Hiraga soltou uma risada, o vinho já lhe subira à cabeça.
— Fui escolhido para essa escola de holandês, e muitas vezes lamentei a honra, pois o inglês é difícil, tem um som horrível.
— Eram muitos na escola? — perguntou Ori.
Através do nevoeiro do Saquê, uma campainha de alarme soou, e Hiraga compreendeu que fornecia muitas informações confidenciais. Quantos estudantes de Choshu cursaram a escola era um segredo, da conta apenas de Choshu; embora gostasse e admirasse Shorin e Ori, eles ainda eram satsumas, forasteiros, que nem sempre haviam sido aliados, muitas vezes inimigos, e invariavelmente inimigos em potencial.
Só três de nós aprendem inglês — murmurou ele, como se estivesse revelando um segredo, em vez de trinta, o número verdadeiro. Interiormente alerta, ele acrescentou: — Agora que vocês são ronin, como eu e a maioria dos meus camaradas, devemos trabalhar mais unidos. Estou planejando uma ação daqui a três dias, na qual vocês podem nos ajudar.
— Obrigado, mas devemos esperar pela palavra de Katsumata.
— Claro, ele é o seu líder satsuma. — Uma pausa, e Hiraga acrescentou pensativo: — Mas, por outro lado, Ori, não esqueça que você é ronin, e será ronin até vencermos. Não esqueça que somos a vanguarda de Sonno-joi, os homens que fazem, enquanto Katsumata não arrisca nada. Devemos esquecer... para valer., que eu sou choshu, e vocês dois são satsumas. Temos de ajudar uns aos outros. É uma boa idéia dar seqüência ao ataque que desfecharam na Tokaidô e roubar armas esta noite. Matem um ou dois guardas dentro da legação, se puderem, o que seria uma grande provocação. E se puderem fazer tudo em silêncio, sem deixarem vestígios, ainda melhor. Qualquer coisa para provocá-los.
Com as informações de Hiraga, fora fácil penetrar no templo, contar os dragões e outros soldados e encontrar o esconderijo perfeito. Depois, a moça aparecera, inesperadamente, em seguida o gigante, os dois logo tornaram a entrar no prédio. Desde então, ambos os shishi não conseguiam desviar os olhos da porta que dava para o jardim.
— Ori, o que vamos fazer agora?— perguntou Shorin, nervoso.
— Vamos nos ater ao plano.
Os minutos foram passando, aumentando a ansiedade dos dois. Quando a janela do segundo andar foi aberta, e viram a moça, eles compreenderam que um novo elemento surgira no futuro de ambos. Ela escovava os cabelos com uma escova de cabo de prata. Apática. Shorin disse, a voz meio rouca:
— Ela não parece tão feia ao luar. Mas aqueles seios empurrariam a gente.
Ori não respondeu, fascinado.
E, de repente, a moça hesitou, olhou para baixo. Diretamente para eles. Embora não houvesse a menor possibilidade de que ela pudesse vê-los ou ouvi-los, seus corações dispararam. Esperaram, quase sem respirar. Outro bocejo exausto. Ela continuou a escovar os cabelos por mais um momento, depois largou a escova, parecendo tão próxima que Ori teve a impressão de que quase poderia tocá-la se estendesse a mão. À claridade, dava para ver os detalhes do quarto, o bordado na seda, os mamilos duros por baixo e a expressão atormentada que ele vislumbrara no dia anterior — teria sido mesmo apenas ontem? — e que detivera o golpe que a teria liquidado.
Um último e estranho olhar para a lua, outro bocejo abafado, e ela fechou a janela. Mas não por completo. Nem trancou. Shorin rompeu o silêncio, sussurrando o que ambos pensavam:
— Seria fácil subir até lá.
— Tem razão. Mas viemos aqui pelas armas e para criar confusão. Nós...
Ori parou de falar, a mente invadida pelo brilho súbito de uma nova e maravilhosa diversão estratégica, uma segunda oportunidade, maior do que a primeira.
— Shorin, se você a silenciasse, depois a possuísse, sem matá-la, apenas deixando-a inconsciente, para contar depois o que acontecera, largando no quarto algum sinal que nos ligasse ao ataque na Tokaidô, e depois matássemos juntos um ou dois soldados e desaparecêssemos com ou sem suas armas... tudo isso dentro da legação... eles não ficariam loucos de raiva?
A respiração sibilou pelos lábios de Shorin à beleza da idéia.
— Claro que sim, mas seria melhor cortar a garganta da mulher e escrever “Tokaidô” com seu sangue. Vá você. Ficarei de guarda aqui. É mais seguro. — Como Ori hesitasse, ele acrescentou:— Katsumata disse que errávamos ao hesitar. Na última vez você hesitou. Por que hesitar?
Foi uma decisão de fração de segundo, e Ori correu para o prédio, uma sombra entre muitas sombras. Chegou lá num instante, começou a subir.
Fora da casa da guarda, um dos soldados murmurou:
— Não olhe agora, Charlie, mas acho que vi alguém correndo para a casa.
— Chame o sargento, com todo cuidado.
O soldado fingiu se espreguiçar, depois entrou na casa da guarda. Depressa, mas cauteloso, sacudiu o sargento Towery até despertá-lo e repetiu o que vira ou pensava ter visto.
— Como o sujeito parecia?
— Só percebi o movimento, sargento. Ou pelo menos foi essa a impressão, mas não tenho certeza. Pode ter sido apenas uma sombra.
— Muito bem, meu rapaz, vamos dar uma olhada.
O sargento Towery acordou o cabo e mais outro soldado, colocou-os de prontidão. Depois, saiu com os dois primeiros para o jardim.
— Foi mais ou menos ali, sargento.
Shorin viu-os se aproximando. Não havia nada que pudesse fazer para avisar Ori, que já se encontrava quase na janela, ainda bem, camuflado por suas roupas e pelas sombras. Observou-o alcançar o peitoril, empurrar a janela e desaparecer no interior do quarto. A janela voltou lentamente ao lugar. Karma, pensou Shorin, passando a se concentrar na situação crítica em que se achava.
O sargento Towery parou no meio do caminho, inspecionou com o máximo de atenção a área ao redor e o prédio. Muitas janelas do andar superior estavam abertas e destrancadas, e por isso ele não se preocupou. Uma delas se mexeu, rangendo ao vento. Aporta do jardim estava trancada. Ao final, ele disse:
— Charlie, fique daquele lado. — O sargento apontou um ponto próximo ao lugar em que Shorin se escondia. — Nogger, fique do outro lado. Mantenham os olhos bem abertos. E calem as baionetas.
Foi obedecido no mesmo instante.
Shorin soltou a espada na bainha, a lâmina também escurecida para a incursão noturna, e se ajeitou em posição de ataque, sentindo um aperto na garganta.
Assim que entrou no quarto, Ori verificou a única porta, constatou que estava trancada, viu que a moça ainda dormia, tirou da bainha a espada curta e se encaminhou para a cama. Era uma cama de baldaquino, a primeira que ele via. Tudo ali era estranho, a altura e a impressão de permanência, as colunas, cortinas, roupas de cama. Por um instante, ele especulou como seria dormir numa cama assim, tão longe do chão, em vez da maneira como os japoneses dormiam, em futons — colchões de palha finos e quadrados — estendidos à noite, guardados durante o dia.
Seu coração disparara, e tentava manter a respiração baixa, não querendo despertá-la ainda, sem saber que a moça se encontrava profundamente drogada. Não havia qualquer luz acesa no quarto, mas o luar entrava pelas persianas, e ele viu os cabelos compridos e louros espalhados sobre os ombros, a elevação dos seios, as penas delineadas sob o lençol. Um perfume a envolvia, deixando-o inebriado.
Foi nesse instante que ouviu o barulho de baionetas se encaixando, o murmúrio de vozes no jardim... Por uma fração de segundo, ficou apavorado. Às cegas, ergueu a espada curta para matar a moça, mas ela não se mexeu. Sua respiração não se alterou.
Ori hesitou, foi até a janela sem fazer barulho, deu uma espiada. Avistou os soldados e se perguntou, em pânico: Eles me viram ou notaram Shorin?
Se assim for, estou acuado, mas não importa, ainda posso realizar o que vim fazer aqui, e talvez eles se afastem. Tenho duas saídas, a porta e a janela. Paciência, Katsumata sempre aconselhou. Use a cabeça, espere com calma, depois ataque sem hesitação e escape quando chegar o momento, que sempre haverá de surgir. A surpresa é sua melhor arma!
Seu estômago se contraiu. Um dos soldados seguia para o esconderijo. Embora soubesse exatamente onde Shorin estava, Ori não podia divisá-lo. Mal respirando, ele esperou para ver o que aconteceria. Talvez Shorin os afaste. Mas independente do que acontecer, ela morre, prometeu Ori a si mesmo.
Shorin observou o soldado se aproximar, tentando desesperadamente descobrir uma saída da armadilha e amaldiçoando Ori. Deviam tê-lo avistado! Se eu matar este cão, não tenho a menor possibilidade de alcançar os outros antes que atirem em mim. E não conseguirei chegar ao muro sem ser visto.
Foi uma estupidez de Ori mudar o plano, eles o viram, eu disse que a mulher era encrenca... ele deveria tê-la matado na estrada... Talvez este bárbaro não perceba minha presença e me dê tempo suficiente para correr até o muro.
O luar refletia-se na baioneta comprida, enquanto o soldado sondava as folhagens, separando-as aqui e ali para ver melhor.
Mais e mais perto. Seis passos, cinco, quatro, três...
Shorin permaneceu imóvel, o rosto todo coberto agora, os olhos quase ocultos, e prendeu a respiração. O soldado quase roçou nele ao passar, seguiu adiante, parou por um instante, deu mais uns poucos passos, sondando de novo. Shorin voltou a respirar. Podia sentir o suor nas costas, mas sabia que agora se encontrava seguro, dentro de uns poucos momentos estaria a salvo no outro lado do muro.
De sua posição, o sargento Towery podia observar os dois soldados. Tinha um fuzil engatilhado nas mãos, mas sentia-se inseguro da situação, não queria dar um falso alarme. Era uma noite agradável, com uma brisa suave, um luar claro. Fácil imaginar que sombras eram inimigos naquele lugar fedorento, pensou ele. Ah, como eu gostaria de estar de volta à velha Londres!
— Boa noite, sargento Towery. O que está acontecendo?
— Boa noite, senhor.
Towery bateu continência. Era o oficial dos dragões, Pallidar. Ele explicou o que lhe haviam dito, e acrescentou:
— Pode ter sido apenas uma sombra, mas é melhor ser cauteloso do que se arrepender depois.
— Convoque homens extras, e vamos nos certificar...
Foi nesse momento que o jovem soldado mais perto do local da emboscada virou-se em posição de combate, o mosquete erguido.
— Sargento! — gritou ele, em excitamento e terror. — O desgraçado está aqui!
Shorin já corria para o ataque, a espada alta, mas o treinamento do soldado prevaleceu, e a baioneta aparou o golpe, enquanto os outros se aproximavam correndo, Pallidar sacando o revólver. Shorin tornou a atacar, mas foi contido pela extensão do fuzil e da baioneta, esquivou-se à investida da baioneta e fugiu pela folhagem para o muro. O jovem soldado partiu em seu encalço.
— Cuidado! — berrou Towery, enquanto o jovem avançava pela vegetação, as glândulas agora no comando total, impelindo-o para o bote final.
O soldado não ouviu a advertência, avançou entre as moitas para morrer, a espada curta cravada em seu peito. Shorin arrancou-a, convencido de que não havia escapatória, os outros quase em cima dele.
— Namu Amida Butsu — balbuciou ele, em nome do Buda Amida, dominado pelo medo, encomendando seu espírito a Buda. — Sonno-joi!
O grito não foi para alertar Ori, mas sim a sua declaração final. E depois, com uma força desesperada, ele fincou a espada na própria garganta.
Ori vira a maior parte, mas não o final. No momento em que o soldado gritou e atacou, ele correu atabalhoado para a cama, esperando que a moça despertasse sobressaltada. Para seu espanto, porém, ela não se mexeu, nem o ritmo sereno de sua respiração se alterou. Ele ficou parado ali, os joelhos tremendo, esperando que ela abrisse os olhos, esperando um truque, querendo que a moça o visse, e também visse a faca, antes de usá-la. E depois soou o lamento de “Sonno-joi”, e ele compreendeu que Shorin partira para sempre. Houve mais barulho em seguida, mas nem assim a moça se mexeu. Os lábios de Ori se afastaram dos dentes, a respiração era estrangulada. Abruptamente, não pôde mais suportar a tensão e sacudiu-a com o braço ferido, indiferente à dor, encostou a lâmina em sua garganta disposto a sufocar o grito.
E nem assim ela se mexeu.
Para Ori, era tudo como um sonho, e ele se observou a sacudi-la de novo, sem obter qualquer reação. Foi nesse instante que se lembrou de que o médico dera alguma coisa para a moça beber, e pensou: Uma daquelas drogas, as novas drogas ocidentais de que Hiraga nos falou. Tentou assimilar o novo conhecimento. Para ter certeza, sacudiu-a mais uma vez, mas ela se limitou a murmurar e comprimiu a cabeça ainda mais no travesseiro.
Ele voltou à janela. Homens carregaram o corpo do soldado para fora das folhagens. No instante seguinte, arrastaram Shorin para o terreno aberto, puxando por um dos pés, como a carcaça de um animal. Agora, os corpos ficaram lado a lado, estranhamente parecidos na morte. Outros homens chegaram, ele ouviu pessoas gritando das janelas. Um oficial inclinou-se sobre o corpo de Shorin. Um dos soldados arrancou a cobertura da cabeça e a máscara preta. Os olhos de Shorin estavam abertos, as feições contorcidas, o cabo da espada curta se projetando da garganta. Mais vozes, outros homens chegando.
Havia agora movimento no interior do prédio, no corredor. A tensão de Ori aumentou. Pela décima vez, certificou-se de que a porta se achava mesmo trancada, não podia ser aberta por fora, e foi se esconder por trás das cortinas da cama, bastante perto para alcançar a moça, o que quer que acontecesse.
Passos, batidas na porta. Luz se projetando por baixo, de lampiões a óleo ou de vela. As batidas na porta se tornaram mais insistentes, vozes alteadas. Ori ergueu a espada curta.
— Mademoiselle, está bem?
Era Babcott.
— Mademoiselle! — gritou Marlowe. — Abra a porta! Mais batidas, muito mais altas.
— É a poção que dei para ela, capitão. A pobre coitada estava bastante transtornada, precisava dormir. Duvido que ela acorde.
— Se ela não acordar, vou arrombar a droga da porta para ter certeza. Ela deixou a janela aberta.
Mais batidas na porta. Angelique abriu os olhos, meio turvos.
— Que se passe-t-il? O que está acontecendo? — murmurou ela, mais adormecida do que desperta.
— Você está bem? Tout t a bien?
— Bien? Moi?Bien sâr... Pourquoi? Qu’arrive-t-il?
— Abra a porta por um momento. Ouvrez la porte, s`il vous platt, c`est moi, capitão Marlowe.
Grunhindo, desorientada, Angelique sentou na cama. Para seu espanto, Ori permitiu que ela saísse da cama, cambaleasse até a porta. A moça não precisou de muito tempo para puxar a tranca e abrir a porta, segurando-se nela para manter o equilíbrio.
Babcott, Marlowe e um fuzileiro seguravam lampiões. As chamas balançaram a aragem. Todos arregalaram os olhos ao contemplá-la. A camisola era muito francesa, quase transparente.
— Nós... ahn... só queríamos verificar se estava bem, mademoiselle — apressou-se em dizer Babcott. — Pegamos um homem nas moitas lá fora. Mas não precisa se preocupar.
Ele percebeu que Angelique mal compreendia o que estava dizendo. Marlowe desviou os olhos de seu corpo, esquadrinhou o quarto.
— Excusez moi, mademoiselle, s`il vous plait — murmurou ele, embaraçado, com o sotaque tolerável, avançando pelo quarto.
Nada embaixo da cama, exceto pelo urinol. Nada havia por trás das cortinas naquele lado... por Deus, que mulher! Nenhum outro lugar para alguém se esconder, nada de portas, nem armários. As persianas rangeram ao vento. Ele abriu-as por completo.
— Pallidar! Mais alguma coisa aí embaixo?
— Não! Nenhum sinal de qualquer outro! É bem possível que ele fosse o único, e o soldado o visse se movendo! Mas verifique em todos os cômodos deste lado!
Marlowe acenou com a cabeça, murmurou uma imprecação.
— Que diabo pensa que estou fazendo?
Por trás dele, as cortinas se mexeram à brisa amena, descobrindo os pés de Ori nos tabi pretos, os sapatos-meias dos japoneses. A vela de Marlowe apagou; e quando ele trancou a janela e se virou, não percebeu os tabi nas sombras profundas ao lado da cama, nem notou qualquer outra coisa, pois só tinha olhos para Angelique, quase dormindo, delineada contra as luzes na porta. Podia ver cada parte de seu corpo, e o espetáculo deixou-o sem fôlego.
— Está tudo bem — declarou ele, ainda mais constrangido porque a contemplara daquele jeito, admirara-a quando ela se encontrava indefesa. Fingindo ser enérgico, ele foi até a porta e acrescentou: — Por favor, tranque a porta e... ahn... duma bem.
Sua vontade, porém, era ficar.
Ainda mais desorientada, Angelique murmurou alguma coisa e fechou a porta. Esperaram até ouvir a tranca se ajustar no lugar. Babcott comentou, hesitante:
— Duvido que ela sequer se lembre de que abriu a porta.
O fuzileiro limpou o suor do rosto, percebeu que Marlowe o observava e não Pôde resistir a um sorriso lúbrico.
— Por que parece tão feliz? — perguntou Marlowe, sabendo a resposta.
— Eu, senhor? Por nada, senhor.
O sorriso desapareceu no mesmo instante, trazendo um ar de inocência em sua esteira. Esses oficiais são todos iguais, pensou ele. O sacana do Marlowe ficou com tanto tesão quanto eu, seus olhos se esbugalharam, quase a devorando, se deliciando com tudo o que há por baixo, os peitos mais lindos que já vi. Os outros não vão acreditar que ela tem peitos assim!
— Claro, senhor, claro — murmurou ele, virtuoso, quando Marlowe lhe disse para não contar nada do que haviam visto.— Está certo, senhor. Nenhuma palavra vai sair dos meus lábios.
E todos os três foram para o aposento seguinte, pensando em Angelique.
Angelique encostou-se na porta, tentando compreender o que estava acontecendo era difícil pôr tudo em ordem, um homem no jardim, que jardim, mas Malcolm estava no jardim da Casa Grande, não, ele se encontra lá embaixo, ferido, e isso não é um sonho, e disse alguma coisa sobre viver na Casa Grande, casamento... Malcolm, foi ele o homem que me tocou? Não, ele me disse que morreria. Bobagem, o médico disse que ele estava bem, todos disseram bem, por que bem? Por que não ótimo? Ou excelente? Por quê?
Ela desistiu de pensar, o anseio por sono irresistível. A lua brilhava através das persianas, e ela cambaleou pelas listras de luz de volta à cama, arriou agradecida no colchão macio. Com um grande suspiro de contentamento, puxou o lençol pela metade do corpo, virou-se de lado. E caiu num sono profundo em poucos segundos.
Sem fazer qualquer barulho, Ori saiu de seu esconderijo, atônito por ainda estar vivo. Embora tivesse se comprimido, junto com suas espadas, contra a parede, uma busca mais meticulosa o teria descoberto. Viu que a tranca da porta se encontrava no lugar, a janela também trancada, a moça tinha uma respiração profunda, um braço sob o travesseiro, o outro por cima do lençol.
Ótimo. Ela pode esperar, pensou Ori. Primeiro, como sair desta armadilha? A janela ou a porta?
Não podendo ver através das persianas, ele puxou a tranca, entreabriu a janela, apenas uma fração. Os soldados ainda se concentravam lá embaixo. Faltavam três horas para o amanhecer. As nuvens se acumulavam, passavam sob a lua. O corpo de Shorin continuava no caminho, como um animal morto. Por um momento, ele se surpreendeu ao constatar que o haviam deixado com a cabeça, mas depois lembrou que não era costume dos gai-jin tirar cabeças para exibir ou contar.
Seria difícil escapar por ali sem ser visto. Se não reduzirem a vigilância, terei de abrir a porta e tentar fugir por dentro do prédio. O que implicaria deixar a porta aberta. Era melhor sair pela janela, se fosse possível.
Ele esticou a cabeça, cauteloso, divisou uma pequena platibanda sob a janela, que levava a outra janela, e depois contornava o prédio — aquele era um quarto de canto. Seu excitamento aumentou. Muito em breve as nuvens encobririam a lua. Escaparei nesse momento. Vou conseguir! Sonno-joi! Agora, a moça.
Em silêncio, ele ajeitou a tranca, deixando a janela entreaberta, por uma fração, antes de voltar à cama.
A espada comprida ainda estava embainhada, e ele a pôs no lençol branco de seda, todo amarrotado, ao alcance da mão. Branco, pensou Ori. Lençóis brancos, carne branca, tudo branco, a cor da morte. Apropriado. Perfeito para se escrever. O que deveria ser? Seu nome?
Sem pressa, ele puxou o lençol de cima da moça. A camisola era uma coisa além da sua compreensão, estranha, projetada para esconder tudo e nada. Braços e seios muito grandes, em comparação com as poucas mulheres que já levara para a cama, pernas compridas e retas, sem nenhuma das curvas elegantes a que se acostumara, das mulheres que passavam anos e anos ajoelhadas e sentadas. E, de novo, o perfume da moça. Enquanto os olhos a exploravam, Ori sentiu que começava a ferver.
Com as outras, fora muito diferente. Excitamento mínimo. Muitos sorrisos, hábil profissionalismo. Tudo consumado depressa, e quase sempre no torpor do saquê, para disfarçar a idade das mulheres. Agora, havia tempo ilimitado. Ela era jovem, fora do mundo de Ori. Sua ânsia aumentava cada vez mais. Todo o corpo parecia vibrar.
O vento fazia a janela ranger, mas não havia perigo ali, nem no interior da casa. Tudo se tornara quieto. Ela se encontrava estendida de lado. Um empurrão hábil e gentil, depois mais outro, e a moça, obediente, deitou de costas, a cabeça pendendo para um lado, os cabelos espalhados. Um suspiro profundo, no aconchego do colchão. Uma pequena cruz de ouro na garganta.
Ori inclinou-se, encostou a ponta da faca-espada, afiada como uma navalha, na renda delicada do pescoço, levantou um pouco, ajeitou a lâmina contra a pressão da camisola. O tecido foi cortado sem qualquer resistência.
Ele nunca vira uma mulher tão exposta. Ou tão apertada. A pulsação se intensificou, a um nível a que nunca chegara antes. A pequena cruz faiscava. Involuntariamente, a moça estendeu a mão, devagar, ajeitou-a entre as pernas, deixou ali, confortável. Ori removeu a mão, depois afastou um tornozelo do outro. Gentilmente.
