.
— A melhor notícia que tivemos em anos! — exclamou ele, rindo, para Dmitri. — E tenho mais vinte caixas para a festa que vou oferecer esta noite! Um brinde, Dmitri!
Norbert levantou seu copo lapidado, o melhor veneziano que o dinheiro podia comprar.
— Ao tai-pan da Casa Nobre: fora com o velho, fora com o novo, e que ele possa estar na bancarrota dentro de um ano!
— Bebo com você, Norbert, ao sucesso do novo tai-pan, não ao resto — disse Dmitri.
— Abra os olhos para a realidade. Eles são o velho, nós somos o novo... houve um tempo em que tinham coragem, quando Dirk Struan era vivo, mas agora se tornaram fracos. McFay é fraco... com sua ajuda entusiástica e um pouco de persuasão, na noite do assassinato de Canterbury, poderíamos ter atiçado toda a colônia, a esquadra, o exército, e teríamos capturado e enforcado esse desgraçado do rei Satsuma e viveríamos felizes para todo o sempre depois.
— Concordo. John Canterbury será vingado, de um jeito ou de outro. Pobre coitado... Sabia que ele me deixou seu negócio?
A Canterbury’s era uma das menores casas comerciais, especializada na exportação de seda, em particular de casulos e ovos de bicho-da-seda, um comércio bastante lucrativo, para a França, onde a indústria, outrora uma das melhores do mundo, fora dizimada pela praga.
— John sempre disse que faria isso, mas eu nunca acreditei. E também sou seu executor testamentário... Wee Willie me deu a escritura antes de partir.
— Os samurais são todos uns desgraçados. Não havia motivo para assassiná-lo daquele jeito. O que me diz de sua musume? O velho John era fascinado. Ela está esperando, não é?
— Não. Foi apenas um rumor. No testamento, ele me pediu para cuidar de sua musume, dar dinheiro para ela comprar uma casa. Fui procurá-la, mas sua mama-san, Raiko, me disse que a garota voltara para sua aldeia, e se ofereceu para lhe enviar qualquer dinheiro. Dei a ela o que John dissera e ponto final.
Pensativo, Norbert terminou de tomar a champanhe no copo, serviu-se de mais, e sentiu-se melhor.
— Deve cuidar de si mesmo também — disse ele, mantendo a voz baixa, julgando que o momento era oportuno. — Tem de pensar no futuro, não em umas poucas peças de seda e ovos de bicho-da-seda. Pense no grande jogo, o jogo americano. Com nossos contatos, podemos comprar qualquer quantidade de armamentos britânicos, franceses ou prussianos... acabamos de assinar um contrato de exclusividade para representar a Krupp no Extremo Oriente... a melhores preços do que a Struan pode lhe oferecer, e entregar tudo no Havaí, a fim de ser baldeado para... qualquer lugar, sem perguntas.
— Beberei a isso.
— O que você quiser podemos providenciar mais depressa e mais barato. — Norbert tornou a encher os copos. — Gosto de Dom Pérignon, é melhor do que a Tatt... aquele velho monge sabia tudo sobre cor e açúcar, e a falta dele. Como o açúcar havaiano... ouvi dizer que será tão caro este ano que se tornará quase um tesouro nacional, para o Norte ou o Sul.
O copo de Dmitri parou em pleno ar.
— E o que isso significa?
— Significa, só aqui entre nós, que a Brock and Sons tem o controle da colheita deste ano, e que a Struan não chegará a ter um saco de cinqüenta quilos, e por isso seu negócio com eles não vai acontecer.
— Quando isso se tornará do conhecimento público? — indagou Dmitri, os olhos reduzidos a fendas.
— Gostaria de participar? Do nosso negócio? Podemos aproveitar um agente de confiança para os Estados Unidos, Norte e Sul.
Dmitri serviu mais champanhe para ambos, apreciando a sensação do copo gelado.
— Em troca do quê?
— Um brinde: à extinção da Casa Nobre.
Por toda Iocoama, outros brindes estavam sendo feitos, pela notícia da morte de Culum e a ascensão de um novo tai-pan, assim como em salas de diretoria por todo o Extremo Oriente, e em outros lugares que negociavam com a Ásia. Alguns brindes eram comemorativos, outros vingativos, alguns celebravam a sucessão, outros encomendavam todos os ossos de todos os Struans ao demônio, alguns rezavam pelo sucesso deles, mas os homens de negócio, sem exceção, avaliavam como o fato os afetaria, pois a Struan, quer gostassem ou não, era a Casa Nobre.
Na legação francesa, Angelique retiniu corpos, tomou um gole de champanhe, cautelosa, o copo ordinário, jamais à altura da bebida que continha.
— Concordo, monsieur Vervene.
Pierre Vervene era o chargé d’affairs, um homem calvo e cansado, na casa dos quarenta anos.
— O primeiro brinde exige um segundo, mademoiselle — disse ele, tornandoa erguer seu copo — não apenas por prosperidade e vida longa para o novo tai-pan, mas para o tai-pan... seu futuro marido.
— Ora, monsieurl — Ela baixou o copo, fingindo estar irritada. — Eu lhe contei isso em confidência, porque me sinto feliz e orgulhosa, mas não deve ser mencionado a ninguém, até que monsieur Struan torne público. Tem de me prometer.
— Claro, claro.
O tom de Vervene era tranqüilizador, mas ele já elaborara mentalmente o despacho que enviaria para Seratard, a bordo da nave capitânia em Iedo, no momento em que Angelique se retirasse. Era evidente que havia inúmeros desdobramentos e oportunidades políticas que tal ligação criaria para a França e os interesses franceses. Por Deus, pensava ele, se formos bastante espertos, e nós somos, podemos controlar a Casa Nobre através dessa jovem imprudente, sem nada para recomendá-la além de um rostinho bonito, seios apetitosos, um hímen maduro, e nádegas que prometem a seu marido um vigor devasso por um ou dois meses. Como ela conseguiu atraí-lo... se é mesmo verdade o que diz. Se é...
Merde, o pobre coitado deve estar insano para se contentar com uma mulher assim, sem dote, uma linhagem ignominiosa, para se tornar a mãe de seus filhos! Que sorte incrível a daquele porco odioso, Richaud, agora ele será capaz de redimir seu papel.
— Meus mais sinceros parabéns, mademoiselle.
A porta foi aberta nesse instante, e o moço número um da legação entrou, carregado de correspondência, um chinês rotundo e idoso, vestindo uma túnica de linho, calça preta e solidéu preto.
— Aqui está, senhor, toda a correspondência, nunca importa!
Ele largou as cartas e pacotes na mesa, lançou um olhar de espanto para a moça e arrotou ao se retirar.
— Por Deus, essa gente tem péssimas maneiras e leva qualquer um à loucura! Já disse mil vezes a esse cretino para bater primeiro! Peço que me dê licença por um instante.
Vervene examinou as cartas rapidamente. Duas da esposa, uma da amante, todas remetidas dois meses e meio antes: as duas me pedem dinheiro, sou capaz de apostar, pensou ele, amargurado.
— Ah, quatro cartas para mademoiselle! — Muitos franceses enviavam sua correspondência aos cuidados da legação mais próxima. — Três de Paris e uma de Hong Kong.
— Oh, obrigada!
Angelique animou-se ao verificar que duas eram de Colette, uma da tia e a última do pai.
— Estamos tão longe de casa, não é?
— Paris é o mundo, com toda certeza. Bom, imagino que deseja alguma privacidade. Pode usar a sala no outro lado. E agora, se me dá licença... — Vervene apontou para a mesa cheia de papéis, com um sorriso depreciativo. — negócios de Estado.
— Claro, claro. E agradeço por seus votos de felicidade, mas não diga nada, por favor...
Ela se retirou, graciosa, sabendo que dentro de poucas horas seu maravilhoso segredo seria do conhecimento comum, sussurrado em cada ouvido. Seria sensato? Acho que sim; afinal, Malcolm não me pediu em casamento?
Vervene abriu suas cartas, passou os olhos depressa, constatou que as duas mulheres pediam mesmo dinheiro, mas não transmitiam outra má notícia, deixou-as de lado, para ler e desfrutar mais tarde, e iniciou o despacho para Seratard — com uma cópia secreta para André Poncin —, satisfeito por ser o portador de tão boas novas.
— Espere um pouco — murmurou para si mesmo. — Talvez seja aquela história de tal pai, tal filha, e tudo não passe de exagero. É mais seguro relatar como há poucos minutos mademoiselle Angelique me sussurrou em confidência que... e que o ministro tire suas próprias conclusões.
No outro lado do corredor, numa ante-sala agradável, que dava para o pequeno jardim junto a High Street, Angelique se acomodou, na maior expectativa. A primeira carta de Colette dava notícias felizes sobre Paris, a moda, os acontecimentos e amigos mútuos, de uma maneira tão deliciosa que ela leu num instante, sabendo que releria muitas vezes, em particular à noite, no conforto de sua cama, quando poderia saborear melhor cada detalhe. Conhecera e amara Colette durante a maior parte de sua vida; no convento, haviam sido inseparáveis, partilhando esperanças, sonhos e intimidades.
A segunda carta continha notícias mais espetaculares, concluindo com o casamento de Colette, que era da sua idade, dezoito anos, e já tinha um marido e um filho:
Estou grávida de novo, minha querida Angelique, meu marido é maravilhoso, mas me sinto um pouco apreensiva. O primeiro parto não foi fácil mas o médico me garante que serei bastante forte. Quando você voltar, e mal posso esperar que isso aconteça...
Angelique respirou fundo, olhou pela janela, e esperou que a pontada de angústia passasse. Não deve se abrir, reiterou para si mesma, quase em lágrimas. Nem mesmo com Colette. Seja forte, Angelique. Tome cuidado. Sua vida mudou, tudo mudou... mas apenas por pouco tempo. Não deixe que ninguém a pegue desprevenida.
Outra vez ela respirou fundo. A carta seguinte a chocou. Tia Emma dava a notícia terrível da queda de seu marido:
Agora estamos na miséria, e meu pobre Michel definha na prisão dos devedores, sem qualquer ajuda à vista! Não tem a quem recorrer, não nos restou nenhum dinheiro. É horrível, minha criança, um pesadelo...
Pobre e querido tio Michel, pensou ela, chorando em silêncio, uma pena que ele fosse tão mau administrador.
— Não importa, minhaquerida tia Emama — disse ela, em voz alta, dominada por uma súbita alegria. — Agora posso retribuir todas as suas gentilezas. Pedirei a Malcolm para ajudar, e tenho certeza que ele vai...
Espere! Isso seria sensato?
Enquanto ponderava a respeito, Angelique abriu a carta do pai. Para sua surpresa, o envelope continha apenas uma carta, sem a esperada ordem de pagamento que ela pedira, sobre o dinheiro que trouxera de Paris, e depositara no Victoria Bank, o dinheiro que o tio lhe adiantara com extrema generosidade... e sob a promessa solene de que não contaria nada à sua esposa, e de que o pai pagaria o empréstimo no instante em que ela chegasse a Hong Kong, o que ele lhe dissera que fizera.
Hong Kong, 10 de setembro.
Olá, minha querida. Espero que tudo esteja correndo bem, e que seu Malcolm a idolatre tanto quanto eu, tanto quanto toda a colônia de Hong Kong. Circula o rumor de que o pai dele se encontra às portas da morte. Eu a informarei de tudo. Enquanto isso, escrevo às pressas, pois estou de partida para Macau, com a maré alta. Há uma maravilhosa oportunidade de negócios ali, tão boa que temporariamente usei o dinheiro que você deixou sob a minha guarda. Investirei tudo por você, como sócia em condições de igualdade. Pelo próximo navio, poderei lhe mandar dez vezes mais do queria agora, e anunciar o nosso lucro espetacular... afinal, temos de pensar no seu dote, sem o que... não é mesmo?
Os olhos de Angelique não conseguiram mais ler, um turbilhão invadiu o cérebro. Oh, Deus! Que oportunidade de negócios? Será que ele está jogando tudo o que tenho no mundo?
Eram quase duas horas, e McFay sentia-se cansado, o estômago vazio, os pensamentos sombrios. Escrevera uma dúzia de cartas, assinara meia centena de vales, pagara dezenas de contas, conferira os livros do dia anterior, mostrando que os negócios vinham caindo, constatara que todas as mercadorias encomendadas da América haviam sido canceladas, retidas ou oferecidas a preços mais altos, todas as operações com o Canadá e Europa também afetadas, em grau maior ou menor, pela guerra civil americana. Também não havia boas notícias em qualquer dos despachos de Hong Kong... e muitas novidades ruins vinham do escritório em Xangai, embora Albert MacStruan, que controlava tudo ali, estivesse realizando um excelente trabalho. Por Deus, pensou ele, seria uma catástrofe se tivéssemos de evacuar Xangai, com todos os investimentos que fizemos na cidade.
Xangai se encontrava de novo na maior agitação, e as três concessões estrangeiras, sob controle britânico, francês e americano, eram assediadas por rumores de que exércitos de rebeldes, da vasta rebelião Tai’ping, baseada em Nanquim e nos arredores — uma grande cidade para o sul, capturada pelos rebeldes nove anos antes e usada como sua capital —, começavam a marchar outra vez. Um recorte do Shangai Observer dizia:
Há dois anos, quando nossa brava força de soldados britânicos e franceses, com a competente ajuda do exército mercenário local, organizado e pago por nossos príncipes do comércio, tanto europeus quanto chineses, e sob o comando do intrépido aventureiro americano Frederick Townsend Ward, expulsou os rebeldes por um raio de cinqüenta quilômetros, todos presumimos que a ameaça fora removida para sempre.
Agora, testemunhas informam que um irresistível exército de meio milhão de rebeldes, com alguns oficiais europeus, concentrou-se para nos atacar de novo, e que outro exército de meio milhão desfechará mais uma ofensiva para o norte, contra Pequim. Os rebeldes manchus oponentes são inconfiáveis e impotentes, com os recrutas chineses amotinados. Portanto, desta vez não poderemos sobreviver. Espera-se que o governo de sua majestade convença as autoridades manchus a designarem o capitão Charles Gordon para comandar o exército do Sr. Ward, gravemente ferido em ação, e também lhe entreguem o comando geral do treinamento manchu. Seu correspondente acredita que isso só acontecerá, como sempre, um pouco tarde demais.
Precisamos de um exército britânico plenamente equipado estacionado na China, em caráter permanente... apesar do nervosismo na índia pelo recente e terrível motim indiano, dos nativos sipaios. Os negócios continuam desastrosos, com o preço da seda e do chá na maior alta de todos os tempos. A fome prevalece na maioria das regiões num raio de oitocentos...
Mais notícias deprimentes da Inglaterra. Chuvas monumentais haviam destruído as colheitas, e esperava-se a fome na Irlanda e em outras áreas, embora não como a grande fome da batata, quando centenas de milhares de pessoas morreram. O desemprego cada vez maior na Escócia. A miséria em Lancashire, com a maioria dos teares de algodão parada, por causa do embargo da União ao algodão sulista. inclusive três fábricas da Struan, com o bloqueio de todos os portos da Confederação. Com o algodão sulista, a Inglaterra abastecera o mundo de pano. Um clíper da Struan, carregado de chá, seda e laca, a caminho de Londres, perdera-se no mar. No mercado de ações, a Struan sofrera uma tremenda queda, enquanto a cotaçao da Brock subia, com a chegada de suas primeiras remessas de chá da estação.
Outra carta de sua noiva há cinco anos, Maureen Ross, também aflitiva: Quando devo partir ao seu encontro? Já enviou a passagem? Prometeu que este Natal seria o último que passaríamos separados...
— Não poderá ser neste Natal, minha cara — murmurou McFay, de cenho franzido, por mais que ela quisesse. — Ainda não tenho condições, e este não é um lugar apropriado para uma moça como você.
Muitas vezes escrevera para dizer isso, sabendo que Maureen e seus pais queriam que ele trabalhasse para a Struan na Inglaterra ou Escócia, ou melhor ainda, que deixasse “essa infame companhia, e trabalhasse em sua terra, como um homem normal”, sabendo que no fundo ele queria mesmo era que Maureen rompesse o noivado, tratasse de esquecê-lo, sabendo que a maioria das esposas britânicas odiava a Ásia, detestava os asiáticos, abominava as jovens do prazer, enfureciam-se com seu fácil acesso, desprezavam a comida, ansiavam por sua “terra” e família, convertendo a vida de seus maridos num sofrimento permanente.
E sabendo também que ele gostava da Ásia, adorava seu trabalho, amava a liberdade, prezava sua Yoshiwara e nunca se sentiria feliz se voltasse para a Inglaterra. Pelo menos até me aposentar, refletiu McFay.
As únicas coisas boas na correspondência eram os livros da Hatchard’s, em Piccadilly: uma nova edição ilustrada do explosivo A Origem das Espécies, de Darwin, alguns poemas de Tennyson, um panfleto recém-traduzido de Karl Marx e Friedrich Engels, chamado Manifesto Comunista, cinco exemplares de Punch, e o mais importante de tudo, outra edição de All the Year Round. Era o semanário criado por Charles Dickens e continha o décimo quarto fascículo de Great Expectations, a ser publicado em vinte partes.
Apesar de tudo o que tinha para fazer, McFay, como todos os outros que haviam recebido um exemplar, trancou a porta da sala e devorou o fascículo na maior ansiedade. Ao ler a última frase, “Continua na próxima semana”, ele soltou um suspiro e murmurou para si mesmo:
— O que Miss Havisham, aquela velha diabólica, fará em seguida? Ela me lembra a mãe de Maureen. Espero que tudo acabe bem para Pip. De um jeito ou de outro, ele tem de escapar! E torço para que o velho Dickens nos dê um final feliz...
Por um momento, ele se perdeu na admiração pelo homem e suas histórias maravilhosas, desde Oliver Twist, mais de vinte anos antes, passando por Nicholas Nickleby, David Copperfield e uma dezena de outros livros, até o fascinante Tale of Two Cities. Dickens é o maior escritor do mundo, não resta a menor dúvida quanto a isso.
McFay levantou-se, foi até a janela, parou ali, observando o mar e enviando seus pensamentos para a esquadra em Iedo, assim como para o navio de correspondência, que agora não precisaria mais se desviar de seu curso e continuaria na rota regular para Xangai, em vez de voltar direto a Hong Kong, levando Malcolm Struan. A preocupação com ele e o futuro logo se misturaram na mente de McFay, com os pensamentos sobre Pip e Miss Havisham, especulando como Pip sairia da enrascada em que se metera, e se a moça acabaria se apaixonando por Pip. Espero que sim, a pobre moça. E o que dizer da minha Maureen? É tempo de eu constituir uma família...
Uma batida na porta.
— Sr. McFay, posso lhe falar por um instante? Era Piero Vargas, seu assistente.
— Só um instante.
Sentindo-se um pouco culpado, ele escondeu o fascículo debaixo da pilha de correspondência, espreguiçou-se e foi abrir a porta.
Piero Vargas era um eurasiano bonito, de meia-idade, procedente de Macau o pequeno enclave português cerca de setenta quilômetros a oeste de Hong Kong, parecendo uma espinha na costa da China continental, e ocupado desde 1.552. Ao contrário dos britânicos, os portugueses consideravam Macau igual ao território metropolitano, não uma colônia, e estimulavam seus habitantes a casarem com chinesas, concediam plena cidadania à prole eurasiana, permitindo-lhe acesso permanente a Portugal. O casamento inter-racial de britânicos era sempre desencorajado, embora muitos tivessem famílias assim. Os filhos, no entanto, não eram aceitos na sociedade. Pelo costume, os que nasciam em Xangai recebiam o nome do pai, e em Hong Kong o da mãe.
Desde que haviam chegado à China, os britânicos empregavam com a maior satisfação os macauenses mais inteligentes como shroffs — cambistas de dinheiro — e compradores, já que, por necessidade, falavam inglês e dialetos chineses. Menos a Casa Nobre. Seu compradore era Gordon Chen, dono de uma riqueza fabulosa, o filho ilegítimo do fundador, Dirk Struan, com uma de suas muitas amantes, embora não a última, a famosa May-May.
— O que é, Piero?
— Desculpe interromper, senhor — disse Piero, em seu inglês fluente e suave —, mas Kinu-san, nosso fornecedor de seda, solicita uma entrevista pessoal.
— Por quê?
— Não é para ele, mas para dois compradores que o acompanham. De Choshu.
— É mesmo?
O interesse de McFay foi despertado no mesmo instante. Quase dois anos de sondagens do daimio de Choshu, o feudo a oeste dos estreitos de Shimonoseki, haviam produzido negócios muito importantes no ano anterior, autorizados pelo escritório central em Hong Kong, que providenciara tudo: um vapor de roda de duzentas toneladas, com uma carga confidencial, canhões, balas e pólvora. Tudo pago com ouro e prata, metade adiantado, metade contra entrega.
— Pode trazê-los. Não, espere. É melhor eu recebê-los na sala de recepção principal.
— Sim, senhor.
— Um deles é o mesmo sujeito da ocasião anterior?
— Como, senhor?
— O jovem samurai que falava um pouco de inglês?
— Não participei dessa reunião, senhor. Estava de licença em Portugal.
— Ah, é isso mesmo, lembrei agora.
A sala de recepção era grande, com uma enorme mesa de carvalho, a que quarenta e duas pessoas podiam sentar. Havia ali aparadores e cômodas, exibindo bandejas de prata e cristais, tudo bem cuidado, faiscando. McFay abriu uma das cômodas, tirou o cinto, com um coldre e uma pistola. Afivelou o cinto em tomo da cintura, certificando-se de que a pistola se encontrava carregada e solta no coldre. Sempre tinha o costume, ao se encontrar com um samurai, de se armar como eles.
— É uma questão de aparência, além de segurança — costumava comentar para seus subordinados.
Como um apoio adicional, encostou um fuzil Spencer numa cadeira e depois foi se postar diante da janela, virado para a porta.
Vargas voltou com três homens. Um deles era de meia-idade, gordo, untuoso, sem qualquer espada, Kinu, o fornecedor de seda. Os outros dois eram samurais, um jovem, o segundo na casa dos quarenta anos, embora fosse difícil determinar com certeza. Ambos eram baixos, esguios, rostos impassíveis, e estavam armados, como sempre.
Fizeram uma reverência polida. McFay notou que os dois perceberam logo o fuzil de carregar pela culatra. Ele retribuiu à reverência, e disse:
— Ohayo. Bom dia. — E acrescentou: — Dozo.
Significava por favor, e ele indicou as cadeiras à sua frente, a uma distância segura.
— Bom dia — disse o mais jovem, sem sorrir.
— Fala inglês? Ótimo. Sentem-se, por favor.
— Falo um pouco — disse o jovem, o “l” soando como “r”, porque não havia o som de “1” em japonês.
Por um momento, ele falou com Vargas em fuquinês, o dialeto chinês comum, e depois os dois japoneses se apresentaram, acrescentando que haviam sido enviados por lorde Ogama, de Choshu.