6
Angelique despertou pouco antes do amanhecer. Mas não por completo. A droga ainda a impregnava, os sonhos ainda persistiam, sonhos estranhos e violentos, eróticos, opressivos, maravilhosos, doloridos, sensuais e horríveis, nunca antes experimentados, ou pelo menos não com tanta intensidade. Pelas persianas entreabertas, avistou o céu a leste, vermelho como sangue, com formações de nuvens estranhamente sugestivas, que pareciam igualar as imagens em sua mente. Ao mudar de posição para ver melhor, sentiu uma ligeira dor na virilha, mas não prestou atenção; em vez disso, deixou que os olhos se fixassem nas formas no céu, enquanto a mente retornava aos sonhos, que a atraíam de uma forma irresistível. No limiar do sono, percebeu que estava nua. Lânguida, puxou a camisola, cobriu-se com o lençol. E dormiu.
Ori estava parado ao lado da cama. Acabara de sair do aconchego. As roupas de ninja se achavam caídas no chão. E sua tanga também. Por um momento, contemplou a mulher estendida ali, admirando-a pela última vez. Tão triste, pensou, as últimas vezes são sempre muito tristes. Depois, ele pegou a faca-espada, tirou-a da bainha.
No quarto lá embaixo. Phillip Tyrer abriu os olhos. O ambiente era desconhecido e só no instante seguinte se lembrou de que continuava no templo em Kanagawa, que o dia anterior fora terrível, a operação pavorosa, e seu comportamento, desprezível.
— Babcott disse que eu estava em choque — murmurou ele, a boca ressequida, com um gosto ruim. — Mas isso me desculpa?
As persianas estavam abertas, o vento as fazia rangerem. Podia ver o amanhecer. “Céu vermelho pela manhã, o aviso do pastor.” Haverá uma tempestade. Sentou na cama de campanha, verificou a bandagem no braço. Limpa, sem novas manchas de sangue, o que o deixou bastante aliviado. Além da cabeça latejando, o corpo um pouco dolorido, sentia-se recuperado. “Oh, Deus, como eu gostaria de ter me comportado melhor!” Fez um esforço para recordar o resultado da operação, mas era tudo muito vago. Sei que chorei. Não tive a sensação de que chorava, mas as lágrimas fluíam.
Com esforço, ele tratou de afastar os pensamentos sombrios. Saiu da cama e foi abrir as persianas, as pernas agora firmes, com uma enorme fome. Havia um cântaro com água numa mesinha, e ele molhou o rosto, enxaguou a boca, cuspiu a água em seguida na folhagem do jardim. Bebeu um pouco da água, sentiu-se melhor.
Não havia ninguém no jardim, impregnado pelo cheiro de vegetação em decomposição e da maré baixa. Do lugar em que se encontrava, podia avistar uma parte dos muros do templo e o jardim, mas quase que só isso. Através de uma abertura entre as árvores, vislumbrou a casa da guarda, e dois soldados ali.
Notou agora que fora levado para a cama de camisa e com a roupa de baixo de lã. O casaco rasgado e ensangüentado se encontrava numa cadeira, ao lado da calça e das botas de montaria, imundas dos arrozais.
Ora, não importa, pois tenho sorte de haver sobrevivido. Começou a se vestir. Como está Struan? E Babcott... daqui a pouco terei de encará-lo.
Como não havia navalha, não podia fazer a barba. Nem tinha pente. Mas também não importa. Calçou as botas. Podia ouvir no jardim o som de passarinhos, movimentos, uns poucos gritos distantes em japonês, cachorros latindo. Mas não os sons que ouviria numa cidade normal, uma cidade inglesa, como os gritos matutinos de “pão fresco”, ou “água da fonte”, ou “ostras de Colchester, fresquinhas”, ou “direto do prelo, o último capítulo do Sr. Dickens, apenas um penny”, ou “o Times, o Times, leiam tudo sobre o grande escândalo do Sr. Disraeli, leiam tudo...”
Serei dispensado, ele perguntou a si mesmo, o estômago se embrulhando à perspectiva de voltar para casa em ignomínia, um desastre, um fracasso, não mais um membro do Ministério do Exterior de sua ilustre majestade, representante do maior império que o mundo já conhecera. O que Sir William vai pensar de mim? E o que Angelique vai pensar? Graças a Deus que ela escapou para Iocoama... será que ela voltará a falar comigo, quando souber?
Oh, Deus, o que vou fazer?
Malcolm Struan também acordara. Poucos momentos antes, algum sexto sentido, o pressentimento do perigo, um ruído lá fora, o despertara, embora experimentasse a sensação de que há horas permanecia em vigília. Continuou deitado na cama de campanha, consciente de todos os acontecimentos, inclusive da operação, sabendo que fora gravemente ferido e poderia morrer. Cada respiração causava uma dor lancinante. Até mesmo o menor movimento.
Mas não vou pensar na dor, apenas em Angelique, que ela me ama e... Mas por que os pesadelos? Os pesadelos de que ela me odeia e vai embora. Detesto os pesadelos, detesto perder o controle, detesto ter de ficar deitado aqui, detesto me descobrir fraco, quando sempre fui forte, sempre criado à sombra do meu herói, o grande Dirk Struan, o demônio de olhos verdes. Ah, como eu gostaria de ter olhos verdes, e ser tão forte! É o meu modelo, e serei tão bom quanto ele, tenho certeza.
Como sempre, o inimigo, Tyler Brock, nos espreita. O pai e a mãe tentam ocultar de mim a maioria dos fatos, mas é claro que já ouvi os rumores, e sei mais do que eles imaginam. A velha Ah Tok, mais mãe para mim do que minha própria mãe — ela não me carregou no colo até que eu tinha dois anos, não me ensinou cantonês e sobre a vida, não me providenciou a primeira garota?— ela me sussurra os rumores, assim como tio Gordon Chen, que me relata os fatos. A Casa Nobre está balançando.
Não importa, enfrentaremos todos eles. Eu cuidarei de tudo. Para isso é que fui treinado, para isso é que trabalhei por toda a minha vida.
Malcolm empurrou o cobertor para o lado, ergueu as pernas para ficar de pé mas a dor o deteve. Tentou de novo, tornou a fracassar. Não importa, disse a si mesmo, sem muita força. Não há motivo para me preocupar. Cuidarei de tudo mais tarde.
— Mais ovos, Settry? — perguntou Marlowe, tão alto quanto o oficial dos dragões, mas não tão largo nos ombros.
Ambos eram nobres, filhos de oficiais superiores, feições firmes, curtidas pelas intempéries, Marlowe mais do que o outro.
— Não, obrigado — respondeu Settry Pallidar. — Meu limite é dois ovos. Devo confessar que acho horrível a cozinha aqui. Disse que queria os meus ovos bem-passados, não moles, mas essa gente tem areia no lugar do cérebro. Na verdade, não consigo comer ovos se não estiverem numa torrada, no bom pão inglês. Não têm o mesmo gosto de outra forma. O que você acha que vai acontecer pelo que fizeram com Canterbury?
Marlowe hesitou. Estavam na sala de jantar da legação, sentados à vasta mesa de carvalho que podia alojar vinte pessoas, trazida da Inglaterra justamente para isso. A sala de canto era espaçosa e agradável, as janelas se achavam abertas para o jardim e o amanhecer. Três criados chineses de libré serviam os dois. Lugares postos para meia dúzia. Ovos fritos e bacon, em bandejas de prata, aquecidas por velas, galinha assada, presunto defumado frio, um pastelão de cogumelos, um pedaço de carne de boi, biscoitos duros, uma torta de maçãs secas. Cerveja branca e preta, chá.
— O ministro deve pedir reparações imediatas e que os assassinos sejam entregues. E, quando houver a demora inevitável, ele deve ordenar que a esquadra ataque Iedo.
— Melhor ainda seria desembarcar com toda força... temos tropas suficientes... ocupar a capital, remover o rei... como é mesmo que ele se chama?... ah, sim, xógum, designar nosso novo soberano nativo e transformar o Japão num protetorado. Ou ainda melhor, para eles, integrá-lo ao império.
Pallidar sentia-se exausto, pois ficara acordado durante a maior parte da noite. O uniforme estava desabotoado, mas penteara os cabelos e fizera a barba. Gesticulou para um dos criados.
— Chá, por favor.
O jovem chinês, impecavelmente vestido, compreendeu muito bem, mas fitou-o com uma expressão aturdida, para divertimento dos outros.
— O que foi mesmo que disse, senhor? Quer chá? Foi isso o que ouvi? Quer um chá?
— Ora, deixe para lá, pelo amor de Deus!
Pallidar levantou-se, com um ar de cansado, foi até o aparador com sua xícara, serviu-se de chá, enquanto todos os criados riam muito, mas por dentro, pelo descrédito do insolente demônio estrangeiro, e depois continuaram a escutar, na maior atenção, o que os dois diziam.
— É uma questão de poderio militar, meu caro. E posso lhe dizer, com toda franqueza, que o general ficará furioso pela perda de um granadeiro para um assassino nojento, vestido como Ali Babá. Vai querer vingança... todos nós vamos querer.
— Não sei de nada sobre um desembarque... a marinha, sem dúvida, pode abrir uma passagem para vocês com um bombardeio, mas não temos a menor idéia de quantos samurais existem, não sabemos coisa alguma sobre a força dos japoneses.
— Independentemente de quantos sejam, de sua força, sempre podemos derrotá-los, porque não passam de um bando de nativos atrasados. Claro que podemos vencê-los. Exatamente como fizemos na China. Não consigo entender por que não anexamos a China, e acabamos de uma vez com todos os problemas.
Todos os criados ouviram e entenderam, e todos juraram que quando o Reino Celestial possuísse canhões e navios, para se igualar aos canhões e navios dos bárbaros, haveriam de ajudar a esfregar os narizes daqueles invasores em sua própria bosta, ensinando-lhes uma lição que duraria mil gerações. Todos eles haviam sido escolhidos pelo ilustre Chen, Gordon Chen, o compradore da Casa Nobre.
— Não quer mais um pouco de ovo, senhor? — indagou o mais corajoso, com um sorriso em que exibia todos os dentes, estendendo a bandeja com os ovos moles sob o nariz de Pallidar. — Muito bons.
Pallidar empurrou a bandeja para longe, repugnado.
— Não, obrigado. Escute, Marlowe, eu acho...
Ele parou de falar quando a porta foi aberta, e Tyrer entrou na sala.
— Bom dia. Você deve ser Phillip Tyrer, da legação. — Pallidar apresentou-se, depois a Marlowe, e acrescentou, em tom jovial: — Lamento profundamente o infortúnio de ontem, mas sinto-me orgulhoso em apertar sua mão. Tanto o Sr. Struan quanto a Srta. Richaud disseram a Babcott que estariam mortos se não fosse Por você.
— É mesmo? — Tyrer mal podia acreditar em seus ouvidos. — Tudo aconteceu muito depressa. Num momento as coisas estavam normais, no instante seguinte corríamos para salvar nossas vidas. Fiquei apavorado.
Agora que dissera em voz alta, Tyrer sentiu-se melhor, e ainda mais quando Os dois militares consideraram o comentário como modéstia, puxaram uma cadeira para que sentasse e ordenaram aos criados para lhe trazerem comida.
— Quando fui vê-lo ontem à noite, você se encontrava morto para o mundo — disse Marlowe. — Sabíamos que Babcott lhe deu sedativos, e por isso creio que ainda não soube do nosso assassino.
Tyrer sentiu o estômago se contrair.
— Assassino?
Eles relataram os acontecimentos. E falaram de Angelique.
— Ela está aqui?
— Está, sim, e demonstrou ter muita coragem.
Por um momento, Marlowe pensou em Angelique. Não tinha nenhuma jovem que o atraísse na Inglaterra, nem em qualquer outro lugar, apenas umas poucas primas aceitáveis, mas nenhuma mulher especial, e pela primeira vez sentia-se feliz por isso. Talvez Angelique ficasse, e depois... depois, veremos.
Seu excitamento aumentou. Pouco antes de partir do porto de Plymouth, um ano atrás, o pai, comandante Richard Marlowe, da marinha real, lhe disse:
— Está com vinte e sete anos, rapaz, tem o seu próprio navio agora... embora seja uma porcaria... é o mais velho, e chegou o momento de casar. Quando voltar desse cruzeiro pelo Extremo Oriente, terá mais de trinta anos. Com um pouco de sorte, a esta altura já serei vice-almirante e poderei... ora, poderei lhe dar alguns guinéus extras, mas pelo amor de Deus não conte à sua mãe... nem a seus irmãos e irmãs. É hora de se decidir. O que acha de sua prima Delphi? O pai pertence ao serviço, embora seja apenas no exército indiano.
Marlowe prometera que escolheria ao voltar. Agora, talvez não precisasse mais se contentar com a segunda, terceira ou quarta melhor.
— A Srta. Angelique deu o alarme na colônia, e depois insistiu em vir até aqui ontem à noite... o Sr. Struan pedira para vê-la com urgência... parece que ele não está muito bem, sofreu um ferimento grave, e por isso concordei em trazê-la. É uma mulher e tanto.
— Também acho.
Um estranho silêncio os dominou, cada um sabendo dos pensamentos do outro, rompido finalmente por Phillip Tyrer:
— Por que um assassino viria até aqui?
Os outros dois perceberam o nervosismo em sua voz.
— Para cometer mais alguma iniqüidade, eu suponho — respondeu Pallidar. — Mas não precisamos nos preocupar, porque pegamos o homem. Viu o Sr. Struan esta manhã?
— Dei uma espiada, mas ele estava dormindo. Espero que fique bom. A operação não foi fácil e...
Tyrer parou de falar, ao ouvir uma altercação lá fora. Pallidar foi até a janela, seguido pelos outros, O sargento Towery gritava com um japonês seminu, no outro lado do jardim.
— Ei, você, venha até aqui!
O homem, aparentemente um jardineiro, era forte e jovem, encontrava-se a cerca de vinte metros de distância. Usava apenas uma tanga e carregava um feixe de gravetos e galhos sobre um dos ombros, alguns envoltos por um pano preto, enquanto recolhia outros, meio sem jeito. Por um instante, o japonês se mannteve empertigado, depois começou a se abaixar e levantar, fazendo reverências submissas na direção do sargento.
— Por Deus, esses sujeitos não têm o menor senso de vergonha! — comentou Pallidar, com evidente aversão. — Nem mesmo os chineses se vestem assim... nem os indianos. Dá para ver suas partes íntimas.
— Já me contaram que alguns se vestem assim até no inverno — disse Marlowe. — Parece que não sentem frio.
Towery tornou a gritar, chamando o jardineiro. O homem continuou a se curvar, balançando a cabeça com extremo vigor, mas em vez de se adiantar, deu a impressão de que entendera errado a ordem, e virou-se, ainda meio encurvado, correndo para o canto do prédio. Quando passou pela janela, olhou para os ingleses ali postados, fez outra reverência abjeta, em humilde obediência, continuou apressado na direção dos alojamentos dos criados, quase oculto pela folhagem, e desapareceu.
— Estranho... — murmurou Marlowe.
— O quê?
— Todas aquelas mesuras me pareceram uma encenação. — Marlowe olhou para o rosto branco de Tyrer. — Deus Todo-Poderoso, o que aconteceu?
— Eu... eu... aquele homem... não tenho certeza, mas acho que foi um dos assassinos na Tokaidô, o que foi baleado por Struan. Viram se ele tinha o ombro enfaixado?
Pallidar foi o primeiro a reagir. Saltou pela janela, seguido de perto por Marlowe, que pegara sua espada. Juntos, correram para as árvores. Mas não o encontraram, apesar de procurarem por toda parte.
Era meio-dia agora. Houve outra batida de leve na porta do quarto, uma voz chamou:
— Mademoiselle? Mademoiselle?
Era Babcott, no corredor, falando baixo, pois não queria despertá-la sem necessidade. Angelique não se mexeu. Permaneceu imóvel no meio do quarto, olhou para a porta trancada, mal respirando, apertando o penhoar em torno do corpo, o rosto contraído. O tremor recomeçou.
— Mademoiselle?
Ela esperou. Depois de um momento, ouviu os passos se afastando e soltou a Aspiração. Desesperada, tentou controlar a tremedeira e pôs-se a andar de novo, até a janela trancada, de volta à cama, para a janela, como vinha fazendo há horas. Preciso me decidir, pensou ela, angustiada. Ao acordar pela segunda vez, sem se lembrar da primeira, a mente se achava lúcida, e continuara deitada na cama desarrumada, sem se mexer, contente por estar desperta, descansada, faminta e com sede, ansiosa pela primeira e gloriosa xícara de café do dia, servida com um pão francês, feito pelo cozinheiro de sua legação em Iocoama. Mas não estou em Iocoama, e sim em Kanagawa, e hoje terei de tomar uma xícara do repugnante chá inglês com leite.
Malcolm! Pobre Malcolm, espero que ele esteja melhor. Voltaremos para Iocoama hoje, embarcarei no primeiro vapor para Hong Kong, e de lá para Paris mas que sonhos eu tive, que sonhos!
As fantasias da noite ainda eram nítidas, misturavam-se com outras imagens da Tokaidô e a mutilação de Canterbury, e Malcolm agindo de um modo muito estranho, presumindo que iam se casar. O cheiro imaginado da cirurgia penetrou por suas narinas, mas ela tratou de reprimi-lo, bocejou, estendeu a mão para seu pequeno relógio, que deixara na mesinha-de-cabeceira.
Com esse movimento mínimo, sentiu uma pequena dor na virilha. Por um momento, especulou se pressagiava uma menstruação antes do tempo, pois não era muito regular, mas logo descartou o pensamento como impossível.
O relógio marcava 10:20 h. Era incrustado com lápis-lazúli e fora um presente de seu pai, quando completara dezoito anos, no dia 8 de julho, pouco mais de dois meses antes, em Hong Kong. Muita coisa acontecera desde então, pensou Angelique. Terei o maior prazer em voltar a Paris, à civilização, nunca mais retornarei, nunca, nunca, nun...
Abruptamente, ela percebeu que se encontrava quase nua, sob o lençol. Para seu espanto, descobriu que a camisola apenas se achava presa nos braços e ombros, rasgara na frente, e subira por trás. Levantou os braços, incrédula. Querendo ver melhor, saiu da cama, foi até a janela, e outra vez sentiu uma ligeira dor. À luz do dia, notou uma mancha de sangue denunciadora no lençol, encontrou um vestígio entre as pernas.
— Mas como minha menstruação...
Ela se pôs a contar e recontar os dias, mas a soma não fazia sentido. A última menstruação cessara duas semanas antes. Depois, ela percebeu que estava um pouco úmida, e não conseguiu entender o motivo... e de repente o coração disparou, quase desmaiou, enquanto o cérebro bradava que os sonhos não haviam sido sonhos, mas reais, e que fora violada enquanto dormia.
“Mas não é possível! Você deve ter enlouquecido... não é possível”, pensou ela, fazendo um tremendo esforço para respirar. “Oh, Deus, faça com que seja apenas um sonho, parte desses sonhos.” Angelique cambaleou para a cama, o coração batendo forte. “Você está desperta, e não é um sonho!”
Ela tornou a se examinar, frenética, e mais uma vez, agora com mais cuidado. Tinha bastante conhecimento para saber que não havia qualquer equívoco na umidade, e que o hímen fora rompido. Era verdade. Fora mesmo violada. O quarto começou a girar. Oh, Deus, estou arruinada, a vida arruinada, o futuro arruinado, pois nenhum homem decente vai querer casar comigo, agora que fui maculada, e o casamento é a única maneira de uma moça melhorar, ter um futuro feliz, qualquer futuro, não há outro jeito...
Quando os sentidos se acalmaram, pôde tornar a ver e pensar, descobriu-se estendida através da cama. Trêmula, tentou reconstituir os acontecimentos da noite. Lembro de ter trancado a porta.
Angelique deu uma espiada. A tranca continuava no lugar.
Lembro de Malcolm, do mau cheiro em seu quarto, de ter fugido dali, Phillip Tyrer dormindo sereno, o Dr. Babcott me dando aquela poção e me ajudando a subir...
A poção! Oh, Deus, fui drogada! Se Babcott é capaz de operar com essas drogas, é claro que poderia acontecer, eu ficaria desamparada, só que isso não me ajuda agora! E se eu ficar grávida?
O pânico tornou a dominá-la. As lágrimas escorreram pelas faces, quase soluçou de angústia. “Pare com isso!” Ela fez um supremo esforço para recuperar o controle. “Pare com isso! Não deixe escapar nenhum ruído. Está sozinha, ninguém mais pode ajudá-la, é apenas você, precisa pensar. O que vai fazer? Pense!” Angelique respirou fundo, várias vezes, o coração doendo, tentou impor alguma ordem na mente atordoada. Quem fora o homem?
A tranca ainda se encontrava no lugar, o que significava que ninguém poderia ter passado pela porta. Espere um pouco, lembro vagamente... tenho a impressão que abri a porta, para Babcott e o oficial da marinha, Marlowe... e depois tornei a trancá-la. Foi isso mesmo! Ou pelo menos acho que foi. Ele não falou em francês... é verdade, falou, mas um péssimo francês, depois saíram, e tranquei a porta outra vez, tenho certeza. Mas por que bateram na porta durante a noite?
Ela vasculhou a mente, mas não conseguiu encontrar uma resposta, não sabia direito o que acontecera, as imagens da noite se dissolviam. Algumas.
Concentre-se!
Se não podia ser pela porta, o homem entrou pela janela. Angelique virou-se e constatou que a tranca se encontrava no chão, por baixo da janela, não nos encaixes.
Portanto, quem quer que fosse, passara pela janela! Mas quem fora? Marlowe, o tal de Pallidar, ou até mesmo o bom doutor, sei que todos me desejam. Quem sabia que eu estava drogada? Babcott. Ele poderia ter contado aos outros, mas com certeza nenhum deles ousaria ser tão iníquo, ousaria se arriscar às conseqüências de escalar a parede pelo jardim, pois é claro que vou protestar...
Todo o seu ser bradou uma advertência: Tome cuidado. Seu futuro depende de ser cautelosa e sábia. Tome cuidado.
Tem certeza de que isso realmente aconteceu durante a noite? E o que me diz dos sonhos? Talvez... Não vou pensar neles agora, mas só um médico saberia com certeza, e teria de ser Babcott. Espere um pouco. Pode ter rompido esse pequeno Pedaço de pele no sono, contorcendo-se num pesadelo... e foi um pesadelo, não é mesmo? Já aconteceu com algumas moças. É verdade, mas elas continuaram virgens, e isso não explica a umidade.
Lembre-se de Jeanette no convento, a pobre e tola Jeanette, que se apaixonara Por um dos mercadores, entregara-se a ele e depois nos contara, excitada, revelara todos os detalhes. Ela não engravidara, mas fora descoberta, e no dia seguinte deixara o convento, e mais tarde soubemos que casara com o açougueiro da aldeia. o único que a aceitara.
Não permiti coisa alguma, mas isso não vai me ajudar, um médico saberia com certeza, mas isso também não vai me ajudar, e a idéia de Babcott, ou qualquer outro médico, sendo tão íntimo me enche de horror, e depois Babcott ficaria a par do segredo. Como poderia lhe confiar um segredo assim? Se os outros souberem, tenho de manter em segredo! Mas como pôde fazer isso? E o que acontecerá depois?
Cuidarei dessa resposta mais tarde. Primeiro, preciso decidir quem foi o demônio. Não, primeiro deve se limpar dessa sujeira, e vai se sentir melhor. Tem de pensar com absoluta clareza.
Com profunda aversão, Angelique tirou a camisola, jogou-a para o lado, lavou-se com extremo cuidado, bem fundo, tentando recordar todos os conhecimentos anticoncepcionais que possuía, o que Jeanette fizera com êxito. Vestiu o penhoar, escovou os cabelos. Limpou os dentes, usando o pó especial. Só então se contemplou no espelho. Examinou o rosto. Não havia qualquer marca. Abriu o penhoar. Também não havia marcas nos seios, no resto do corpo... apenas os mamilos estavam um pouco vermelhos. Tornou a se contemplar no espelho.