— Sou Jamie McFay, chefe da Struan and Company no Nipão, e me sinto honrado em recebê-los.
Vargas tornou a traduzir. Paciente, Jamie passou pelos quinze minutos obrigatórios de indagações sobre a saúde do daimio, a saúde dos dois emissários, sua própria saúde e a saúde da rainha, a situação em Choshu, na Inglaterra, nada específico, tudo superficial. O chá foi servido e admirado. Ao final, o jovem anunciou o que queriam. Com o maior cuidado, Vargas evitou que o excitamento aparecesse em sua voz:
— Eles querem comprar mil fuzis de carregar pela culatra, com mil cartuchos de bronze para cada arma. Devemos dar um preço justo e efetuar a entrega dentro de três meses. Se entregarmos em dois meses, pagarão uma bonificação... vinte por cento.
Também manteve a calma exterior.
— Isso é tudo o que eles desejam comprar no momento?
Vargas traduziu a pergunta.
— É, sim, senhor, mas eles exigem mil cartuchos por fuzil.
McFay calculou o vultoso lucro em potencial, mas também recordou sua conversa com Greyforth, e a conhecida hostilidade do almirantee do general, com o apoio de Sir William, à venda de quaisquer armamentos. E lembrou os vários assassinatos. E Canterbury retalhado. Algum dia seria seguro negociar com um povo tão belicoso?
— Por favor, avise a eles que só posso dar uma resposta daqui a três semanas.
Ele viu o sorriso cordial desaparecer do rosto do mais jovem.
— Responda... agora. Não em três semanas.
— Não temos armas aqui — declarou McFay, bem devagar, fitando-o. Tenho de escrever para o escritório central em Hong Kong, nove dias para a carta chegar lá, nove dias para a resposta voltar. Temos alguns fuzis de carregar pela culatra ali. O resto, só na América. Quatro ou cinco meses, no mínimo.
— Não compreendo.
Vargas traduziu. Houve uma conversa entre os dois samurais, o negociante respondendo às suas perguntas com absoluta humildade. Mais perguntas a Vargas, respondidas com polidez.
— Ele diz que está bem, voltará em vinte e nove dias, ou virá outro representante. A transação deve ser mantida em segredo.
— Claro. — McFay olhou para o jovem. — Tudo secreto.
— Hai! Secreto.
— Pergunte a ele como está o outro samurai, Saito.
McFay viu os dois franzirem o rosto, mas não pôde interpretar a reação.
— Eles não o conhecem pessoalmente, senhor.
Mais reverências e depois Jamie ficou sozinho. Absorto em pensamentos, tornou a guardar o cinto com a arma na cômoda. Se eu não lhes vender as armas, Norbert venderá... independente do aspecto moral.
Vargas voltou, bastante satisfeito.
— Uma excelente possibilidade, senhor, mas uma grande responsabilidade.
— Tem razão. Fico imaginando o que o escritório central dirá desta vez.
— É fácil descobrir, senhor, e bem depressa. Não precisa esperar dezoito dias. O escritório central não se encontra lá em cima neste momento?
McFay ficou aturdido.
— Mas é isso mesmo! Eu tinha esquecido. Mas não é fácil pensar no jovem Malcolm como o tai-pan, nosso supremo tomador de decisões.
Passos se aproximaram, correndo, a porta foi aberta.
— Desculpe interromper — disse Nettlesmith, ofegante do esforço, o chapeu ensebado torto na cabeça. — Mas achei que era melhor que soubesse primeiro. Acabamos de receber o aviso de que a bandeira azul de sinalização foi hasteada no mastro da legação... depois desceu, tornou a subir, baixou para meio mastro e assim permaneceu.
Jamie fitou-o com uma expresão de surpresa.
— E o que isso significa?
— Não sei, exceto que meio mastro em geral indica uma morte, não é?
Bastante perturbado, o almirante tornou a focalizar o binóculo no mastro da legação. Os outros homens no tombadilho superior, seus comandantes do resto da esquadra, Marlowe, o general, o almirante francês e Von Heimrich igualmente preocupados, Seratard e André Poncin apenas simulando. Quando o vigia dera o alarme, meia hora antes, todos saíram apressados para o tombadilho, deixando a mesa do almoço. Com exceção do ministro russo, que dissera:
— Se querem esperar no frio, tudo bem, mas não contem comigo. Quando vier a notícia da praia, sim, não ou guerra, podem me chamar, por favor. Se iniciarem o bombardeio, eu me juntarei a vocês...
Marlowe observava a carne que se espremia por cima do colarinho do almirante, desprezando-o, e desejando estar em terra com Tyrer, ou a bordo de seu próprio navio, o Pearl. Ao meio-dia, o almirante substituíra o comandante temporário por um estranho, um certo tenente Dornfild, ignorando seu conselho. O velho miserável, olhe só como ele se mexe, pomposo, com seu binóculo... todo mundo sabe que é muito caro, entregue apenas a almirantes. O desgraçado...
— Marlowe!
— Pois não, senhor.
— É melhor descobrirmos o que está acontecendo. Trate de desembarcar... não, preciso de você aqui! Thomas, quer fazer a gentileza de enviar um oficial à legação? Marlowe, providencie um sinaleiro para acompanhar o destacamento.
No mesmo instante, o general sacudiu o polegar para um ajudante-de-ordens, que se afastou apressado, seguido de perto por Marlowe. Seratard aconchegou-se em seu casaco grosso contra o vento frio.
— Receio que Sir William tenha se metido numa enrascada.
— Lembro que já expôs suas opiniões esta manhã — cortou o almirante, em tom brusco.
A reunião com os ministros que ele convocara naquela manhã fora tumultuada e não trouxera qualquer solução, a não ser a sugestão do conde Zergeyev: o uso imediato e maciço da força.
— O que não dispomos no momento, meu caro conde — ressaltara o almirante —, se for necessário acompanhar o bombardeio com um desembarque para capturar a cidade e os arredores.
Ketterer comprimiu os lábios e lançou um olhar furioso para Seratard, a aversão mútua ostensiva.
— Tenho certeza que Sir William encontrará uma solução, mas devo dizer, com toda franqueza, que se nossas cores fossem atacadas, Iedo desapareceria em fogotum!
— Concordo — disse Seratard. — Uma questão de honra nacional!
O rosto de Von Heimrich assumiu uma expressão dura.
— Os japoneses não são estúpidos... como algumas pessoas. Não vamos acreditar que ignorem a força com que contamos agora.
O vento aumentou de intensidade de repente, fazendo ranger algumas cordas, o mar se tornou mais cinzento, as nuvens escureceram. Todos os olhos desviaram-se para uma linha preta de tempestade no horizonte, a leste. A tempestade se aproximava da terra, ameaçando o ancoradouro exposto.
— Marlowe, mande um... Marlowe! — berrou o almirante.
— Pois não, senhor? — indagou Marlowe, voltando depressa.
— Pelo amor de Deus, mantenha-se à distância da minha voz! Mande um aviso a todos os navios: Preparem a saída para o mar. Caso as condições deteriorem rapidamente, estão autorizados a efetuar a ação individual que julgarem necessária, e depois nos reagruparemos em Kanagawa, assim que a situação permitir. E vocês, comandantes, devem voltar logo a seus navios, enquanto o tempo ainda permite.
Todos se retiraram de bom grado, contentes por deixarem a companhia do almirante.
— Também voltarei para meu navio — declarou o almirante francês. — Bonjour, messieurs.
— Também vamos, monsieur almirante — disse Seratard. — Obrigado por sua hospitalidade, almirante Ketterer.
— E o conde Alexi? Ele não veio com vocês?
— Deixe-o dormir. Melhor que o urso russo fique dormindo, n‘est-cepas? Seratard falou com frieza, olhando para Von Heimrich, ambos conhecendo muito bem as manobras secretas da Prússia para conseguir que o czar se mantivesse neutro em qualquer confrontação, a fim de permitir a expansão prussiana pela Europa, atendendo a uma política de Estado ostensiva: a criação de uma nação alemã, integrada pelos povos que falavam alemão, tendo a Prússia na vanguarda.
Marlowe, apressando-se para falar com o sinaleiro, avistou seu navio, o Pearl, ancorado com perfeição e se preocupou com o que poderia lhe acontecer, desejando estar a bordo e no comando. Apreensivo, ele tornou a olhar para o mar, avaliando a linha da tempestade, as nuvens escuras, o cheiro e o gosto da maresia no vento. Desgraçado de almirante, pensou ele.
Na sala de audiência da legação, Sir William, ladeado por um oficial escocês, Phillip Tyrer e os guardas, sentava diante dos três emissários japoneses, que também sentaram, sem a menor pressa, com seus guardas postados por trás: o ancião de cabelos grisalhos, Adachi, o daimio de Mito; o falso samurai, Misamoto, o pescador; e um alto funcionário do Bakufu, baixo e barrigudo, secretamente fluente em holandês, cuja missão secreta era relatar em particular a Yoshi tudo que ocorresse na reunião, em particular o comportamento dos outros dois. Como sempre, nenhum deles usou seu nome correto.
Cinco palanquins haviam chegado, como no dia anterior, com a mesma cerimônia, e com uma quantidade maior de guardas. Apenas três estavam ocupados com o que Sir William achou estranho e perturbador. Isso, depois do incremento da atividade dos samurais durante a noite, em torno do templo e da legação, levara-o a transmitir um sinal de alarme parcial para a esquadra, hasteando a bandeira a meio mastro, com a esperança de que Ketterer compreendesse.
Lá fora, no pátio, Hiraga, outra vez disfarçado como um jardineiro, também ficou perturbado... ainda mais porque Toranaga Yoshi não viera desta vez. O que significava que o plano tão cuidadoso de emboscar Yoshi perto dos portões do castelo, em seu retorno, teria de ser cancelado. Ele tentara no mesmo instante se afastar despercebido, mas os samurais, irritados, ordenaram-lhe que voltasse ao trabalho. Fervendo de raiva, ele obedecera, aguardando uma oportunidade de escapar.
— Estão com um atraso de duas horas e meia — declarou Sir William, friamente, como uma salva de abertura. — Nos países civilizados, as reuniões diplomáticas sempre começam na hora marcada, jamais com tamanho atraso!
Houve desculpas imediatas e floreadas, mas irrelevantes. Depois, as habituais e indispensáveis apresentações, com elogios e uma polidez irritante, e em seguida mais de uma hora de conversa inócua, as exigências desviadas com a maior calma, argumentos pomposos, espanto onde nenhum cabia, perguntas precisando ser repetidas, fatos descartados, a verdade ignorada — álibis, explicações, racionalizações, desculpas, tudo enunciado com a mais absoluta cortesia.
Sir William já se encontrava prestes a explodir, quando o ancião, Adachi, apresentou um pergaminho lacrado, entregou-o ao intérprete japonês, que o passou para Johann. O cansaço de Johann se desvaneceu no mesmo instante.
— Gott im Himmel! Tem o lacre do roju!
— E o que é isso?
— O Conselho dos Anciãos. Eu reconheceria este lacre em qualquer lugar... é o mesmo que o embaixador Harris obteve. É melhor aceitá-lo formalmente, Sir William, e depois o lerei em voz alta, se estiver em holandês, o que duvido. — Ele abafou um bocejo nervoso. — É bem possível que seja apenas outra tática protelatória.
Sir William fez o que Johann sugeriu, detestando se sentir tão restrito, obrigado a depender de intérpretes mercenários estrangeiros. Johann rompeu o lacre e correu os olhos pelo documento. Seu espanto era evidente.
— Por Deus, está em holandês! Pulando todos os títulos, a linguagem formal, diz o seguinte: O Conselho de Anciãos, tendo recebido o que parece ser uma justa queixa, pede desculpas pela incúria de seus súditos, e deseja convidar o honrado ministro dos britânicos, assim como todos os outros ministros credenciados a se reunirem com o conselho, daqui a trinta dias, em Iedo, quando a formal será apresentada, discutida, decidida, e acertada uma indenização a referida queixa justa. Assinado... Nori Anjo, ministro-chefe.
Com um supremo esforço, Sir William evitou a manifestação de seu alívio, contido por tanto tempo. Aquele convite inesperado proporcionava-lhe o expediente de que precisava, de maneira tão desesperada, para salvar as aparências. Agora, se pudesse enredá-los num estratagema só mais um pouco... Para sua repentina fúria, percebeu, pelo canto dos olhos, que Tyrer exibia um sorriso largo. Sem olhar para ele, Sir William sussurrou:
— Pare de sorrir, seu idiota! — No mesmo fôlego, ele acrescentou, a voz áspera: — Johann, diga a eles que terão minha resposta em três dias. Enquanto isso, quero uma indenização imediata, em ouro, no valor de dez mil libras esterlinas, para as famílias do sargento e do cabo assassinados na legação, no ano passado, e já reclamada quatro vezes!
Quando isso foi traduzido, ele viu a consternação no rosto do idoso japonês Houve outra conversa prolongada entre ele e o emissário do Bakufu. Johann traduziu, cansado:
— O velho descarta essa possibilidade, com as mesmas alegações de sempre-a “lamentável ocorrência” foi de responsabilidade de um empregado da legação, que em seguida cometeu seppuku... suicídio. O Bakufu não tem qualquer culpa.
Também cansado, Sir William ordenou:
— Por Deus, responda com a argumentação habitual: que foram eles que indicaram o homem, insistiram que o contratássemos, por isso são responsáveis... e ele só cometeu suicídio porque foi gravemente ferido, na tentativa de assassinar meu antecessor, e se achava sujeito à captura imediata!
Tentando dissipar a exaustão, ele observou os dois emissários conversarem com o intérprete, enquanto o terceiro homem se limitava a escutar, como fizera durante toda a tarde. Talvez fosse ele quem possuía o verdadeiro poder. O que teria acontecido com os outros homens, os que haviam comparecido no dia anterior, em particular o mais jovem... o que André Poncin abordara no momento em que se retirava? O que o patife insidioso do Seratard anda tramando?
O vento mais forte atingiu uma persiana solta e sacudiu-a contra a janela. Um dos guardas inclinou-se para ajustá-la no lugar. A esquadra não estava muito longe da praia, no mar de um cinza profundo agora, com ondas encapeladas. Sir William notou a linha da tempestade se aproximando. Sua ansiedade pelos navios aumentou. Johann disse:
— O velho pergunta se aceita três mil.
O rosto de Sir William ficou vermelho.
— Dez mil em ouro!
Mais conversa, e depois Johann enxugou o suor da testa.
— Mein Gott! Pode ser dez, pago em duas vezes, em Iocoama, a primeira parcela daqui a dez dias, o resto no dia anterior à reunião em Iedo.
Depois de uma pausa dramática deliberada, Sir William anunciou:
— Dentro de três dias, eu lhes direi se é aceitável.
Mais respiração presa, mais tentativas astutas de mudar o prazo de três para trinta, dez, oito, todas recebidas com firmeza e recusadas.
— Três dias.
Reverências polidas e a delegação se retirou. Assim que ficaram a sós, Johann comentou, radiante:
— É a primeira vez que conseguimos fazer algum progresso, Sir William, a primeira vez!
— Veremos. De qualquer forma, ainda não consigo entendê-los. E óbvio que tentavam nos desgastar. Mas por quê? De que adiantaria? Trouxeram o pergaminho, então por que não o entregaram logo no início e evitaram todo esse desperdício de tempo? Um bando de idiotas! E por que mandaram dois palanquins vazios?
Phillip Tyrer interveio, com alguma animação:
— Parece-me, senhor, que a insídia é uma das características deles.
— Pode ser. Venha comigo, Tyrer, por favor.
Sir William seguiu na frente para sua sala particular. Fechada a porta, ele disse, furioso:
— O Ministério do Exterior não lhe ensinou coisa alguma? É totalmente desprovido de cérebro? Não tem bom senso suficiente para manter um rosto impassível em reuniões diplomáticas? Ficou de miolo mole?
Tyrer se chocou com tanta fúria.
— Sinto muito, senhor, mas me senti tão satisfeito com sua vitória que...
— Não foi uma vitória, seu idiota! Foi apenas uma protelação, embora enviada pelos céus!
O alívio de Sir William pelo término da reunião, em que conseguira, contra suas expectativas, muito mais do que poderia desejar, servia para alimentar sua irritação.
— Seus ouvidos estão tapados com cera? Não ouviu “o que parece ser uma queixa justa”... essa é a maior abertura que eles poderiam deixar! Conseguimos um adiamento, isso é tudo, mas acontece que no momento me convém muito bem. Ficarei espantado se a tal reunião em Iedo ocorrer mesmo dentro de trinta dias. Na próxima vez, NÃO permita que seus sentimentos transpareçam, pelo amor de Deus, se algum dia se tornar um intérprete... Por falar nisso, é melhor aprender japonês bem depressa ou vai se descobrir no próximo navio de volta à Inglaterra, com um registro em sua ficha que o fará ser indicado para um posto na Esquimolândia pelo resto de sua vida!
— Sim, senhor.
Ainda furioso, Sir William percebeu que o jovem o fitava com uma expressão seca. Se perguntou o que havia de diferente nele. E foi então que notou seus olhos jovens e lembrou onde viu esse olhar antes — a mesma estranheza, quase indefinível, que o jovem soldado após sua primeira batalha também tinha? Ah, sim, claro, lembro agora! Nos olhos dos jovens que estavam voltando da Criméia, os ilesos e também os feridos... aliados ou inimigos. Que o choque da guerra arrancara a juventude, extirpara sua inocência, com uma rapidez tão suave, que ficaram mudados para sempre. E transparece não nos rostos, mas nos olhos. Quantas vezes já me contaram: antes da batalha, um jovem, e uns poucos minutos ou horas depois, adulto... quer seja britânico, russo, alemão francês ou turco, é tudo a mesma coisa.
Sou eu o idiota, não esse jovem. Esqueci que ele mal completou vinte e um anos e em seis dias já foi quase assassinado, passando por uma experiência tão violenta quanto qualquer homem pode ter. Ou mulher, diga-se de passagem. É verdade, percebi a mesma expressão nos olhos da moça. Foi uma estupidez da minha parte não compreender. Pobre moça... será que já fez dezoito anos? É terrível crescer tão depressa. Posso me considerar afortunado.
— Mas tenho certeza de que vai acabar fazendo tudo certo, Sr. Tyrer — disse ele, um pouco ríspido, invejando-o por ter passado pelo batismo de fogo com tanta bravura. — Essas reuniões são... o suficiente para pôr à prova a paciência de Jó, não é mesmo? Acho que merecemos um xerez.
Hiraga teve a maior dificuldade para escapar do jardim, através dos círculos de samurais, e se esgueirar de volta à estalagem dos Quarenta e Sete Ronin. Quando a alcançou, bastante atrasado, ficou chocado ao descobrir que a expedição de assassinato já partira para a emboscada. Ori disse, desolado:
— Um dos nossos informou que a delegação saíra do castelo exatamente como ontem, com os mesmos estandartes, cinco palanquins, e por isso presumimos que lorde Yoshi também a integrava.
— Todos deveriam esperar.
— E esperaram, Hiraga, mas se... se não partissem logo, nunca chegariam ao local a tempo.
Hiraga trocou de roupa num instante, vestindo um quimono barato, e pegou suas armas.
— Foi ao médico?
— Nós, mama-san e eu, achamos que seria perigoso demais ir até lá hoje. Posso ir amanhã.
— Então eu o verei em Kanagawa.
— Sonno-joi!
— Vá logo para Kanagawa. Corre perigo aqui.
Hiraga pulou por cima da cerca, seguiu por vielas, pontes e caminhos pouco usados, circulando até o castelo. Desta vez teve sorte e evitou todas as patrulhas.
A maioria dos palácios de daimios fora das muralhas do castelo se encontrava deserta. Aproveitando todas as coberturas, ele esgueirou-se de um jardim para outro, até as ruínas carbonizadas do que fora o palácio de daimio destruído pelo terremoto três dias antes. Como planejado, seus amigos shishi haviam se reunido para a emboscada perto do portão principal, também destruído, que dava para o caminho principal do castelo. Havia nove homens ali, não onze.
— Já não contávamos mais com você, Hiraga — sussurrou o mais jovem.e também o mais excitado. — Daqui, poderemos matá-lo com facilidade.
— Onde estão os samurais de Mori?
— Mortos. — Seu primo, Akimoto, deu de ombros. Era o mais corpulento, com vinte e quatro anos. — Viemos por caminhos separados, mas eu estava perto deles, e nós três esbarramos com uma patrulha. Ele fez uma pausa, antes de acrescentar, radiante:
— Fugi por um caminho, eles por outro. Vi quando um deles foi atingido por uma flecha e caiu. Nunca imaginei que pudesse correr tão depressa. Vamos esquecê-los. Quando Yoshi vai passar por aqui?
O desapontamento foi profundo quando Hiraga informou que a presa não estava no cortejo.
— O que faremos agora? — indagou um jovem alto e bonito, de dezesseis anos.— Esta emboscada é perfeita... meia dúzia de palanquins do Bakufu passando quase sem guardas.
— Este lugar é bom demais para arriscá-lo sem alguma razão especial — declarou Hiraga. — Vamos embora, um de cada vez. Akimoto, você pri...
O shishi de vigia assoviou em advertência. No mesmo instante, todos se esconderam, os olhos comprimidos em aberturas nas cercas quebradas. Um palanquim coberto, todo ornamentado, levado por oito carregadores seminus e acompanhado por uma dúzia de samurais com estandartes, passava a trinta e poucos metros de distância, encaminhando-se sem qualquer pressa para os portões do castelo. Não havia mais ninguém à vista, em qualquer direção.
Houve um imediato reconhecimento do emblema: Nori Anjo, o chefe do Conselho de Anciãos. E uma decisão imediata: “Sonno-joi!”
Com Hiraga à frente, eles correram como um único homem para o ataque, mataram os quatro guardas da frente e avançaram para o palanquim. Em seu excitamento, porém, cometeram um erro de cálculo de poucos segundos, o que permitiu a recuperação dos outros oito guardas, guerreiros experientes. Na confusão frenética, os carregadores berraram de medo, largaram o palanquim e fugiram — os que haviam escapado à violenta ofensiva inicial. Isso proporcionou a Anjo o momento de que precisava para escapulir pela porta aberta no outro lado do palanquim, enquanto a espada de Hiraga passava pela madeira macia e empalava a almofada em que ele estivera um segundo antes.
Praguejando, Hiraga retirou a espada, virou-se ao se descobrir ameaçado pelas costas, matou o homem depois do choque violento de metal contra metal e passou pelo palanquim, atrás de Anjo, que já se levantara, desembainhara sua espada e contava agora com a proteção de três samurais. Por trás de Hiraga, cinco de seus amigos duelavam com os quatro samurais, um shishi já morto, outro estendido no chão, mortalmente ferido, e um terceiro, gritando com sede de sangue, calculando como atingir o adversário, tropeçara num carregador soluçando e recebera um golpe terrível no flanco. Antes que o atacante pudesse recuperar o equilíbrio, outro shishi o golpeara com toda força, e a cabeça do samurai rolara pela terra.