Nada mudou, absolutamente nada. E tudo mudou.
Foi nesse momento que notou o desaparecimento da pequena cruz de ouro que sempre usava, acordada e dormindo. Procurou em cima da cama, por baixo, ao redor. Não se encontrava nas dobras das cobertas, nem sob os travesseiros, nem presa nas cortinas. A última possibilidade... escondida na renda da colcha. Ela pegou a colcha no chão, revistou-a. Nada.
E foi então que viu os três caracteres japoneses, desenhados de forma tosca na brancura da colcha, com sangue.
Os raios de sol faiscavam na cruz de ouro. Ori a segurava pela corrente fina, fascinado.
— Por que a pegou? — perguntou Hiraga.
— Não sei.
— Não matar a mulher foi um erro. Shorin tinha razão. Foi um erro.
— Karma.
Estavam em segurança, na estalagem das Flores da Meia-Noite. Ori tomara um banho, fizera a barba. Fitou Hiraga, muito calmo, e pensou: Você não é meu mestre. Só lhe direi o que me aprouver, nada mais.
Ele relatara a morte de Shorin, a escalada para o quarto, onde a moça dormia, num sono profundo, e não despertara, e acrescentara apenas que se escondera ali, são e salvo, depois tirara as roupas de ninja, sabendo que seria interceptado, camuflara as espadas com elas, saíra para o jardim, recolhera alguns galhos caídos, para fingir que era jardineiro, antes de ser avistado, reconhecera na janela o homem da estrada e conseguira escapar. Não contara mais nada sobre a moça.
Como posso me expressar em palavras mortais, contar a alguém que por sua causa eu me identifiquei com os deuses, que me senti inebriado de desejo ao abrir suas pernas, ao contemplá-la, e que a penetrei como um amante, não como um estuprador, não sei por que, mas foi assim, devagar, com todo cuidado, e seus braços me enlaçaram, ela estremeceu e se manteve firme, sem chegar a despertar, e me contive ao máximo que podia, antes de me despejar, de uma maneira inconcebível.
Nunca imaginei que pudesse ser tão maravilhoso, tão sensual, tão satisfatório, tão definitivo. As outras nada eram, em comparação. Ela me fez alcançar as estrelas, mas não foi por isso que a deixei viva. Pensei muito em matá-la. E depois a mim mesmo, ali, naquele quarto. Mas teria sido apenas egoísmo, morrer no auge da felicidade, tão contente.
Ah, como eu gostaria de morrer! Mas minha morte pertence a Sonno-joi. Apenas isso. Não a mim.
— Não matá-la foi um erro — repetiu Hiraga, interrompendo os pensamentos de Ori. — Shorin tinha razão, matá-la serviria a nossos planos, melhor do que qualquer outra coisa.
— É verdade.
— Então por quê?
Deixei-a viva para os deuses, se é que existem deuses, Ori poderia ter respondido, mas não o fez. Eles me possuíram, levaram-me a fazer o que fiz, e por isso agradeço. Sou completo agora. Conheço a vida, e tudo o que resta conhecer é a morte. Fui o seu primeiro homem, e ela haverá de se lembrar de mim para sempre, muito embora estivesse dormindo. Quando acordar e deparar com o que escrevi, com meu próprio sangue, não o seu, ela saberá. Quero que ela viva para sempre. Eu morrerei em breve. Karma.
Ori guardou a cruz num bolso secreto na manga do quimono, tomou mais um pouco do chá verde revigorante, sentindo-se totalmente realizado, cheio de vida.
— Você disse que tinha um ataque a efetuar?
— Isso mesmo. Vamos queimar a legação britânica em Iedo.
— Ótimo. Que seja em breve.
— E será. Sonno-joi!
Em Iocoama, Sir William disse, furioso:
— Repita para eles, pela última vez, por Deus, que o governo de sua majestade exige reparações imediatas, de cem mil libras esterlinas em ouro, por Permitirem esse ataque sem qualquer provocação, e pelo assassinato de um inglês... matar um inglês é kinjiru, por Deus! E também que exigimos a entrega dos assassinos de Satsuma, dentro de três dias ou vamos tomar providências definitivas.
Ele se encontrava no outro lado da baía, na pequena e abafada sala de audiência da legação britânica em Iocoama, flanqueado pelos ministros prussiano, francês, russo, os dois almirantes, o britânico e o francês, e mais o general, todos igualmente exasperados.
Na linha oposta, sentados em suas cadeiras, cerimoniosos, estavam os dois representantes locais do Bakufu, o chefe dos samurais da guarda da colônia, e o governador de Kanagawa, em cuja jurisdição ficava Iocoama. Usavam calças largas e quimonos, os mantos de ombros largos, parecendo asas, presos nas cinturas, e espadas. Era evidente que todos se sentiam interiormente contrafeitos além de furiosos. Ao amanhecer, soldados armados haviam batido nas portas das casas da alfândega de Iocoama e Kanagawa, com as coronhas dos rifles, numa ira sem precedentes, convocando as mais altas autoridades e o governador para uma conferência ao meio-dia, numa pressa também sem precedentes.
Entre os dois lados, os intérpretes instalavam-se em almofadas. O japonês estava ajoelhado, e o outro, um suíço, Johann Favrod, sentava de pernas cruzadas. A língua comum era o holandês.
A reunião já durava duas horas — inglês traduzido para o holandês, e depois o japonês, e japonês para o holandês e inglês. Todas as perguntas de Sir William eram compreendidas da maneira errada, ou precisavam de várias repetições, os “adiamentos” eram solicitados de uma dúzia de maneiras diferentes, para “consultar autoridades superiores”, que “promoveriam os exames e investigações necessários”, e “no Japão exames são muito diferentes de investigações, excelência, o governador de Kanagawa deve explicar tudo em detalhes”... e “o governador de Kanagawa deseja explicar, excelência, que não tem jurisdição sobre Satsuma, que é um reino separado...” e “o governador de Kanagawa foi informado, excelência, que os acusados sacaram pistolas de forma ameaçadora, e são culpados de não obedecerem aos antigos costumes japoneses...” e “quantos estrangeiros formavam o grupo, e todos deveriam ter se ajoelhado... mas nossos costumes...”
Uma reunião tediosa, consumindo tempo demais, com complexas preleções em japonês pelo governador, traduzidas para um holandês que nada tinha de fluente, e depois para o inglês.
— Seja incisivo, Johann, exatamente como eu falei.
— É o que fiz todas as vezes, Sir William, mas tenho certeza que esse cretino não está traduzindo direito, nem o que nós falamos; nem o que os japoneses dizem.
— Sabemos disso. Alguma vez foi diferente? Por favor, vamos acabar logo de uma vez.
Johann fez uma tradução exata. O intérprete japonês corou, pediu uma explicação da palavra “imediatas”, e depois apresentou uma tradução aproximada, polida e apropriada, que considerava que seria aceitável. Até mesmo o governador respirou fundo pela afronta. O silêncio era opressivo. Os dedos tamborilando no cabo da espada, num gesto contínuo e irritante, ele deu uma resposta curta, três ou quatro palavras. Atradução foi longa, e depois Johann disse, jovial:
— Sem toda a merda, o governador diz que vai encaminhar o seu “pedido”, no momento apropriado, às autoridades apropriadas.
Sir William ficou vermelho, de forma perceptível, os dois almirantes e o general ainda mais.
— “Pedido”, hem? Diga a esse sujeito exatamente o seguinte: Não é um pedido, é uma exigência! E diga mais: exigimos uma audiência IMEDIATA com o xógum em Iedo, dentro de três dias! Três dias, por Deus! E irei até lá num vaso de guerra!
— Bravo! — murmurou o conde Zergeyev.
Johann também se cansara do jogo, e imprimiu um tom brusco às palavras. O intérprete japonês soltou uma exclamação de espanto, e no mesmo instante lançou um fluxo de holandês em voz cáustica, a que Johann respondeu docemente com apenas duas palavras, que precipitaram um silêncio súbito e consternado.
— Nanja?
— O que é isso, o que foi dito? — indagou o governador, furioso, sem se equivocar quanto à hostilidade, nem disfarçando a sua.
No mesmo instante, o nervoso intérprete ofereceu uma versão abrandada, mas mesmo assim o governador explodiu num paroxismo de ameaças e súplicas, recusas e mais ameaças, que o intérprete traduziu em palavras que considerava que os estrangeiros gostariam de ouvir. Depois, ainda abalado, escutou de novo, tornou a traduzir.
— O que ele disse, Johann?
Sir William teve de elevar a voz acima do barulho, pois o intérprete ainda falava ao governador e aos representantes do Bakufu, que conversavam entre si.
Johann sentia-se feliz agora, pois sabia que a reunião terminaria logo e poderia voltar ao Long Bar, para o almoço, acompanhado por schnapps.
— Não sei, exceto que o governador repete que o melhor que pode fazer é transmitir seu pedido etecétera, às autoridades etecétera, mas não há a menor possibilidade do xógum conceder essa honra etecétera, porque é contra seus costumes etecétera...
Sir William bateu com a palma da mão na mesa. No silêncio chocado, ele apontou para o governador, depois para si mesmo.
— Watashi... eu...— Ele apontou pela janela, na direção de Iedo. — Watashi ir a Iedo!
Depois, ele levantou três dedos, e arrematou:
— TRÊS DIAS, num navio de guerra!
Sir William levantou-se, saiu da sala. Os outros o seguiram. Ele seguiu pelo corredor até sua sala, foi à mesa com garrafas de cristal lapidadas, serviu-se de uísque.
— Alguém gostaria de me acompanhar? — indagou ele, enquanto os outros o cercavam.
Automaticamente, Sir William serviu scotch para os almirantes, o general e o prussiano, clarete para Seratard e uma significativa vodca para o conde Zergeyev.
— Pensei que tudo transcorreria de acordo com o que planejamos. Lamento ter escapado ao controle.
— E eu pensei que ia arrebentar uma artéria — comentou Zergeyev, esvaziando seu copo e servindo-se de mais vodca.
— Longe disso. Apenas queria encerrar a reunião com um pouco de drama
— Então partiremos para Iedo dentro de três dias?
— Exatamente, meu caro conde. Almirante, prepare a nave capitânia para zarpar ao amanhecer, passe os próximos dias arrumando tudo, organizando o convés para combate de forma ostensiva, todos os canhões em posição, mande toda a esquadra ficar de prontidão e se juntar a nós em batalha, se for necessário General, quinhentos soldados devem ser suficientes para uma guarda de honra Monsieur, a nave capitânia francesa gostaria de nos acompanhar?
— Claro — respondeu Seratard. — Pode estar certo de que o acompanharei, e sugiro a legação francesa como quartel-general, e uniformes de gala.
— Não aos uniformes, pois será uma missão punitiva, não para apresentar credenciais... isso só ocorrerá depois. E não ao quartel-general. Um cidadão britânico é que foi assassinado e... Como posso dizer? Nossa esquadra é que será o fator decisivo.
Von Heimrich soltou uma risada.
— Sem dúvida, é mesmo decisiva nestas águas, no momento. — Ele olhou para Seratard. — Uma pena que eu não tenha uma dúzia de regimentos da cavalaria prussiana, pois neste caso poderíamos dominar os japoneses sem a menor dificuldade e acabar com toda a sua estupidez insidiosa e os maus modos.
— Só uma dúzia? — indagou Seratard, sarcástico.
— Seria o suficiente, Herr Seratard, para todo o Japão... nossos soldados são os melhores do mundo... depois das tropas de sua majestade britânica, é claro — acrescentou ele, insinuante. — Ainda bem que a Prússia pode dispensar vinte ou até trinta regimentos só para este pequeno setor e ainda contar com o necessário para lidar com qualquer problema que possamos enfrentar, em qualquer lugar, particularmente na Europa.
— Bom... — interveio Sir William, enquanto Seratard ficava vermelho. Ele terminou de tomar seu drinque. — Irei a Kanagawa para tomar algumas providências. Almirante, general, talvez devêssemos ter uma rápida conferência quando eu voltar... irei à nave capitânia. Ah, monsieur Seratard, o que vamos fazer com mademoiselle Angelique? Quer que eu a escolte de volta?
Ela saiu do quarto ao sol do final da tarde, atravessou o corredor, desceu a escada principal para o saguão de entrada. Usava agora o vestido de anquinha do dia anterior, elegante outra vez, mais etérea do que nunca — os cabelos arrumados, presos no alto da cabeça, os olhos realçados. Perfume e o farfalhar de anáguas.
As sentinelas na porta principal murmuraram um cumprimento embaraçado, intimidadas por sua beleza. Angelique retribuiu com um sorriso distante e se encaminhou para a enfermaria. Um criado chinês fitou-a boquiaberto e passou apressado.
A porta foi aberta um instante antes de Angelique alcançá-la. Babcott saiu, parou no mesmo instante.
— Olá, Srta. Angelique... puxa, como está bonita! — disse ele, quase gaguejando.
— Obrigada, doutor. — Seu sorriso era gracioso, a voz, gentil. — Gostaria de lhe falar... Podemos conversar por um momento?
— Claro. Vamos entrar. Fique à vontade.
Babcott levou-a para sua sala, fechou a porta, instalou-a em sua melhor cadeira, foi sentar atrás da mesa, impressionado com a radiância de Angelique, pela maneira como o penteado destacava o pescoço longo à perfeição. Ele tinha os olhos injetados, sentia-se muito cansado. Mas assim é a vida, pensou, deleitando-se com a visão da moça.
— Aquela bebida que me deu, ontem à noite, era alguma espécie de droga?
— Era, sim. Fiz bastante forte, pois você estava um pouco transtornada.
— Tudo me parece tão vago e confuso, a Tokaidô, a vinda para cá, a visita a Malcolm... A droga que me deu para dormir era mesmo muito forte?
— Era, sim, mas não perigosa. O sono é a melhor cura, e tem de ser do melhor tipo, um sono profundo. Não resta a menor dúvida de que você dormiu bem, pois já são quase quatro horas da tarde. Como se sente?
— Ainda um pouco cansada. — Outra vez o sorriso hesitante. — Como está monsieur Struan?
— Não houve qualquer mudança. Eu ia vê-lo agora. Pode me acompanhar, se quiser. Ele está indo bem, considerando tudo. Ah, antes que eu me esqueça, pegaram aquele sujeito.
— Que sujeito?
— Aquele sobre o qual lhe falamos ontem à noite, o intruso.
— Não me lembro de nada sobre a noite.
Babcott relatou o que acontecera na porta do quarto e no jardim, como um assaltante fora morto a tiros, e o outro avistado naquela manhã, mas conseguira escapar. Angelique precisou de toda a sua força de vontade para se manter impassível, e não gritar em voz alta o que pensava: Seu filho de Satã, com suas poções para dormir e sua incompetência! Dois assaltantes? O outro deve ter ido ao meu quarto, enquanto você fracassava na tentativa de descobri-lo, se mostrava incapaz de me salvar... você e aquele outro idiota, Marlowe, igualmente culpado!
Mãe Abençoada, dê-me forças, ajude a me vingar dos dois. E também dele, quem quer que seja. Mãe de Deus, permita que eu seja vingada. Mas por que roubar meu crucifixo e deixar as outras jóias; e por que os caracteres, o que significam? E por que em sangue, o sangue dele?
Ela percebeu que Babcott a fitava fixamente.
— Oui?
— Perguntei se gostaria de visitar o Sr. Struan agora.
— Hum... claro, claro. Eu agradeço. — Angelique levantou-se, mais uma vez sob controle. — Infelizmente, derramei água nos lençóis... poderia pedir à criada para lavá-los, por favor?
Ele riu.
— Não temos criadas aqui. É contra os regulamentos dos japoneses. Só temos empregados chineses. Não se preocupe. No momento em que saiu do quarto, eles começaram a arrumar... — Babcott parou, vendo-a empalidecer. — O que aconteceu?
Por um instante, a cautela a abandonou, e ela se viu de volta ao quarto, lavando e esfregando, apavorada porque as manchas não saíam. Ao final, porém, conseguira removê-las, e se lembrava de que verificara e tornara a verificar, e assim o segredo estava seguro — nada restara para revelá-lo, nem umidade, nem sangue seu segredo seguro para sempre, enquanto fosse forte, e se ativesse ao plano, tinha de se ater, e precisava também ser esperta, não havia outro jeito.
Babcott ficou chocado com a súbita palidez, os dedos de Angelique retorcendo um pedaço da saia. Foi para o seu lado no mesmo instante, segurou-a pelos ombros, com extrema gentileza.
— Não se preocupe mais. Está sã e salva agora, nada mais tem a temer.
— Desculpe — murmurou ela, a cabeça encostada no peito do médico, descobrindo que as lágrimas escorriam. — É que eu estava... me lembrando do pobre Canterbury.
Angelique observou a si mesma, como se estivesse fora de seu corpo, deixou que Babcott a confortasse, absolutamente convenci da de que seu plano era o único viável, o único sensato: nada acontecera. Nada, nada, nada.
Vai acreditar nisso até a próxima regra. E depois, se chegar, vai acreditar para sempre.
E se não chegar?
Não sei, não sei, não sei.
7
Segunda-feira, 15 de setembro:
— Os gai-jin são vermes sem bons modos — declarou Nori Anjo, tremendo de raiva. Era o chefe do roju, o Conselho de Cinco Anciãos, um homem atarracado, de rosto redondo, com um traje suntuoso. — Rejeitaram nosso pedido de desculpas, o que teria encerrado o incidente na Tokaidô, e agora, impertinentes, exigem uma audiência formal com o xógum... a escrita é a pior possível, as palavras ineptas. Tome aqui. Leia você mesmo. Acabou de chegar.
Com uma impaciência que mal conseguia disfarçar, ele entregou o pergaminho a seu adversário muito mais jovem, Toranaga Yoshi, sentado à sua frente. Estavam a sós numa das salas de audiências no alto da torre central do castelo de Iedo, após ordenarem que todos os guardas se retirassem. Uma mesa baixa, laqueada de vermelho, os separava, com uma bandeja de chá preta em cima, contendo xícaras e bule de porcelana.
— Não importa o que os gai-jin digam. — Apreensivo, Yoshi pegou o pergaminho, mas não o leu. Ao contrário de Anjo, suas roupas eram simples, e as espadas que usava não eram cerimoniais. — De alguma forma, devemos manipulá-los para fazerem o que quisermos.
Ele era o daimio de Hisamatsu, um pequeno mas importante feudo ali perto, descendente direto do primeiro xógum Toranaga. Por “sugestão” recente do imperador, apesar da oposição ostensiva de Anjo, fora designado para guardião do herdeiro, o menino xógum, e para preencher a vaga que se abrira no Conselho dos Anciãos. Alto, aristocrata, tinha vinte e seis anos, as mãos delicadas, de dedos compridos.
— Independente do que aconteça, eles não devem ver o xógum — acrescentou Yoshi. — Isso confirmaria a legalidade dos tratados, que ainda não foram devidamente ratificados. Vamos recusar o insolente pedido.
— Concordo que é insolente, mas ainda temos de lidar com o problema e decidir sobre aquele cão de Satsuma, Sanjiro.
Ambos estavam cansados do problema dos gai-jin, que perturbava sua wa, a harmonia, já há dois dias agora, ambos ansiosos em encerrar a reunião — Yoshi querendo retomar a seus aposentos lá embaixo, onde Koiko o esperava, Anjo para ir a um encontro secreto com seu médico.
Era um dia ensolarado e ameno lá fora, o cheiro do mar e do solo fértil trazido pela suave brisa que passava pelas janelas abertas. Ainda não havia qualquer ameaça do inverno.
Mas o inverno se aproximava, pensou Anjo, distraído pela dor em suas entranhas. Detesto o inverno, a estação da morte, a estação triste, céu triste, mar triste, terra triste, feia e congelada, o frio endurecendo suas articulações, lembrando como é velho. Era um homem grisalho, de quarenta e seis anos, daimio de Mikawa, fora o centro do poder no roju desde o assassinato do ditador Tairo Li quatro anos antes.
Enquanto você, meu jovem inexperiente, pensou ele, furioso, tem apenas dois meses no conselho, e quatro semanas como guardião — duas posições políticas perigosas, atribuídas apesar dos meus protestos. É tempo de cortar suas asas.
— Claro que todos prezamos seu conselho — disse ele, insinuante, para depois acrescentar, com toda hipocrisia, como ambos sabiam: — Há dois dias que os gai-jin vêm preparando sua esquadra para a batalha, as tropas realizando exercícios ostensivos, e amanhã seu líder estará aqui. Qual é a sua solução?
— A mesma de ontem, com ou sem pergaminho oficial: enviamos outro pedido de desculpas, “pelo lamentável incidente”, temperado com um sarcasmo que eles nunca vão compreender, de uma autoridade que jamais conhecerão, entregue antes de o líder gai-jin deixar Iocoama, e solicitando outro adiamento, para “novas investigações”. Se isso não o satisfizer, e ele vier a Iedo, junto com os outros, pois que venham. Enviaremos a habitual autoridade de baixo nível para recebê-los e conferenciar em sua legação. Ou seja, vamos tratá-los com um pouco de sopa, mas sem peixe. Protelamos e continuamos a protelar.
— Enquanto isso, é chegado o momento de exercer nosso direito hereditário ao xogunato e ordenar a Sanjiro que nos entregue sem demora os assassinos, para a necessária punição, e pague uma indenização, por nosso intermédio, além de ficar sob prisão domiciliar e ser afastado de suas funções. — O tom de Anjo era ríspido. — Você ainda é inexperiente nas questões mais importantes do xogunato.
Fazendo um esforço para se controlar e desejando obrigar o próprio Anjo a uma aposentadoria imediata por sua estupidez, Yoshi respondeu:
— Se dermos essas ordens a Sanjiro, seremos desobedecidos, o que nos forçaria a entrar em guerra, e Satsuma é muito forte, conta com numerosos aliados. Há duzentos e cinqüenta anos que não temos guerras. Não estamos preparados para a guerra. A guerra é...
Houve um silêncio súbito e opressivo. Numa reação involuntária, os dois levaram a mão ao cabo da espada. As xícaras e o bule começaram a tremer. A própria terra rugia, a torre balançou, uma, duas, três vezes. O terremoto persistiu por cerca de trinta segundos. E logo acabou, tão subitamente como começara. Impassíveis, eles esperaram, observando as xícaras.
Nada de tremor posterior.
E ainda nada.
Mais espera por todo o castelo, por toda a cidade de Iedo. Todas as criaturas vivas esperavam. Nada.
Yoshi tomou um gole de chá, ajeitou a xícara com todo cuidado no pires. Anjo invejou-o por seu controle. Por dentro, Yoshi estava em turbilhão, e pensou: Hoje, os deuses me sorriram, mas o que acontecerá no próximo choque, ou no outro, ou no outro... a qualquer momento agora, ou no futuro distante, ou esta tarde, ou esta noite, ou amanhã? Karma!
Seguro hoje, mas em breve haverá outro, terrível, um terremoto destruidor, como o que ocorreu há sete anos, quando quase morri, e cem mil pessoas pereceram só em Iedo, no terremoto e nos incêndios subsequentes, sem contar as dezenas de milhares arrastadas para o mar e afogadas, pela onda tsunami, que veio do oceano naquela noite... e uma delas foi minha adorável Yuriko, que era então a paixão da minha vida. Ele fez um tremendo esforço para dominar o medo e continuou a falar:
— A guerra é completamente insensata agora. Satsuma é muito forte, as legiões de Tosa e Choshu se tornarão suas aliadas ostensivas, e não temos poder suficiente para esmagá-los sozinhos.