Agora, eram sete contra seis.
Akimoto desvencilhou-se de sua luta e correu para ajudar Hiraga, que avançava contra Anjo e seus três guardas e estava levando a pior. Com uma finta espetacular, Hiraga forçou um dos guardas a se desequilibrar, matou-o, recuou, correu para o lado, a fim de atrair os outros dois samurais, proporcionando a Akimoto a abertura de que precisava para liquidar Anjo.
Foi nesse instante que soou um grito de advertência. Vinte guardas do castelo contornaram a curva no caminho, a cinqüenta metros de distância, e corriam em socorro a Anjo. Uma hesitação mínima de Akimoto deu a um guarda o tempo necessário para aparar o golpe violento que teria matado Anjo, permitindo-lhe fugir na direção dos reforços. Agora, os shishi se encontravam em total inferioridade numérica.
Não havia a menor possibilidade de matar Anjo! Nem de superar os oponentes!
— Recuar! — berrou Hiraga.
Como um só homem, a manobra ensaiada muitas vezes, Akimoto e os outros quatro remanescentes desvencilharam-se de seus duelos e correram de volta pelo portão destruído, Hiraga por último... e o jovem bastante ferido, Jozan, cambaleando atrás. Por um instante, os guardas ficaram confusos. Mas logo se recuperaram e partiram em perseguição, juntos com os reforços, enquanto alguns samurais interceptavam Jozan, que os manteve a distância, a espada levantada, girando, o sangue escorrendo do ferimento no flanco.
Akimoto seguiu na frente da retirada desordenada, através do palácio em ruínas, o caminho de fuga definido por vários reconhecimentos. Hiraga era a retaguarda, o inimigo se aproximando. Ao alcançar a primeira barricada, onde Gota esperava em emboscada, para apoiá-lo, Hiraga parou de repente, e os dois partiram para o contra-ataque, golpeando com a maior ferocidade, ferindo mortalmente um homem, obrigando outro a bater em retirada e derrubando um terceiro. Eles tornaram a fugir, no instante seguinte, levando o inimigo cada vez mais pelo labirinto.
Quase tropeçando, correram pela estreita abertura no muro meio queimado, onde Akimoto e outro homem esperavam, numa segunda emboscada. Sem hesitação, os dois liquidaram o primeiro atacante, gritando “Sonno-joi”, enquanto os demais, surpresos com o ataque súbito, pararam para se reagrupar. Quando soltaram seu grito de batalha, passaram por cima do cadáver do companheiro e saíram no outro lado da abertura, Akimoto, Hiraga e os outros shishi não mais podiam ser vistos, em parte alguma.
Os samurais espalharam-se e iniciaram uma busca meticulosa.enquanto o céu se enchia de nuvens escuras, ameaçadoras.
Na frente do portão em ruínas, Anjo estava agora cercado por guardas. Cinco dos seus homens haviam sido mortos, dois se achavam gravemente feridos. Os dois shishi mortos já haviam sido decapitados. Um jovem shishi se encontra estendido no chão, impotente, uma perna quase cortada, a segurá-la em agonia tentando impedir que se separasse do corpo. Jozan se encolhia contra um muro.
A chuva começou a cair. O samurai parado diante do jovem tornou a perguntar:
— Quem é você? Qual é o seu nome? Quem o mandou? Quem é seu líder-
— Já disse, sou um shishi de Choshu, Toma Hojo. Eu era o líder. Ninguém me mandou. Sonno-joi!
— Ele está mentindo, Sire — declarou um oficial, ofegante.
— Claro que está — disse Anjo, furioso. — Mate-o.
— Respeitosamente, solicito permissão para cometer seppuku.
— Mate-o!
O oficial, enorme, parecendo um urso, deu de ombros e avançou para o jovem. De costas para o ancião, ele sussurrou:
— Tenho a honra de agir como seu representante. Estique o pescoço.
A espada zuniu pelo ar, enquanto ele desfechava o golpe único. Formalmente, levantou a cabeça pelo topete, mostrando-a a Anjo.
— Eu vi — disse Anjo, seguindo o ritual correto, ao mesmo tempo em que sufocava de raiva por aqueles homens terem ousado atacá-lo, terem ousado deixá-lo apavorado, a ele, o chefe do roju! — E agora, aquele... ele também é um mentiroso. Mate-o!
— Com todo respeito, solicitou que ele tenha permissão para cometer seppuku.
Anjo já ia gritar que o oficial tinha de matar o assassino em potencial brutalmente ou cometer seppuku ele próprio, mas sentiu o súbito antagonismo coletivo dos samurais ao seu redor. O medo habitual dominou-o. Em quem posso confiar? Apenas cinco daqueles homens eram seus guardas pessoais.
Ele fingiu considerar o pedido. Quando conteve a fúria, acenou com a cabeça, virou-se e se encaminhou para os portões do castelo, sob a chuva crescente. Seus homens o acompanharam, enquanto os demais circulavam Jozan.
— Pode descansar por um momento, shishi — disse o oficial, gentilmente, passando a mão pelo próprio rosto, para remover a água da chuva. — Dêem-lhe um pouco de água.
— Obrigado.
Jozan se preparara para aquele momento desde que, com Ori, Shorin e os outros, jurara “Honrar o imperador e expulsar os estrangeiros”. Concentrando as forças que lhe restavam, ficou de joelhos e descobriu, horrorizado, que estava com medo de morrer. O oficial percebeu o terror, já esperava por isso. Adiantou-se no mesmo instante, agachou-se ao lado de Jozan.
— Tem um poema de morte, shishi? Pois recite-o para mim. Agüente firme. Não fraqueje agora. É um samurai e este é um dia tão bom quanto outro qualquer.
A voz era suave, para encorajar o jovem, fazer com que as lágrimas cessassem.
— Do nada para o nada, uma espada corta seu inimigo, uma espada corta o céu. Solte o seu grito de batalha, e viverá para sempre. Diga: Sonno-joi... de novo...
Durante todo o tempo, ele estivera se preparando. Com um movimento súbito e ágil, levantou-se, tirou a espada da bainha... e despachou o jovem para a eternidade.
— Puxa! — exclamou um de seus homens, com a maior admiração. — Uraga-san, foi um golpe maravilhoso.
— Sensei Katsumata, de Satsuma, foi um dos meus mestres — disse o oficial com a voz um pouco rouca.
Seu coração batia forte, como nunca antes, mas estava satisfeito por ter cumprido seu dever como um samurai. Um dos seus homens levantou a cabeça pelo topete. A chuva se transformou em lágrimas, diluindo as verdadeiras.
— Limpem a cabeça e a apresentem a lorde Anjo. — Uraga olhou para os portões do castelo e murmurou, antes de se afastar: — Os covardes me repugnam.
Naquela noite, quando era seguro, Hiraga e os outros se esgueiraram do porão, que fora escolhido com antecedência. Por caminhos diferentes, seguiram para sua casa segura.
O céu estava nublado, a noite era escura, o vento forte espalhava a chuva por todos os lados. Não vou sentir frio, não vou sentir desconforto, sou um samurai, Hiraga disse a si mesmo, seguindo o padrão de treinamento que era mantido em sua família desde que podia se lembrar. Assim como treinarei meus filhos e filhas... se meu karma é ter filhos e filhas, pensou ele.
— É tempo de você casar — dissera o pai, um ano antes.
— Concordo, pai. Respeitosamente, solicito que mude de opinião, e me permita escolher meu próprio casamento.
— Primeiro, é dever do filho obedecer ao pai, segundo, é dever do pai escolher as esposas de seus filhos e os maridos de suas filhas, terceiro, o pai de Sumomo não aprova, ela é Satsuma, não Choshu, e por último, embora desejável, ela não é aceitável. O que me diz da moça Ito?
— Por favor, pai, peço que me perdoe. Concordo que minha escolha não é perfeita, mas a família dela é samurai, ela foi treinada como samurai, e me conquistou por completo. Eu lhe suplico. Tem quatro outros filhos... só tenho uma vida, e nós, você e eu, concordamos que será devotada a Sonno-joi; assim, será uma vida curta. Conceda-me isso como o desejo de toda a minha vida.
Pelo costume, o pedido era da maior gravidade, o que significava que, se atendido, excluiria a possibilidade de qualquer outra solicitação.
— Está bem — admitira o pai, relutante. — Mas não como o desejo de toda uma vida. Pode firmar o compromisso quando ela fizer dezessete anos. Eu a receberei de braços abertos em nossa família.
Isso acontecera no ano passado. Poucos dias depois, Hiraga deixara Shimonoseki, supostamente para se juntar ao regimento de Choshu em Quioto, mas na verdade para se declarar por Sonno-joi, tornar-se um ronin... e pôr em prática sua adesão secreta e treinamento de quatro anos.
Agora era o nono mês. Dentro de três semanas, Sumomo completaria dezessete anos, mas agora ele se encontrava tão à margem da lei que seria impossíve um retorno seguro. Até ontem. O pai lhe escrevera: Por mais espantoso que possa parecer, nosso lorde Ogama ofereceu o perdão a todos os guerreiros que aderiram a Sonno-joi, e vai restaurar todos os estipêndios, se voltarem de imediato, renunciarem à heresia, e outra vez lhe jurarem fidelidade, em público. Você deve aproveitar a oportunidade. Muitos estão voltando.
A carta o entristecera, quase abalara sua determinação. “Sonno-joi é mais importante do que a família, do que lorde Ogama, e até mesmo do que Sumomo, dissera a si mesmo, muitas vezes. “Lorde Ogama não merece confiança. Quanto ao meu estipêndio...”
Por sorte, o pai gozava de relativa prosperidade, em comparação à maioria, e por causa do avô shoya fora promovido a hirazamurai, a terceira categoria de samurai. Acima, só havia o samurai sênior, hatomoto e daimio. Abaixo de hirazamurai, ficavam todos os outros — goshi, ashigaru, samurai rural e infantes, que pertenciam à classe feudal, mas ocupavam uma posição inferior a samurai. Assim, o pai tinha acesso às autoridades inferiores e a educação de seus filhos fora a melhor disponível.
Eu lhe devo tudo, pensou Hiraga.
É verdade, e fui obediente, empenhei-me em ser o melhor discípulo na escola de samurai, o melhor espadachim, o melhor em inglês. E recebi sua permissão e aprovação, assim como a do sensei, nosso mestre, para abraçar Sonno-joi e me tornar um ronin, para liderar e organizar guerreiros de Choshu, como uma vanguarda para a mudança. Só que a aprovação deles é secreta; se fosse conhecida, isso custaria a cabeça de meu pai e do sensei.
Karma. Estou cumprindo meu dever. Os gai-jin são a escória de que não precisamos. Só queremos suas armas, que vamos usar para matá-los.
A chuva aumentou. A tempestade era terrível, o que deixou Hiraga satisfeito, porque tornava menos provável que fossem interceptados. O banho, o saquê e as roupas limpas à sua espera o manteriam aquecido e forte. Não se preocupava pelo fracasso do ataque. Era o karma.
Fora-lhe incutido por seus mestres e sua herança que havia inimigos e traidores por toda parte, até que isso se tomara um estilo de vida. Seus passos eram controlados, a todo instante se certificava de que não era seguido, mudava de direção sem lógica e explorava o terreno à frente antes de avançar, sempre que possível.
Ao chegar à viela, porém, suas forças se esvaíram por completo. A estalagem dos Quarenta e Sete Ronin e a cerca ao redor haviam desaparecido.
Tudo o que restava era o vazio, um cheiro nauseante, cinzas fumegantes. Uns poucos corpos, de homens e mulheres. Alguns decapitados, outros retalhados em pedaços. Hiraga reconheceu seu camarada shishi, Gota, pelo quimono. A cabeça de mama-san fora espetada na ponta de uma lança, fincada na terra. Havia um cartaz pendurado: É contra a lei abrigar criminosos e traidores. O sinete oficial por baixo era do Bakufu, assinado por Nori Anjo, chefe do roju.
Hiraga foi dominado por uma fúria intensa, mas era uma ira gelada, que apenas se acrescentou às camadas que já existiam em seu íntimo. Os malditos gai-jin, pensou ele. A culpa é deles. Foi por causa dos gai-jin que isso aconteceu. Seremos vingados.
13
Domingo, 28 de setembro:
Malcolm struan emergiu do sono devagar. Os sentidos sondaram, testaram. Já conhecia a dor mental, perdera dois irmãos e uma irmã; a angústia causada pela embriaguez do pai, e seus crescentes acessos de raiva; de mestres impacientes; de sua necessidade obsessiva de se superar, porque um dia seria o tai-pan; e do medo corrosivo de se mostrar inadequado, por mais que se preparasse, treinasse, rezasse e trabalhasse, de dia e de noite, em cada dia e cada noite de sua vida — não fora uma infância normal, como a de outras crianças.
Mas agora, como nunca antes, precisava testar o nível de seu despertar, sondar a profundeza da dor física que teria de suportar hoje, como uma nova norma, ignorando os súbitos e terríveis espasmos que chegavam sem qualquer aviso ou lógica.
Apenas uma dor latejante, mas melhor do que ontem. Quantos dias desde a estrada de Tokaidô? Dezesseis. Isso mesmo, era o décimo sexto dia.
Malcolm permitiu-se despertar um pouco mais. Não restava a menor dúvida, melhor do que ontem. Olhos e ouvidos abertos agora. O quarto firme, na claridade do amanhecer. Céu claro, vento ameno, sem tempestade.
A tempestade cessara dois dias antes. Fustigara por oito dias, com a força de um tufão, e desaparecera tão depressa quanto surgira. A esquadra ancorada diante de Iedo se dispersara no primeiro dia, procurando a segurança em alto-mar. Entre todos os navios de guerra, só a nave capitânia francesa, a primeira a deixar Iedo, conseguira retornar sã e salva a Iocoama. Nenhum outro navio voltara até agora. Ainda não havia motivos de preocupação, mas todos observavam o horizonte, apreensivos, torcendo e orando.
Durante a tempestade, um navio mercante fora lançado para a terra, ern Iocoama, alguns prédios foram avariados, muitos cúteres e barcos de pesca se perderam, a devastação assolara a aldeia e Yoshiwara, várias barracas no acampamento militar foram levadas pelo vendaval, mas não houvera baixas, nem ali, nem na colônia.
Tivemos muita sorte, pensou Struan, concentrando-se em seguida no problema central de seu universo. Posso sentar?
Uma tentativa hesitante, meio desajeitada. Ai! Dor, mas não muito intensa, fez força com os dois braços e ergueu o tronco, as mãos apoiadas por trás.
Suportável. Melhor do que ontem. Ele esperou um momento, depois inclinou-se para a frente, ergueu um braço de apoio, com extremo cuidado. Ainda suportável. Removeu o outro braço. Ainda suportável. Empurrou as cobertas para o lado, e tentou, cauteloso, estender as pernas para o chão. Mas não conseguiu, a pontada de dor foi grande demais. Uma segunda tentativa, outro fracasso.
Não importa, tornarei a tentar mais tarde. Baixou o corpo para o colchão, tão gentilmente quanto podia. Quando removeu o peso da cintura, transferindo-o para as costas, soltou um suspiro de alívio.
— Paciência, Malcolm — dizia Babcott todos os dias, em cada visita... três ou quatro por dia.
— Que se dane a paciência!
— Concordo... mas você está se recuperando bem.
— Mas quando posso me levantar?
— Agora, se assim quiser... mas eu não aconselharia.
— Quanto tempo?
— Mais umas poucas semanas.
Ele praguejava furioso, mas de certa forma sentia-se satisfeito por aquela folga. Proporcionava-lhe mais tempo para considerar como iria lidar com o fato de ser agora o tai-pan, com sua mãe, com Angelique, com McFay, e com os prementes problemas de negócios.
— O que me diz das armas para Choshu? — indagara McFay, poucos dias antes. — Será a continuação de uma vultosa transação.
— Tenho uma idéia. Deixe comigo.
— Norbert já farejou as possibilidades desses Choshus e é provável que lhes faça uma oferta menor do que a nossa.
— Que se danem Norbert e a Brock! Seus contatos não são tão bons quanto os nossos, e Dmitri, Cooper-Tillman e a maioria dos outros mercadores americanos na China estão do nosso lado.
— Mas não no Havaí — ressaltara McFay, amargurado.
Na última correspondência, dez dias antes — e desde então não houvera mais notícias, pois o vapor bimensal só deveria voltar dentro de cinco dias —, Tess Struan escrevera:
O Victoria Bank nos traiu. Creio que eles vêm secretamente apoiando Morgan Brock em Londres, com vultosas cartas de crédito. Assim, Morgan Brock comprou ou subornou, em segredo, todos os nossos agentes no Havaí, açambarcando todo o mercado de açúcar, e nos excluindo por completo. Pior ainda, embora eu não tenha provas, circula o rumor de que ele tem estreitos contatos com o presidente rebelde Jefferson Davis e seus plantadores de algodão, propondo negociar todas as colheitas futuras para a indústria têxtil inglesa... um negócio que tornaria Tyler e Morgan os homens mais ricos da Ásia. ISSO NÃO DEVE ACONTECER! Não sei mais o que fazer, Jamie. O que você sugere? Entregue este despacho ao meu filho, com o mesmo pedido urgente de ajuda.
— Qual é a sua sugestão, Jamie?
— Não tenho nenhuma, Mal... tai-pan.
— Se o negócio está fechado, então está fechado, e ponto final. Poderíamos interceptar o algodão de alguma forma?
McFay ficara aturdido.
— Um ato de pirataria?
Struan não perdera a calma.
— Se fornecessário. O velho Brock faria isso, já fez várias vezes, no passado. É uma possibilidade, o algodão seguirá todo em seus navios. E a segunda: nossa marinha rompe o bloqueio da União e depois recolhemos todo o algodão que quisermos.
— Seria possível, se declarássemos guerra à União, o que é inadmissível.
— Não concordo. Afinal, devemos nos postar ao lado de Davis, já que o algodão sulista é nosso sangue vital. Só assim eles poderiam vencer; caso contrário, será impossível.
— Tem toda razão. Mas também não podemos esquecer que somos igualmente dependentes do Norte.
— Como podemos tirar os navios de Brock? Deve haver algum meio de romper a corrente. Se ele não puder transferir a carga, está na bancarrota.
— O que Dirk faria?
— Saltaria na jugular — respondeu Malcolm, sem hesitar.
— Então é isso o que temos de descobrir...
Onde, e qual será? Ele perguntou a si mesmo, mais uma vez, estendido na cama, quieto, desejando que o cérebro funcionasse com lucidez naquele problema, e em todos os outros. Angelique? Não, pensarei nela mais tarde... mas já sei que a amo mais e mais, a cada dia que passa.
Graças a Deus que agora posso escrever cartas. Preciso escrever de novo para a mãe; se alguém conhece a jugular, só pode ser ela, já que Tyler Brock é seu pai e Morgan seu irmão. Mas como ela ousou desdenhar a família de Angelique? Devo escrever para o pai de Angelique? A resposta é sim, mas ainda não, haverá tempo suficiente depois.
Há muita correspondência para atualizar, livros a encomendar na Inglaterra, o Natal se aproxima, o baile de caridade do Jóquei Clube, em Hong Kong, tenho de pensar no baile anual da Struan, nas reuniões de hoje: Jamie, pelo menos duas vezes, Seratard esta tarde... o que ele quer? O que mais está planejado para hoje? A visita de Phillip para conversar, logo depois do desjejum... espere um instante... não é hoje. Sir William ordenou ontem que ele voltasse a Iedo, a fim de preparar a legação para o encontro com o Conselho de Anciãos, dentro de vinte dias.
— A reunião vai acontecer mesmo, Sir William? — perguntara ele, quando o ministro o visitara.
Com a esquadra não mais protegendo a legação, e uma ampla atividade de samurais ao redor, embora não hostil, Sir William considerara prudente, depois de alguns dias para salvar as aparências, retornar a Iocoama, ostensivamente para esperar o pagamento da indenização.
— Creio que sim, Sr. Struan. Talvez não pontualmente, mas o cerimonial vai se realizar mais ou menos na ocasião marcada, e teremos dado um grande salto para a frente. Se eles efetuarem o primeiro pagamento, de cinco mil libras, conforme o prometido... neste caso, teremos uma boa indicação. Ah, antes que eu me esqueça. Soube que um vapor seu deve partir hoje para Hong Kong. Poderia permitirque um dos meus assistentes e alguma correspondência urgente viajassem nele? Minha esposa e dois filhos são esperados para breve, e tenho de fazer alguns planos.
— Claro. Falarei com McFay. Se quiser um lugar em qualquer dos nossos navios, basta avisar.
— Obrigado. Eu planejava mesmo tirar duas semanas de férias quando eles chegarem. Levamos uma vida muito isolada aqui, não acha? Sinto saudade da agitação de Hong Kong, que é uma cidade e tanto, embora não seja muito apreciada pelo pessoal de Whitehall. Um excelente rosbife, partidas de críquetee tênis, teatro ópera, e vários dias nas corridas... seria maravilhoso, depois de uma longa temporada aqui. Quando pretende voltar? Quando?
A notícia do desastre na Tokaidô já devia ter alcançado Hong Kong há quase uma semana, presumindo que o navio de correspondência passara pela tempestade sem maiores contratempos. A mãe deve ter tido um acesso, embora nada deixasse transparecer para os outros. Virá para cá no primeiro navio disponível? E possível, mas tem de cuidar do QG... e de Emma, Rose e Duncan. Com o pai morto, e eu ferido, dezoito dias é tempo demais para ela se ausentar. E mesmo que já tenha embarcado, ainda me restam três ou quatro dias para preparar minhas defesas. E tranho considerá-la como possível inimiga; ou, se não inimiga, pelo menos não tão amiga. Mas talvez ela seja de fato uma amiga, sempre foi, embora distante, sempre cuidando do pai, com pouco tempo para nos dispensar.
— Olá, meu filho. Como eu poderia alguma vez ser sua inimiga?
Ele ficou atônito ao vê-la parada junto da cama, assim como o pai, o que era estranho, porque lembrou que o pai morrera, mas isso parecia não ter qualquer importância, e Malcolm se levantou no mesmo instante, sem sentir dor, pôs-se a conversar com os dois, na maior felicidade, a bordo de um cúter cruzando a baía de Hong Kong, com nuvens de tempestade por toda parte; ambos o escutavam na maior deferência, e aprovavam seus planos hábeis, Angelique sentada na ipa, o vestido diáfano, os seios sedutores, descobertos agora, e suas mãos ali, descendo, tudo à mostra agora, o corpo de Angelique se comprimindo contra o seu, as mãos acariciando seu rosto...
— Malcolm?
Ele despertou sobressaltado. Angelique se encontrava ao lado da cama sorrindo, usando um discreto e rico penhoar de seda azul. O sonho se desvaneceu exceto pela ameaça e promessa do corpo de Angelique, sempre pulsando em seu subconsciente.
— Eu... ahn... estava sonhando, minha querida... sonhando com você.
— É mesmo? E o que sonhou?
Struan franziu o rosto, tentando recordar.