Tosa e Choshu eram feudos distantes de Iedo, ambos inimigos históricos do xogunato.
— Os daimios mais importantes virão lutar sob a nossa bandeira, se chamados, e os outros os acompanharão.
Anjo tentou ocultar a dificuldade que sentiu para soltar o cabo da espada, ainda apavorado.
Yoshi estava alerta, era bem treinado, notou o lapso e registrou-o para uso futuro, satisfeito por tê-lo percebido em seu inimigo.
— Eles não farão, pelo menos ainda não. Vão adiar, esbravejar, lamentar, e nunca nos ajudarão a acabar com Satsuma. Não têm coragem.
— Se não agora, quando?
A fúria de Anjo se dissipara, diluída pelo medo e a aversão a terremotos. Testemunhara um dos piores quando era pequeno, o pai se transformara numa tocha viva, a mãe e dois irmãos viraram carvão diante de seus olhos. Desde então, mesmo ao menor terremoto, revivia aquele dia, sentia o cheiro da carne queimando, ouvia os gritos.
— Temos de humilhar aquele cão, mais cedo ou mais tarde. Por que não agora?
— Porque temos de esperar até ficarmos melhor armados. Eles... Satsuma, Tosa e Choshu... possuem umas poucas armas modernas, canhões e fuzis, não Sabemos em que quantidade. E diversos barcos a vapor.
— Vendidos pelos gai-jin, contra a vontade do xogunato!
— Comprados por eles por causa de fraquezas anteriores. Anjo ficou vermelho.
— Não sou responsável por isso!
— Nem eu! — Os dedos de Yoshi se contraíram no cabo da espada. Aqueles feudos são mais bem armados do que nós, qualquer que seja o motivo. Assim, por mais lamentável que seja, temos de esperar. O fruto de Satsuma ainda não apodreceu o suficiente para que arrisquemos uma guerra que não podemos vencer. Estamos isolados, o que já não acontece com Sanjiro.
Yoshi fez uma pausa, e a voz saiu mais incisiva quando acrescentou:
— Mas concordo que em breve teremos de fazer um acerto de contas.
— Amanhã pedirei ao Conselho para emitir a ordem.
— Pelo bem do xogunato, seu e de todos os clãs de Toranaga, espero que os outros me escutem!
— Veremos o que acontece amanhã... a cabeça de Sanjiro deve ser espetada na ponta de um chuço e exibida como um exemplo para todos os traidores.
— Concordo que Sanjiro deve ter ordenado a morte na Tokaidô só para nos embaraçar — disse Yoshi.— Era inevitável que os gai-jin se enfurecessem. Nossa única solução é ganhar tempo, pois a missão à Europa deve voltar a qualquer dia agora e nossos problemas vão acabar.
Oito meses antes, em janeiro, o xogunato enviara a primeira delegação oficial do Japão, num navio a vapor, para a América e Europa, com ordens secretas para renegociar os tratados — o roju considerava-os “acordos experimentais não autorizados” — com os governos britânico, francês e americano, e cancelar ou adiar a abertura de novos portos.
— Suas ordens eram expressas — acrescentou Yoshi. — A esta altura, os tratados já devem ter sido revogados.
Anjo declarou, num tom sinistro:
— Ou seja, se não a guerra, você pelo menos concorda que chegou o momento de despachar Sanjiro.
O homem mais jovem era cauteloso demais para concordar abertamente, e se perguntou o que Anjo pensava em fazer ou já planejara. Ele ajeitou as espadas de uma maneira mais confortável e fingiu considerar a questão, descobrindo que muito lhe agradava a sua nova função. Mais uma vez, estou no centro do poder. É verdade que Sanjiro me ajudou a chegar aqui, mas apenas por causa de seus infames propósitos: queria me destruir, apontando-me publicamente como o responsável por todos os problemas que esses malditos gai-jin nos trouxeram, e assim me tornando um dos alvos principais dos miseráveis shishi... na tentativa de usurpar nossos direitos hereditários, nossa riqueza e o xogunato.
Mas nada importa. Estou a par do que ele e seu cão sarnento, Katsumata, planejam, quais são suas verdadeiras intenções contra nós, as de Tosa e Choshu. Ele não terá êxito, juro por meus ancestrais.
— Como pretende eliminar Sanjiro?
A expressão de Anjo se tornou sombria, ao recordar sua última e violenta discussão com o daimio de Satsuma, apenas uns poucos dias antes.
Anjo — dissera Sanjiro, autoritário — obedeça às ordens do imperador. — Convoque imediatamente uma reunião de todos os daimios, peça-lhes com toda vontade para formarem um conselho permanente, que vai aconselhar, reformar com o xogunato, revogue os infames e não autorizados acordos com os gai-jin, certifique-se que todos os portos sejam fechados aos Sai-jin, e se eles não quiserem ir embora, expulse-os sem a menor hesitação!
— Devo lembrá-lo de que é direito exclusivo do xogunato determinar a política externa, qualquer política, não do imperador, muito menos sua! — Ponderara Anjo, odiando Sanjiro por sua linhagem, suas legiões, suas riquezas, boa saúde abundante e óbvia. — Ambos sabemos que você o enganou. As sugestões são ridículas e inviáveis. Temos mantido a paz por dois séculos e meio...
— pelo engrandecimento de Toranaga. Se se recusa a obedecer a seu legítimo suserano, o imperador, então deve renunciar ou cometer seppuku. Você escolhe um menino para ser o xógum, aquele traidor Tairo Li assinou os “tratados”... é responsabilidade do Bakufu a presença dos gai-jin aqui, responsabilidade de Toranaga.
Anjo ficara vermelho, levado quase à loucura pela insídia escarninha e as provocações que persistiam há meses, e teria recorrido à espada se Sanjiro não estivesse protegido pelo mandato imperial.
— Se o Tairo Li não negociasse os tratados e depois os assinasse, os gai-jin teriam nos bombardeado e desembarcado à força, e agora estaríamos humilhados como a China.
— Mera suposição... e absurda!
— Já esqueceu que o palácio de verão em Pequim foi incendiado e Saquêado, Sanjiro-dono? Agora a China se encontra praticamente desmembrada, e o governo saiu do controle chinês. Esqueceu que a China cedeu aos britânicos, os principais inimigos, uma de suas ilhas, Hong Kong, há vinte anos, e agora o lugar é um bastião inexpugnável? E que Tientsin, Xangai e Swatow são agora portos de tratado, auto-suficientes, dominados e possuídos pelos gai-jin em caráter permanente? Vamos supor que eles se apossem de uma de nossas ilhas da mesma maneira.
— Nós os impediríamos... não somos chineses.
— Como? É lamentável, mas você está cego e surdo, tem a cabeça nas nuvens. Há um ano, no momento em que acabou a última guerra da China, se os Provocássemos, eles teriam enviado contra nós todas aquelas esquadras e exércitos. Foi somente a astúcia do Bakufu que evitou que isso acontecesse. Não Poderíamos resistir àquelas armadas... com seus canhões e armamentos modernos.
É responsabilidade do xogunato estarmos despreparados, responsabilidade de Toranaga. Há anos que deveríamos ter canhões e navios de guerra modernos, anos que sabíamos de sua existência. Os holandeses nos alertaram dezenas de vezes sobre as novas invenções, mas vocês enfiaram a cabeça nos baldes noturnos!
No máximo, poderiam ter concedido um porto, Deshima...
Por que dar ao demônio americano Townsend Harris também Iocoama, Hirodate, Basáqui e Kanagawa, além de permitir acesso a Iedo para suas impertinentes legações? Renunciem e deixem que outros mais qualificados salvem a terra dos deuses...
A lembrança da confrontação fez Anjo suar, assim como o conhecimento de que era certo muito do que Sanjiro dissera. Ele tirou um lenço de papel da manga volumosa, enxugou o suor da testa e da cabeça raspada, olhou para Yoshi invejando o seu porte e boa aparência, mas acima de tudo a sua juventude e virilidade legendárias.
Não muito tempo atrás era fácil ser satisfeito. Normal ser potente, pensou Anjo com uma súbita angústia, a dor sempre presente em sua virilha a lembrá-lo. Não muito tempo atrás, era fácil ficar ereto, sem qualquer esforço, e dispor de uma carga abundante... agora, não era mais possível, nem mesmo com a pessoa mais desejável, com todas as habilidades, com as mais raras pomadas e medicamentos.
— Sanjiro pode se considerar além do alcance, mas não está — disse ele, decidido. — Pense nisso também, Yoshi-dono, nosso jovem, mas tão sábio conselheiro, como removê-lo, ou sua cabeça pode acabar também na ponta de um chuço, e muito em breve.
Yoshi decidiu não assumir a ofensa e sorriu.
— O que os outros anciãos pensam a respeito?
Anjo soltou uma risada irônica.
— Eles votarão como eu disser.
— Se você não fosse parente, eu poderia sugerir que renunciasse ou cometesse seppuku.
— É uma pena que não seja seu ilustre homônimo e, assim, não possa dar essa ordem, hem? — Anjo levantou-se. — Enviarei a resposta agora, para ganhar tempo. Amanhã faremos uma votação formal para humilhar Sanjiro...
Ele virou-se abruptamente, furioso, quando a porta foi aberta. Yoshi já tirara a metade da espada da bainha.
— Dei ordens...
O guarda aturdido murmurou:
— Desculpe, Anjo-sama...
A raiva de Anjo se desvaneceu quando um jovem empurrou o guarda para o lado e entrou apressado na sala, seguido de perto por uma moça, que mal chegava a ter um metro e meio de altura, ambos em trajes suntuosos, com quatro samurais armados em sua esteira, e depois uma matrona e uma dama de companhia. No mesmo instante, Anjo e Yoshi se ajoelharam, baixaram a cabeça para o tatame. Toda a comitiva fez uma reverência. À exceção do jovem, o xógum Nobusada. E da moça, a princesa imperial Yazu, sua esposa. Ambos tinham a mesma idade, dezesseis anos.
— Esse terremoto quebrou meu vaso predileto! — disse o rapaz, excitado, ignorando a presença de Yoshi. — Meu vaso predileto!
Ele acenou para que a porta fosse fechada. Seus samurais permaneceram na sala, assim como as damas de companhia de sua esposa.
— Eu queria lhe dizer que tive uma idéia maravilhosa.
— Lamento muito pelo vaso, Sire — disse Anjo, a voz gentil. — Teve uma...
— Nós... decidimos, minha esposa e eu, decidimos ir a Quioto para falar com o imperador, e perguntar o que fazer com os gai-jin, como podemos expulsá-los! — O jovem olhou radiante para a esposa, que acenou com a cabeça, numa feliz concordância. — Iremos no próximo mês... uma visita oficial!
Anjo e Yoshi sentiram que suas mentes estavam prestes a explodir, ambos tiveram vontade de saltar para a frente e estrangular o rapaz, por sua falta de juízo. Mas mantiveram o controle, acostumados aos acessos e estupidez petulante de Nobusada. O que não os impediu de amaldiçoar, pela milésima vez, o dia em que o casamento daqueles dois fora proposto e consumado.
— Uma idéia interessante, Sire — disse Anjo, cauteloso, observando a moça sem observar, notando que ela se concentrava nele agora, e que seus lábios podiam sorrir, mas o mesmo não ocorria com os olhos, como sempre. — Apresentarei a sugestão ao Conselho dos Anciãos, e dispensaremos toda a nossa atenção.
— Ótimo! — exclamou Nobusada, pomposo.
Era um jovem baixo e magro, pouco mais que um metro e meio, e sempre usava grossas geta, sandálias, para aumentar sua altura. Os dentes estavam pintados de preto, como determinava a moda da corte em Quioto, embora não se adotasse o mesmo costume nos círculos do xogunato.
— Três ou quatro semanas devem ser suficientes para preparar tudo. — Ele ofereceu um sorriso ingênuo à esposa. — Esqueci alguma coisa, Yazu-chan?
— Não, Sire — respondeu ela, graciosa. — Como poderia esquecer qualquer coisa?
Seu rosto era delicado e arrumado ao estilo clássico da corte de Quioto: sobrancelhas depiladas, tendo em seu lugar uma tinta escura, sobre a brancura da maquilagem, dentes pintados de preto, cabelos pretos empilhados no alto da cabeça, presos com alfinetes ornamentados. O quimono púrpura era decorado com ramos de flores de outono, e a obi, a faixa elaborada, era dourada. A princesa imperial Yazu, meia-irmã do filho do céu, esposa de Nobusada há seis meses, fora-lhe prometida desde os doze anos, ficara noiva aos quatorze e casara aos dezesseis.
— Claro que uma decisão sua é uma decisão, não uma sugestão — acrescentou ela.
— Tem toda razão, honrada princesa — apressou-se em declarar Yoshi. — Mas, infelizmente, Sire, arranjos tão importantes não podem ser feitos em apenas quatro semanas. E permita que eu o aconselhe a considerar as implicações, a possibilidade de que tal visita seja interpretada de maneira errônea.
O sorriso de Nobusada desapareceu.
—Implicações? Aconselhar? Que implicações? Interpretação errônea de quem? Sua?
O tom era rude e agressivo.
— Não, Sire, não minha. Eu apenas queria ressaltar que nenhum xógum jamais foi a Quioto para pedir conselhos ao imperador; tal precedente seria desastroso para seu regime.
— Por quê? — indagou Nobusada, irritado. — Não estou entendendo.
— Porque, como se lembra, o xógum tem o dever hereditário exclusivo de tomar decisões pelo imperador, junto com seu Conselho de Anciãos e o xogunato — Yoshi mantinha a voz gentil. — Isso permite que o filho do céu passe seu tempo intercedendo junto aos deuses por todos nós, enquanto o xogunato impede que os acontecimentos materiais perturbem sua wa.
A princesa Yazu interveio, também em voz suave:
— O que Toranaga Yoshi-sama diz é verdade, marido. Mas, infelizmente, os gai-jin já perturbaram sua wa, como todos sabemos, e por isso pedir a meu irmão, o sublime, por conselhos a respeito seria ao mesmo tempo polido e filial, não uma interferência com direitos históricos.
— É isso mesmo. — O rapaz estufou o peito. — Está decidido!
— O conselho vai considerar imediatamente os seus desejos — disse Yoshi.
O rosto de Nobusada se contraiu em raiva, e ele gritou:
— Desejos? É uma decisão! Pode falar com eles, se quiser, mas eu já decidi! Sou eu o xógum, não você! Eu! E já decidi! Fui o escolhido, e você rejeitado... fui o escolhido por todos os daimios leais. Sou o xógum, primo!
Todos ficaram consternados com a explosão. Exceto a moça. Ela sorriu para si mesma, manteve os olhos abaixados e pensou: finalmente minha vingança começa.
— É verdade, Sire — disse Yoshi, em voz normal, embora a cor tivesse se esvaído por completo de seu rosto. — Mas sou o guardião e devo advertir contra...
— Não quero o seu conselho! Ninguém me perguntou se queria um guardião! Não preciso de um guardião, primo, ainda menos de você!
Yoshi fitou o rapaz, tremendo de raiva. Houve um tempo em que fui como você, pensou ele, com total frieza, um fantoche a ser mandado de um lado para o outro, a ser afastado de minha própria família, adotado por outra, a ser casado, banido, e quase assassinado seis vezes, e tudo porque os deuses decidiram que eu seria o filho de meu pai... como você, seu tolo patético, nasceu filho de seu pai. Somos parecidos em muitas coisas, mas nunca fui um tolo, sempre optei por ser espadachim, tinha consciência de que era manipulado, e me tornei muito diferente. Não sou mais um fantoche. Sanjiro de Satsuma ainda não sabe, mas ele me converteu em manipulador.
— Enquanto eu for guardião, haverei de defendê-lo e protegê-lo, Sire. — Yoshi olhou para a moça, tão frágil e delicada, por fora. — E à sua família.
Ela não fitou os seus olhos. Nem precisava. Ambos sabiam que a guerra fora declarada.
— Ficamos contentes por sua proteção, Toranaga-sama.
— Eu não estou! — gritou Nobusada, a voz estridente. — Você era meu rival. Agora não é nada! Dentro de dois anos, completarei dezoito anos, passarei a reinar sozinho, e você...
Ele apontou um dedo trêmulo para o rosto impassível de Yoshi, deixando todos estarrecidos... menos a moça.
— A menos que você aprenda a obedecer, eu... vou bani-lo para a Ilha do fiorte, para sempre! E nós vamos para Quioto!
Nobusada virou-se abruptamente. Um dos guardas se apressou em abrir a porta. Todos fizeram uma reverência, enquanto ele saía, apressado. A esposa saiu atrás, depois os outros. Assim que ficaram a sós outra vez, Anjo removeu o suor do pescoço.
— Ela... ela é a fonte de toda a agitação dele... do seu “brilho” — comentou ele, amargurado.— Desde que chegou aqui que o jovem tolo vem se comportando com mais estupidez do que o normal, e não porque esteja cego de tanto fornicar.
Yoshi disfarçou seu espanto por Anjo ter feito em voz alta um comentário tão óbvio, embora perigoso.
— Chá?
Anjo acenou com a cabeça, distraído, outra vez com inveja da força e elegância de Yoshi. Nobusada não é tão tolo assim em algumas coisas, refletiu ele. Concordo em relação a você; quanto mais cedo for afastado, melhor, você e Sanjiro, os dois são problemas. O conselho seria capaz de votar para restringir seus poderes como guardião ou mesmo bani-lo? É verdade que você leva à loucura aquele tolo rapaz cada vez que se encontram... e a moça também. Se não fosse por você, eu poderia controlar aquela cadela, sendo ou não meia-irmã do imperador. E pensar que não apenas fui a favor do casamento, mas também executei o estratagema do Tairo Li, apesar da oposição do próprio imperador à união. Não recusamos sua primeira e relutante oferta, a filha de trinta anos, e depois a filha de um ano, até que ele acabou concordando, sob pressão, em entregar a meia-irmã?
Claro que a ligação de Nobusada com a família imperial nos fortalece, contra Sanjiro e os lordes de fora, contra Yoshi e os que queriam que ele fosse designado xógum. E a ligação será todo-poderosa depois que ela tiver um filho... o que vai abrandá-la, drenar seu veneno. A gravidez já está atrasada. O médico do rapaz vai aumentar a dose de ginsengue, ou dar algumas pílulas especiais para aumentar seu desempenho, pois é terrível ser tão flácido na sua idade. Isso mesmo, quanto mais cedo ela estiver esperando uma criança, melhor. Ele terminou de tomar o chá. — Eu o verei na reunião amanhã.
Os dois fizeram uma reverência superficial. Yoshi saiu e foi para as ameias, Precisando de ar fresco e tempo para pensar. Podia avistar lá embaixo as fortificações de pedra, com três círculos de fossos, as defesas inexpugnáveis, pontes levadiças, muralhas monstruosas. Dentro do castelo, havia alojamentos para cinqüenta mil samurais e dez mil cavalos, além de aposentos espaçosos e palácios Para os eleitos, as famílias leais — mas apenas as famílias do clã Toranaga dentro do fosso interno — e jardins por toda parte. Na torre central, por cima e abaixo dele, ficavam as áreas mais seguras, um santuário interior do xógum reinante, sua família, cortesãos e servidores. E as salas do tesouro. Como guardião, Yoshi residia ali, indesejável, marginalizado, mas também seguro, com seus próprios guardas.
Além do fosso externo, ficava o primeiro círculo protetor dos palácios dos daimios. Eram residências enormes, suntuosas. Vinham em seguida círculos de residências cada vez menores, uma para cada daimio da terra. Todas haviam sido localizadas pessoalmente pelo xógum Toranaga, e construídas de acordo com a lei nova que ele promulgara, de sankin-kotai, residência alternativa.
— A sankin-kotai exige que todos os daimios construam imediatamente — dissera Toranaga — e mantenham para sempre uma “residência adequada” sob as muralhas do meu castelo, nas posições exatas que determinei, onde devem viver com suas famílias e uns poucos servidores. Cada palácio deve ser suntuoso, e sem defesas. Um ano em três, o daimio terá permissão, e será obrigado, a retornar a seu feudo e ali ficar com seus servidores, mas sem a esposa, consortes, mãe, pai ou filhos, ou filhos dos filhos, ou quaisquer membros da família imediata... a ordem em que os daimios partem ou permanecem também será regulada de forma precisa, de acordo com a seguinte lista e escala...
A palavra “refém” nunca fora mencionada, embora fosse um costume antigo a permanência de reféns, ordenados ou oferecidos, como uma garantia de obediência. O próprio Toranaga fora refém, quando criança, do ditador Goroda; sua própria família fora refém do sucessor de Goroda, Nakamura, seu aliado e suserano; e ele, o último e maior de todos, decidira apenas ampliar o costume, na sankin-kotai, para manter os outros sob o seu domínio.
“Ao mesmo tempo”, escrevera Toranaga em seu legado, um documento particular a que só tinham acesso uns poucos descendentes seletos, “os xóguns subsequentes devem encorajar todos os daimios a construir com extravagância, viver no luxo, se vestir com opulência e receber de maneira suntuosa, o meio mais rápido de despojá-los da receita anual de koku de seus feudos, que pertence apenas ao daimio envolvido, pelo costume imutável. Assim, todos estarão em breve crivados de dívidas, cada vez mais dependentes de nós e também, o que é ainda mais importante, sem dentes, enquanto continuamos a ser parcimoniosos, e nos abstemos de extravagâncias.
“Ainda assim, alguns feudos — Satsuma, Mori, Tosa, Kii, por exemplo — são tão ricos que terão, mesmo com essas extravagâncias, um excedente perigoso. Por isso, de vez em quando, o xógum reinante convidará o daimio a presenteá-lo com umas poucas léguas de uma nova estrada ou um palácio ou um jardim ou um centro de prazeres ou um templo, em quantidades, períodos e freqüências que serão fixados no documento seguinte...”
— Muito esperto e previdente — murmurou Yoshi para si mesmo. Cada daimio num mar de seda, impotente para se rebelar. Mas tudo arruinado pela estupidez de Anjo.
O primeiro dos “pedidos” do imperador que Sanjiro levara ao conselho — antes que Yoshi se tornasse um membro — fora o de abolir esse costume antigo. Os daimios e os outros tergiversaram, argumentaram, mas acabaram concordando. Quase que da noite para o dia, os círculos de palácios foram esvaziados de todas as esposas, consortes, filhos, parentes e guerreiros. Com o passar do tempo, tornaram-se uma terra de ninguém, com apenas uns poucos servidores simbólicos.
Nosso meio de repressão mais importante desapareceu para sempre, pensou Yoshi, amargurado. Como Anjo pode ter sido tão inepto?
Ele deixou que seu olhar pairasse além dos palácios, contemplando a capital de um milhão de almas, que servia ao castelo, e dele se alimentava, uma cidade cruzada por riachos e pontes, quase todas de madeira. Havia agora muitos incêndios — as flores dos terremotos — por todo o caminho até o mar. Um enorme palácio de madeira estava em chamas.
Yoshi notou que pertencia ao daimio de Sai. Ótimo. Sai apoia Anjo. As famílias foram embora, mas o conselho pode ordenar que reconstruam o que for destruído, e o custo vai onerá-lo para sempre.
Ora, esqueça-o. Qual é o nosso escudo contra os gai-jin? Tem de haver algum! Todo mundo diz que eles podem incendiar Iedo, mas não invadir o castelo ou manter um sítio prolongado. Não concordo. Ontem, Anjo tornou a relatar aos anciãos a história bem conhecida do sítio de Malta, há cerca de trezentos anos, como os exércitos turcos não conseguiram desalojar de seu castelo seiscentos bravos cavaleiros. Anjo dissera:
— Contamos com dezenas de milhares de samurais, todos hostis aos gai-jin. Devemos vencer, e eles irão embora.
— Mas nem os turcos nem os cristãos dispunham de canhões — ressaltara Yoshi. — Não esqueçam que o xógum Toranaga destruiu o castelo Osaca com canhões dos gai-jin... e aqueles vermes podem fazer a mesma coisa aqui.
— Mesmo que conseguissem, já teríamos nos retirado sãos e salvos para as montanhas muito antes — respondera Anjo, desdenhoso. — Enquanto isso, todos os samurais, todos os homens, mulheres e crianças do país... até mesmo os sórdidos mercadores... se aliariam sob a nossa bandeira e cairiam em cima deles como gafanhotos. Nada temos a temer. O castelo Osaca foi diferente, um combate de daimio contra daimio, não uma invasão. O inimigo não pode sustentar uma guerra em terra. Por isso, é inevitável a nossa vitória numa guerra assim.
— Eles devastariam tudo, Anjo-sama. Nada nos restaria para governar. Nosso único recurso é envolver os gai-jin numa teia, como a aranha faz com uma presa muito maior. Devemos ser uma aranha, e devemos encontrar uma teia.
Mas os outros se recusaram a escutá-lo. Qual é a teia?
“Primeiro, é preciso conhecer o problema”, escrevera Toranaga, em seu legado. “Depois, com paciência, pode-se encontrar a solução.”
A essência do problema com os estrangeiros é simplesmente a seguinte: como podemos obter seus conhecimentos, armamentos, esquadras, riqueza e comércio em nossos termos, e ao mesmo tempo expulsar a todos, cancelar os tratados desiguais, e nunca permitir que um só deles ponha os pés em nossa terra sem as mais severas restrições?
O legado continuava: “As respostas a todos os problemas de NOSSA terra podem ser encontradas aqui, ou em A arte da guerra, de Sun-tzu... e pela paciência.”
O xógum Toranaga fora o soberano mais paciente do mundo, refletiu Yoshi impressionado pela milionésima vez.
Embora Toranaga fosse supremo em todo o Japão, à exceção do castelo Osaca, o baluarte invencível construído por seu antecessor, o ditador Nakamura, esperara doze anos para acionar a armadilha que preparara, ordenando o sítio. O castelo se encontrava sob o poder absoluto da dama Ochiba, a viúva do ditador, do filho e herdeiro de sete anos, Yaemon — a quem Toranaga prestara um juramento solene de fidelidade — e de oitenta mil samurais de uma lealdade fanática.
Dois anos de sítio, trezentos mil soldados, os canhões do navio corsário holandês Erasmus, de Anjin-san, o inglês que o levara ao Japão, um regimento armado com mosquetes, treinado por ele, cem mil baixas, toda a astúcia de Toranaga, e mais um traidor vital dentro do castelo, tudo isso fora necessário antes que a dama Ochiba e Yaemon cometessem o seppuku, para não serem capturados.
Depois de ocupar o castelo Osaca, Toranaga inutilizara os canhões, dispersara o regimento de mosquetes, proibira a fabricação ou importação de toda e qualquer arma de fogo, acabara com o poder dos padres jesuítas portugueses e dos daimios cristãos, redistribuíra os feudos, livrara-se de todos os inimigos, instituíra as leis do legado, proibira todas as rodas, a construção de navios oceânicos, e reivindicara um terço de toda receita para si mesmo e sua família imediata.
— Ele nos fez fortes — murmurou Yoshi. — Seu legado deu-nos poder para manter a terra pura e em paz, como era seu desígnio.
Não devo lhe faltar.
Mas que homem extraordinário! E quanta sensatez de seu filho, Sudara, o segundo xógum, ao trocar o nome da dinastia para Toranaga, em vez do nome verdadeiro da família de Yoshi... a fim de que jamais esqueçamos a fonte de tudo.
O que ele me aconselharia a fazer?
Primeiro, paciência, depois ele citaria Sun-tzu: Conheça seu inimigo como conhece a si mesmo, e não precisará temer uma centena de batalhas; conheça a si mesmo, mas não ao inimigo, e em cada vitória conquistada também sofrerá uma derrota; não conheça nem ao inimigo nem a si mesmo, e sucumbirá em cada batalha.
Conheço algumas coisas sobre o inimigo, mas não o suficiente.
Abençoo meu pai por me fazer compreender o valor da educação, por me proporcionar tantos mestres variados e especiais ao longo dos anos, não apenas japoneses, mas também estrangeiros. É lamentável que eu não tivesse talento para línguas e, assim, tive de aprender através de intermediários: mercadores holandeses para a história mundial, um marujo inglês para conferir a verdade holandesa e me abrir os olhos — assim como Toranaga usou o Anjin-san em seu tempo — e todos os outros.
O chinês que me ensinou sobre governo, literatura e a arte da guerra; o velho padre renegado francês de Pequim, que passou meio ano me ensinando sobre Maquiavel, traduzindo-o em caracteres chineses para mim, enquanto tinha permissão para viver nos domínios de meu pai e desfrutar o mundo dos salgueiros, que tanto amava; o pirata americano abandonado em Izu, que me contou sobre canhões e sobre os oceanos de relva chamados pradarias, sobre o castelo de sua terra chamado Casa Branca, e as guerras em que exterminaram os nativos do país; o condenado russo emigrado de um lugar chamado Sibéria, que alegava ter sido um príncipe com dez mil escravos, e contou fábulas de lugares chamados Moscou e São Petersburgo; e todos os outros, alguns ensinando por uns poucos dias, outros por meses, mas nenhum jamais completando um ano, nenhum deles tendo conhecimento de quem eu era, e eu proibido de lhes revelar, o pai sempre tão cauteloso e reservado, tão terrível quando era provocado.
— Quando esses homens vão embora, pai — indagara ele, no início —, o que lhes acontece? Todos se mostram muito assustados. Por que deveriam? Não lhes promete recompensas?
— Tem onze anos, meu filho. Perdoarei sua grosseria por me interrogar, mas apenas uma vez. E para que não se esqueça de minha magnanimidade, passará três dias sem comida, subirá o monte Fuji sozinho e dormirá sem qualquer coberta.
Yoshi estremeceu. Na ocasião, não entendia a que magnanimidade o pai se referia. Quase morrera durante aqueles dias, mas cumprira as ordens. Como recompensa por sua autodisciplina, o pai, daimio de Mito, dissera-lhe que seria adotado pela família Hisamatsu e se tornaria herdeiro desse ramo do clã Toranaga.
— Você é meu sétimo filho. Assim, terá sua própria herança e entrará numa linhagem um pouco superior à de seus irmãos.
— Está bem, pai — murmurara ele, contendo as lágrimas.
Na ocasião, não sabia que estava sendo preparado para ser xógum, nem isso jamais lhe fora dito. Quando o xógum Iyeyoshi morrera, da doença das erupções, quatro anos antes, Yoshi tinha vinte e dois, estava pronto para a função, e o pai o propusera. Mas o Tairo Li se opusera, e prevalecera — eram suas forças pessoais que dominavam os portões do palácio.
Seu primo Nobusada fora designado. Yoshi, sua família, o pai e todos os partidários influentes foram postos sob prisão domiciliar. Só depois do assassinato de Li é que ele recuperara a liberdade e fora reintegrado em suas terras e honrarias, junto com os outros sobreviventes. O pai morrera no confinamento.
Eu deveria ser o xógum, pensou Yoshi, pela milionésima vez. Estava preparado, bem treinado, poderia evitar a deterioração do xogunato, poderia ter promovido uma nova aliança entre o xogunato e todos os daimios, e poderia lidar com os gai-jin. Teria aquela princesa como esposa, nunca assinaria aqueles acordos, nem permitiria que as negociações nos fossem tão desfavoráveis. Teria sabido enfrentar Townsend Harris e iniciaria uma nova era de cuidadoso intercâmbio, para absorvermos o mundo exterior em nosso ritmo, não no deles!
Mas não sou o xógum. Nobusada foi eleito corretamente, os tratados existem, a princesa Yazu existe, Sanjiro, Anjo e os gai-jin arremetem contra nossos portões.
Ele tornou a estremecer. Preciso ser mais cauteloso. O veneno é um antigo perigo, uma flecha de dia ou de noite, centenas de ninjas assassinos à esmo oferecendo seus serviços a quem pagar mais. E há ainda os shishi. Tem de haver uma solução! Mas qual?
Aves marinhas circulavam e grasniam sobre a cidade e o castelo, interrompendo seu fluxo de pensamentos. Yoshi estudou o céu. Nenhum sinal de que mudaria ou de tempestade, embora aquele fosse o mês de mudança, quando os grandes ventos começavam a soprar, trazendo o inverno. E o inverno será ruim este ano. Não haverá uma grande fome, como há três anos, mas as colheitas foram deficientes, ainda menores do que no ano passado...
Espere! O que foi mesmo que Anjo disse que me lembrou de alguma coisa?
Ele virou-se, chamou um dos seus guardas, num crescente excitamento e disse:
— Traga aquele espião aqui, o pescador... como é mesmo seu nome? Ah, sim Misamoto. Quero-o em meus aposentos, secretamente. Ele está confinado na casa da guarda oriental.
8
Terça-feira, 16 de setembro:
Ao amanhecer, os canhões da nave capitânia dispararam a saudação de onze tiros, quando o cúter de Sir William se aproximou. Da praia veio uma tênue aclamação, cada homem sóbrio ali presente para assistir à partida da esquadra para Iedo. O vento aumentava de intensidade, o ar se mantinha calmo, o céu um pouco nublado. Sir William embarcou formalmente, acompanhado por Phillip Tyrer; o resto de sua equipe já se encontrava a bordo de diversos navios de guerra. Os dois homens usavam fraque e cartola. Tyrer tinha o braço numa tipóia.
Avistaram o almirante Ketterer a esperá-los no convés principal, John Marlowe ao seu lado, ambos em uniforme de gala — chapéu de bicos, túnica com alamares dourados e botões azuis, camisa branca, colete, calção, meias, sapatos de fivela e espada reluzente —, e no mesmo instante Phillip Tyrer pensou: Droga! Como John Marlowe sempre se mostra bonito e elegante, mas nem por isso menos viril, da mesma forma que Pallidar em seu uniforme! Ah, se eu tivesse um uniforme de gala assim, ou qualquer outra roupa, diga-se de passagem, que pudesse rivalizar com essas, e ainda por cima sou pobre como um camundongo de igreja, em comparação com os dois, nem sequer fui promovido a subsecretário. Droga! Não há nada como um uniforme para favorecer um homem, e projetá-lo aos olhos de uma moça...
Ele quase esbarrou em Sir William, que parara no último degrau, enquanto o almirante e Marlowe o saudavam, ignorando-o por completo. Concentre-se, pensou Tyrer, você também está de serviço, à disposição do poderoso! Tome cuidado, participe de tudo.
— Bom dia, Sir William. Seja bem-vindo abordo.
— Obrigado. Bom dia, almirante Ketterer.
Sir William tirou a cartola, um gesto seguido por Tyrer, os fraques dos dois enfunados pelo vento.
— Podemos partir, se assim desejar. Os outros ministros já estão na nave Capitânia francesa.
— Ótimo.
O almirante gesticulou para Marlowe, que bateu continência e se afastou para falar com o comandante do navio, na ponte de comando aberta, um pouco à frente da única chaminé e do mastro principal. Ali, ele tornou a bater continência e disse:
— Os cumprimentos do almirante, senhor. Podemos partir para Iedo.
As ordens foram rapidamente transmitidas. Os marinheiros soltaram três vivas, no momento em que as âncoras eram recolhidas. Na apertada sala da caldeira, três conveses abaixo, os foguistas, despidos da cintura para cima, jogaram mais carvão nas fornalhas, sob um canto ritmado, tossindo e espirrando no ar sempre impregnado de poeira de carvão. No outro lado da antepara, na sala das máquinas, o engenheiro-chefe entoou “meio à frente” e os imensos motores passaram a girar o eixo da hélice.
O navio era o H.M.S. Euryalus, construído em Chatham, oito anos antes, com três mastros e uma chaminé, uma fragata cruzadora de madeira, com 3.200 toneladas de arqueação, 35 canhões, uma tripulação normal de 350 oficiais, marujos e fuzileiros, enquanto nos conveses inferiores havia noventa foguistas e pessoal da sala de máquinas. Hoje, todas as velas se achavam recolhidas e os conveses preparados para a ação.
— Um dia aprazível, almirante — comentou Sir William.
Estavam no tombadilho superior, com Phillip Tyrer e Marlowe, que haviam se cumprimentado em silêncio, pairando por perto.
— Por enquanto — concordou o almirante, contrafeito, sempre pouco à vontade na presença de civis, ainda mais de alguém como Sir William, que era seu superior. — Meus alojamentos estão à disposição lá embaixo, se desejar se recolher.
— Obrigado.
As gaivotas mergulhavam e gritavam na esteira do navio. Sir William contemplou-as por um momento, tentando se livrar de sua depressão.
— Obrigado, mas prefiro ficar aqui em cima. Já conhece o Sr. Tyrer, não é mesmo? Ele é nosso novo aprendiz de intérprete.
Pela primeira vez, o almirante admitiu a presença de Tyrer.
— Seja bem-vindo a bordo, Sr. Tyrer. Bem que precisamos de pessoas que falem japonês por aqui. Como está seu ferimento?
— Não muito ruim, senhor, obrigado — murmurou Tyrer, querendo se refugiar de novo no anonimato.
— Ótimo. Um incidente lamentável.
Os olhos azuis-claros do almirante esquadrinharam o mar e seu navio, o rosto corado e curtido, bochechas pendentes, uma dobra de carne na nuca, por cima do colarinho engomado. Por um instante, ele avaliou a fumaça, com um olhar crítico, registrando a cor e o cheiro, depois soltou um grunhido, removeu alguns fragmentos de poeira de carvão do impecável colete.
— Algum problema?
— Não, Sir William. O carvão que obtemos aqui não se compara com o melhor de Xangai, muito menos com o bom carvão de Gales ou Yorkshire. Tê-los aqui seria demais. É bastante barato, quando conseguimos comprá-lo, o que não acontece com freqüência. Deveria exigir um aumento do suprimento. Esse é um grande problema para nós aqui.
Sir William acenou com a cabeça, cansado.
— Já insisti, mas parece que não há carvão nesta região.
— É de péssima qualidade, de onde quer que venha. Não podemos usar as velas hoje, não com este vento contrário. A assistência das máquinas é perfeita para esse tipo de exercício, para as manobras perto da terra e para atracar. Com o melhor vaso de guerra em operação, só com as velas, até mesmo um clíper, levaríamos cinco vezes mais tempo para chegar a Iedo, e não teríamos espaço de mar suficiente para uma margem de segurança. Mas é uma pena.
Sir William estava de mau humor, depois de outra noite insone, e reagiu no mesmo instante à descortesia e estupidez do almirante, dizendo-lhe algo que era óbvio:
— É mesmo? Pois não importa, já que muito em breve teremos só caçambas fétidas, sem qualquer vela.
Tyrer disfarçou um sorriso, enquanto o almirante corava, porque era uma questão sensível para todos os oficiais da marinha, discutida nos jornais de Londres, que jocosamente diziam que as futuras esquadras seriam formadas por “caçambas fétidas de vários tamanhos, comandadas por fedorentos de vários tamanhos, vestidos de acordo”.
— Isso não vai acontecer em futuro previsível. E jamais para longos cruzeiros, bloqueios ou esquadras de batalha. — O almirante falava com raiva. — Não há a menor possibilidade de transportar todo o carvão necessário entre portos e ainda contarmos com navios em condições de combate. Precisamos de velas para poupar combustível. Os civis não têm a menor noção dos problemas navais...
Isso o lembrou das críticas do atual governo liberal às estimativas da marinha, e sua pressão aumentou mais um pouco.
— Para garantir nossas rotas marítimas, mantendo o império inviolável, a marinha real, como um dos fundamentos da política governamental, deve conservar a equação de duas vezes mais navios... de madeira ou couraçados, a vapor e vela... do que as duas marinhas seguintes juntas, com os maiores e melhores motores, os mais modernos canhões, granadas e explosivos do mundo.
— Uma idéia admirável, mas agora superada, inviável, e receio que dispensa demais para o ministro das finanças e o governo aceitarem.
É melhor que isso não ocorra, por Deus! — A dobra de carne na nuca se tornara vermelha.
— É melhor o Sr. Avarento Gladstone aprender logo quais devem ser suas prioridades. Já falei isso antes: quanto mais depressa os liberais deixarem o governo, e os tories voltarem, melhor! Não por causa deles, mas, graças a Deus, a marinha real ainda conta com navios e poder de fogo suficientes para afundar as quadras de franceses, russos ou americanos, até em suas águas territoriais, se necessário! Mas o que aconteceria se esses três países se unissem contra nós num conflito próximo?
Irritado, o almirante virou-se, e berrou para Marlowe, que se encontrava próximo:
— Sr. Marlowe! Sinalize para a Pearl! Ela está fora de sua posição, por Deus!
— Pois não, senhor.
Marlowe afastou-se, apressado. Sir William olhou para a popa, nada percebendo de errado com os navios que vinham atrás, e depois tornou a se concentra no almirante.
— Russell, nosso ministro do exterior, é esperto demais para permitir que isso ocorra. A Prússia vai entrar em guerra com a França, a Rússia ficará de fora os americanos estão envolvidos demais com sua guerra civil, Cuba e as Filipinas em poder dos espanhóis e farejando as ilhas havaianas. Por falar nisso, propus anexarmos uma ou duas dessas ilhas, antes que os americanos o façam, pois seriam escalas perfeitas para reabastecimento de carvão...
Marlowe, amargurado, encaminhou-se para o sinaleiro, os olhos fixados na H.M.S. Pearl, seu navio, uma fragata da classe Jason, com três mastros, uma única chaminé, vinte e um canhões, capacidade de 2.100 toneladas, temporariamente sob o comando de seu segundo homem, o tenente Lloyd, desejando estar a bordo do outro navio, não mais um lacaio do almirante. Transmitiu a mensagem ao sinaleiro, observou-o usar as bandeiras de sinalização e leu a resposta antes que o rapaz a comunicasse:
— Ele diz que lamenta, senhor.
— Há quanto tempo é sinaleiro?
— Três meses, senhor.
— É melhor rever seus códigos, com a maior atenção. A mensagem disse: “Comandante Lloyd da H.M.S. Pearl pede desculpas.” Cometa outro erro e vai ficar com os ovos no espremedor.
— Desculpe, senhor — balbuciou o rapaz, desolado.
Marlowe voltou para junto do almirante. Aliviado, descobriu que a briga era potencial entre os dois homens parecia ter amainado e agora eles discutiam planos alternativos de ação em Iedo e as implicações a longo prazo do ataque na Tokaidô. Enquanto esperava por uma pausa na conversa, Marlowe, cauteloso, alteou uma sobrancelha para Tyrer, que sorriu em resposta. Queria ser dispensado para perguntar ao outro sobre Kanagawa e Angelique. Tivera de partir no mesmo dia em que Sir William chegara, três dias antes, e não tinha informações diretas sobre o que ocorrera desde então.
— O que é, Sr. Marlowe?
O almirante escutou a mensagem e acrescentou, em tom ríspido:
— Mande outra mensagem: apresente-se em minha nave capitânia ao pôr-do-sol. — Ele percebeu que Marlowe estremecia. — É isso mesmo, Sr. Marlowe. Um pedido de desculpas é insuficiente para negligência em minha esquadra. Ou acha que é?
— Claro que não, senhor.
— Sempre considere com todo cuidado o homem a quem entrega o comando do seu navio.
O almirante Ketterer tornou a se virar para Sir William.
— O que era mesmo que estava dizendo? Você não...
Uma rajada de vento sacudiu o massame. Os dois oficiais levantaram os olhos para o cabo, depois para o céu, esquadrinham tudo ao redor, sentindo o vento. Ainda não havia sinal de perigo, mas ambos sabiam que o tempo naquele mês era imprevisível e as tempestades surgiam de repente naquelas águas.
— Acha mesmo que as autoridades, esse tal de Bakufu, não vão atender as nossas exigências?
— Não sem alguma demonstração de força. Recebi outro pedido de desculpas deles à meia-noite, com a solicitação do prazo de um mês para poderem “consultar os superiores”, essas bobagens... como eles sabem tergiversar! Mandei o mensageiro de volta com a pulga atrás da orelha, levando um recado um tanto grosseiro, de que queremos satisfações imediatas, ou eles vão se arrepender.
— Agiu muito bem.
— Quando ancorarmos ao lago de Iedo, podemos disparar tantas salvas quanto for possível, criando uma sensação?
— Daremos uma salva de vinte e um tiros, uma saudação real. Suponho que esta missão pode ser interpretada como uma visita formal à realeza dos japoneses. — Sem se virar, o almirante acrescentou, em tom outra vez ríspido: — Sr. Marlowe, dê a ordem, para toda a esquadra; pergunte ao almirante francês se pode fazer a mesma coisa.
— Pois não, senhor.
Marlowe tornou a bater continência e se afastou, apressado.
— O plano para Iedo ainda é o que combinamos?
Sir William acenou com a cabeça.
— É, sim. Eu e meu grupo vamos desembarcar, iremos até a legação... uma centena de soldados, como guarda de honra, deve ser suficiente. Os Highlanders, com seus uniformes e gaitas de foles, causarão a maior impressão. O resto do plano continua como antes.
— Otimo. — Apreensivo, o almirante olhou para a proa. — Poderemos avistar Iedo depois que contornarmos aquele promontório.
Ele fez uma pausa, contraiu o rosto e acrescentou:
— Uma coisa é fazer ameaças e disparar salvas de canhão, mas não concordo em bombardear e incendiar a cidade... sem um estado de guerra legal.
Sir William respondeu com todo cuidado:
— Vamos torcer para que eu não tenha de pedir a Lorde Palmerston por uma declaração de guerra, nem ser obrigado a legalizar um conflito que nos imponham. Enviei um relatório completo. Só teremos sua resposta daqui a quatro meses e, naturalmente, antes disso, temos que fazer o melhor que pudermos, como sempre. Os assassinatos devem cessar e o Bakufu deve ser controlado, de um jeito ou de outro. Este é o momento perfeito.
— As instruções do almirantado são para ter prudência.
— Pelo mesmo correio, enviei uma mensagem urgente ao governador de Hong Kong, comunicando o que planejava fazer, e indagando que reforços de navios e homens estariam disponíveis, em caso de necessidade. Também perguntei pelo estado de saúde do Sr. Struan.
— É mesmo? Quando despachou essa mensagem, Sir William?
— Ontem. A Struan tinha um clíper disponível e o Sr. McFay concordou que o problema exigia toda urgência possível.
Ketterer comentou, em tom cáustico:
— Todo esse incidente parecer ser uma causa célebre da Struan. O homem assassinado mal é mencionado, só ouço falar em Struan, Struan, Struan.
— O governador é amigo pessoal da família, e a família... hum... é muito bem relacionada, muito importante para os interesses comerciais de sua majestade na Ásia e na China.
— Sempre achei que não passavam de um bando de piratas, contrabandeando armas e ópio, qualquer coisa pelo lucro.
— As duas coisas são legais, meu caro almirante. A Struan é altamente respeitável, almirante, com ligações muito importantes no Parlamento.
O almirante não se mostrou impressionado.
— Há muita gente que não presta ali, se não se importa que eu o diga. Uns idiotas, durante a maior do tempo tentando cortar as verbas da marinha, reduzir nossas esquadras... uma estupidez, já que a Inglaterra depende do poder marítimo.
— Concordo que precisamos da melhor marinha, com os oficiais mais competentes, para executar a política imperial — declarou Sir William.
Marlowe, perto do almirante, percebeu a farpa mal disfarçada. Um rápido olhar para a nuca do seu superior confirmou que a farpa fora registrada. Ele se preparou para o inevitável.
— Política imperial? — repetiu o almirante. — Parece-me que a marinha passa a maior parte do seu tempo livrando civis e mercadores de enrascadas, quando sua ganância e hipocrisia os levam a situações em que nunca deveriam se meter, em primeiro lugar. Quanto aos bastardos ali... — o dedo grosso apontou para Iocoama, a bombordo. — ...são os piores canalhas que já conheci.
— Alguns são, a maioria não, almirante. — Sir William empinou o queixo. — Sem mercadores, sem comércio, não haveria dinheiro, nem império, nem marinha.
O pescoço vermelho se tornou púrpura.
— Sem a marinha não haveria comércio e a Inglaterra não teria se tornado a maior nação do mundo, a mais rica, com o maior império que o mundo já conheceu!
“Isso é besteira”, Sir William teve vontade de gritar, mas sabia que se o fizesse ali, no tombadilho superior da nave capitânia, o almirante teria um ataque apoplético. Marlowe e todos os marujos nas proximidades ficariam furiosos. O pensamento divertiu-o e removeu a maior parte do veneno que as noites insones pelo incidente na Tokaidô haviam causado, permitindo-lhe ser diplomático.
— A Marinha é a força principal, almirante, e muitos partilham sua opinião. Posso supor que chegaremos no prazo previsto?
— Claro que chegaremos.
O almirante relaxou os ombros, um tanto apaziguado, com dor de cabeça devido à garrafa de porto que consumira depois do jantar, somando-se à de clarete.
O navio desenvolvia uma velocidade de cerca de sete nós, contra o vento, o que o retardava. Ele verificou a disposição da esquadra. Agora a H.M.S. Pearl se mantinha bem na popa, com as chalupas de roda, cada uma equipada com dez canhões, a bombordo. A nave capitânia francesa, uma fragata de três mastros, toda revestida de ferro, vinte canhões, navegava descuidadamente a boreste.
— O timoneiro deles devia ser posto a ferros! Aquele navio precisa de uma nova camada de tinta, um novo massame, uma fumigação para acabar com o cheiro de alho, uma boa esfregada nos conveses e um severo castigo para toda a tripulação. Não concorda, Sr. Marlowe?
— Claro que concordo, senhor.
Depois de se certificar de que tudo estava correto, o almirante tornou a se virar para Sir William.
— Essa família Struan e sua Casa Nobre são mesmo tão importantes assim?
— São sim. O comércio que promovem é enorme, sua influência na Ásia, em particular na China, não tem comparação, exceto pela Brock & Sons.
— Conheço os clíperes que eles usam. São bem construídos e muito bem armados. — Uma pausa e o almirante acrescentou, abruptamente: — Por Deus, espero que não tentem negociar ópio ou armas de fogo aqui.
— Pessoalmente, eu concordo, embora não seja contra a atual lei.
— Mas é ilegal, pela lei chinesa. Ou pela japonesa.
— Tem razão, mas há circunstâncias atenuantes — disse Sir William, cansado, pois já dera aquela explicação dezenas de vezes.— Tenho certeza de que sabe que os chineses só aceitam pagamento à vista, em prata ou ouro, pelo chá que precisamos importar, nada mais. Por outro lado, a única mercadoria pela qual Pagam à vista, em prata ou ouro, é o ópio. Uma situação lamentável.
— Neste caso, cabe aos próprios mercadores, ao Parlamento e aos diplomatas tirá-los das encrencas. Durante os últimos vinte anos, a marinha real vem impondo leis ilegais na Ásia, bombardeando portos e cidades da China, cometendo os piores atos de guerra, em minha opinião apenas para sustentar o comércio do ópio... uma desonra para nós.
Sir William suspirou. As ordens que recebera do subsecretário permanente haviam sido claras:
— Pelo amor de Deus, meu caro Willie, esta é a primeira vez em que será o ministro em comando, por isso deve tomar muito cuidado. Não tome quaisquer decisões precipitadas, a menos que sejam necessárias. Tem uma sorte espantosa, pois o fio do telégrafo já alcançou Bagdá. Assim, podemos receber e enviar mensagens para lá num prazo incrível de apenas sete dias. Acrescente-se a mais umas seis semanas de vapor até Iocoama, através do golfo Pérsico e oceano Índico, via Cingapura e Hong Kong, e nossas instruções levarão só dois meses para chegar... não os dez ou quinze meses que demoravam há dez anos. Portanto se precisar de orientação, o que vai acontecer sempre, se for sensato, ficará apenas quatro meses fora do nosso controle, o que constitui a única coisa que protegerá seu pescoço e o nosso império. Entendido?
— Entendido, senhor.
— Regra número um: Trate os militares com luvas de veludo e nunca prevaleça sobre eles de forma leviana. Lembre-se de que sua vida e a de todos os ingleses em sua área dependem deles. Os militares tendem a ser cabeças-duras o que é ótimo, pois obviamente precisamos de muitos homens assim para irem até lá e morrerem em defesa da... ahn... nossa política imperial. Não cometa exageros O Japão é insignificante, mas situa-se em nossa esfera de influência, e temos investido considerável tempo e dinheiro para manter a distância russos, americanos e franceses. Não arme nenhuma confusão em nosso ninho japonês. Já temos problemas demais no prato imperial com rebeldes indianos, afeganes, árabes africanos, persas, caribenhos e chineses, para não falar dos insidiosos europeus, americanos, russos, etc. Meu caro Willie, seja diplomático e não nos crie mais problemas!
Sir William tornou a suspirar, reprimiu a irritação e repetiu o que já dissera uma dúzia de vezes, a verdade:
— Muito do que disse é correto, mas infelizmente temos de ser práticos. Sem o imposto sobre o chá, toda a economia britânica sofreria um colapso. Vamos torcer para que nossas plantações de ópio em Bengala possam ser queimadas dentro de poucos anos. Enquanto isso, terão de ser pacientes.
— Enquanto isso, sugiro que proíba aqui todo o ópio, todas as armas modernas, todos os navios de guerra modernos e toda a escravidão.
— Claro que concordo sobre a escravidão, que está proibida desde 1.833. — Havia uma exasperação perceptível na voz de Sir William. — Os americanos já foram informados a respeito há muito tempo. Quanto ao resto, a decisão é de Londres.
O almirante empinou o queixo ainda mais.
— Pois neste caso, senhor, quero que saiba que tenho certos poderes nestas águas. E pretendo instituir um embargo agora. Ouvi rumores inquietantes de que a Struan encomendou fuzis e canhões para vender. Já venderam aos nativos três ou quatro vapores armados, e os japoneses aprendem muito depressa, para o meu gosto. Escreverei formalmente ao almirantado, remetendo pelo correio de amanhã, para pedir que exijam que minhas ordens sejam tornadas permanentes.
O ministro contraiu o rosto, plantou os pés com mais firmeza ainda no convés, e respondeu em voz gelada:
— Uma idéia admirável. Também enviarei uma mensagem pelo mesmo correio. Enquanto isso, não pode dar tal ordem sem a minha aprovação, e até recebermos uma nova orientação do Ministério do Exterior, o status quo permanece o status quo.
Os dois assessores empalideceram. O almirante fitou Sir William com uma expressão desdenhosa. Todos os oficiais e a maioria dos homens teriam se intimidado, mas Sir William sustentou o olhar calmamente.
— Eu... levarei em consideração o que disse, Sir William. E agora, se me dá licença, tenho outras coisas a tratar.
Ele virou-se, seguiu para a ponte de comando. Hesitante, Marlowe começou a acompanhá-lo.
— Pelo amor de Deus, Marlowe, pare de me seguir como um cachorrinho fiel! Se eu precisar de você, gritarei. Apenas trate de se manter a uma distância em que possa me ouvir.
— Pois não, senhor.
Depois que o almirante se afastou, Marlowe soltou um suspiro de alívio. Sir William também suspirou, enxugou o suor da testa e murmurou:
— Fico contente por não estar na marinha.
— Eu também — acrescentou Tyrer, espantado com a coragem do ministro. Marlowe tinha o coração disparado, pois detestava que gritassem com ele, mesmo sendo um almirante, mas não podia deixar de se manifestar.
— Eu... ahn... Desculpe, senhor, mas a esquadra está muito segura nas mãos do almirante, e todos achamos que ele tem razão sobre a venda de navios, armas de fogo, canhões e ópio. Os japoneses já começaram a construir navios e fabricar pequenos canhões. Este ano levaram o seu primeiro vapor de ferro, o Kanrin Maru, de trezentas toneladas, até San Francisco, comandado e tripulado apenas por japoneses. Já dominam o alto-mar, o que é extraordinário, em tão pouco tempo.
— Tem razão.
Sir William especulou, por um instante, como a delegação japonesa, que viajara com o navio, se saíra em Washington, e que nova insídia o presidente Lincoln teria tramado contra o nosso glorioso império. Não somos dependentes do algodão confederado para os nossos teares de Lancashire, que estão sendo levados à ruína? Ele estremeceu. Que guerra desgraçada! E os políticos, o próprio Lincoln... Não dava para esquecer o que o homem dissera em seu discurso de posse, em março:
— ...este país pertence ao povo, e sempre que o povo se cansar de seu governo, pode exercer seu direito constitucional de corrigi-lo ou o direito revolucionário de desmembrá-lo ou derrubá-lo...
Um discurso incendiário, para dizer o mínimo! Se essa idéia se espalhasse pela Europa... Oh, Deus, seria terrível! Podemos entrar em guerra contra eles a qualquer momento, pelo menos no mar. Precisamos do algodão.
Ele tentava recuperar o controle, aliviado porque o almirante recuara, e ainda se censurando por ter-se irritado. Você precisa ter mais cuidado, e não deve se preocupar tanto com Iedo e com sua decisão estúpida e arrogante de “ir até lá em cinco dias, num navio de guerra, e ver o xógum de qualquer maneira!”, como se fosse o Clive da índia. Você não é. Este é o seu primeiro serviço no Extremo Oriente, não passa de um novato. É uma loucura arriscar esses homens por causa de uns poucos assassinatos, uma loucura assumir o risco de uma guerra em larga escala. Mas será mesmo?
Lamento, mas não é.
Se o Bakufu escapar impune dessas mortes, então não haverá mais fim. Seremos obrigados a bater em retirada... até que as esquadras de batalha aliada voltem para impor a vontade imperial a ferro e fogo. Sua decisão é correta, mas a maneira de implementá-la está errada. Mas é muito difícil sem ter alguém com quem conversar... alguém em quem possa confiar. Graças a Deus que Daphne chegará dentro de dois meses. Nunca imaginei que sentiria tanta saudade dela e de seus conselhos. Mal posso esperar para vê-la e às crianças... dez meses é muito tempo, e sei que a mudança dos nevoeiros densos e da desolação de Londres a deixará feliz e satisfeita, e será ótimo para as crianças. Bem que precisamos de algumas damas ingleses na colônia, do tipo certo. Faremos algumas viagens e ela transformará a legação num lar.
Seus olhos focalizaram o promontório de que se aproximava. Depois de contorná-lo, avistariam Iedo, disparariam as salvas. Seria uma iniciativa sensata? Espero que sim. Depois, o desembarque, a ida para a legação. Você tem de fazer isso... e se preparar para a reunião amanhã. Está sozinho nisso. Henri Seratard torce para que ponha tudo a perder. E o russo também.
Mas o comando é seu, a função é sua, e não se esqueça de que queria ser “ministro” em algum lugar, qualquer lugar. Acabei conseguindo, mas nunca pensei que seria no Japão! Maldito Ministério do Exterior! Nunca estive numa situação assim: toda a minha experiência foi com a seção francesa ou russa em Londres, ou na corte de São Petersburgo, em diversos postos, da gloriosa Paris a Mónaco, sem jamais ter um navio de guerra ou um regimento à vista... Marlowe estava dizendo, a voz um pouco tensa:
— Espero que não se importe, senhor, de eu dar minha opinião sobre a posição do almirante.
— Claro que não me importo. — Sir William fez um esforço para pôr de lado sua preocupação: tentarei evitar a guerra, mas se tiver de ser, será. — Tem toda razão, Sr. Marlowe, e me sinto honrado por ter o almirante Ketterer no comando.
Ele sentiu-se melhor no mesmo instante, e tratou de acrescentar:
— Nossa divergência de opinião foi sobre o protocolo. Ao mesmo tempo, no entanto, devemos encorajar os japoneses a se industrializarem, a se tornarem navegadores. Um navio ou vinte não é motivo de preocupação. Devemos encorajá-los... não estamos aqui para colonizar, mas nós é que devemos treiná-los, Sr. Marlowe, não os holandeses, nem os franceses. Obrigado por me lembrar... quanto mais tivermos influência aqui, melhor.
Sir William sentia-se mais relaxado. Era raro poder falar com tanta liberdade assim a um oficial, mas ficara impressionado com Marlowe, tanto aqui quanto em Kanagawa.
— Todos os oficiais detestam os civis e os mercadores?
— Não, senhor. Mas não creio que muitos de nós sejam capazes de compreendê-los. Temos vidas diferentes, prioridades diferentes. Às vezes, é muito difícil para nós.
A maior parte da atenção de Marlowe se fixava no almirante, que conversava com o comandante, na ponte de comando. O sol varou as nuvens e, no mesmo instante, o dia pareceu melhor.
— Estar na marinha é tudo o que sempre desejei — acrescentou Marlowe.
— Sua família é naval?
Marlowe respondeu com o maior orgulho:
— É, sim, senhor.
Ele teve vontade de informar que o pai era comandante, em serviço na esquadra baseada na Inglaterra, assim como o avô, que fora o comandante do Soya Sovereign, a nave capitânia do almirante lorde Collingwood em Trafalgar, e todos os seus antepassados haviam pertencido à marinha, desde que começara a existir. Até antes disso, segundo a tradição, navegavam em corsários que partiam de Dorset, de onde vinha a família — Vivemos ali, na mesma casa, há mais de quatro séculos. Mas Marlowe não disse nada disso, pois o treinamento lhe incutira que seria dar a impressão de que se gabava. Limitou-se a acrescentar:
— Minha família vem de Dorset.
— E a minha é do norte da Inglaterra, Northumberland, por gerações — comentou Sir William, distraído, observando o promontório, cada vez mais próximo, e pensando no Bakufu. — Meu pai morreu quando eu ainda era jovem. Foi um membro do Parlamento, com interesses comerciais em Sunderland e Londres, envolvido no comércio báltico e com peles russas. Minha mãe era russa, por isso fui criado falando duas línguas. Foi o que me valeu galgar o primeiro degrau no Ministério do Exterior. Ela era...
Sir William controlou-se a tempo, aturdido por ter revelado tanta coisa, espontaneamente. Já ia dizer que a mãe nascera como condessa Sveva, uma prima dos Romanovs, que ainda vivia, e fora outrora dama de companhia da rainha Victoria. Preciso me concentrar... como se a minha família e meus antecedentes tivessem qualquer coisa a ver com o nosso problema aqui.
— E você, Tyrer?
— Sou de Londres, senhor. Meu pai é advogado, como meu avô. — Phillip Tyrer soltou uma risada. — Depois que me formei, na Universidade de Londres, e anunciei que queria ingressar no Ministério do Exterior, ele quase teve um ataque! E quando me candidatei a ser um intérprete no Japão, meu pai disse que eu tinha enlouquecido.
— Talvez ele estivesse certo. Você tem muita sorte por continuar vivo, e mal cornpletou uma semana aqui. Não concorda, Marlowe?
— Claro, senhor. É a pura verdade. — Marlowe julgou que o momento era apropriado. — Por falar nisso, Phillip, como está o Sr. Struan?
— Nem bem, nem mau, para repetir George Babcott.
— Espero que ele se recupere — murmurou Sir William, sentindo uma súbta pressão nas entranhas.
Quando fora a Kanagawa, três dias antes, Marlowe esperava por seu cúter e relatara o que sabia sobre Struan e Tyrer, a morte do soldado, o suicídio do assassino, a perseguição ao outro japonês.
— Corremos atrás do bandido, Sir William, Pallidar e eu, mas ele desapareceu como que por encanto. Revistamos todas as casas ao redor, mas não o encontramos. Tyrer acha que eles podem ser os dois atacantes da Tokaidô, senhor, os assassinos, mas não tem certeza. Afinal, todos esses japoneses são parecidos, não é mesmo?
— Mas se eram os dois, por que se arriscariam a entrar na legação?
— A melhor conclusão a que pudemos chegar, senhor, foi a de que talvez tenham entrado para impedir uma identificação e terminar o trabalho.
Haviam deixado o cais e seguiam apressados pelas ruas desertas, com uma aparência sinistra.
— E como está a moça, Sr. Marlowe?
— Parece bem, senhor, apenas abalada.
— Graças a Deus por isso. O ministro francês está tenso com o “vil insulto à honra da França e uma de suas cidadãs, que também se encontra sob a sua guarda”. Quanto mais cedo ela voltar a Iocoama, melhor... e por falar nisso, o almirante me pediu para lhe dizer que deve voltar a Iocoama imediatamente. Há muita coisa a fazer. Decidimos... ahn... fazer uma visita formal a Iedo, na nave capitânia, daqui a três dias...
Marlowe sentira seu excitamento explodir. Os combates no mar ou em terra eram a única maneira de obter promoções rápidas e alcançar logo o posto de almirante, que sonhava em conquistar a qualquer custo. Deixaria o pai orgulhoso, e lhe proporcionaria uma grande vantagem sobre Charles e Percy, os dois irmãos mais jovens, ainda tenentes.
E agora, no convés da nave capitânia, com o sol brilhando, sentindo as vibrações dos motores, seu excitamento tornou a aflorar.
— Estaremos ao largo de Iedo muito em breve, senhor. Sua entrada será espetacular, os assassinos serão entregues, receberá as indenizações e qualquer outra coisa que quiser.
Tanto Tyrer quanto Sir William perceberam o excitamento. Sir William. porém, manteve-se frio.
— Assim espero. Bom, vou descer por um momento. Não, obrigado, Sr. Marlowe, não precisa me acompanhar. Conheço o caminho.
Com intenso alívio, os dois jovens observaram-no se afastar. Marlowe tornou a verificar se o almirante continuava à sua vista, antes de indagar:
— O que aconteceu em Kanagawa depois que fui embora, Phillip?
— Foi... extraordinário... ela se mostrou extraordinária, se é isso o que quer saber.
— Como assim?
— Ela desceu por volta das cinco horas, foi direto ver Malcolm Struan, ficou com ele até a hora do jantar... foi a ocasião em que tornei a vê-la. Parecia... parecia mais velha, não, não é essa a palavra certa, não mais velha, mas sim mais séria do que antes, mecânica. George diz que ela ainda se encontra numa espécie de estado de choque. Durante o jantar, Sir William disse que a levaria de volta a Iocoama, mas ela agradeceu e recusou, alegando que primeiro queria ter certeza de que Malcolm ia ficar bom. Nem ele, nem George, ninguém conseguiu persuadi-la a mudar de idéia. Ela mal comeu, e retornou em seguida ao quarto de Malcolm na enfermaria, ali permaneceu, insistiu que instalassem um catre ao lado da cama, para poder estar disponível, se por acaso ele precisasse. Nos dois dias seguintes, até ontem, quando voltei a Iocoama, ela mal saiu do seu lado, e quase não falou com ninguém.
Marlowe reprimiu um suspiro.
— Ela deve amá-lo.
— Essa é a parte estranha. Pallidar e eu achamos que não é esse o motivo. É quase como se ela... bem, desencarnada é uma palavra forte demais. A impressão é de que ela vive parcialmente num sonho, e só se sente segura ao lado de Malcolm.
— Santo Deus! O que disse o Serra-Ossos?
— Ele se limitou a dar de ombros, disse que devíamos ser pacientes, não nos preocuparmos, e que ela é o melhor tônico que Malcolm Struan podia ter.
— Posso imaginar. Como ele está realmente?
— Drogado na maior parte do tempo, sentindo muita dor, vomitando, os intestinos soltos... não sei como ela suporta o cheiro, apesar de a janela ficar aberta durante todo o tempo.
O medo envolveu os dois, ao pensamento de ficar tão ferido, tão impotente. Tyrer olhou fixamente para a frente, a fim de esconder suas emoções, ainda profundamente consciente de que seu próprio ferimento não sarara por completo, sabendo que ainda podia gangrenar, e que seu sono era povoado por pesadelos com samurais, espadas ensangüentadas e Angelique.
— Todas as vezes em que fui visitar Malcolm... e para vê-la, devo ser sincero... ela me respondeu apenas com “sim, não, ou não sei”. Depois de algum tempo, acabei desistindo. Mas ela continua atraente como sempre.
Marlowe especulou: Se Struan não estivesse no caminho, ela seria mesmo inacessível? Até que ponto Tyrer poderia ser um sério rival? Pallidar ele descartou, não estava no mesmo nível... Angelique jamais poderia gostar daquele idiota Pomposo.
— Ei, olhe só! — exclamou Tyrer.
Estavam contornando o promontório e podiam avistar à frente a vasta baía de Iedo e o mar aberto a boreste, a fumaça dos fogos de cozinha da imensa cidade e a rodeá-la, a paisagem dominada pelo castelo. Espantoso era o fato de que a cidade se encontrava quase vazia das incontáveis barcas, sampanas e embarcações de pesca que normalmente abundavam, as poucas ainda restantes se encaminhando pesadas para a praia. Tyrer se mostrou apreensivo.
— Vai haver guerra?
Depois de uma pausa, Marlowe respondeu:
— Eles foram avisados. A maioria de nós pensa que não, pelo menos não uma guerra em larga escala, ainda não, não desta vez. Haverá incidentes...
E depois, porque gostava de Tyrer e admirava suacoragem, Marlowe resolve abrir sua mente:
— Haverá incidentes e escaramuças, de diversas proporções, alguns dos nossos serão mortos, alguns descobrirão que são covardes, alguns se tornarão heróis, a maioria ficará apavorada de vez em quando, alguns serão condecorados mas não resta a menor dúvida de que, ao final, venceremos.
Tyrer pensou a respeito, recordando como se sentira amedrontado, e como Babcott o convencera de que a primeira vez era a pior, como Marlowe demonstrara sua bravura ao correr atrás do assassino, como Angelique era deslumbrante... e como era bom estar vivo, ser jovem, ter um pé na escada para o posto de “ministro”. Ele sorriu. Sua animação contagiou Marlowe, que murmurou:
— Vale tudo no amor e na guerra, não é mesmo?
Angelique estava sentada junto à janela da enfermaria em Kanagawa, o olhar perdido no espaço, um lenço perfumado encostado no nariz. De vez em quando, os raios do sol passavam pelas nuvens brancas. Por trás dela, Struan se mantinha meio desperto, meio adormecido. No jardim, soldados circulavam em patrulhas constantes. Desde o ataque, a segurança fora redobrada, com mais tropas vindas do acampamento em Iocoama, e Pallidar temporariamente no comando. Uma batida na porta arrancou-a de seu devaneio.
— O que é? — murmurou ela, escondendo o lenço na mão.
Era Lim, acompanhado por um criado chinês, carregando uma bandeja.
— Comida para o amo. A senhorita também vai comer?
— Ponha ali! — ordenou Angelique, apontando para a mesa ao lado da cama. Ela já ia pedir também que trouxessem sua bandeja, como sempre, mas mudou de idéia, achando que seria mais seguro. — Esta noite vou comer na sala de jantar, entende?
— Entendo.
Lim riu para si mesmo, sabendo que ela usava o lenço quando pensava que ninguém a observava. Será que seu nariz é tão pequeno e delicado quanto aquela outra parte? Seria pelo cheiro? Mas qual é o cheiro de que eles se queixam? Ainda não há o cheiro da morte por aqui. Devo dizer ao filho do tai-pan que são más as notícias que chegam de Hong Kong? Não, é melhor ele descobrir por si mesmo.
— Entendo — repetiu Lim, oferecendo um sorriso radiante, antes de se retirar.
Num gesto automático, Angelique ofereceu a canja.
— Chéri?
— Mais tarde, obrigado, querida — murmurou Malcolm Struan, como era esperado, a voz fraca.
— Tente tomar um pouco — insistiu ela, como sempre, ouvindo outra vez a recusa.
De volta à sua cadeira junto à janela, a seus sonhos... de que se encontrava de novo em sua casa em Paris, sã e salva, na casa enorme do tio Michel e de sua querida Emma, a aristocrática tia inglesa que a criara e a seu irmão, quando o pai partira para Hong Kong, há tantos anos, todos cercados de luxo, Emma planejando almoços, passeando pelo Bois em seu esplêndido garanhão, a inveja de todos, encantando a aristocracia, sendo adulada em troca, e depois fazendo uma reverência graciosa para o imperador Luís Napoleão — o sobrinho de Napoleão Bonaparte — e sua imperatriz Eugénie, recebendo um sorriso de ambos.
Camarotes nos teatros, La Comédie Française, mesas seletas em Trois Frères provençaux, sua maioridade, dezessete anos, o assunto da temporada, tio Michel relatando suas aventuras nas mesas de jogo e nas corridas de cavalos, sussurrando histórias picantes sobre seus amigos aristocratas, sua amante, a condessa Beaufois, bela, sedutora e devotada.
Tudo devaneios, é claro, pois tio Michel era apenas um funcionário subalterno no Ministério da Guerra, e Emma, embora inglesa, não passava de uma atriz de um grupo itinerante de artistas shakespearianos, filha de um guarda-livros, sem dinheiro suficiente para a ostentação que Angelique julgava tão necessária, na capital do mundo, para o cavalo espetacular, ou a carruagem, indispensáveis para se ter acesso à verdadeira sociedade, aos escalões superiores, onde poderia conhecer jovens dispostos a casarem, não apenas a levá-la para a cama e exibi-la e depois preteri-la em favor de uma flor mais jovem.
— Por favor, tio Michel, por favor! É tão importante!
— Sei disso, minha querida — respondera ela, com uma tristeza evidente, quando Angelique completara dezessete anos e pedira de presente um cavalo castrado, com trajes de montaria condizentes. — Não há mais nada que eu possa fazer. Não há mais favores que eu possa pedir, não há mais pessoas a quem possa pressionar, não há mais agiotas a quem possa persuadir. Não conheço nenhum segredo de Estado para vender, nem príncipes a promover. E tenho de pensar também em seu irmão mais jovem e em nossa filha.
— Por favor, tio querido!
— Tenho uma última idéia, e francos suficientes para uma passagem modesta, a fim de que possa viajar ao encontro de seu pai. E para comprar umas poucas roupas, não mais do que isso.
E depois a confecção das roupas, todas perfeitas, experimentá-las, ajustando e melhorando, o vestido de seda verde também, além dos outros— tio Michel não Vai se importar —, o excitamento da primeira viagem de trem, até Marselha, o Vapor para Alexandria, no Egito, a viagem por terra a Port Said, passando pelas primeiras escavações do canal de monsieur de Lesseps, em Suez, que todas as pessoas bem informadas achavam que era apenas uma promoção de venda de ações, nunca seria concluído ou, se fosse, esvaziaria parcialmente o Mediterrâneo, porque era mais alto do que os mares do outro lado. Dali por diante, tudo o que fora suplicado, desde o início, a primeira classe:
— A diferença é tão pequena, meu querido tio Michel...
Ventos suaves, novos rostos, exóticas noites, dias aprazíveis, o começo da grande aventura, e ao final do arco-íris um marido lindo e rico, como Malcolm, e agora tudo arruinado por causa de um nativo asqueroso!
Por que não posso pensar apenas nas partes boas? — perguntou Angelique a si mesma, numa súbita angústia. — Por que os pensamentos agradáveis levam aos desagradáveis, e daí aos pavorosos, e passo a pensar no que de fato aconteceu, desato a chorar?
Não faça isso, ela ordenou a si mesma, reprimindo as lágrimas. Comporte-se. Seja forte!
Decidiu antes de sair de seu quarto: nada aconteceu, vai continuar a agir normalmente, até a próxima regra. Quando começar — e vai começar —, você estará sã e salva.
Mas... e se não vier?
Não pense nisso. Seu futuro não será destruído, isso não seria justo. Vai rezar, e permanecer ao lado de Malcolm, rezar por ele também, bancar a Florence Nightingale, e talvez acabe casando com ele.
Angelique fitou-o por cima do lenço. Para sua surpresa, descobriu que ele a observava.
— O cheiro ainda é tão horrível assim? — indagou Malcolm, desolado.
— Não, chéri — respondeu ela, satisfeita porque a mentira parecia mais sincera a cada vez, e exigia menos esforço. — Quer tomar um pouco da canja agora?
Exausto, ele acenou com a cabeça, sabendo que precisava se alimentar, mas sempre acabava vomitando qualquer coisa que ingerisse e rompia os pontos, internos e externos, e a dor que se seguia o deixava acovardado, por mais que tentasse se controlar.
— Dew neh loh moh — murmurou ele, uma imprecação cantonesa, sua primeira língua.
Ela levantou a tigela, e Malcolm tomou um pouco da canja. Angelique limpou seu queixo, fê-lo beber mais um pouco. Metade de Malcolm queria ordenar que ela se mantivesse a distância, até que ele se recuperasse, mas a outra metade tinha pavor de que a moça se retirasse e nunca mais voltasse.
— Lamento tudo isso... e adoro sua presença aqui.
À guisa de resposta, ela apenas tocou em sua testa, gentilmente, querendo ir embora, precisando de ar fresco, não confiando em si mesma para falar. Quanto menos você falar, melhor, concluíra Angelique. Assim, evitará qualquer armadilha.
Observou-se a cuidar de Malcolm, a acomodá-lo, e durante todo o tempo deixava a mente vaguear para acontecimentos corriqueiros, voltar a Hong Kong ou Paris, a Paris acima de tudo. Nunca se permitiria remoer o sonho de vigília-sono daquela noite. Nunca durante o dia, seria perigoso demais. Só à noite, quando trancava a porta de seu quarto, e ficava sozinha, segura na cama, é que podia abrir comportas, e deixar os pensamentos viajarem para onde quisessem... Uma batida na porta.
— Pois não?
Babcott entrou. Angelique corou sob seu olhar. Por que sempre penso que ele é capaz de ler meus pensamentos?
— Só queria verificar como estão meus dois pacientes — comentou Babcott, jovial. — Como se sente agora, Sr. Struan?
— Quase a mesma coisa, obrigado.
Os olhos perspicazes do Dr. Babcott notaram que metade da canja desaparecera, mas ainda não havia vômito a limpar. Ótimo. Ele pegou o pulso de Struan. Uma pulsação irregular, nervosa, mas melhor do que antes. A testa ainda pegajosa de suor, ainda com febre, mas também mais baixa do que ontem. Ouso acalentar a esperança de que ele se recupere? Sua boca dizia como o paciente melhorara, que devia ser pelos cuidados da moça, nada tinha a ver com o médico, as coisas de sempre. Mas também não havia muito mais o que dizer, já que tanto dependia de Deus, se é que existia um Deus. Por que será que sempre acrescento isso? Se.
— Se continuar a melhorar assim, acho que devemos transferi-lo para Iocoama. Talvez amanhã.
— Não seria sensato — protestou Angelique no mesmo instante, assustada com a perspectiva de perder seu refúgio, a voz mais áspera do que desejava.
— Desculpe, mas é a melhor coisa — insistiu Babcott, gentil, querendo acalmá-la, admirando sua coragem e preocupação com Struan. — Eu não aconselharia, se fosse um risco, mas é na verdade o melhor. O Sr. Struan teria ali mais conforto, mais ajuda.
— Mon Dieu, o que mais posso fazer? Ele não deve partir, ainda não, ainda não...
— Escute, querida — interveio Struan, tentando parecer forte. — Se ele acha que já posso viajar, seria muito bom. Liberaria você de seus cuidados, tornaria tudo mais fácil.
— Mas não quero ser liberada. Prefiro continuar aqui, cuidando de você, exatamente como agora, sem... sem qualquer confusão.
Angelique sentia seu coração batendo forte, e sabia que parecia histérica, mas não planejara qualquer mudança. Estúpida, você não passa de uma estúpida. Claro que teria de haver uma transferência. Pense! O que pode fazer para evitá-la?
Mas, ao final, não houve necessidade de evitar coisa alguma. Struan estava dizendo que ela não deveria se preocupar, seria melhor se voltassem à colônia, ela ficaria mais segura, ele se sentiria mais feliz, havia dezenas de criados e aposentos no edifício Struan, que se ela quisesse poderia ocupar os aposentos ao lado dos seus e poderia ficar ou partir, conforme desejasse, com um acesso constante de dia e de noite.
— Por favor, não se preocupe, quero que também se sinta satisfeita — assegurou Malcolm Struan. — Ficará mais confortável lá, prometo, e assim que eu melhorar...
Foi nesse instante que um espasmo o dominou e sacudiu.
Depois de limpar tudo e pôr Struan outra vez num sono drogado, Babcott comentou:
— Seria realmente melhor para ele em Iocoama. Eu contaria com mais ajuda mais materiais. É quase impossível manter tudo limpo aqui. Ele precisa... desculpe mas ele precisa de uma ajuda mais forte. Você faz mais do que imagina por ele mas há certas funções que seus criados chineses podem desempenhar muito melhor. Desculpe ser tão rude.
— Não precisa se desculpar, doutor. Tem toda razão, e eu compreendo.
A mente de Angelique já disparara. A suíte ao lado dos aposentos de Malcolm seria o ideal, com muitos criados, roupas novas. Arrumarei uma costureira e mandarei fazer lindos vestidos, teria uma companhia apropriada, assumirei o comando... dele e do meu futuro.
— Só quero o melhor para ele — acrescentou Angelique, e depois indagou, pois precisava saber: — Por quanto tempo ele ficará assim?
— Confinado à cama e praticamente impotente?
— Isso mesmo. Por favor, diga-me a verdade.
— Não sei. Duas ou três semanas no mínimo, talvez mais, e depois disso ainda não terá mobilidade por um ou dois meses. — Ele fitou o homem inerte por um momento. — Prefiro que não lhe diga nada disso. Só serviria para preocupá-lo, sem necessidade.
Angelique balançou a cabeça, contente e tranqüila agora, com tudo ajustado.
— Não se preocupe. Não direi nada. Rezo para que ele se recupere depressa, e prometo que ajudarei por todos os meios ao meu alcance.
Ao deixá-la, o Dr. Babcott pensava: Por Deus, que mulher maravilhosa! Quer Struan viva ou morra, é um homem afortunado por ser tão amado assim.
9
A salva de vinte e um tiros de canhão, disparada pelos seis navios de guerra, ancorados ao largo de Iedo, acompanhando a nave capitânia, ressoou interminável. Todo o pessoal na esquadra sentia-se excitado, orgulhoso de seu poderio, e porque chegara o momento para a retaliação.
— Não será preciso mais nada além disso, Sir William — exultou Phillip Tyrer, parado ao lado dele, na amurada, inebriado pelo cheiro de cordite.
A cidade era vasta. Silenciosa. O castelo dominante.
— É o que veremos.
Na ponte de comando da nave capitânia, o almirante disse ao general:
— Isso deve convencê-lo de que nosso Pequeno Willie não passa de um presunçoso com mania de grandeza. E que se dane a saudação real. É melhor tomarmos cuidado com a nossa retaguarda.
— Tem toda razão. Acrescentarei isso ao meu relatório mensal para o Ministério da Guerra.
No convés da nave capitânia francesa, Henri Seratard fumava seu cachimbo, e ria junto com o ministro russo.
— Mon Dieu, meu caro conde, este é um dia feliz! A honra da França será vingada pela arrogância inglesa habitual. É inevitável o fracasso de Sir William. A pérfida Albion se mostra mais pérfida do que nunca.
— E verdade. Só é lamentável que seja a esquadra deles, e não a nossa.
— Mas muito em breve a sua esquadra e a nossa irão substituí-los.
— É verdade. Quer dizer que nosso acordo secreto está confirmado? Depois que os ingleses partirem, nós ficamos com a ilha Norte do Japão, mais Sakhalin, Kurilas e as ilhas que se estendem até o Alasca russo... e o resto é da França.
- Isso mesmo. Assim que Paris receber meu memorando, tenho certeza de que Será ratificado, secretamente, pelos mais altos escalões. — Seratard sorriu. — ainda existe um vácuo, é nosso dever diplomático preenchê-lo...
Com certeza um medo profundo espalhou-se por Iedo. Todos os moradores restantes se juntaram às massas que atulhavam cada rua, estrada e ponte, fugindo com os poucos bens que podiam carregar — sem o uso de rodas em parte alguma, é claro —, cada um esperando que a qualquer momento as granadas e foguetes de que haviam ouvido falar, mas sem jamais terem visto, chovessem sobre a cidade, que pegaria fogo, matando seus habitantes.
— Morte aos gai-jin! — era um grito que se ouvia a todo instante.
— Depressa!
— Saiam da frente!
— Depressa!
O pânico era geral, umas poucas pessoas eram pisoteadas ou empurradas do alto das pontes, a maioria continuava a seguir em frente, estoicamente... mas sempre para longe do mar.
— Morte aos gai-jin! — gritavam os japoneses, enquanto fugiam.
O êxodo começara naquela manhã, embora no momento em que a esquadra levantara âncora da enseada de Iocoama, três dias antes, os mercadores mais prudentes já tivessem contratado os melhores carregadores e deixado a cidade com suas famílias e seus bens mais valiosos, logo depois que os rumores sobre o lamentável incidente — e os consequentes protestos e exigências dos estrangeiros — espalharam-se por toda parte.
Só permaneceram em seus postos os samurais no castelo e os que guarneciam as defesas externas. E, como sempre, por toda parte, os abutres das ruas, animais e humanos, que espreitavam e farejavam as casas sem trancas, à procura do que podia ser roubado e mais tarde vendido. Bem pouco era roubado. O Saquê era considerado um crime hediondo, e desde tempos imemoriais que os culpados eram implacavelmente perseguidos, até serem apanhados e depois crucificados. Qualquer forma de roubo era punida da mesma maneira.
Dentro do castelo, o xógum Nobusada e a princesa Yazu tremiam de medo por trás de um frágil biombo, abraçados, seus guardas, criados e cortesãos prontos para a partida imediata, só aguardando a permissão do guardião para irem embora. Por todo o castelo, homens aprontavam as defesas, outros arreavam cavalos, empacotavam os bens mais valiosos dos anciãos para a evacuação, no instante em que o bombardeio começasse, ou o conselho recebesse o aviso de que as tropas haviam desembarcado.
Na câmara do conselho, numa reunião dos anciãos, convocada às pressas, Yoshi estava dizendo:
— Repito, não acredito que eles nos ataquem à força ou...
— E não vejo motivo para esperarmos — interrompeu-o Anjo. — O mais prudente é partirmos, pois eles iniciarão o bombardeio a qualquer momento. O primeiro canhoneio foi uma advertência.
— Não penso assim. Acho que foi apenas um anúncio arrogante de sua presença. Nenhuma bomba caiu na cidade. A esquadra não vai nos bombardear. Repito que estou convencido de que a reunião de amanhã ocorrerá como foi planejado. E nessa re...
— Como você pode ser tão cego? Se nossas posições fossem invertidas. E você comandasse a esquadra, contando com todo esse poderio, hesitaria por um instante sequer? — Anjo tremia de raiva. — E então, hesitaria?
— Não, claro que não! Mas eles não são como nós e nós não somos com eles, esse é o meio para controlá-los.
— Você fala de maneira incompreensível! — exasperado, Anjo virou-se para os outros três conselheiros. — O xógum deve ser levado a um lugar seguro, e devemos partir também, para continuar a governar longe daqui. Isso é tudo o que proponho, uma ausência temporária. Exceto por nossas guardas pessoais, todos os outros samurais ficarão, e o Bakufu também continua aqui. Ele fez uma pausa, lançando outro olhar furioso para Yoshi.
— Você pode ficar também, se assim desejar. Agora, vamos votar... A ausência temporária foi aprovada!
— Esperem! Se fizerem isso, o xogunato perderá seu prestígio para sempre. Nunca mais seremos capazes de controlar os daimios e sua oposição... nem o Bakufu. Nunca mais!
— Estamos apenas sendo prudentes. O Bakufu permanecerá aqui. Assim como todos os guerreiros. Como conselheiro-chefe, tenho o direito de exigir uma votação. E meu voto é sim!
— Eu digo não! — gritou Yoshi.
— Concordo com Yoshi-san — declarou Utani, um homem baixo e magro, olhos gentis, rosto encovado. — Concordo que perderemos prestígio para sempre se partirmos.
Yoshi sorriu, gostando da atitude. Os daimios do feudo de Watasa eram aliados antigos, antes mesmo de Sekigahara. Ele olhou para os outros dois, membros veteranos do clã Toranaga. Nenhum dos dois fitou-o nos olhos.
— Adachi-sama?
Depois de um longo momento, Adachi, daimio de Mito, um homenzinho rotundo, respondeu, bastante nervoso:
— Concordo com Anjo-sama que devemos partir, levando o xógum. Mas também concordo com você que neste caso podemos perder, mesmo que saiamos ganhando. Com todo respeito, meu voto é não.
O último ancião, Toyama, tinha cinqüenta e poucos anos, cabelos grisalhos, uma enorme papada, cego de um olho num acidente de caça... um velho no Japão. Era o daimio de Kii, pai do jovem xógum.
— Não me incomoda nem um pouco se todos nós vivemos ou morremos, nem a morte de meu filho, este xógum... sempre haverá outro. Mas me incomoda, muito, bater em retirada só porque os gai-jin ancoraram ao largo de nossa praia. Voto contra a retirada e a favor do ataque, voto para irmos até a costa e, se os chacais desembarcarem, matarmos a todos, apesar de seus navios, canhões e fuzis!
— Não dispomos de tropas suficientes aqui — protestou Anjo, cansado do erro e de sua militância, que nunca fora comprovada. — Quantas vezes tenho de dizer isso? Não temos tropas suficientes para defender o castelo e impedi-los de desembarcar. Quantas vezes tenho de repetir que nossos espiões informaram que eles têm dois mil soldados com fuzis em seus navios e na colônia, e dez vezes mais em Hong Kong...
Irritado, Yoshi não o deixou continuar:
— Teríamos mais do que o suficiente em samurais e seus daimios aqui se você não tivesse cancelado o sankin-kotai.
— Fiz isso a pedido do imperador, por escrito, apresentado por um príncipe de sua corte. Não tínhamos opção que não obedecer. Você também teria obedecido.
— Teria... se tivesse recebido o documento! Mas nunca o aceitaria, trataria de me ausentar ou retardaria o príncipe, qualquer uma de dezenas de manobras ou negociaria com Sanjiro, que instigou os “pedidos” ou pediria a um dos nossos partidários na corte para solicitar ao imperador que cancelasse os pedidos. — A voz de Yoshi era ríspida. — Qualquer petição do xogunato deve ser aprovada, essa é a lei histórica. Ainda controlamos o estipêndio da corte! Você traiu nossa herança!
— Chama-me de traidor?
Para choque de todos, a mão de Anjo apertava o cabo da espada.
— Digo que você permitiu que Sanjiro o manobrasse — respondeu Yoshi, sem se mexer, calmo por fora, torcendo para que Anjo fizesse o primeiro movimento, para poder então matá-lo e acabar para sempre com sua estupidez. — Não há precedentes de ação contra o legado. Foi uma traição.
— Todos os outros daimios, à exceção das famílias Toranaga imediatas, queriam assim! O Bakufu concordou, os roju concordaram, era melhor aceitar do que forçar todos os daimios para o lado dos lordes exteriores, e nos desafiarem desde logo, como Sanjiro, os Tosas e os Choshus teriam feito. Ficaríamos totalmente isolados. — Ele olhou para os outros. — Isso não é verdade? Não é?
Utani respondeu com a maior calma:
— É verdade que concordei... mas agora acho que foi um erro.
— O erro que cometemos foi o de não interceptar Sanjiro e matá-lo — acrescentou Toyama.
— Ele era protegido pelo mandato imperial — lembrou Anjo.
Os lábios do velho se contraíram, deixando à mostra os dentes amarelados.
— E daí?
— Todo o feudo de Satsuma teria se rebelado contra nós, com toda certeza, Tosa e Choshu se aliariam, e teríamos uma guerra civil, que não poderíamos vencer. Vamos votar! Sim ou não?
— Voto pelo ataque, apenas pelo ataque — insistiu o velho, obstinado. — Hoje, a qualquer desembarque, amanhã, em Iocoama.
A distância, podia-se ouvir o som agudo das gaitas de foles.
Mais quatro cúteres seguiam para o cais, três transportando soldados de infantaria Highland, para se juntarem aos outros que já se encontravam em formação. Os tambores ressoando, as gaitas de foles em seu lamento impaciente. Kilts, túnicas escarlates, fuzis. Sir William, Tyrer, Lun e três homens de sua equipe na última embarcação. Ao desembarcarem, o capitão no comando do destacamento bateu continência.
— Está tudo pronto, senhor. Temos patrulhas vigiando este cais e as áreas ao redor. Os fuzileiros virão nos substituir dentro de uma hora.
— Ótimo. Vamos agora para a legação.
Sir William e sua comitiva embarcaram na carruagem que fora trazida para terra com tanto esforço. Vinte marujos pegaram os tirantes. O capitão deu a ordem para avançar e o cortejo partiu, as bandeiras tremulando, cercadas por soldados, um imponente tambor-mor com mais de um metro e oitenta à frente, cules chineses de Iocoama puxando as carroças com a bagagem na retaguarda, muito nervosos.
As ruas estreitas, entre lojas e prédios baixos, de um só andar, estavam estranhamente vazias. Assim como o inevitável posto de guarda na primeira ponte de madeira, sobre um canal pestilento. E o seguinte também. Um cachorro saiu de uma viela, latindo e rosnando, mas logo fugiu, uivando, depois de levar um chute que o jogou a dez metros de distância. Mais ruas e pontes vazias, mas a viagem até a legação era lenta e difícil, por causa da carruagem, já que todas as ruas eram projetadas apenas para o tráfego de pedestres. A carruagem tornou a empacar.
— Não seria melhor continuarmos a pé, senhor? — perguntou Tyrer.
— Não, claro que não! Faço questão de chegar de carruagem!
Sir William sentia-se furioso consigo mesmo. Esquecera como as ruas eram estreitas. Em Iocoama, decidira usar a carruagem, só porque as rodas eram proibidas, a fim de tornar ostensiva a sua insatisfação com o Bakufu.
— Capitão — gritou ele —, se tiver de derrubar algumas casas, não hesite em fazê-lo!
Mas isso não foi necessário. Os marujos, acostumados a arrastar canhões para os lugares certos, empurraram, puxaram, praguejaram e quase que carregaram a carruagem em torno dos gargalos, na maior jovialidade.
A legação ficava numa pequena elevação, no subúrbio de Gotenyama, ao lado de um templo budista. Tinha dois andares, uma estrutura ainda incompleta, ao estilo britânico, dentro de uma cerca alta, com portões. A construção fora iniciada três meses depois da assinatura do tratado.
Os trabalhos eram angustiosamente lentos, em parte por causa da insistência britânica em usar suas plantas e seus materiais habituais de construção, como vidro nas janelas, tijolos nas paredes — que tinham de ser trazidos de Londres, Hong Kong ou Xangai —, além de fundações profundas, e outras coisas similares. As casas japoneses, de modo geral, não tinham nada disso, sendo de madeira, leves e fáceis de erguer e reparar, de propósito, por causa dos terremotos, além de ficarem a alguma distância do solo. A maior parte do atraso, no entanto, fora em decorrência da relutância do Bakufu em permitir construções estrangeiras fora de padrão.
Embora ainda não estivesse pronta, a legação já estava ocupada, e a bandeira britânica era hasteada todos os dias no mastro enorme, o que enfurecia ainda mais os moradores locais. No ano passado, a ocupação fora temporariamente abandonada, pelo antecessor de Sir William, depois que um ronin, à noite, matou dois guardas diante da porta de seu quarto, para fúria britânica e regozijo japonês.
— Ah, lamentamos muito... — dissera o Bakufu.
Mas o local, arrendado em caráter perpétuo pelo Bakufu — um equívoco como alegara depois —, fora escolhido com a maior habilidade. A vista do pátio era a melhor da área, e podia-se ver a esquadra em ordem de batalha, ancorada ao largo, em segurança.
O cortejo chegou em estilo marcial, a fim de retomar a posse do prédio. Sir William decidira passar a noite na legação e se preparar ali para a reunião no dia seguinte. Arrumava as coisas quando foi abordado pelo capitão, batendo continência.
— Oque é?
— Devemos hastear a bandeira, senhor? E defender a legação?
— Isso mesmo. Execute o plano, com bastante barulho, tambores, gaitas e todo o resto. Toque de recolher ao pôr-do-sol. Até lá, mantenha a banda tocando.
— Pois não, senhor.
O capitão encaminhou-se para o mastro. Solene, ao som dos tambores e gaitas, hasteou a bandeira britânica. No mesmo instante, por prévio acordo, uma salva foi disparada pela nave capitânia. Sir William ergueu o chapéu e liderou três vivas retumbantes para a rainha.
— Assim está melhor. Lun!
— Pois não, amo?
— Ei, você não é Lun!
— Sou Lun Dois, amo. Lun Um não pôde vir, doente.
— Está bem, Lun Dois. Jantar ao pôr-do-sol. Arrume tudo direito.
Lun Dois acenou com a cabeça, amargurado, detestando se encontrar num tugar tão isolado e indefensável, cercado por mil olhos ocultos e hostis, que todos ignoravam na maior negligência, embora quase todos devessem senti-los. Nunca vou compreender os bárbaros, pensou ele.
Phillip Tyrer não conseguiu dormir naquela noite. Deitou-se em um colchão de palha, por cima de um tapete esfarrapado no chão, exausto, mudando de posição a intervalos de poucos minutos, a mente afligida por pensamentos de Londres e Angelique, o ataque e a reunião no dia seguinte, a dor em seu braço e Sir William, que se mostrara irritado durante o dia inteiro. Fazia frio, com uma ligeira promessa de inverno no ar, o quarto era pequeno. A janela com vidraças dava para o espaçoso e bem-cuidado jardim dos fundos. O outro colchão era para o capitão, mas ele ainda não terminara as rondas.
Além dos sons de cachorros em busca de comida e de uns poucos gatos, a cidade mantinha-se silenciosa. Tyrer ouvia de vez em quando os sinos distantes dos navios da esquadra, assinalando as horas, e risadas guturais dos soldados, o que o tranquilizava. Aqueles homens são magníficos, pensou ele. Estamos seguros aqui.
Acabou se levantando, bocejou, foi até a janela, abriu-a, inclinou-se sobre o peitoril. Estava bem escuro lá fora, com uma densa camada de nuvens. Não havia penumbras, mas ele avistou vários Highlanders patrulhando com lampiões a óleo.
Além da cerca, para um lado, podia divisar os vagos contornos de um templo budista. Ao pôr-do-sol, depois que as gaitas de foles tocaram o recolher, a bandeira britânica fora arriada para a noite, de acordo com o ritual, os monges haviam fechado seu portão, tocaram um sino e povoaram a noite com seu estranho canto, “Ommmmahneepadmeehmmmmm...”, sempre repetido, interminável. Acalmara Tvrer, ao contrário do que ocorrera com vários outros, que vaiaram, pediram aos berros, grosseiramente, que se calassem.
Ele acendeu a vela que havia ao lado da cama. O relógio de algibeira marcava duas e meia. Tornando a bocejar, rearrumou o cobertor, recostou-se no travesseiro duro, abriu sua pasta, com as iniciais de seu nome gravadas — um presente de despedida da mãe — e tirou seu caderno de anotações. Percorrendo a coluna de palavras e frases japonesas, que escrevera foneticamente, ele murmurou os equivalentes em inglês, passou para a página seguinte e a outra. Repetiu o processo ao contrário, lendo o inglês e dizendo em voz alta o japonês. Gostaria que todas estivessem certas.
— São bem poucas, não sei se as pronuncio da maneira correta, tenho muito pouco tempo, e ainda nem comecei a aprender a escrita — murmurou Tyrer.
Em Kanagawa, perguntara a Babcott onde poderia encontrar o melhor mestre.
— Por que não pede ajuda ao padre? — sugerira Babcott. Fora o que ele fizera, no dia anterior.
— Claro, meu rapaz. Mas não pode ser esta semana. Que tal deixarmos para o mês que vem? Aceita mais um xerez?
Por Deus, como eles bebem aqui! Estão embriagados na maior parte do tempo e no almoço sempre bebem demais. O padre é inútil, só pensa no paraíso. Mas que golpe de sorte tivera com André Poncin!
Conhecera o francês ontem, por acaso, numa das lojas da aldeia japonesa que atendiam às suas necessidades. Margeavam a rua principal da aldeia, por trás da High Street, longe do mar, ao lado da cidade dos bêbados. Todas as lojas pareciam iguais, vendendo os mesmos tipos de mercadorias locais, de comida a apetrechos para pesca, e de espadas ordinárias a antiguidades. Ele examinava uma prateleira com livros japoneses — o papel da melhor qualidade, muito bem impressos, com ilustrações em xilogravura —, tentando se fazer compreender pelo radiante proprietário.
— Pardon, monsieur — intervinha um estranho —, mas precisa indicar o tipo de livro que deseja.
Ele tinha trinta e poucos anos, o rosto raspado, olhos castanhos, cabelos também castanhos, ondulados, com um fino nariz gaulês, e bem vestido.
— Deve dizer: Watashi hoshii hon, Ing‘erish Nihongo, dozo... eu gostaria de ver um livro que tenha inglês e japonês. — Ele sorrira. — Claro que não existe nenhum, mas esse homem vai lhe dizer, com uma abjeta sinceridade, Ah so desu ka, gomen nasa,i etc... Ah, sinto muito, não tenho nenhum hoje, mas se voltar amanhã... Só que ele não está dizendo a verdade, mas apenas o que pensa que você quer ouvir, um hábito fundamental dos japoneses. Receio que os japoneses não sejam muito generosos com a verdade, mesmo entre si.
— Mas posso lhe perguntar, monsieur, como aprendeu japonês... pois parece evidente que fala fluentemente.
O estranho soltara uma risada jovial.
— Está sendo muito gentil. Não sou fluente, mas tento. — Ele dera de ombros, divertido. — Com paciência. E porque alguns dos nossos santos padres falam a língua.
Phillip Tyrer franzira o rosto.
— Mas acontece que não sou católico, mas sim da igreja anglicana e... ahn... aprendiz de intérprete na legação britânica. Meu nome é Phillip Tyrer e acabei de chegar, estou meio desorientado.
— Ah, claro, o jovem inglês da Tokaidô. Peço que me desculpe, por favor. Deveria tê-lo reconhecido. Ficamos todos horrorizados ao sabermos do incidente. Permita que me apresente. André Poncin, de Paris. Sou um mercador.
— Je suis enchanté de vous voir — dissera Tyrer, falando francês com a maior facilidade, e bem, embora com algum sotaque inglês.
No mundo inteiro, fora da Grã-Bretanha, o francês era a língua da diplomacia, e a língua franca da maioria dos europeus; portanto, era essencial para ocupar um posto no Ministério do Exterior britânico, e para qualquer um que se considerasse instruído. Em francês, ele acrescentara:
— Acha que os padres concordariam em me ensinar ou permitiriam que eu participasse de suas aulas?
— Não creio que eles dêem aulas. Posso perguntar. Vai partir com a esquadra amanhã?
— Vou, sim.
— Eu também, acompanhando monsieur Seratard, nosso ministro. Esteve na legação em Paris antes de vir para cá?
— Infelizmente, não. Só passei duas semanas em Paris, monsieur, em férias... este é o meu primeiro posto no exterior.
— O seu francês é muito bom, monsieur.
— Nem tanto quanto eu gostaria — respondera Tyrer, voltando a falar em inglês. — Posso presumir que também é um intérprete?
— Oh, não, sou apenas um homem de negócios. Mas às vezes procuro ajudar monsieur Seratard, quando seu intérprete oficial de holandês está doente... pois também falo holandês. Deseja aprender japonês, e o mais depressa possível, nem?
Poncin fora até a prateleira, escolhera um livro.
— Já viu um desses? É de Hiroshigue, Cinqüenta e Três Estações na Estrada de Tokaidô. Não se esqueça de que o princípio do livro fica no fim, para nós, já que eles escrevem da direita para a esquerda. As ilustrações mostram as estações de posta até Quioto. — Ele folheara o livro. — Aqui está Kanagawa e aqui é Hodogaya.
As xilogravuras em quatro cores eram requintadas, melhores do que qualquer outra coisa que Tyrer já vira antes, os detalhes extraordinários.
— Mas são maravilhosas!
— Tem toda razão. Ele morreu há quatro anos, o que é uma pena, porque era fantástico. Alguns artistas japoneses são fabulosos, Hokusai, Masanobu, Utamaro, e uma dúzia de outros. — André rira, pegara outro livro. — Este aqui é indispensável, uma cartilha do humor e caligrafia dos japoneses, como eles chamam sua escrita.
Phillip Tyrer ficara espantado. A pornografia era decorosa e absolutamente explícita, página após página, com homens e mulheres muito bem vestidos, as partes nuas exageradas, desenhadas em detalhes precisos, enquanto se uniam com vigor e inventividade.
— Oh, meu Deus!
Poncin soltara uma gargalhada.
— Ah, estou vendo que lhe proporcionei um novo prazer. Em matéria de erotismo, eles são excepcionais. Tenho uma coleção que gostaria de lhe mostrar. As ilustrações são chamadas átshunga-e, e outras de ukiyo-e... imagens do mundo dos salgueiros ou do mundo flutuante. Já visitou algum bordel?
— Eu... ahn... não... ainda não.
— Neste caso, permita que eu seja seu guia?
Agora, durante a noite, Tyrer recordou a conversa, e como se sentira secretamente embaraçado. Tentara fingir que também era um homem do mundo, com muita experiência, mas ao mesmo tempo ressoava em sua cabeça o conselho solene e constante do pai:
— Escute, Phillip, os franceses são indignos, não merecem a menor confiança, os parisienses são a escória da França, e Paris é sem dúvida a cidade do pecado no mundo civilizado... licenciosa, vulgar e francesa!
Pobre papai, pensou Tyrer, ele se enganava em muita coisa, mas também viveu os tempos napoleônicos, e sobreviveu ao banho de sangue em Waterloo. Por maior que fosse a vitória, deve ter sido terrível para um pequeno tambor de dez anos. Não é de admirar que ele nunca tenha perdoado, não fosse capaz de esquecer, nem de aceitar a Nova Era. Ora, não importa. Papai tem a sua vida, e por mais que eu o ame, que o admire pelo que fez, devo levar minha própria vida. A França é quase uma aliada agora... e não é errado escutar e aprender.
Ele corou, lembrando como absorvera as palavras de André... ao mesmo tempo em que sentia secreta vergonha por seu ávido fascínio.
O francês explicara que no Japão os bordéis eram lugares de grande beleza, e suas cortesãs, as damas do mundo flutuante ou do mundo dos salgueiros, como eram chamadas, destacavam-se como as melhores que ele já experimentara.
Há diversos graus, é claro, e mulheres procurando fregueses nas ruas, na maioria das cidades. Mas aqui temos o nosso próprio quarteirão do prazer chamado Yoshiwara. Fica no outro lado da ponte, além da cerca. — Outra vez risada agradável.— Nós chamamos de ponte do paraíso. Mas já deve saber disso, oh, peço desculpas por interromper suas compras.
— Mas não se preocupe com isso! — respondera Tyrer, no mesmo instante consternado com a perspectiva de perder o fluxo de informações, aquela rara oportunidade. Depois, em seu francês mais floreado e suave, apressara-se em acrescentar: — Eu consideraria uma honra se quisesse continuar. É muito importante aprender tanto quanto for possível, e as pessoas a quem estou ligado, com as quais converso, são... lamentavelmente, não são parisienses, mas enfadonhas, sem a sofisticação dos franceses. Para retribuir sua gentileza, posso lhe oferecer chá ou champanhe na English Tea House ou noYokohama Hotel...ainda não sou sócio do clube.
— É muito generoso, e eu gostaria muito.
Agradecido, Tyrer chamara o dono da loja e pagara o livro, com a ajuda de Poncin, surpreso por descobrir que era bem barato. Saíram para a rua.
— Estava falando sobre o mundo dos salgueiros...
— Não há nada de sórdido, ao contrário do que acontece na maioria dos nossos bordéis, e em quase todos os outros lugares do mundo. Aqui, como em Paris, só que ainda mais, o ato sexual é uma forma de arte, tão delicado e especial quanto a grande cuisine, a ser encarado, praticado, saboreado e pensado como tal, e não... por favor, perdoe-me por dizer isso, não com o deturpado sentimento de “culpa” do anglo-saxão.
Numa reação instintiva, Tyrer se irritara. Por um momento, sentira-se tentado a corrigi-lo, a proclamar que havia vasta diferença entre culpa e uma saudável atitude em relação a moral, a todos os bons valores vitorianos. E acrescentar que, infelizmente, os franceses nunca haviam feito qualquer distinção com sua tendência para uma vida desregrada, que seduzia até augustos nobres, como o príncipe de Gales, que dizia considerar Paris como um lar (uma fonte de grande preocupação nos mais altos círculos ingleses), dissera o Times, furioso. “A vulgaridade francesa não tem limites, com sua lamentável ostentação de riqueza, com suas desavergonhadas danças novas, como o cancã, em que as dançarinas, segundo informantes confiáveis, deliberadamente se abstêm, e não são nem obrigadas, a usar roupas de baixo.”
Mas ele não dissera nada disso, sabendo que seria apenas uma repetição das palavras do pai. Pobre papai, pensara mais uma vez, e tornara a se concentrar em Poncin, enquanto seguiam pela High Street, o sol agradável, o ar revigorante, com a promessa de um belo dia amanhã.
— Mas aqui no Japão, monsieur Tyrer — continuara o francês, na maior felicidade —, há regras e regulamentos maravilhosos, tanto para os clientes quanto para as mulheres. Por exemplo, nem todas se mantêm disponíveis durante todo o tempo, exceto nos lugares de classe inferior, e mesmo nesses não se pode entrar e dizer quero aquela.
— Não se pode?
— Claro que não. A mulher sempre tem o direito de recusá-lo, sem que isso lhe acarrete qualquer desdouro. Há protocolos especiais... posso explicar em detalhes mais tarde, se assim desejar... mas cada casa é dirigida por uma madame, -chamada mama-san, o san sendo um sufixo que indica senhora, madame, ou senhor. Ela se orgulha da elegância de sua casa e de suas damas. Variam em preço e excelência, é claro. Nas melhores, a mama-san o inspeciona, essa é a palavra certa, decide se você tem condições de honrar sua casa e tudo o que contém, em suma, se você pode ou não pagar a conta. Aqui, um bom freguês pode ter o maior crédito, monsieur Tyrer, mas ai daquele que não pagar, ou atrasar o pagamento, quando uma conta for discretamente apresentada. Todas as casas do Japão passarão a lhe proibir todos os tipos de entradas.
Tyrer soltara uma risada nervosa pelo trocadilho.
— Não sei como a informação é transmitida, mas é o que acontece, daqui até Nagasáqui. Portanto, monsieur, sob certos aspectos, isto é o paraíso. Um homem pode fornicar a crédito durante um ano, se assim desejar.
Poncin fizera uma pausa, e sua voz mudara, de maneira quase imperceptível, quando continuara:
— Mas o homem sábio compra o contrato de uma dama e a reserva para o seu prazer particular. Elas são encantadoras e saem muito baratas, quando se considera o enorme lucro que obtemos na troca de dinheiro.
— É isso o que aconselha?
— É, sim.
Eles tomaram chá e depois champanhe, no clube, onde André era um sócio bem conhecido e popular. Antes de se separarem, André dissera:
— O mundo dos salgueiros merece o maior cuidado e atenção. E me sentiria honrado em ser um dos seus guias.
Tyrer agradecera, sabendo que nunca aproveitaria a oferta. Afinal, não podia esquecer Angelique, não é mesmo? E a possibilidade de pegar uma daquelas doenças horríveis, como a gonorréia ou a doença francesa que os franceses chamam de doença inglesa, e que os médicos chamam de sífilis, mencionada por George Babcott como abundante aqui, e também em qualquer dos portos do tratado da Ásia...
—... ou em qualquer outro porto, diga-se de passagem, Phillip. Vejo muitos casos aqui entre os japoneses, nem todos relacionados com europeus. Se você sente essa disposição, use um preservativo. É verdade que não são seguros, ainda não são muito bons. O melhor é se abster, se entende o que estou querendo dizer.
Phillip Tyrer estremecera. Só tivera uma experiência. Dois anos antes, embriagara-se por completo, junto com alguns colegas, depois dos exames finais, na taberna Star and Garter, na Pont Street.
— Agora chegou sua vez, Phillip. Está tudo acertado, ela fará por dois pence, nao é mesmo, Flossy?
Era uma criada do bar, uma garota dissoluta de quatorze anos, e a coisa acontecera às pressas, com muito suor, num cubículo malcheiroso no segundo andar... um penny para ela, e o outro para o taberneiro. Por meses depois, ele ficara apavorado com a possibilidade de ter contraído alguma doença.
— Temos mais de cinqüenta casas de chá, como são chamadas, ou estalagens a escolher, desde a nossa, em Yoshiwara. Todas são licenciadas e controladas pelas autoridades, e outras mais surgem acada dia. Mas tome cuidado, nem chegue perto da cidade dos bêbados.
Era a parte insalubre da colônia, onde ficavam os bares e pensões mais sórdidos, em torno do único bordel europeu.
— É para os soldados e marujos, para a gentalha, os vagabundos, imigrantes sem dinheiro, jogadores e aventureiros, que ali se reúnem, no maior sofrimento. Em cada porto se encontra um lugar assim, porque ainda não temos polícia, nem leis de imigração. Talvez a cidade dos bêbados seja uma válvula de segurança, mas é insensato visitá-la depois do escurecer. Se preza a sua carteira e suas partes privadas, não as leve até lá. Musuko-san merece melhor.
— O que significa isso?
— É uma palavra muito importante. Musuko significa filho ou meu filho. Musuko-san significa literalmente honorável filho ou senhor meu filho. Só que na gíria é pau, ou meu honorável pau, pura e simplesmente. As mulheres são chamadas de musume. Na verdade, a palavra significa filha ou minha filha, mas no mundo dos salgueiros é vagina. Você tem de dizer à sua mulher “Konbanwa, musume-san”. Boa noite, chérie. Mas se você o diz com um piscar dos olhos, ela compreende o que está querendo dizer: Como está ela? Como está seu rego de ouro, como os chineses às vezes chamam a passagem de um homem para o paraíso... são muito espertos, os chineses, porque os lados são sem dúvida revestidos de ouro, o todo é nutrido por ouro, e só se consegue abrir com ouro, de um jeito ou de outro...
Tyrer recostou-se, o caderno de anotações esquecido, o cérebro fervilhando. Quase sem perceber o que fazia, abriu o livro de ukiyo-e, que escondera na pasta, e pôs-se a examinar as ilustrações. Abruptamente, tornou a guardá-lo.
Não havia futuro em olhar imagens obscenas, refletiu ele, dominado pela repulsa. A vela gotejava agora. Ele soprou a vela, deitou-se, sentindo a dor familiar entre as pemas.
André é mesmo um homem de sorte. É óbvio que ele tem uma amante. O que deve ser maravilhoso, mesmo que só a metade do que ele diz seja verdade.
Será que eu também poderia ter uma? Poderia comprar um contrato? André disse que muitos por aqui fazem isso, alugam casas pequenas em Yoshiwara, que podem ser secretas e discretas, para quem assim desejar.
— Correm rumores de que todos os ministros possuem uma, e Sir William com certeza, vai lá pelo menos uma vez por semana... ele acha que ninguém sabe. mas todos o espionam e riem... menos o holandês, que é impotente, segundo os rumores, e o russo, que abertamente prefere experimentar casas diferentes...
Devo me arriscar, se tiver condições? Afinal, André me forneceu um motivo niuito especial:
— Para aprender japonês depressa, monsieur, adquira um dicionário vivo... é o único jeito.
Mas seu último pensamento, antes que o sono o dominasse, foi outro: Gostaria de saber por que André foi tão gentil comigo, tão loquaz. É raro para um francês se abrir com um inglês. Muito raro. E é estranho que ele não tenha mencionado Angelique uma única vez...
Faltava pouco para amanhecer. Ori e Hiraga, outra vez em roupas de ninja, saíram de seu esconderijo, no terreno do templo, acima da legação, desceram correndo a ladeira, sem fazer barulho, atravessaram a ponte de madeira, entraram numa viela, percorreram-na, continuaram por outra. Hiraga seguia na frente. Um cachorro os viu, rosnou, avançou para os dois, e morreu. O golpe curto e hábil da espada de Hiraga causou a morte instantânea, e ele seguiu adiante, apressado, a lâmina desembainhada, sem perder um passo, aprofundando-se mais e mais pela cidade. Ori o seguia com o maior cuidado. Hoje seu ferimento começara a infeccionar. À sombra de uma cabana, numa esquina discreta, Hiraga parou.