— Não me lembro — murmurou ele, sorrindo. — Só que você estava linda. Adoro essa roupa.
Ela fez uma pirueta para mostrá-la.
— Foi o alfaiate que você pediu a Jamie para arrumar que o fez! Mon Dieu, Malcolm, ficou maravilhoso... encomendei quatro vestidos, espero que não se incomode... oh, obrigada!
Ela inclinou-se para beijá-lo.
— Espere, Angelique, espere só um segundo! Veja isto!
Com todo cuidado, ele soergueu-se, dominando a dor, apoiado nas duas mãos, erguendo-as em seguida.
— Mas isso é maravilhoso, chéri! — Na maior satisfação, ela pegou as mãos de Malcolm. — Ah, monsieur Struan, acho que é melhor eu providenciar uma acompanhante agora, e nunca mais vir sozinha ao seu quarto!
Sorrindo, Angelique chegou mais perto, pôs as mãos nos ombros dele, deixou que seus braços a envolvessem, beijou-o. Foi um beijo ligeiro, prometedor, mas evitando a ânsia de Struan por mais. Sem astúcia, ela beijou-o na orelha, depois se empertigou, deixou que a cabeça de Struan repousasse em seus seios, a intimidade agradando-a... e muito mais a ele. Seda macia, com aquele calor especial, fantástico e insubstituível.
— Malcolm, falou mesmo sério quando disse que queria casar comigo?
Ela sentiu os braços de Struan se contraírem, o tremor de dor.
— Claro. Já lhe disse muitas vezes.
— Acha que seus pais... desculpe, sua mãe vai aprovar? Espero que sim.
— Claro que ela aprovará.
— Posso escrever para papai? Eu gostaria de lhe contar.
— Escreva quando quiser; eu também escreverei.
A voz saiu rouca, e Malcolm, inundado de afeição, a necessidade prevalecerá sobre a discrição, beijou a seda, e outra vez, com mais ímpeto, para quase praguejar em voz alta quando a sentiu recuar, antes que acontecesse.
— Desculpe — murmurou ele.
— Não é preciso desculpas, nem o seu sentimento de culpa anglo-saxão, querido, não entre nós. Eu também o quero. — E depois, seguindo seu
Angelique mudou de ânimo, no controle total, sua felicidade contagiante. — Eu agora serei a enfermeira Nightingale.
Ela afofou os travesseiros, começou a ajeitar a cama.
— Esta noite teremos um jantar francês, oferecido por monsieur Seratard, e para amanhã ele marcou um sarau. André Poncin vai dar um recital de piano de Beethoven... prefiro-o a Mozart... também Chopin, e uma peça de um jovem chamado Brahms.
Um sino de igreja repicou, o chamado para o serviço matutino, seguido quase que no mesmo instante por outros, mais suaves e melodiosos, da igreja católica.
— Pronto — murmurou Angelique, ajudando-o a se recostar confortavelmente. — Agora vou para minha toilette e voltarei depois da missa, quando você estiver arrumado.
Ele estendeu a mão.
— Você é maravilhosa. Eu a a...
Abruptamente, os olhos de ambos desviaram-se para a porta, pois alguém mexia na maçaneta. Mas a porta estava trancada.
— Passei o trinco enquanto você dormia. — Ela riu, como uma menina empenhada numa brincadeira. A maçaneta tornou a se mexer.— Os criados sempre entram sem bater. Precisam aprender algumas lições.
— Amo! — gritou o criado. — O chá!
— Diga a ele para ir embora, e voltar daqui a cinco minutos.
Struan, contagiado pelo prazer de Angelique, gritou a ordem em cantonês, e o homem se afastou, resmungando. Ela riu.
— Deve me ensinar a falar chinês.
— Tentarei.
— Como se diz “Eu amo você”?
— Eles não têm uma palavra para amor, não como nós.
Angelique franziu o rosto.
— Que coisa mais triste!
Ela foi até a porta, puxou o trinco, soprou um beijo para Struan e desapareceu no quarto contíguo.
Malcolm Struan ficou olhando para a porta que dava para o outro quarto, ansioso. E depois ouviu os sinos mudarem, tornando-se mais insistentes, e se lembrou: a missa!
Sentiu um aperto no coração. Não havia pensado nisso, que ela era católica. Sua mãe era uma devota intransigente da igreja anglicana, ia ao serviço duas vezes no domingo, o pai também, todos os filhos, em procissão, assim como as demais famílias decentes de Hong Kong. Católica?
Ora, não faz diferença, eu... não me importo. Preciso tê-la, disse a si mesmo, a ânsia saudável e voraz pulsando por todo o corpo, predominando sobre a dor. E de qualquer maneira!
Naquela tarde, quatro suados carregadores japoneses pousaram no chão a arca com cintas de ferro, observados por três funcionários subalternos do Bakufu, Sir William, intérpretes, um oficial do departamento de contas do exército, um shroff da legação, chinês, e Vargas, incumbido de fiscalizá-lo.
Estavam na principal sala de recepção da legação, as janelas abertas, com Sir William determinado a não se mostrar radiante. Com um floreado, um dos representantes do Bakufu exibiu uma chave e abriu a arca. Lá dentro, havia dólares de prata mexicanos, umas poucas barras de ouro de tael e algumas de prata.
— Pergunte por que a indenização não é toda em ouro, como combinamos.
O intérprete fez a pergunta, e depois traduziu a resposta:
— Ele diz que não conseguiram obter o ouro a tempo, mas que os dólares mexicanos são limpos, uma moeda legal, e agradeceria se lhe déssemos um recibo.
Moedas “limpas” eram aquelas que não tinham sido raspadas ou cortadas com a remoção de uma parte da prata, o que constituía uma prática comum! Enganando-se os incautos.
— Comecem a contar.
Feliz, o shroff da legação despejou o conteúdo da arca no tapete. No mesmo instante avistou uma moeda aparada, e Vargas outra, e mais outra. Foram postas de lado. Todos os olhos fixavam-se no tapete, nas pilhas crescentes de moedas. Cinco mil libras esterlinas era uma quantia considerável, quando se levava em consideração que um intérprete em tempo integral ganhava quatrocentas por ano e ainda tinha de pagar seus alojamentos, um shroff recebia cem (embora uma boa porcentagem de tudo o que passava por suas mãos encontrasse um jeito de permanecer grudada nelas), um criado em Londres vinte por ano, um soldado cinco pence por dia, um marujo seis, um almirante seiscentas libras por ano.
A contagem foi efetuada depressa. Os dois shroffs verificaram duas vezes o peso de cada barra de ouro, e depois o peso das pilhas de moedas desbastadas, usando um ábaco para calcular o total, contra a taxa de câmbio atual. Vargas anunciou:
— Temos quatro mil e oitenta e quatro libras, seis xelins e sete pence, Sir William, em moedas limpas, quinhentas e vinte libras em ouro, noventa e duas libras em moedas cortadas, dando um total de quatro mil, seiscentas e noventa e sete libras, dois xelins e sete pence.
— Desculpe, senhor, mas são oito pence.
O chinês acenou com a cabeça, o rabicho longo e grosso balançando, efetuando o pequeno ajuste, acertado de antemão com Vargas, decidindo que a quantia que seu equivalente português deduzira, para honorários de ambos, dois e meio por cento, ou cento e dezessete libras, oito xelins e seis pence, era menos do que ele manobraria para tirar, mas aceitável, por meia hora de trabalho. Sir Willian disse:
— Vargas, guarde tudo na arca, dê-lhes um recibo, com a ressalva de que a parte a menos será acrescentada no próximo pagamento. Johann, agradeça e avise que esperamos todo o resto, em ouro, dentro de dezenove dias.
Johann obedeceu. No mesmo instante, o intérprete japonês iniciou uma longa declaração.
— Eles pedem agora uma extensão do prazo, senhor, e...
— Não haverá nenhuma extensão do prazo.
Sir William suspirou, ignorou a presença dos outros e preparou-se para mais uma hora de conversa interminável, fechando os ouvidos, até que, surpreso, ouviu Johann dizer:
— Eles chegaram finalmente à questão principal, senhor, a reunião em Iedo. Pedem que seja adiada por mais trinta dias, para serdaqui a cinqüenta dias, a contar de hoje... as palavras exatas são as seguintes: o xógum já terá voltado de Quioto a esta altura, e mandou o Conselho de Anciãos comunicar aos ministros estrangeiros que lhes concederá uma audiência nesse dia.
A fim de ganhar tempo para pensar, Sir William gritou:
— Lun!
O chinês apareceu no mesmo instante e Sir William ordenou:
— Chá!
As bandejas chegaram em poucos segundos. E também charutos, rapé, fumo para cachimbo. Não demorou muito para que a sala ficasse impregnada de fumaça, todos tossindo, enquanto Sir William avaliava suas opções.
Primeiro e acima de tudo, estou provavelmente lidando com funcionários de baixo nível, o que significa que qualquer coisa acertada aqui será alvo de negociações adicionais. Depois, com toda certeza, os cinqüenta dias serão prolongados para dois meses, talvez mesmo três, mas se tivermos uma audiência com o poder supremo, sob a liderança britânica, é claro, daremos um passo à frente permanente. Na verdade, não me importo com um adiamento para três meses, até quatro. A esta altura, já terei a aprovação de lorde Russell para a guerra, os reforços estarão a caminho, da índia e Hong Kong, o almirante receberá sua autorização, e contaremos com as forças necessárias para atacar, capturar e fortificar Iedo, se a situação chegar a esse ponto.
Eu poderia dizer que devemos ter a reunião planejada, e depois o encontro com o xógum. Seria melhor assim, mas tenho a impressão de que eles não querem contrariar os desejos do místico xógum, e vão nos engabelar mais uma vez. Johann avisou:
— O porta-voz diz que é hora de se despedirem, já que ficou tudo acertado.
— Não há nada acertado. Não é possível conceder uma extensão de trinta dias, por muitos motivos. Já marcamos uma data para a reunião com o Conselho de Anciãos, que terá de ocorrer como foi planejado. O encontro com o xógum será vinte dias depois.
Depois de uma hora de suspiros, silêncios consternados e rudes comentários anglo-saxões, Sir William resolveu ceder um pouco e chegou a um compromisso intermediário: a reunião com o Conselho de Anciãos ocorreria como planejado, mas o encontro com o xógum seria vinte depois. Quando tornou a ficar a sós com William, Johann comentou:
— Eles não vão cumprir o que combinaram.
— Sei disso. Mas não importa.
— Sir William, meu contrato termina dentro de dois meses. Não vou renová-lo.
— Não posso dispensar seus serviços pelo menos por mais seis meses — respondeu Sir William, incisivo.
— É tempo de voltar para casa. Haverá um banho de sangue aqui, muito em breve, e não quero minha cabeça espetada na ponta de um chuço.
— Aumentarei seu salário em cinqüenta libras por ano.
— Não é o dinheiro, Sir William. Estou cansado. Noventa e oito por cento de toda a conversa não passam de conversa fiada. Não tenho mais a menor paciência para peneirar o joio do trigo do barril de esterco.
— Preciso de você para essas duas reuniões.
— Elas nunca vão ocorrer. Mais dois meses, depois caio fora, o dia exato está no contrato. Sinto muito, Sir William, mas será o fim. Agora, se me dá licença, vou me embriagar.
Ele se retirou. Sir William voltou à sua sala, foi até a janela, esquadrinhou o horizonte. Era quase o pôr-do-sol agora. Nenhum sinal da esquadra. Por Deus, espero que todos estejam sãos e salvos. Devo encontrar algum meio de manter Johann. Tyrer não estará preparado pelo menos por mais um ano. E em quem eu poderia confiar? Mas que droga!
A luz do sol poente ainda iluminava a sala de poucos móveis, mas não era o suficiente para se ver direito. Por isso, ele acendeu um lampião a óleo, ajustando o pavio de forma meticulosa. Havia pilhas de despachos na mesa, sua edição de All the Year Round, há muito lida, de capa a capa, assim como todos os jornais trazidos pelo último navio de correspondência, e vários números de Illustrated London News e Punch. Sir William pegou o exemplar de Pais e Filhos, de Turguenev, em russo, enviado por um amigo na corte de São Petersburgo, e que estava entre vários livros em inglês e francês. Começou a ler, mas não conseguia se concentrar. Por isso, largou-o e iniciou a segunda carta do dia para o governador de Hong Kong, relatando os detalhes da reunião de hoje e pedindo um substituto para Johann. Lun entrou, sem fazer barulho e fechou a porta.
— O que é, Lun?
Lun aproximou-se da mesa, hesitou, mas acabou dizendo, em voz baixa:
— Senhor, ouvi que vai haver problemas, grandes problemas, muito em breve, na Casa Grande de Iedo.
Sir William fitou-o, surpreso. Casa Grande era como os criados chineses chamavam a legação em Iedo.
— Que problemas? Lun deu de ombros.
— Problemas.
— Quando?
Lun tornou a dar de ombros.
— Uísque com água, senhor?
Sir William acenou com a cabeça, pensativo. De vez em quando Lun lhe sussurrava rumores, com uma fantástica capacidade de acertar. Ele observou o chinês ir até o aparador e preparar o drinque, do jeito como gostava.
Phillip Tyrer e o capitão de kilt observavam o mesmo pôr-do-sol, de uma janela superior na legação em Iedo, os grupos usuais de samurais postados além dos muros e em todos os acessos à colina. Manchas vermelhas, laranjas e marrons no horizonte vazio misturavam-se com uma faixa azul, logo acima do mar.
— Será que teremos bom tempo amanhã?
— Não sei muita coisa sobre o tempo aqui, Sr. Tyrer. Se estivéssemos na Escócia, eu poderia lhe dar uma previsão. — O capitão, ruivo, empertigado, de trinta anos, soltou uma risada. — Chuva sem parar, com pequenos períodos de estiagem... ora, não é tão ruim assim.
— Não conheço a Escócia, mas pretendo ir até lá na minha próxima licença.
— Quando volta para casa?
— Talvez no próximo ano ou no seguinte. Este é apenas meu segundo ano. Os dois tomaram a concentrar sua atenção na praça. Quatro Highlanders, sob o comando de um sargento, subiram a ladeira, pelo meio dos samurais, e passaram pelos portões de ferro, retornando de uma patrulha de rotina ao cais, onde havia um destacamento de fuzileiros e um cúter. Os samurais mantinham-se por ali durante todo o tempo, às vezes conversando, agrupados em torno de fogueiras, que acendiam se fazia frio, numa constante movimentação. Ninguém, soldado ou funcionário da legação, fora impedido de entrar ou sair, embora todos fossem submetidos a um escrutínio silencioso.
— Com licença, mas preciso falar com o sargento agora, para me certificar de que o cúter continua em posição, e tomar as providências para a noite. Jantar às sete, como sempre?
— Isso mesmo.
Assim que ficou sozinho, Tyrer abafou um bocejo nervoso, espreguiçou-se, mexeu o braço, para atenuar a ligeira dor que ainda sentia ali. O ferimento sarara sem problemas, não precisava mais usar uma tipóia. Tenho muita sorte, refletiu ele, exceto por Wee Willie. Não entendo por que ele me mandou para cá. Afinal, eu deveria estar me preparando para ser intérprete, não militar. Droga, droga, droga. E agora perderei o recital de André, que aguardava com tanta ansiedade. Angelique vai comparecer, com toda certeza.
Rumores de seu noivado secreto haviam se espalhado pela colônia, como um vento foehn, o vento forte e seco que desce das montanhas, turbulento. As insinuações lançadas a ela ou a Struan não haviam produzido negativa ou confirnação, nem sequer uma indicação. No clube, as apostas eram dois contra um como se tratava de um fato, vinte contra um como o casamento nunca se consumaria. E pelo amor de Deus, Jamie, Struan está tão doente quanto um cachorro, ela é católica, e você conhece muito bem a mãe dele!
— Aceito a aposta. Ele melhora a cada dia que passa, e você não o conhece tão bem como eu. Dez guinéus contra duzentos. Acho que acontece.
— Charlie, que vantagem você me dá de que ela vai conseguir o que quer?
— Não tem a menor possibilidade.
— Peitos-de-Anjo não se contentará em ser amásia de ninguém.
— Mil contra um?
— Apostado... um guinéu de ouro!
Para repulsa de Tyrer e Pallidar, as cotações e apostas, mais e mais pessoas aderindo, mudavam todos os dias.
— Nunca vi gente tão sórdida!
— Tem toda razão, Pallidar. Uma escória!
Por mais intensas que fossem as especulações sobre Struan e Angelique eram ainda maiores sobre a extensão da tempestade e a esquadra, e se temia o pior, que pudesse estar em dificuldades, talvez mesmo houvesse naufragado. Ainda por cima, os mercadores japoneses se mostravam mais nervosos do que o habitual e sussurravam rumores de insurreições por todo o Japão, contra ou a favor do Bakufu, e que o místico micado, supostamente o sumo sacerdote de todos os japoneses, que a tudo controlava de Quioto, ordenara que os samurais atacassem Iocoama.
— Conversa fiada, se querem saber minha opinião — diziam os ocidentais, uns para os outros.
Mesmo assim, mais e mais armas eram compradas. Diziam até que as esposas de dois mercadores dormiam com uma arma carregada ao lado da cama. A cidade dos bêbados, segundo os rumores, transformara-se em um acampamento pronto para a guerra.
Poucos dias antes, ocorrera um ato de guerra: um navio mercante americano, meio avariado pela tempestade, conseguira alcançar Iocoama. Nos estreitos de Shimonoseki, na rota de Xangai para Iocoama, com uma carga de prata, munição e armas, devendo seguir depois para as Filipinas, com ópio, chá e outras mercadorias, fora bombardeado por baterias em terra.
— São uns demônios!— gritou alguém, por cima daexplosão de ira no clube.
— Tem toda razão! E navegávamos como gente pacífica! Aqueles miseráveis de Choshu foram bastante acurados. Eu bem que gostaria de saber quem foi o desgraçado que lhes vendeu os canhões. Acertaram nosso mastro antes que pudéssemos efetuar uma ação evasiva. Claro que respondemos ao fogo, mas só tínhamos dois canhões de cinco libras, que não assustam ninguém. Contamos pelo menos vinte canhões.
— Por Deus, vinte canhões e artilheiros competentes podem fechar Shimonoseki com a maior facilidade, e estaremos na maior encrenca se isso acontecer. É o caminho mais rápido e o único seguro por aqui.
— Não podemos jamais esquecer que as águas interiores constituem nossa passagem obrigatória!
— E por onde anda a esquadra? Espero que esteja sã e salva!
— E se não estiver?
— Neste caso, Charlie, teremos de chamar outra...
Que gente mais estúpida, pensou Tyrer, só sabem pensar em chamar a esquadra, beber e ganhar dinheiro.
Graças a Deus que o almirante francês trouxera André. Graças a Deus pela presença de André, mesmo que ele seja instável e esquisito, mas isso só acontece porque é francês. Graças a ele, já tenho dois cadernos cheios de palavras e frases em japonês, minha agenda ficou repleta de folclore, e terei um encontro com um jesuíta assim que voltar a Iocoama. É um progresso espetacular, e cada vez se torna mais importante para mim aprender depressa... e tudo isso sem sequer pensar em Yoshiwara.
Três visitas. As duas primeiras acompanhado, a terceira sozinho.
— André, não tenho palavras para exprimir o quanto sou reconhecido por todo o tempo e ajuda que tem me dispensado. E pelo que aconteceu esta noite, nunca serei capaz de retribuir.
Isso fora depois da primeira visita.
Nervoso, afogueado, quase gaguejando, mas simulando indiferença, ele saíra com André da colônia ao anoitecer, juntando-se aos grupos joviais de homens a caminho de Yoshiwara, passando pelos guardas samurais, levantando o chapéu e recebendo mesuras ligeiras em resposta, através da ponte do paraíso, na direção dos portões altos na cerca de madeira.
— Yoshiwara significa lugar dos juncos — explicara André, expansivo, os dois bem preparados com champanhe, que no caso de Tyrer só servira para aumentar os pressentimentos. — Era o nome de um distrito em Iedo, uma área de pântano drenada, onde foram instalados os primeiros bordéus, pelo xógum Toranaga, há dois séculos e meio. Antes disso, os bordéus espalhavam-se por toda parte. Desde então, pelo que nos contaram, todas as cidades, grandes e pequenas, têm áreas semelhantes, sempre cercadas, licenciadas, sob rigoroso controle. Pelo costume, muitas são chamadas de Yoshiwara. Está vendo aquilo?
Por cima dos portões, gravados na madeira com extrema elegância, havia uma série de caracteres chineses.
— Significam: O desejo pressiona e é preciso tomar uma providência.
Tyrer rira, bastante nervoso. Muitos guardas, dentro e fora dos portões. Na noite anterior, quando se oferecera para escoltá-lo — estavam no clube na ocasião, bebendo —, André comentara que um mercador lhe dissera que os guardas se encontravam ali não apenas para manter a paz, mas acima de tudo para impedir que as prostitutas escapassem.
Ou seja, são todas escravas, não é mesmo?
Para seu espanto, vira Poncin ficar vermelho de raiva.
Mon Dieu, não pense nelas como prostitutas, nem as chame de prostitutas, como entendemos a palavra. Não são escravas. Algumas são contratadas por um determinado número de anos, muitas vendidas pelos pais ainda pequenas, também por um prazo fixo. Os contratos são sempre aprovados e registrados pelo Bakufu.
Não são prostitutas, mas sim damas do mundo do salgueiro, e não se esqueça disso. Damas!
— Desculpe, eu...
Mas André não o deixara falar.
— Algumas são gueixas... Pessoas da arte... treinadas para distrair os clientes cantam, dançam, promovem jogos tolos e não podem ser levadas para a cama. Quanto ao resto, Mon Dieu, já lhe disse, não pense nelas como prostitutas, pense como mulheres do prazer, treinadas para agradar, ao longo de muitos anos.
— Desculpe, mas eu não sabia.
— Se as tratar direito, elas vão lhe proporcionar prazer, quase de qualquer tipo que desejar... se elas quiserem... e se o dinheiro que você lhes der for apropriado. Você dá a elas dinheiro, que não tem qualquer significado, e elas retribuem com sua juventude. É uma estranha troca. — André o fitara de uma maneira esquisita. — Elas dão sua juventude e escondem as lágrimas que você causa.
Ele tomara o vinho e ficara olhando fixamente para o copo, dominado por um súbito sentimentalismo. Tyrer lembrava como tornara a encher os copos, censurando-se por violar o sentimento de amizade descontraída, uma amizade valiosa para ele, jurando que no futuro seria mais cauteloso, e especulando sobre o motivo da repentina fúria.
— Lágrimas? — murmurara.
— A vida delas não é boa, mas ainda assim nem sempre é ruim. Para algumas, pode ser maravilhosa. As mais belas e eficientes se tornam famosas, são procuradas até pelos mais importantes daimios... como chamam os reis da terra, podem casar com homens em altas posições, casar com ricos mercadores ou com samurais.
André fizera uma pausa, antes de acrescentar, com uma certa amargura: