LIVRO CINCO51





IEDO





Quinta-feira, 1O de janeiro de 1863:





Toranaga Yoshi chegara ao castelo de Iedo, procedente de Quioto, oito dias antes, cansado e furioso, a jornada desde a estação de posta de Hamamatsu em marcha forçada.



As linhas em seu rosto eram mais profundas. Onde os homens tinham medo dele antes, agora sentiam pavor. Sua ira se voltava contra eles como um açoite. Durante a jornada, exigira o máximo de si mesmo e deles, dormindo apenas umas poucas horas, desvairado com qualquer atraso, insatisfeito com as estalagens, os banhos, a comida, o serviço e o futuro. O capitão Abeh suportava o impacto, todos sabendo que era apenas frustração e dor pela morte de Koiko, a amada.



Abeh providenciara a cremação de Koiko, assim como a de Sumomo, e depois partiram, galopando por léguas, todos conscientes de que uma guerreira tão brava merecia uma reverência cortês do vencedor diante do fogo... ainda mais quando se tratava de uma mulher, shishi, que em breve seria o tema de canções e lendas, a mesma forma que o golpe que a partira ao meio. E Koiko, o lírio também, ela que se lançara no trajeto do primeiro shuriken, assim salvara a vida do lorde, e a quem ele concedera a dádiva da morte sem dor. Mas Yoshi, guardião do herdeiro, dissera tristemente:



— O poema de morte delas é o seguinte:





Do nada ao nada,



Um cadáver é um cadáver,



E nada mais —



O meu, o seu, até o delas,



Será que existiram? Nós existimos?





Dali por diante, a toda velocidade, até alcançarem o castelo. Mas nem ali houvera descanso, o castelo, Iedo e todo Kwanto em polvorosa pelos preparativos dos gai-jin para a guerra... precipitada pelo ultimato do tairo, como Yoshi esperava



— Era inevitável — declarara Yoshi, na reunião dos anciãos que convocara de imediato, acrescentando, para proporcionar a Anjo um meio de se livrar da situação: — Você foi mal aconselhado... afaste o idiota que fez a sugestão e elaborou a carta.



— Foi ordem do imperador e do xógum, para que todos os gai-jin fossem expulsos — protestara Anjo, furioso.



— Ordem? O xogunato é que ordena, não um menino menor de idade, que repete as palavras que o xogunato lhe diz... nem o imperador, que só pode nos solicitar para fazer alguma coisa!



— Como tairo, considerei que o ultimato era necessário.



— E pergunto de novo, o que propõe fazer quando a esquadra chegar aqui?



— Isso não vai acontecer, porque atacaremos primeiro — respondera Anjo, para depois estremecer com uma pontada de dor, comprimindo seu flanco. — Já os cerquei; Iocoama é como um peixe morto esperando para ser estripado. A força de ataque está quase pronta.



— E a esquadra dos gai-jin?



A ira de Yoshi era intensa por seu conselho ter sido mais uma vez descartado e por se meterem, de novo, numa armadilha que eles próprios haviam criado. Não adiantava recordar a Anjo e aos outros o plano que ele projetara de forma tão meticulosa, ganhando tempo para novas táticas protelatórias contra os gai-jin, enquanto o xogunato aumentava sua força e cuidava do problema mais específico e premente de destruir a coalizão hostil de Tosa, Choshu e Satsuma, que acabaria por derrubá-los, se permitissem que vicejasse.



— Primeiro, surpreendemos Iocoama, incendiamos tudo, como sugeri há meses — dissera Toyama, tremendo de excitamento. — Vamos queimá-los!



— E como afundaria a esquadra? — indagara Yoshi, desdenhoso.



Ele notara a dor de Anjo, e sentia-se contente por isso, recordando seu acordo com Ogama de Choshu, que deveria ser confirmado depressa, a fim de manter o inimigo desconcertado e neutralizado. Toyama dissera, veemente:



— Os deuses afundarão seus navios, Yoshi-dono, como fizeram contra Kublai Khan e seus mongóis. Esta é a terra dos deuses e eles não vão nos abandonar.



— E caso os deuses estejam ausentes ou dormindo — acrescentara Anjo — mandaremos nossos brulotes... tenho centenas já em construção, centenas. Se o inimigo passar por essa barreira para bombardear Iedo, só camponeses, mercadores, artífices e parasitas morrerão. Nossas legiões continuarão intactas.



— Isso mesmo, ficarão intactas — concordara Toyama, exultante.



Anjo continuou:



— Depois que Iocoama cair, a esquadra dos gai-jin deverá partir, porque não terá mais uma base aqui para se reagrupar. Seguirá para as colônias na China, por falta de uma posição segura aqui. Se eles voltarem, nós...



— Quando eles voltarem — corrigira Yoshi.



— Está certo, Yoshi-dono, quando eles voltarem, com mais navios, vamos afundá-los no estreito de Shimonoseki, Ogama cuidará disso ou, a essa altura, já teremos mais canhões, mais brulotes, e nunca permitiremos que desembarquem, nunca mais deixaremos que instalem outra base aqui. Não haverá mais tratados para protegê-los! Absolutamente nenhum! Fecharemos nossa terra, como antes. É isso o que planejo. — A expressão de Anjo era triunfante. — Rasguei os tratados, como quer o imperador!



— Você é divino, tairo, os deuses nos protegerão com um vento divino! — exclamara Zukumura, rindo, a saliva escorrendo pelo queixo.



— Os deuses não nos protegerão das granadas dos gai-jin, nem os brulotes — garantira Yoshi. — Se perdermos Iedo, perderemos a nossa cidadela de xogunato, e depois todos os daimios da terra se juntarão contra nós para partilharem os despojos... liderados por Ogama de Choshu, Sanjiro de Satsuma e Yodo de Tosa. Sem Iedo, nosso xogunato está liquidado. Por que não podem compreender isso?



Anjo se contorcera sob outra pontada de dor, e explodira:



— Compreendo muito bem que você pensa que é o lorde da terra e a dádiva dos deuses ao Nipão, mas acontece que não é, não é mesmo, está sob as minhas ordens, sob o meu comando. O tairo SOU EU!



— Você é o tairo, e... mas por que essa dor? — indagara Yoshi, simulando preocupação, como se tivesse acabado de notar, com a intenção de interromper a confrontação. — Há quanto tempo sente essa dor? O que diz o doutor?



— O que diz? Ele... — Anjo tomou outro gole do amargo extrato de ervas. O medicamento quase não atenuava a dor. Vinha se agravando e o novo doutor chinês se mostrava tão inútil quanto os outros, a tal ponto que ele até passara a considerar a possibilidade de um exame secreto pelo famoso doutor gigante gai-jin de Kanagawa. — Não importa minha dor. Eu conheço você.



Yoshi percebera o ódio de Anjo e sabia que o ódio era causado por sua juventude e força... e o idiota nem imagina como estou cansado da vida.



— Posso...



— Você não pode fazer nada! Atacaremos quando eu ordenar e chega de conversa! A reunião está encerrada!



Anjo saíra, mais furioso do que nunca. Agora que era o tairo, Anjo reinava autoritário, e tratava todos os outros com um profundo desdém.



Num acesso de raiva, Yoshi vagueara pelo castelo como um tigre enjaulado. Depois daquele primeiro dia terrível, relegara Koiko para um compartimento isolado e o trancara com firmeza. Mesmo assim, ela o espiava lá de dentro de vez guando, sorrindo. Irritado, ele a empurrava de volta... agora não havia como saber se Koiko se adiantara para salvar sua vida, como Abeh lhe assegurara, não havia como descobrir por que ela empregara uma assassina shishi, Sumomo Fujahit a um nome falso, sem dúvida, mas com certeza uma acólita de Katsumata.



E onde se encontra Katsumata agora?



Ele já dera ordens para que o descobrissem, onde quer que estivesse, oferecera vultosa recompensa por sua cabeça. Também ordenara a caçada e destruição de todos os shishi e seus protetores. Depois, mandara chamar Ineijn seu maior espião. O velho entrara claudicando, fizera uma reverência.



— Parece, Sire, que os deuses o protegeram como se fosse um dos seus.



— Permitindo que uma assassina shishi, armada com um shuriken, entrasse no santuário interior de minha cortesã, permitindo que minha cortesã se tornasse uma traidora, parte da conspiração?



Inejin sacudira a cabeça.



— Talvez não uma traidora, Sire, nem parte de uma conspiração, apenas uma mulher. Quanto à shishi, Sumomo, ela apenas serviu para demonstrar a sua capacidade de luta, Sire, que foi perfeita... para a qual foi treinado.



A força extraordinária daquele velho servidor despachara a raiva de Yoshi para a China.



— Não tão perfeita — murmurara ele, pesaroso —, já que a gata me arranhou. Mas o ferimento sarou.



— Devo arrastar Meikin, a mama-san, até aqui, Sire?



— Ah, o pivô. Não a esqueci. Em breve, mas ainda não. Continua a vigiá-la?



— Como se fosse a sua segunda pele. O que deseja de mim, Sire?



— Quero que encontre Katsumata, vivo, de preferência. Removeu o traidor ronin que trabalhava para os gai-jin, como eu ordenei? Qual era mesmo o seu nome? Ori Ryoma, um Satsuma, é isso.



— Esse homem está morto, Sire, mas tudo indica que não era o traidor. Os gai-jin mataram Ori há algumas semanas. Atiraram nele quando tentava arrombar uma de suas casas. Mas o homem que lhes fornecia informações... e continua a fazê-lo... é um ronin de Choshu chamado Hiraga.



Yoshi ficara surpreso.



— Aquele do cartaz? O shishi que comandava os homens que assassinaram Utani?



— Isso mesmo, Sire. No momento, não posso eliminá-lo, pois ele se encontra sob a proteção do chefe inglês, e não se afasta muito do prédio deles. Tenho um espião na aldeia, e poderei lhe dizer mais coisas dentro de uns poucos dias.



— Ótimo. O que mais? Toda essa conversa de guerra?



— Espero ter mais informações em poucos dias.



— Pois trate de se apressar — dissera Yoshi, dispensando-o. — Quanto tiver notícias mais sérias, volte a me procurar.



Inejin não vai me falar, pensara ele, e lamento ter sido tão rude. Os espiões, devem ser cortejados como nenhum outro... porque deles depende sua capacidade de se movimentar... Ah, Sun-tzu, que gênio você foi... mas nem mesmo o conhecimento mais profundo de seus preceitos me diz o que fazer em relação aos gai-jin, em relação àquele garoto idiota e minha arqui-inimiga, a princesa Yazu... os dois ainda se empanturrando com o mingau com mel servido pelos sicofantas da corte, obedecendo às ordens daquele cão, o lorde camarista. O que você faria para destruir os inimigos que me cercam? Anjo, os anciãos, a corte, Ogama, Sanjiro, a lista é interminável. E impossível. E por cima de todos, os gai-jin.



E fora então que ele se lembrara do convite para ir a bordo do navio de guerra furansu — francês. O empreendimento de venda de carvão que sua esposa, Hosaki, organizara em conjunto com a Gyokoyama e o garimpeiro gai-jin lhe permitira enviar Misamoto, seu falso samurai, o pescador-intérprete, para acertar os detalhes. Isso ocorrera no dia anterior.



Ele saíra de Iedo numa galé a remo, para um encontro no mar, sem fanfarras, logo além da vista de terra... com Abeh, vinte guardas e Misamoto. A experiência fora apavorante. O tamanho e a potência dos motores do navio, os canhões, a quantidade de pólvora, balas e carvão que podia transportar, e as histórias que haviam contado, mentiras ou verdades, ele ainda não era capaz de determinar a extensão do império furansu, sua riqueza e poder, as léguas de viagem que um navio assim podia cobrir, a quantidade de navios de guerra e canhões e o tamanho de seus exércitos, que eram inacreditáveis, pelo que diziam. Misamoto interpretara, junto com o intérprete que se intitulara Andreh Furansu-san. Embora eles tivessem sua própria língua, o encontro fora conduzido na maior parte em inglês.



Yoshi não entendera muito do que ele dissera. As palavras usadas eram estranhas e se consumira muito tempo explicando quilômetros e metros, pólvora, breu e êmbolos, vapores de roda contra vapores de hélice, blocos de culatra e fecharia de pederneira, fábricas e potência de fogo.



Mas tudo fora esclarecedor e certas informações da maior importância: a necessidade vital de suprimento de carvão e portos seguros — sem o que os navios de guerra a vapor não passavam de cascos inúteis — incapazes de transportar todo o carvão necessário para a viagem de ida, as operações navais e a viagem de volta. E, segundo, como ele já testemunhara na reunião do Conselho com os gai-jin, no castelo em Iedo, e achara difícil acreditar na verdadeira extensão, qualquer menção aos gai-jin ingleses, os ing’erish, provocara olhares desdenhosos nos gai-jin furansu, que não hesitavam em demonstrar a profundidade de seu ódio.



Isso o deixara satisfeito, porque confirmara o que Misamoto dissera antes, que os ing’erish eram odiados por quase todas as outras nações do mundo, porque possuíam o maior império, eram a nação mais forte e mais rica, com as maiores e mais modernas esquadras, os exércitos mais poderosos, disciplinados e bem equipados, além de terem ganhos com a produção de mais da metade das mercadorias do mundo. E ainda contando, o melhor de tudo, com uma ilha que era um reduto inexpugnável para guardar tudo.



Claro que eles são odiados. Como nós, os Toranagas, também somos odiados. Portanto, pensara ele, com uma ânsia nas entranhas por seu erro passado, são esses gai-jin ing’erish que devem ser adulados, cuja amizade devemos conquistar e tratá-los com o maior cuidado. As melhores esquadras? E as melhores armas. Como eu poderia tentá-los a me construírem uma esquadra? Ou me fornecerem uma? O carvão pagaria por isso?



— Misamoto, diga a eles que eu gostaria de aprender mais sobre esses maravilhosos artefatos furansu — ordenara ele, em tom afável. — Diga também que eu gostaria de ter amigos entre os gai-jin. Não me oponho ao comércio... talvez até possa transferir minha concessão de carvão para os furansu, tirando dos ing’erish.



Isso despertara o interesse imediato deles. Nessa ocasião, estavam lá embaixo na maior cabine na popa, que ele achara apertada e malcheirosa, com os odores de óleo, fumaça de carvão e refugos humanos, com uma camada de pó de carvão por toda parte. Sentavam ao redor de uma mesa comprida, meia dúzia de oficiais em uniformes com alamares dourados, e seu líder, Seratard — Serata, a pronúncia correta — no centro. Abeh e metade de seus guardas postavam-se por trás de Yoshi, os outros haviam ficado lá em cima.



No momento em que vira Seratard e ouvira seu nome, Yoshi gostara dele — era totalmente diferente do líder maior dos ing’erish, alto e de cara azeda, com um nome impronunciável. Serata, como o Furansu-san Andreh, era fácil de pronunciar. Na verdade, aqueles nomes eram japoneses. Serata era um presságio milagroso.



Afinal, Serata era o nome da aldeia ancestral de sua família, em que seu antepassado, Yoshi-shigeh Serata-noh Minowara, se instalara no século XII. No século XIII, o daimio guerreiro Yoshi-sada Serata levantara um exército contra seus suseranos, os Hojo, derrotando-os e capturando sua capital, Kamakura. Desde então, seus descendentes diretos, os Yoshi noh Toranaga noh Serata, ainda reinavam em Kamakura — o xógum Yoshi Toranaga fora sepultado ali, em seu grande mausoléu.



— Somos aparentados — gracejara ele, depois de explicar a coincidência a Seratard.



Seratard rira e depois explicara, interrompendo os outros, que não paravam de falar, como macacos em uniformes exóticos, que sua família também era antiga na terra dos furansu, mas não tão ilustre.



— Meu superior se sente honrado em ser amigo e da parte gai-jin de sua grande família, Sire — dissera Andreh, com uma reverência.



— Diga a ele que considero seu nome um bom sinal — declarara Yoshi, notando que aquele homem parecia muito mais do que um mero intérprete.



— Meu superior agradece e diz que tudo aquilo que os ing’erish oferecem os furansu oferecem melhor.



Misamoto informara, obsequioso:



— Lorde, ele está querendo dizer que farão um negócio melhor... mais dinheiro. Os furansu também fabricam canhões, como os ing’erish, mas não tantos.



— Diga a eles que considerarei uma proposta para lhes entregar a concessão de carvão. Devem me dizer quantos fuzis e canhões, com pólvora e balas, e quando posso receber, por quanto carvão. E quero um navio a vapor, com oficiais para treinarem meus oficiais e marujos. Na verdade — acrescentara ele, com um ar de inocente —, talvez eu pudesse conceder aos furansu o direito exclusivo de construir, vender e treinar uma marinha. Claro que eu pagaria. Se o preço fosse razoável.



Ele vira os olhos de Misamoto se arregalarem; antes que Misamoto tivesse tempo de começar a traduzir, o gai-jin Andreh, que estivera escutando com igual atenção, dissera:



— Meu superior certo que rei da terra de furansu terá maior honra em ajudar lorde Yoshi Toranaga em navios.



Fascinado, ele observara Andreh virar-se para líder Serata e começar a falar, os oficiais navais ouvindo e balançando a cabeça, logo ficando também excitados. Espantoso como era fácil manipular aqueles homens com comércio e promessa de dinheiro no futuro, pensara ele. Se os furansu reagiam tão depressa, era certo que o líder ing’erish faria a mesma coisa. Dois peixes brigando pelo mesmo anzol é melhor do que um só.



Haviam conversado também sobre outras coisas, não pelo tempo suficiente para cobrir tudo, mas ele aprendera o suficiente para querer aprender mais. Um detalhe mencionado por Andreh Furansu-san o deixara abalado. Falavam sobre os conhecimentos médicos modernos e como seria fácil treinar o pessoal e equipar um hospital.



— Chefe doutor medicina em Kanagawa bom, Sire. Ouvir tairo Anjo doente, Sire. Ouvir talvez tairo ver doutor-sama.



— Quando e onde esse encontro vai ocorrer?



— Meu superior diz: não certo se já acertado, Sire. Talvez chefe doutor medicina ajudar tairo.



— Se um encontro for acertado, quero saber. Diga a Serata que um hospital é também uma possibilidade interessante.



Ele decidira deixar o assunto por aí. Por enquanto. Mas era outra informação que seria melhor Misamoto esquecer. Como posso ter um intérprete pessoal em quem confie? É melhor arrumar um. Talvez deva treinar Misamoto, ele é meu seguidor submisso, dependente, sob o meu controle. Até agora se mostrou obediente. Não resta a menor dúvida de que cuidou direito dos garimpeiros. Uma pena que ele estivesse ausente, relatando os progressos a Hosaki, quando os dois ligaram... como bestas selvagens, informaram os samurais, nada mais apropriado! Se Misamoto estivesse na mina, talvez pudesse impedi-los. Não que isso tenha alguma importância, um está morto, é menos um problema com que me preocupar, e com certeza o sobrevivente não continuará por muito mais tempo neste mundo. Carvão! Portanto, temos uma abundância em carvão, diz Hosaki, e para esses gai-jin o carvão parece valer tanto quanto ouro. Deliberadamente, ele mudara de assunto.



— Pergunte a Serata-san por que os gai-jin disparam canhões e fuzis, e mandam os navios de guerra navegarem de um lado para outro, perturbando a n desta terra dos deuses. Eles se preparam para a guerra?



Houvera um momento de silêncio. E o clima na cabine mudara.



— Meu superior dizer não preparar guerra — dissera o gai-jin Andreh. Yoshi concluíra que era uma tradição meticulosa. — Preparar defesa apenas. Sinto muito, tairo dizer que todos gai-jin têm ir embora.



— Por que não se retirar por um ou dois meses e depois voltar?



Ele rira interiormente ao perceber a consternação que a sugestão gerara.



— Meu superior dizer tratado assinado lorde xógum e posto prática líder Bakufu tairo Li e nobre imperador permitir nós Iocoama, Kanagawa e Kobe em breve. Tratado ser bom para Nipão, gai-jin ser bom para Nipão. Tairo Anjo, sinto muito, errado ficar tão zangado.



— Muitos daimios não pensam assim. Tairo Anjo é o líder. Vocês devem fazer o que ele ordena. Esta é a nossa terra.



— Meu superior dizer Furansu querer ajudar Nipão ser grande nação no mundo... como aqui também.



— Diga a Serata-sama que o tairo é o líder, o que ele diz deve ser obedecido, embora às vezes até o tairo possa mudar de idéia, se receber o conselho correto.



Yoshi vira esse novo dado ser registrado e acrescentara:



— Sinto muito, já explicamos uma dúzia de vezes que as questões de Satsuma só podem ser resolvidas por Sanjiro, o daimio de Satsuma.



— Meu superior dizer esperar alguém possa dar conselho correto a tairo. Daimio Satsuma deve dizer desculpas, pagar indenização combinada reunião Iedo, punir assassino abertamente.



Ele balançara a cabeça, como se estivesse muito preocupado. Levantara-se abruptamente, provocando mais consternação... não havia sentido em continuar a conversar com aqueles subalternos, que podiam ser valiosos sob outros aspectos, mas era o líder ing’erish que ele tinha de procurar. E embora mantivesse uma atitude altiva e severa, ele demonstrara alguma cordialidade e concordara, com uma relutância simulada, em ter outro encontro.



— Misamoto, diga a eles que podemos nos reunir de novo daqui a dez dias, em Iedo. Eles podem ir a Iedo para uma reunião particular.



No momento em que ele deixava o navio de guerra, o gai-jin Andreh dissera:



— Meu superior deseja você bom ano-novo.



Aturdido, ele soubera que o mundo gai-jin tinha seu próprio calendário, totalmente diferente do calendário lunar dos japoneses — e chineses —, que fora a maneira de contar os dias, meses e anos desde o princípio do tempo.



— O primeiro dia de nosso ano, Serata-sama — explicara Misamoto — é entre o 169 dia do primeiro mês e o 229 dia do segundo mês, dependendo da lua-Este ano, o ano do cão, o primeiro dia, que inicia nossa temporada de festivais, e o 189 do primeiro mês. É quando toda a China diz Kung Hay Fat Choy.



Voltando para Iedo, na galé, Yoshi especulara sobre aqueles homens. De um modo geral, sentira-se consternado — os gai-jin eram como monstros sob a forma de homens que tinham vindo das estrelas, suas idéias e atitudes o lado errado de yin e yang.



Mas, para que possamos sobreviver como nação, o Nipão precisa ter navios maiores e canhões, mais poder, para nos protegermos desses demônios estrangeiros. E pelo menos por enquanto, concluíra ele, sentindo-se nauseado, o xogunato deve fazer um acordo com eles.



Nunca irão embora, não todos eles, por sua livre e espontânea vontade. Se não forem estes, outros virão para roubar nossa herança, chineses ou mongóis, ou os peludos das terras geladas da Sibéria, que nos contemplam como cães babando de portos roubados da China. E sempre os ing’erish estarão ao nosso redor. O que fazer com eles?







Isso acontecera no dia anterior. Ontem à noite e naquela madrugada ele estivera absorto em pensamento, quase sem comer, quase sem dormir, consciente também do vazio de sua cama e do vazio de sua vida, as juntas do compartimento de Koiko vazando, assim como as de Anjo, de Ogama e dos outros. Muitas vezes, durante a viagem desde Quioto, pensara na espada limpa, na pureza e paz da morte, o minuto, a hora e o dia escolhidos com um poder divino, pois escolher o momento da própria morte o transformava num deus: do nada ao nada. Não mais o pesar para dilacerá-lo em pétalas de dor.



Muito fácil.



O primeiro raio de sol do amanhecer passou pela janela, refletindo-se em sua espada curta. Estava ao lado da cama, junto com a espada longa, as duas ao fácil alcance de suas mãos, o fuzil ali também, carregado, o que ele chamara de Nori. A espada curta era uma herança de família, feita pelo mestre ferreiro Masumara, outrora possuída pelo xógum Toranaga. Ele olhou para a bainha velha e gasta, e através dela, em sua mente, contemplou a perfeição da lâmina. Estendeu a mão, acariciando o couro, depois subiu pelo cabo, foi pousá-la na pequena tranqueta presa ali. O pai instruíra seu ferreiro a prendê-la ali, antes de presenteá-lo com a espada, formalmente, na presença de seu círculo interno de servidores. Yoshi tinha quinze anos na ocasião e já matara seu primeiro homem, um ronin, que tivera um acesso de loucura perto do castelo de sua família, o Ninho da Águia.



— Isto é para lembrá-lo de seu juramento, meu filho: que empunhará esta lâmina com honra, que para cometer seppuku só usará esta lâmina, que só cometerá seppuku para evitar a captura no campo de batalha, ou se o xógum assim ordenar, e o Conselho de Anciãos confirmar a ordem por unanimidade. Todos os outros Motivos são insuficientes, enquanto o xogunato estiver em perigo.



Uma sentença terrível, refletiu Yoshi, e tornou a se estender na cama, a salvo no momento, naquele quarto no alto de seus aposentos no castelo, onde experimentara tanto prazer. Os olhos retornaram à espada curta. Sua necessidade hoje era intensa. Em sua imaginação, ensaiara o ato tantas vezes que seria suave, gentil e libertador. Muito em breve Anjo enviará homens para me prenderem, e essa será minha desculpa...



Seus ouvidos aguçados ouviram passos. Pés marchando. As mãos pegaram a espada curta e a espada longa, ele assumiu a posição de ataque-defesa.



— Sire?



Yoshi reconheceu a voz de Abeh. Isso não significava segurança, pois Abeh podia ter uma faca na garganta ou ser um traidor... depois de Koiko, todos eram suspeitos.



— O que é?



— O homem Inejin pede para vê-lo.



— Revistou-o?



— Revistei-o.



Yoshi usou a corda que prendera, permitindo-lhe puxar a tranca da porta sem se levantar. Inejin, Abeh e quatro samurais esperavam ali. Ele relaxou.



— Entre, Inejin.



Abeh e os outros de sua guarda pessoal fizeram menção de segui-lo e Yoshi acrescentou:



— Não há necessidade, mas fiquem ao alcance de serem chamados. Inejin fechou a porta, notou a corda para puxar a tranca, mas não fez qualquer comentário, e ajoelhou-se a dez passos de distância.



— Descobriu Katsumata?



— Ele estará em Iedo dentro de três dias, Sire. E irá direto para a casa da Glicínia.



— Aquele covil de escorpiões? — Yoshi não fechara a armadilha contra a mama-san Meikin, pois queria descobrir a verdadeira extensão da conspiração contra ele antes de se vingar... a vingança era melhor quando saboreada calmamente. — Podemos capturá-lo vivo?



Inejin exibiu um estranho sorriso.



— Duvido muito, mas posso lhe contar a história à minha maneira, Sire? — Ele ajeitou o joelho dolorido de forma mais confortável. — Primeiro, sobre os gai-jin: um fato esperado e encorajado desde o início aconteceu. Um espião gai-jin ofereceu os planos de batalha por dinheiro



O interesse de Yoshi foi imediato.



— Não são falsos?



— Não sei, Sire, mas foi sussurrado que continham movimentos de tropas e navios. O preço era modesto e mesmo assim o representante do Bakufu não comprou de imediato, começou a regatear, e a pessoa que estava vendendo se assustou. Com Anjo no comando... — Os lábios rachados se contraíram em repulsa ao nome. — Ele é baka, indigno! Se a cabeça é podre, o corpo é pior.



— Concordo. Uma estupidez.



Inejin acenou com a cabeça.



— Eles esquecem Sun-tzu outra vez, Sire: Permanecer na ignorância da disposição do inimigo, regateando o desembolso de algumas centenas de moedas de prata, é o cúmulo da inumanidade. Por sorte, um informante me comunicou a respeito.



Inejin tirou um pergaminho da manga, largou em cima da mesa Yoshi suspirou, satisfeito.



So Ka!



— Com a ajuda do meu informante, comprei para lhe dar, Sire, um presente. E também, para grande risco de meu informante, substituí por um pergaminho falso que o Bakufu acabará comprando por uma ninharia.



Yoshi não tocou no pergaminho, apenas contemplou-o em expectativa.



— Por favor, permita que eu o reembolse.



Inejin procurou encobrir seu vasto alívio, pois tivera de penhorar sua estalagem para a Gyokoyama, a fim de obter o dinheiro.



— Procure meu caixa ainda hoje. As informações merecem confiança? Inejin deu de ombros. Ambos conheciam os preceitos de Sun-tzu: Um espião interno é o mais perigoso, aquele que vende segredos por dinheiro. É preciso um homem de gênio para avaliá-los.



— Meu informante jura que as informações merecem confiança, assim como o espião.



— E o que dizem?



— O plano dos gai-jin é assustadoramente simples. No dia da batalha, dez dias depois de apresentado seu ultimato... e se não for atendido... toda a esquadra se desloca contra Iedo. No primeiro dia, a área de ataque é mais distante da costa, Sire, o alcance máximo de seus canhões mais pesados, visando a destruir todas as pontes e estradas que saem de Iedo... que já foram localizadas, mais informações fornecidas a eles, com toda certeza, pelo traidor Hiraga. Nessa mesma noite, à luz dos incêndios que eles provocaram, o castelo é bombardeado. No dia seguinte, as áreas costeiras são dizimadas. No terceiro dia, eles desembarcarão mil soldados armados com rifles, que avançarão para os portões do castelo. Ali, montam um sítio com morteiros, destróem os portões e as pontes, e a maior parte do castelo que for possível. No quinto dia, eles se retiram para seus navios e vão embora.



— De volta a Iocoama?



— Não, Sire. O plano diz que evacuarão todos os gai-jin na véspera do dia da batalha e se retirarão para Hong Kong até a primavera. E depois voltarão com toda força. O custo da guerra... como aconteceu com as guerras chinesas, e é o costume deles... será dobrado, e exigirá reparações do xogunato e do imperador, assim como um acesso pleno a todo o Nipão, inclusive Quioto, e uma ilha cedida em caráter perpétuo, para cessar as hostilidades.



Yoshi sentiu um calafrio. Se aqueles bárbaros haviam conseguido humilhar toda a China, mãe do mundo, acabarão nos humilhando também, até a nós. Pleno acesso?



— Esse ultimato... o que é essa impertinência adicional?



— Não consta do pergaminho, Sire, mas o espião prometeu detalhes, assim como a data da batalha, e qualquer mudança.



— Qualquer que seja o custo, compre essas informações... se forem verdadeiras, podem fazer uma diferença no resultado.



— É bem possível, Sire. Parte das informações é sobre as contramedidas dos gai-jin. Contra nossos brulotes.



— Mas Anjo me disse que são secretos!



— Não é segredo para eles. O Bakufu é como uma peneira de arroz para os interessados, Sire, além de corrupto.



— Nomes, Inejin, e suas cabeças serão espetadas em chuços.



— A começar hoje, Sire. Começar do topo.



— Isso é traição.



— Mas a verdade, Sire. Gosta de verdades, não de mentiras, ao contrário de qualquer líder que já conheci. — Inejin ajeitou melhor os joelhos, a dor quase intolerável. — A questão do espião é complicada, Sire. Foi Meikin quem me falou a respeito dele...



Yoshi soltou um grunhido e Inejin continuou:



— Concordo, Sire. Mas Meikin me falou, Meikin que desviou o intermediário do Bakufu para mim, Meikin que substituirá o falso documento, com grande perigo, pois deve atestar sua veracidade, Meikin que deseja desesperadamente lhe provar sua lealdade.



— Lealdade? Quando sua casa é um santuário para os shishi, um ponto de encontro para Katsumata, um centro de treinamento para traidores?



— Meikin jura que a dama nunca participou de nenhuma conspiração, Sire. Nem ela.



— O que mais ela pode dizer... foi a criada, neh?



— Talvez ela esteja falando a verdade, talvez não, mas também é possível que, por causa de sua dor, Sire, ela agora perceba o erro passado. Uma espiã convertida pode ser muito valiosa.



— A cabeça de Katsumata me faria ter mais certeza. Se capturado vivo, mais ainda.



Inejin riu, inclinou-se para a frente e baixou a voz:



— Sugeri que ela lhe fornecesse o mais depressa possível detalhes sobre o traidor Hiraga, antes que solicite a cabeça dele.



— E a dela.



— A cabeça de uma mulher espetada num chuço não é uma coisa bonita, Sire, quer seja velha ou moça. Essa é uma verdade antiga. Melhor deixá-la em seus ombros e usar o veneno, sabedoria, astúcia ou simples corrupção que uma mulher assim possui em seu proveito.



— Como?



— Primeiro, entregando-lhe Katsumata. Hiraga é um problema mais complexo. Meikin diz que ele é íntimo de um importante ajudante ing’erish do líder ing’erish, chamado Taira.



Yoshi franziu o rosto. Outro presságio? Taira era outro nome japonês o significado, uma antiga família nobre relacionada com a linhagem de Yoshi Serata.



— E daí?



— Esse Taira é importante, um interprete em treinamento. Seu japonês já é muito bom — os ing’erish devem ter uma escola como o senhor propôs, e o Bakufu “considera”.



— Considera, hem? Taira? É um jovem feio, alto, olhos azuis, nariz imenso, cabelos compridos como palha de arroz?



— Isso mesmo, ele é assim.



— Lembro dele da reunião com os anciãos. Continue.



— Meikin soube que o conhecimento dele de nossa língua melhora depressa, com a ajuda de uma prostituta chamada Fujiko, mas ainda mais por causa de Hiraga, que cortou os cabelos ao estilo gai-jin e usa roupas de gai-jin. — O velho hesitou, adorando contar os segredos. — Parece que esse Hiraga é neto de um importante shoya de Choshu, que teve permissão de comprar a posição de goshi para seus filhos, um dos quais, o pai desse Hiraga, é agora hirazamurai. Hiraga foi escolhido para ingressar numa escola secreta de Choshu, onde se mostrou um estudante excepcional e aprendeu um pouco de ing’erish.



Ele suprimiu um sorriso ao ver a expressão de seu lorde.



— Quer dizer que o espião não é um gai-jin, mas esse Hiraga?



— Não, Sire, mas Hiraga pode ser uma valiosa fonte secundária de informações. Se pudesse ser explorado.



— Um shishi nos ajudando? — Yoshi soltou uma risada escarninha. — Impossível.



— Sua reunião ontem, a bordo do navio furansu... foi proveitosa, Sire?



— Foi interessante.



Era impossível manter uma coisa assim em segredo. Yoshi sentiu-se contente por Inejin ter obtido a informação tão depressa. Abeh e meia dúzia de seus homens haviam testemunhado o encontro. Quem falara? Não tinha importância. Era de se esperar. E ele nada dissera de comprometedor.



— Abeh! — gritou ele,



— Pois não, Sire?



— Mande uma criada trazer chá e saquê.



Yoshi não falou mais nada até que fossem servidos e aceitos de bom grado por Inejin. Aproveitou o tempo para avaliar as informações e formular novas perguntas e respostas.



— O que propõe?



— Não caberia a mim propor o que certamente já decidiu, Sire. Mas ocorreu-me que, quando e se o líder ing’erish enviar seu ultimato, o lorde sozinho seria a pessoa perfeita para mediar... sozinho, Sire.



— Hum... E depois?



— Entre outras coisas, poderia pedir para ver esse Hiraga. E assim poderia avaliá-lo, talvez persuadi-lo a vir para o seu lado. Virá-lo em seu proveito. O momento não poderia ser mais oportuno.



— É bem possível, Inejin. — Yoshi já descartara isso por uma idéia muito melhor, que se ajustava ao plano que discutira com Ogama em Quioto, e à sua própria necessidade de iniciar a execução de seu grandioso projeto.— Ou fazer desse Hiraga um exemplo. Capture Katsumata, ele é a cabeça da serpente shishi e se Meikin é o meio para capturá-lo vivo, tanto melhor para ela.







A alguns quilômetros de distância, na estrada Tokaidô, na estação de posta de Hodogaya, Katsumata esquadrinhava a multidão, de uma janela da casa de chá.



— Seja paciente, Takeda — disse ele. — Hiraga não deve chegar até a metade da manhã. Seja paciente.



— Detesto este lugar — murmurou Takeda.



A aldeia situava-se em campo aberto, com poucos lugares em que poderiam se esconder e a apenas cinco quilômetros da colônia de Iocoama. Estavam na casa de chá da Primeira Lua, a mesma em que Katsumata e o daimio Sanjiro haviam se hospedado, depois do ataque de Ori e Shorin aos gai-jin, na Tokaidô.



— E se ele não vier?



O jovem coçou a cabeça, irritado, não tendo raspado o queixo nem a cabeça desde a fuga de Quioto.



— Ele virá, se não hoje, amanhã. Preciso falar com ele.



Os dois escondiam-se ali há uma semana. A viagem desde Quioto fora difícil, com muitas fugas por um triz.



— Sensei, não gosto deste lugar, nem da mudança do plano. Deveríamos estar em Iedo, se queremos continuar a luta, ou talvez devêssemos fazer a volta e ir para casa.



— Se quer ir, pode ir. Se quer voltar para Choshu, pode voltar. E na próxima vez em que se queixar, receberá a ordem para partir!



Takeda desculpou-se no mesmo instante e acrescentou:



— Acontece apenas que perdemos homens demais em Quioto, e nem sequer sabemos como os shishi se saíram em Iedo. Sinto muito, mas não consigo deixar de pensar que deveríamos voltar para casa, como aqueles que sobreviveram, eu para Choshu, você para Satsuma, e nos reagruparmos mais tarde.



— Hodogaya é um lugar perfeito para nós e esta estalagem é segura. Avisado de que Yoshi oferecera um prêmio alto por sua cabeça, Katsumata decidira ser prudente e não continuar.



— Amanhã ou depois prosseguiremos a viagem — acrescentou ele, contente pelo valor do jovem como um escudo para suas costas. — Primeiro, Hiraga.



Fora difícil e perigoso entrar em contato com ele. Poucas pessoas podiam passar pelas barreiras de Iocoama ou ter acesso à Yoshiwara dos gai-jin. Novos passes eram emitidos a todo instante, novas senhas instituídas. As patrulhas de vigilantes vagueavam por toda parte. Bolsões discretos de samurais enxameavam em torno de Iocoama, quase isolando-a do resto da terra.



Três dias antes, Katsumata descobrira uma criada cuja irmã era parteira e de vez em quando visitava a Yoshiwara. Por um oban de ouro, a parteira concordara em levar uma mensagem à mama-san da casa das Três Carpas.



— Takeda, fique aqui e continue vigiando. Espere com paciência.



Katsumata foi para o jardim, passou pelos portões da frente, saindo para a Tokaidô, movimentada com os viajantes matutinos, palanquins, carregadores, divinhos, escribas, samurais e alguns pôneis, transportando mulheres ou cavalgados por samurais. Todos falando, gritando, ganindo. A manhã era fria, as pessoas usavam casacos acolchoados, esquentavam a cabeça com lenços ou chapéus. Uns poucos samurais fitaram Katsumata, mas não belicosamente. A maneira como ele andava, a penugem na cabeça e no rosto, a espada longa numa bainha as costas, a curta na cintura apregoavam cautela para os inquisitivos. Era evidente que se tratava de um ronin de algum tipo e que seria melhor evitá-lo.



Nos arredores da aldeia, na área da barreira bem guardada, de onde tinha bom campo de visão para o mar e Iocoama, ele sentou num banco, num estande de comida à beira da estrada.



— Chá, que seja fresco, e cuide para sair bem quente.



O assustado vendedor se apressou em obedecer.







Na colônia, um grupo de mercadores a cavalo passou ruidosamente pela ponte; todos ergueram os chapéus ou chicotes de montaria para os guardas no portão norte, que responderam com reverências superficiais. Outros mercadores, ajudantes, soldados, marujos e a gentalha da cidade dos bêbados estavam a pé, todos num passeio na manhã do feriado. Era o dia de ano-novo. Haveria uma corrida de cavalos naquela tarde e, depois, uma partida de futebol entre equipes da marinha e do exército. Fazia frio, mas não muito, o vento era mais uma brisa, mas o suficiente para soprar a maior parte do cheiro de inverno, algas em decomposição e refugos humanos para o interior.



Um dos homens a cavalo era Jamie McFay. Quase ao seu lado seguia Hiraga, um lenço cobrindo a maior parte do rosto, o gorro de montaria baixado sobre os olhos, os trajes de montaria bem cortados. Aquela excursão não era aprovada nem do conhecimento de Tyrer e Sir William, um presente em troca do serviço de intérprete entre Jamie e o shoya e, também, pela prestação de informações sobre os negócios.



Hiraga dissera no dia anterior:



— Eu responder mais perguntas durante viagem, Jami-sama. Precisar ir Hodogaya, encontrar primo. Por favor?



— Por que não, Nakama, meu velho?



McFay não visitava a aldeia há meses, embora estivesse dentro da área combinada na instalação da colônia, e sentira-se contente pela desculpa. Poucos merrcadores se aventuravam tão longe, agora, sem uma escolta militar, o assassinato de Canterbury e o destino de Malcolm Struan sempre presentes em seus pensamentos.



McFay sentia-se muito bem hoje. Na última correspondência, uma declaração de seus banqueiros em Edimburgo levara-o a descobrir que se encontrava em melhor situação do que imaginara, tinha mais do que suficiente para começar por conta própria, em pequena escala. A Casa Nobre estava em boas mãos e isso o agradava. O novo gerente da Struan, Albert MacStruan, chegara de Xangai. Ele o conhecera em Hong Kong, três anos antes, quando MacStruan ingressara na companhia. Depois de seis meses de treinamento em Hong Kong, sob o comando de Culum Struan, ele fora para Xangai, onde logo se tornara o vice-diretor.



— Seja bem-vindo a Iocoama — dissera Jamie, com sinceridade. Gostava dele, embora soubesse muito pouco a seu respeito, exceto que era competente no que fazia, e seu ramo do clã era Highlander, uma linhagem de sangue escocês e espanhol, de um dos milhares de espanhóis da Invencível Armada que haviam naufragado ao largo da Escócia e Irlanda, e sobreviveram, mas nunca retornaram a seu país.



Aqui ele seria considerado eurasiano, embora ninguém o afrontasse. Circulavam rumores de que era outro dos filhos clandestinos e ilegítimos de Dirk Struan enviado secretamente para a Escócia pelo pai, com um meio-irmão, Frederick MacStruan, ambos recebendo vultosos legados, pouco antes da morte de Dirk.



— Lamento muito revê-lo nestas circunstâncias terríveis, meu caro.



O sotaque de MacStruan era aristocrático, Eton e Universidade de Oxford, com um vestígio de escocês. Tinha vinte e seis anos, moreno, atarracado, pele dourada, malares salientes, olhos escuros. Jamie nunca o interrogara sobre o mito, nem MacStruan tomara a iniciativa de revelar qualquer coisa. Quando Jamie chegara a Hong Kong, quase vinte anos antes, fora advertido por Culum Struan, então o tai-pan, que ali não se faziam perguntas, em particular sobre os Struan.



— Temos muitos segredos, muitos atos tenebrosos que preferimos esconder. Ao receber o novo gerente da Struan em Iocoama, Jamie respondera:



— Está tudo em ordem, e não precisa se preocupar comigo, Sr. MacStruan. Sinto-me ansioso por uma mudança.



E embora não mais pertencesse formalmente à Casa Nobre, ainda o ajudava, pondo-o a par das operações e projetos, e apresentando-o, junto com Vargas, aos fornecedores japoneses. Os livros se encontravam em boa ordem, o negócio de carvão com Johnny Cornishman começara sem problemas, e deveria se tornar bastante lucrativo, carvão da melhor qualidade, com o acerto adicional de encher uma barcaça por semana, durante os três meses subseqüentes, como um período de experiência.



Generoso, MacStruan lhe concedera uma participação de vinte por cento dos lucros no primeiro ano e também aprovara o acordo que ele fizera com Cornishman.



— ...caso o patife ainda esteja vivo — comentara ele, com uma risada. Graças a Hiraga, as negociações secretas de Jamie com o shoya haviam desabrochado e fora formada, em princípio, a primeira companhia: I.S.K. Trading — Ichi Stoku Kompeni —, a esposa do shoya considerando que era mais prudente não usar seu próprio nome. A participação fora dividida em cem partes: o shoya tinha quarenta, McFay tinha quarenta, a esposa de Ryoshi quinze, e Nakama — Hiraga — cinco.



Na semana passada ele registrará sua própria companhia, amanhã abriria para negócios em escritório temporário no mesmo prédio que alojava o Guardian, de Nettlesmith. Há uma semana agora, o filho mais velho de Ryoshi, tímido, nervoso, com dezenove anos, apresentava-se para o trabalho às sete horas da manhã, todos os dias, e saía às nove horas da noite, ansioso em aprender tudo. O inglês em particular. E na última correspondência chegara um inesperado pagamento final de três meses, com um bilhete polido de Tess Struan, agradecendo nelos serviços prestados. Três meses não é tão ruim assim por dezenove anos, pensara ele, divertido.



Ainda não chegara notícias de Hong Kong, era cedo demais, embora o Prancing Cloud já devesse ter atracado ali há dez dias, ou mais, Hoag cerca de uma semana. Mais quatro ou cinco dias, no mínimo, para se ouvir qualquer coisa, talvez mais, e uma tremenda tempestade que se dizia estar acontecendo nos mares do sul da China podia atrasar ainda mais. Não adiantava tentar prever datas e tempo.



Um dia teremos telegrafia para Hong Kong e um dia, talvez, o fio se estenda até Londres. Por Deus, que vantagem para todo mundo poder enviar uma mensagem para Hong Kong e receber a resposta em poucos dias — e até Londres e de volta... em quanto tempo?... digamos doze a dezesseis dias —, em vez de quatro meses! Não será no meu tempo, mas aposto que a telegrafia chega a Hong Kong em mais dez ou quinze anos. Um hurra para Nakama e meu sócio Ryoshi, um hurra para minha nova companhia, a McFay Trading. E um hurra para Angelique.



Apesar do luto profundo, no dia de Natal ela concordara em participar do jantar que ele oferecera a Albert MacStruan, e que contara também com a presença de Sir William, Seratard, André e quase todos os outros ministros. Fora um discreto sucesso. Embora ela não exibisse sua jovialidade anterior, e pouco da sua personalidade antiga, ainda assim fora graciosa e doce, e todos comentaram que se tornara ainda mais bela em sua nova maturidade. Naquela noite haveria uma grand soirée na legação francesa, a que todos haviam sido convidados. André tocaria. Era duvidoso que Angelique dançasse; as apostas eram de dez contra um. Se ela estava grávida ou não, as apostas eram de igual para igual. Ninguém mencionava Hong Kong. Desde a aventura no mar, e da habilidade com que ela cuidara de Sir William, haviam se tornado amigos firmes, e jantavam juntos, em particular, quase todas as noites.



Um hurra para o ano-novo, que será maravilhoso!



Apesar de seu bom humor, ele sentiu uma pontada de aflição. Os negócios andavam difíceis, a guerra civil grassando outra vez em torno de Xangai, a peste em Macau, a guerra civil americana cada vez pior, fome na Irlanda, rumores de fome aqui no Japão, distúrbios nas Ilhas Britânicas por causa do desemprego e dos diários nas fábricas. E há também Tess Struan...



Droga! Prometi a mim mesmo que não me preocuparia com ela a partir de 1o de janeiro de 1863! Nem com Maureen...



Para escapar à ansiedade, ele usou as esporas. No mesmo instante, Hiraga fez a mesma coisa, os dois bons cavaleiros. Era a primeira vez que Hiraga cavalga em muito tempo, a primeira oportunidade de se movimentar em relativa liberdade pela colônia. Ele seguiu por algum tempo emparelhado com Jamie e depois se adiantou. Muito em breve os dois galopavam na maior felicidade. E logo se descobriram sozinhos, os outros tendo se desviado para a pista de corrida. Diminuíram o ritmo, desfrutando o dia.



Podiam divisar à frente a sinuosa Tokaidô, interrompida aqui e ali por rios na cheia, os carregadores nos dois lados esperando pelas barcas que transportariam as mercadorias e pessoas sobre as águas. Hodogaya ficava para o sul. Suas barreiras estavam abertas. Nos bons tempos antigos, antes dos assassinatos durante a primavera e outono, os mercadores visitavam a aldeia em busca de saquê e cerveja, levando cestos de piquenique, rindo e flertando com as levas de criadas que procuravam atraí-los para seus bares e restaurantes. Não eram bem-vindos nos muitos bordéis.



— Ei, Nakama, onde vai se encontrar com seu primo? — perguntou Jamie. Ele parou o cavalo nos arredores da aldeia, não muito longe da barreira, mais do que consciente da hostilidade dos viajantes. Mas não se sentia preocupado. Estava armado, ostensivamente, com um revólver num coldre no ombro... e Hiraga não levava nenhuma arma ou, pelo menos, ele assim pensava.



— Eu procurar ele. Melhor ir sozinho outro lado barreira, Jami-sama. Hiraga experimentara intensa alegria ao receber a mensagem de Katsumata, ao mesmo tempo em que sentia profundas apreensões, pois era perigoso deixar a proteção de Sir William e Tyrer. Mas precisava descobrir notícias sobre Sumomo e os outros, saber o que acontecera de fato em Quioto e qual era o novo plano dos shishi. Todos os dias, o shoya sacudia a cabeça:



— Sinto muito, Otami-sama, ainda não tenho notícias sobre Katsumata ou Takeda... nem sobre a moça Sumomo ou Koiko. Lorde Yoshi permanece no castelo de Iedo. No momento em que eu souber de alguma coisa...



Ainda com o rosto encoberto, Hiraga gesticulou para que Jamie seguisse na frente.



— Por favor. Depois eu descobrir bom lugar você esperar.



Os guardas na barreira observaram-nos desconfiados, fizeram uma reverência ligeira, aceitaram suas saudações. Hiraga estremeceu, vendo um cartaz muito parecido com ele afixado numa parede. Jamie não notou e Hiraga duvidava que ele — ou os outros — pudesse reconhecê-lo, com o bigode e o corte de cabelo europeu.



Hiraga parou na primeira estalagem. Usando um japonês precário e imitando a rispidez de outros mercadores, Hiraga foi se instalar a uma mesa no jardim, pediu chá, saquê e cerveja, alguns alimentos japoneses, dizendo à criada para providenciar que não o incomodassem, o que lhe valeria uma boa gorjeta. A criada manteve os olhos abaixados, mas Hiraga tinha certeza de que ela vira seus olhos, e sabia que se tratava de um japonês.



— Jami-sama, eu voltar poucos minutos — disse Hiraga.



— Não se demore muito, meu velho.



— Sim, Jami-sama.



Hiraga saiu para a estrada, encaminhou-se para o outro lado da barreira. Sentiu-se irritado com os maus modos e a hostilidade geral, uns poucos samurais beligerantes e alguns viajantes forçando-o a se desviar, o que ele fizera. Ao mesmo tempo, sentia-se satisfeito porque todos o tomavam por gai-jin e seu escrutínio de cada restaurante e bar como grosseira curiosidade gai-jin. A mensagem cifrada de Katsumata dizia: “Venha a Hodogaya, em qualquer manhã dos próximos três dias. Eu o encontrarei.”



Sentindo que atraía muita atenção, como de fato ocorria, ele passou por pessoas flanando, sentadas em bancos ou às mesas, inclinadas sobre braseiros, que sempre lhe lançavam olhares irados e insolentes. De repente, ouviu o assobio baixo, o sinal combinado. Era muito bem treinado para reconhecê-lo e experiente demais para não se virar. Parecia vir do lado esquerdo. Com cansaço simulado, ele escolheu um banco afastado da rua, no restaurante mais próximo, e pediu uma cerveja. A criada trouxe no mesmo instante. Nas proximidades, os camponeses que comiam tijelas matutinas de papa de arroz, junto com saquê quente, trataram de se afastar, como se ele fosse portador da praga.



— Não se vire ainda — murmurou Katsumata. — Não o reconheci. Seu disfarce é perfeito.



— O seu também deve ser, sensei — respondeu Hiraga, baixinho, mal mexendo os lábios. — Por duas vezes esquadrinhei este lugar com toda atenção.



A risada, bem conhecida e admirada.



— Largue alguma coisa no chão e, ao pegá-la, olhe ao redor por um instante. Hiraga obedeceu e por um instante viu o único homem ao alcance de sua voz, um ronin de aparência desvairada, barbudo, olhar venenoso, com uma cabeleira imunda, fitando-o com um olhar irado. Ele tornou a virar as costas e murmurou:



— Puxa, sensei!



— Não mais “sensei”. Há pouco tempo, Hodogaya pulula de vigilantes e espiões. Onde podemos nos encontrar em segurança?



— Na nossa Yoshiwara... casa das Três Carpas.



— Estarei lá em dois ou três dias... é vital criar um incidente com os gai-jin, depressa. Pense a respeito.



— Que tipo de incidente?



— Bem grave.



— Está bem. Fiquei aliviado ao receber sua mensagem... não sabíamos que viria para cá. Houve rumores incríveis sobre lutas em Quioto... Akimoto se encontra comigo, mas estamos sozinhos, e perdemos muitos shishi em nossos ataques em Iedo. Há muito que contar sobre Iedo e os gai-jin. Em poucas palavras, O que aconteceu em Quioto? Sumomo, como ela está?



— Quioto foi ruim. Antes de partir, entreguei Sumomo a Koiko, que voltava para cá, com Yoshi, a fim de espioná-lo, e descobrir quem nos traía... deve ser um dos nossos homens... uma oportunidade boa demais para perder e também para tirá-la de Quioto sã e salva. — Os olhos de Katsumata não cessavam de inspecionar os outros homens, embora não estivessem próximos, e evitassem olhar em sua direção. — Desfechamos dois ataques contra Yoshi, ambos fracassaram, nossa casa segura foi traída, Ogama e Yoshi, operando juntos, nos emboscaram. E nós...



— Puxa! — murmurou Hiraga, bastante preocupado. — Eles se tornaram aliados?



— Por enquanto. Perdemos muitos líderes e homens, darei os detalhes mais tarde, mas nós, Sumomo, Takeda, eu e alguns outros conseguimos escapar. Estou contente por vê-lo, Hiraga. Vou embora agora.



— Espere. Ordenei que Sumomo voltasse para Choshu.



— Ela me trouxe informações valiosas sobre a situação aqui e sobre Shorin e Ori. Sugeri que continuasse até Choshu, mas ela quis ficar, pensando que poderia ajudá-lo. Como está Ori?



— Morto. — Ele ouviu Katsumata praguejar, Ori fora o seu discípulo predileto. — Os gai-jin o fuzilaram quando tentava arrombar uma de suas casas.



Hiraga falava depressa, seu nervosismo aumentando.



— Há um rumor aqui de que houve um ataque shishi a Yoshi em Hamamatsu, que Koiko morreu na confusão e mais uma pessoa. Quem era?



— Sinto muito, mas foi Sumomo. — A cor se esvaiu do rosto de Hiraga, enquanto Katsumata acrescentava: — Koiko traiu-a, a prostituta denunciou-a a Yoshi e com isso traiu a sonno-joi e a nós. Mas ela morreu com o shuriken de Sumomo em seu peito.



— Como Sumomo morreu?



— Como uma shishi. Será lembrada para sempre. Lutou com Yoshi, usando o shuriken e a espada longa, quase o matou. Era essa a sua missão... se fosse traída.



Portanto, Sumomo tinha uma missão, pensou Hiraga, com súbita percepção, todo o seu ser um vulcão — você esperava que ela fosse traída e ainda assim a enviou para o perigo. Havia um aperto em sua garganta. Ele forçou-se a fazer a pergunta essencial:



— Como eles a sepultaram? Foi com honra?



Se Toranaga Yoshi não a tivesse honrado depois da luta e morte com bravura, então ele o caçaria, com a exclusão de todo o resto, até que um dos dois morresse. Hiraga era o líder dos shishi de Choshu, o contingente mais forte. Sumomo, embora de Satsuma, declarara sua fidelidade a ele e a Choshu.



— Por favor, tenho de saber, foi com honra?



Ainda não houve resposta. Hiraga olhou ao redor. Katsumata desaparecera O choque de Hiraga foi ostensivo. Os outros fregueses o fitavam em silêncio. Um grupo de samurais observava-o de um canto. Os cabelos de sua nuca se arrepiaram. Ele jogou algumas moedas na mesa, a mão na pistola escondida, e voltou pelo caminho por que viera.







Naquela tarde, havia um ar de premonição por todo o castelo de Iedo. Yoshi seguia apressado o doutor chinês por um corredor, acompanhado por Abeh e quatro guardas samurais. O doutor, alto e muito magro, usava uma túnica comprida, os belos grisalhos presos num rabicho. Subiram uma escada, avançaram por outro nedor, até que o doutor parou. Guardas hostis postavam-se à frente, as mãos em suas espadas, todos fitando Yoshi e seus homens.



— Sinto muito, lorde Yoshi — disse o oficial —, mas as ordens do tairo são para não deixar ninguém passar.



— E minhas ordens foram para ir buscar lorde Yoshi — disse o doutor, o medo lhe proporcionando uma falsa coragem.



— Pode passar, lorde Yoshi — decidiu o oficial, com um ar sombrio. — Mas seus homens não podem.



Embora inferiorizados, Abeh e seus homens estenderam a mão para as espadas.



— Parem! — disse Yoshi, muito calmo. — Espere aqui, Abeh.



Abeh sentia a maior preocupação, a adrenalina aumentando, a par dos rumores no castelo de que seu líder estava prestes a ser preso, rumores que Yoshi desdenhara.



— Por favor, Sire, desculpe-me, mas pode ser uma armadilha, os samurais do outro lado se empertigaram ao insulto.



— Se for, pode matar todos estes homens — respondeu Yoshi, com uma risada.



Ninguém mais riu. Ele gesticulou para que o doutor seguisse adiante, tendo decidido que, se tentassem desarmá-lo, tratariam de lutar e morrer agora.



Deixaram-no passar, sem ser molestado. O doutor abriu a porta no outro lado, fez uma reverência para que Yoshi passasse. Yoshi não tinha a mão no punho da espada, mas se preparou para um assassino por trás da porta. Não havia nenhum. Apenas quatro guardas, em torno dos futons, no cômodo grande. Deitado ali, encolhido de dor, estava Anjo.



— E então, guardião do herdeiro — disse ele, a voz fraca, mas impregnada de veneno —, tem informações?



— Para seus ouvidos apenas.



— Espere lá fora, doutor, até eu chamá-lo.



O doutor fez uma reverência e se retirou, contente por sair. Aquele paciente era insuportável, ele o desprezava, e como morria lentamente, só lhe restando umas poucas semanas ou meses, não haveria honorários. Na China, era esse o costume, não havia honorários sem cura, e o mesmo acontecia aqui.



Os guardas não haviam se mexido. Nem o fariam. Os quatro eram guerreiros famosos e de absoluta lealdade. Yoshi perdeu um pouco de sua confiança. Ajoelhou-se, fez uma reverência polida. Naquela manhã, depois que Inejin se se tirara, ele mandara uma mensagem a Anjo, pedindo uma reunião urgente, para lhe transmitir informações importantes.



— E então, Yoshi-dono?



— Estive ontem num dos navios de guerra dos gai-jin e...



— Eu já sabia. Acha que sou um tolo e não sei o que você anda fazendo. Disse que eram informações médicas.



— O doutor gai-jin em Kanagawa. Os furansu disseram que ele tem feito curas milagrosas; eu o trarei para cá, com sua permissão.



— Não preciso de você para isso. — Em agonia, Anjo soergueu-se num cotovelo. — Por que se mostra tão solícito, quando me quer morto?



— Não morto, mas com boa saúde, tairo-dono. É importante tê-lo com boa saúde.



Yoshi fazia um esforço para se controlar, abominando aquele homem e aquele aposento, com seu fedor de morte, diarréia e vômito... e ao mesmo tempo receando ter calculado errado. Aquilo podia muito bem ser sua armadilha fatal, caso o homem doente desse a ordem.



— Por que ficar doente, se pode ser curado? Além disso, eu queria lhe dizer que descobri o plano de batalha dos gai-jin, não no navio, mas na manhã de hoje.



— Que plano, hem? Como conseguiu?



— Não importa, exceto que eu sei, e assim você também sabe agora. Yoshi relatou a substância do plano, com precisão, mas deixou de fora a parte sobre os dez dias de graça depois do ultimato.



— Então devemos partir! — A voz de Anjo se tornou mais estridente. Os guardas se agitaram, nervosos. — Os roju devem ir embora em segredo, imediatamente. Fixaremos residência em... Hodogaya. Assim que estivermos sãos e salvos, incendiaremos a colônia à noite, surpreendendo-os em suas camas. Que cães! Eles merecem uma morte infame, sem honra. Vamos queimá-los, matar todos que escaparem, e voltar para cá, depois que a esquadra bater em retirada. E na primavera estaremos preparados. Incendiaremos Iocoama amanhã. — Os olhos de Anjo faiscaram, um filete de saliva molhou seu queixo. — Você terá a honra de comandar o ataque. Organize-o, desfeche a ofensiva amanhã ou no dia seguinte.



No mesmo instante, Yoshi fez uma reverência em agradecimento.



— Aceito a honra, com a maior satisfação, e enquanto estiver organizando, tenho uma idéia: primeiro, sua saúde. Traga o doutor gai-jin até aqui, os nossos são inúteis e os furansu juram que o homem é um curador milagroso. Posso ir buscá-lo depressa, na maior discrição, amanhã, se permitir. Por que sofrer uma dor desnecessária? O doutor gai-jin vai curá-lo. Uns poucos dias extras não vão interferir com sua sábia estratégia de ataque. Até que esteja bom, para comandar, devemos manter os gai-jin desconcertados. Posso fazer isso, enquanto preparamos o ataque.



— Como?



— Ao me pôr na armadilha deles.



— O quê?



O ligeiro movimento de Anjo, para ver Yoshi melhor, levou-o a morder o lábio para prevenir um grito de dor.



— Assumirei o risco de me entregar nas garras deles, promovendo um encontro, com apenas um de dois guardas. No navio, descobri que eles estão prestes a nos atacar, de maneira insensata. Devemos evitar isso, a qualquer custo, tairo. Eles são tão perigosos quanto um cardume de tubarões famintos.



Isso foi dito com toda a sinceridade que Yoshi podia exibir. Ele acreditava no oposto: que os gai-jin se mostravam dispostos a negociar, a fazer concessões, sem querer a guerra, a menos que fossem pressionados longe demais... como a loucura de atacá-los.



— O risco será meu — acrescentou Yoshi, balançando a isca, com uma simulação de medo. — Se me mantiverem como refém, isso fará com que todos os daimios corram em seu apoio. Se não o fizerem, não importa, pois de qualquer forma você esquece que sou refém e os ataca... tudo isso, é claro, com a sua permissão, tairo.



O silêncio se tornou opressivo. Outro espasmo. Depois, Anjo balançou a cabeça em concordância e acenou com a mão, dispensando-o.



— Vá buscar o doutor gai-jin sem demora e prepare o ataque imediatamente.



Yoshi fez uma reverência, humilde, e fez um esforço, muito difícil, para não gritar de alegria.


52





KANAGAWA





Sexta-feira, 2 de janeiro:





Enquanto Yoshi se aproximava a cavalo da entrada da legação em Kanagawa, à frente da pequena procissão, Settry Pallidar, o oficial no comando da guarda de honra, gritou:



— Apresentar armas!



Ele fez a saudação com sua espada. Os soldados tiraram os fuzis do ombro, assumiram a posição de apresentar armas, e permaneceram imóveis: trinta guardas, trinta highlanders de kilt e sua tropa de dragões montados, todos garbosos.



Yoshi retribuiu à saudação com o chicote de montaria, ocultando sua ansiedade por ver tantos soldados inimigos, com tantos fuzis impecáveis. Nunca, em toda a sua vida, estivera tão desprotegido. Só Abeh e dois guardas, também montados, o acompanhavam. Mais atrás vinha um palafreneiro a pé e uma dúzia de carregadores suados e nervosos, com pesados fardos pendurados em varas. Os outros guardas esperavam na barricada.



Ele vestia-se todo de preto: armadura de bambu, elmo leve, túnica de ombros largos, duas espadas... até mesmo seu pônei era preto. Mas os arreios, rédeas e manta eram deliberadamente vermelhos, realçando o preto. Ao passar por Pallidar, cruzando os portões, Yoshi notou que os frios olhos azuis pareciam de peixe morto.



Nos degraus por cima do pátio de terra batida ele avistou Sir William, flanqueado por Seratard e André Poncin num lado, o almirante, o Dr. Babcott e Tyrer no outro... assim como ele pedira. Todos se vestiam com os melhores trajes, de cartola, casacos de lã contra a manhã úmida, o céu nublado. Yoshi correu os olhos por todos, detendo-se por um momento em Babcott, impressionado com sua enorme altura, depois parou o cavalo, fez uma saudação com o chicote. Todos fizeram uma reverência, também casual, menos o almirante, que bateu continência.



No mesmo instante, Sir William, com Tyrer logo atrás, desceu os degraus para cumprimentá-lo, sorrindo... ambos disfarçando sua surpresa pela guarda mínima. O palafreneiro se adiantou para segurar a cabeça do pônei. Yoshi desmontou pelo lado direito, como era costumeiro na China, e, portanto, ali também.



— Seja bem-vindo, lorde Yoshi, em nome de sua majestade britânica —disse Sir William.



Tyrer traduziu no mesmo instante.



— Obrigado. Espero não estar lhes causando qualquer problema — respondeu Yoshi, iniciando sua parte do ritual.



— Não, Sire, a honra é nossa. Sua presença é uma grande satisfação para nós. Yoshi notou a melhoria no sotaque e no vocabulário de Tyrer e se sentiu ainda mais determinado a neutralizar o traidor Hiraga, que usava ali o pseudônimo de Nakama, como Inejin descobrira.



— Por favor, lorde Yoshi, aceita um chá? — acrescentou Tyrer.



Os dois já haviam fechado os ouvidos às frases sem importância, concentrando-se um no outro, procurando indicações que pudessem ajudá-los.



— Ah, Serata-dono, é um prazer tornar a vê-lo tão cedo — disse Yoshi, jovial, embora se sentisse irritado por estar de pé, tendo de erguer os olhos para fitá-los, já que eram em geral uma cabeça mais altos, e isso o deixava com uma sensação de ser inferior, embora olhasse de cima para a maioria dos japoneses. — Obrigado.



Ele acenou com a cabeça para André, depois para Seratard, que respondeu com uma reverência formal, Tyrer traduzindo.



— Meu superior Seratard o cumprimenta, Sire, em nome de seu amigo, imperador dos furansu, rei Napoleão III. Uma honra estar a seu serviço, Sire.



No momento em que deixara o tairo Anjo, Yoshi despachara Misamoto com uma carta para Seratard, pedindo-lhe que providenciasse reunião urgente e particular, embora formal, com Seratard, Sir William, o comandante-em-chefe da esquadra, o médico de Kanagawa e os intérpretes André e Tyrer... mais ninguém. Chegaria informalmente, com uma escolta mínima, e solicitava que as cerimônias fossem mínimas.



— O que acha disso, Henri? — indagara Sir William, quando Seratard o procurara, assim que André traduzira a carta.



— Não sei. Ele é um homem impressivo. Esteve a bordo de nosso navio durante quatro horas e, assim, tivemos a oportunidade de estudá-lo com a maior atenção... talvez você queira uma cópia do meu relatório.



— Obrigado. — Sir William sabia que o relatório seria recomposto, com a eliminação de todas as informações importantes... como ele próprio faria. Tinha ligeiro resfriado e espirrara. — Desculpe.



— Como guardião do herdeiro, um dos anciãos, de uma antiga família real Japonesa... até mesmo ligado ao micado, o imperador, cuja função, o que talvez não saiba, é religiosa... esse homem é muito bem relacionado e importante no xogunato. Por que não o recebemos?



— É o que farei — respondera Sir William, secamente, muito à frente das informações de Seratard, pois passara muitas horas pressionando Nakama por detalhes dos mais destacados soberanos e suas famílias, de Toranaga Yoshi em particular. — Atenderemos ao seu pedido. Parece interessante que ele queira a presença de Ketterer, hem? Isso cheira mal. Iremos de barco e levaremos algumas tropas de elite, como se fossem uma guarda de honra, além de mandarmos a Pearl se postar ao largo.



Mon Dieu! Suspeita de uma armadilha?



— Pode ser uma manobra astuciosa, arriscando um cavalo para destruir a nossa estrutura de comando. Seria fácil infiltrar samurais... Pallidar diz que eles estão entrincheirados nos dois lados da Tokaidô, daqui até Hodoyama, e além. Não farejo uma armadilha, mas não custa nada nos precavermos. Nada de tropas francesas, meu velho. Sinto muito, Henri, mas não insista. Por que ele quer falar também com Babcott?



— Em nome da França, propus que instalássemos um hospital para eles, a fim de consolidar os vínculos. Ele ficou muito satisfeito... ora, William, isso não importa, você não pode pensar em tudo. Falamos sobre Babcott, que tem alguma reputação. Talvez Yoshi queira consultá-lo.



Seratard não vira motivo para divulgar a informação, que André descobrira, sobre os problemas de saúde do tairo.



O chá japonês foi servido na grande sala de audiência. Sentaram como o protocolo determinava e prepararam-se para a interminável polidez, que se prolongaria por uma hora. Um gole de chá e todos ficaram espantados ao ouvirem Yoshi declarar:



— O motivo para eu pedir esta reunião particular, com a ajuda de Serata-dono... naturalmente em nome do tairo e do Conselho de Anciãos... é porque chegou o momento de fazer algum progresso em nossas boas relações.



Ele parou e disse bruscamente para Tyrer:



— Por favor, traduza isso primeiro, depois continuarei.



Tyrer obedeceu.



— Primeiro, o doutor-sama, pois o resto de nossa reunião não o envolve. De propósito, Yoshi esperara três dias para procurar o médico. Não havia necessidade de se apressar, pensara ele, cínico: Anjo proclamou que não necessitava de mim para conseguir esse encontro, pois que se aflija agora!



Abruptamente, ele sentiu um frio no estômago ao pensar nos riscos desnecessários que assumira, pondo-se à mercê de Anjo, que a cada dia se tornava mais perigoso. Fora uma estupidez concordar em comandar o ataque e planejá-lo — essa parte feita com a maior facilidade — pois agora teria de levá-lo a cabo, a menos que tivesse astúcia, hoje, para levar os bárbaros a fazer o que queria.



— O doutor poderia fazer o favor de me acompanhar até Iedo, a fím de examinar um importante paciente, cujo nome não pode ser enunciado? Garanto o salvo-conduto.



Sir William disse:



— Uma pessoa tão importante como o doutor-sama não pode ir sem uma escolta.



— Compreendo isso, mas neste caso, sinto muito, não é possível. — Sentado agora no mesmo nível dos outros homens, a exceção de Babcott, Yoshi sentia-se mais à vontade. — Garanto o salvo-conduto.



Sir William fingiu franzir o rosto em preocupação.



— O que me diz, George?



Já haviam discutido essa possibilidade.



— Eu concordaria em ir sozinho, Sir William. Um dos meus assistentes me contou que circulam rumores que o tairo está doente. Pode ser ele.



— Se você pudesse curar aquele patife... ou envenená-lo... não sei qual das duas coisas é melhor. Estou brincando, é claro.



— Não é um risco, não para mim. Só sou valioso vivo e não sirvo como refém. E curar uma pessoa muito importante seria ótimo para nós.



— Concordo. Tocaremos de ouvido. Por falar nisso, soube que Angelique o procurou ontem.



— Parece que toda a colônia já soube. É o oitavo que me fala a respeito. Ela tinha um resfriado, você está resfriado, todo mundo tem um resfriado com este tempo... e mesmo que tivesse me consultado por qualquer outro motivo, é e sempre seria confidencial. Portanto, desista.



Sir William sorriu para si mesmo, ao recordar como fungara, e protestara que não queria saber de questões particulares, como uma possível gravidez. Não faltavam muitos dias agora, e a colônia toda se encontrava nervosa, ninguém disposto a apostar muito dinheiro em qual seria o “Dia G” ou se não haveria nenhum... e menos de cinco dias para chegar o primeiro despacho de Hong Kong sobre Malcolm, o funeral, e o que Tess Struan tencionava fazer.



Sir William forçou sua mente a voltar às questões imediatas. Babcott estava dizendo a Yoshi, num japonês titubeante:



— Sim, ir Iedo, lorde Yoshi. Quando ir, por favor?



Yoshi respondeu, a voz pausada:



— Quando eu partir, doutor-sama. Obrigado. Sou responsável por você. Garantirei sua volta são e salvo. Precisará de um intérprete, não é?



— Sim, por favor, lorde Yoshi — respondeu Babcott, sem precisar. Ele olhou para Tyrer. — Você é o escolhido, Phillip.



Tyrer sorriu.



— Eu ia me oferecer como voluntário.



— Pergunte a ele por quanto tempo ficarei lá.



— Ele diz que o tempo necessário para fazer um exame.



— Então isso está acertado — interveio Sir William



— Vou deixá-los agora. Tenho uma clínica para cuidar; saberão onde me encontrar, se precisarem de mais alguma coisa.



Babcott fez uma reverência para Yoshi, que retribuiu. O médico se retirou. Escolhendo suas palavras com todo cuidado, tentando falar da maneira mais simples possível, Yoshi continuou:



— Os carregadores lá fora trouxeram caixas com moedas de prata, no valor de cem mil libras. O dinheiro é oferecido pelo xogunato como aceito total da indenização que vocês exigiram do daimio responsável. Em princípio, o xogunato considera que é essa a quantia correta. — Ele escondeu sua diversão pelo choque de Tyrer e André. — Traduza exatamente o que eu disse.



Tyrer tornou a obedecer, não exatamente palavra por palavra desta vez, mas fez um relato verossímil, ajudado aqui e ali por André. Houve um silêncio aturdido na sala.



— Sire — murmurou Tyrer —, meu superior pergunta se ele responder agora ou Yoshi-sama dizer mais?



— Mais. O xogunato adianta esse dinheiro por conta de Sanjiro de Satsuma. Ele é o único responsável. Como já expliquei antes, ele não está sujeito ao controle do xogunato... em todas as coisas. Traduza.



O que foi feito de novo. Ele viu que os dois líderes ficaram desconcertados, como previra. O que era satisfatório, mas não dissipava sua ansiedade.



— Não podemos obrigar Sanjiro de Satsuma a cancelar quaisquer ordens que ele possa ou não ter dado a seus homens sobre os gai-jin... nem mesmo a pedir desculpas... ou forçá-lo a nos reembolsar o dinheiro que estamos adiantando para resolver esse problema, sem desfechar uma guerra contra ele. Não estamos preparados para isto.



A tradução exigiu tempo para ser acurada, outra vez com a ajuda de André, consciente da tensão, e da maneira como todos se concentravam.



— Sire?



— Diga isso com precisão e cuidado: querendo ter amizade com os ing’erish e os furansu, o xogunato resolveu o que o xogunato pode resolver... sem entrarem guerra.



Yoshi inclinou-se para trás, especulando se a isca seria bastante suculenta. Seus últimos comentários foram recebidos em silêncio. Ele notou que Sir William mantinha-se impassível agora, exceto por um grunhido quase inaudível. Mas Seratard balançou a cabeça e olhou para André.



Exultante por dentro, Sir William esperou que Yoshi continuasse. Como isso não acontecesse, ele disse:



— Phillip, pergunte a lorde Yoshi se ele quer continuar ou se posso responder agora.



— Ele diz que não deseja continuar, no momento.



Sir William limpou a garganta e falou com altivez... para consternação de Tyrer:



— Lorde Yoshi, em nome do governo de sua majestade e do governo francês, permita que eu lhe agradeça e ao xogunato pela solução de parte do problema entre nós. Agradecemos pessoalmente, desejando tornar nossa presença aqui feliz e lucrativa para seu país, o xogunato e nós mesmos. Este gesto, sem dúvida, inicia uma nova era de compreensão entre nossos países... e os outros representados no Japão.



Ele esperou enquanto sua declaração era traduzida, com Tyrer e André se desculpando e suplicando a indulgência de Yoshi, pondo a mensagem em termos mais simples, embora da forma mais acurada possível. Quando eles acabaram, Sir William acrescentou:



— Com a permissão dele, eu gostaria de fazer uma pequena pausa. Phillip, ou André, peçam a ele que me desculpe, tudo isso, e expliquem que minha bexiga precisa ser aliviada. É meu resfriado.



Os dois intérpretes apressaram-se em traduzir.



— Claro — respondeu Yoshi, no mesmo instante, mas sem acreditar.



Sir William levantou-se, e Seratard também pediu licença para se retirar. No corredor, a caminho do banheiro, que nenhum dos dois precisava, Sir William sussurrou, excitado:



— Por Deus, Henri, você o interpretou como eu? Ele está dizendo que nós mesmos podemos ajustar as contas com Sanjiro!



Seratard também se sentia exultante.



— É uma inversão completa da política deles, de que tudo deve passar pelo Bakufu e xogunato. Mon Dieu, ele está nos dando carta branca?



Pas ce crétin — disse Sir William, passando a falar em francês, sem percebê-lo. — Se podemos ir para cima de Sanjiro, é um precedente para atacarmos qualquer outro daimio... como o patife do estreito de Shimonoseki. Mas qual é a compensação que o demônio vai querer, hem?



Ele assoou o nariz, ruidoso, antes de acrescentar:



— Tem de haver alguma.



— Não faço a menor idéia. Mas qualquer que seja, mon brave, será excepcional. É espantoso que ele tenha se colocado sob o nosso poder. Nunca pensei que viria com tão poucos homens. Será que não compreendeu que poderíamos tomá-lo como refém contra a atitude de Sanjiro?



— Concordo. Meu Deus, que grande passo à frente! É incrível que ele tenha ido direto ao ponto tão depressa, sem ficar peidando coisas irrelevantes. Nunca pensei que veria esse dia. Mas por quê? Alguma coisa cheira mal.



— Tem razão. Merde, é uma pena que ele não seja o tairo, não é?



Ah, foi o que pensei, meu velho, muito antes de você, disse Sir William a si mesmo. Um pequeno empurrão aqui, um puxão ali, e poderemos, como na índia, jogar uns contra os outros!



Ele se desabotoara e agora, olhando para o fluxo, os ouvidos fechados ao prognóstico adicional de Seratard, organizou seus pensamentos, considerando o que poderia negociar, até que ponto ir, e como levar Ketterer a concordar, sem a aprovação do almirantado ou do Ministério do Exterior. Ora, ele que se dane!



E que se dane Palmerston. Pedi aprovação urgente para impor a lei civilizada; por que ele não respondeu? Provavelmente já respondeu, refletiu Sir William. A mensagem cifrada de Londres seguiu pelo telégrafo até Basra e, agora, se encontra em algum lugar, num navio de correspondência, na mala diplomática. O fluxo cessou. Ele se sacudiu, como sempre, recordando a advertência que recebera como colegial, em Eton:



— Se sacudir mais de três vezes, estará se masturbando.



Apressado, deu um passo para o lado, abrindo espaço a Seratard, abotoando-se. Notou que Seratard era como um cavalo pequeno, em quantidade e potência. Interessante. Deve ser o vinho, pensou ele, voltando à sala de audiência.



O resto da reunião transcorreu na maior jovialidade. Com habilidade e cautela diplomática, contando com a competente ajuda de Seratard, Sir William estabeleceu, de forma indireta, que “se uma força por acaso encetasse alguma ação contra alguém, como Sanjiro, por exemplo, contra sua capital, por exemplo, seria uma ocorrência bastante lamentável, muito embora tal ação pudesse ser merecida, por causa de algum ato de assassinato inaceitável cometido contra cidadãos estrangeiros. Esse ato precipitaria um fluxo de protestos de Iedo, e mereceria um pedido de desculpas formal, se tal ação inconcebível fosse realizada...”



Absolutamente nada foi dito de forma direta, nada que insinuasse que a permissão fora concedida ou solicitada, Não haveria nada por escrito. Esse possível ato hostil, um “caso especial”, só poderia ser contido se o protocolo fosse seguido de modo rigoroso.



A esta altura, Tyrer e André sentiam uma dor de cabeça intensa e por dentro criticavam seus superiores pela quase impossibilidade de traduzir com a forma indireta necessária.



Yoshi mantinha um silêncio extasiado. Sanjiro podia se considerar um homem morto; a primeira barreira fora removida sem qualquer custo.



— Creio que nos compreendemos, e podemos passar para outros assuntos.



— Claro, claro...



Sir William recostou-se, preparando-se para a compensação. Yoshi respirou fundo, e iniciou a ofensiva seguinte:



— Traduzam o seguinte, frase por frase. Expliquem que será pela precisão. Digam também que, por enquanto, esta conversa deve ser considerada um segredo de Estado entre nós. — Vendo o olhar vazio de Tyrer, ele acrescentou: — Compreende segredo de Estado?



Depois de consultar André, Tyrer disse:



— Compreendo, senhor.



— Ótimo. Pois então traduza: estamos de acordo que será um segredo de Estado entre nós?



Sir William pensou: perdido por um, perdido por mil.



— Concordamos.



Seratard também concordou. Tyrer enxugou a testa.



— Pronto, Sire.



Com um controle cada vez mais firme, Yoshi declarou:



— É meu desejo modernizar o xogunato e o Bakufu. Para fazer isso, preciso de conhecimento. Traduzam. A terra dos ing’erish e a terra dos furansu são as acões mais poderosas do mundo exterior. Traduzam. Peço para prepararem diversos planos para ajudar o xogunato a formar uma moderna marinha, com um estaleiro e um moderno exército. Traduzam.



O almirante Ketterer empertigou-se, seu pescoço latejando, como se estivesse pegando fogo.



— Fique quieto — murmurou Sir William, pelo canto da boca. — E não diga nada!



— Também queremos um sistema bancário moderno e fábricas experimentais. Um país sozinho não pode fazer tudo. Vocês são ricos, o xogunato é pobre. Quando os planos forem aceitos, concordarei com um preço justo. Será pago em carvão, prata, ouro e arrendamentos anuais de portos seguros. Eu gostaria de uma resposta provisória em trinta dias, se for do interesse de vocês. No caso de um sim, um ano seria tempo suficiente para que planos detalhados fossem aprovados por seus soberanos?



Era difícil para Yoshi manter o controle externo, e ele especulou o que diriam se soubessem que não tinha autoridade para apresentar essa proposta, nem qualquer meio de implementá-la. A oferta era para persuadi-los a um ano de trégua de qualquer conflito exterior, um prazo de que ele precisava para suprimir a oposição interna ao xogunato, e lidar com seus principais inimigos, Ogama de Choshu e Yodo de Tosa, agora que Sanjiro seria removido.



Ao mesmo tempo, era um salto para o futuro, para o desconhecido, que o assustava e deixava exultante, de uma maneira que não podia compreender. Todas as idéias baseavam-se nas informações que o espião de Inejin obtivera do shoya Ryoshi, que de nada desconfiava, sobre os métodos dos gai-jin, e confirmadas pelo que vira e ouvira no navio de guerra, que era impressionante, mas nem de longe tão grande e mortífero quanto a nave capitânia dos ing’erish.



Odiando a realidade, mas aceitando-a, ele compreendera que a terra dos deuses, por autodefesa, tinha de se tornar moderna. Para isso, precisava negociar com os gai-jin. Abominava-os e desprezava-os, desconfiava deles, mas os gai-jin contavam com meios para destruir o Nipão, no mínimo para lançá-los de volta às guerras civis que haviam se prolongado por séculos, antes que o xógum Toranaga contivesse o bushido, o espírito guerreiro dos samurais.



Ele observou os dois líderes conversarem entre si. E depois viu o líder ing’erish falar para o jovem intérprete, Taira, que disse, em seu japonês exótico, mas compreensível:



— Meu superior agradece, Sire, pela... por confiança. Precisar cento e vinte dias enviar mensagem “Parlamento rainha” e “rei furansu”... e resposta voltar, Ambos líderes ter certeza resposta é sim.



Cento e vinte dias era melhor do que ele esperava.



— Está bem — disse Yoshi, com uma expressão solene, mas tonto de alívio por dentro.



Agora, a melhor parte do plano, pensou ele, vendo-os se prepararem para encerrar a reunião. Um olho por um olho, uma morte por uma morte.



— Por fim, tenho certeza que W’rum-sama não sabe que o homem que ele abriga, chamado Nakama, é um samurai renegado, um ronin e um revolucionário, cujo verdadeiro nome é Hiraga, às vezes chamado Otami. Exijo ele imediatamente. O homem é procurado por assassinato.







Naquele momento, no outro lado da baía, na Yoshiwara de Iocoama, Katsumata disse:



— Hiraga, pensou como podemos enfurecer os gai-jin, um incidente hostil para lançá-los contra o xogunato?



Os dois se achavam sentados frente a frente, numa casinha isolada, nos jardins da casa das Três Carpas.



— Incendiar uma das igrejas seria o mais fácil — respondeu Hiraga, mantendo sua ira bem reprimida, pois Katsumata era muito perceptivo. Ele acabara de chegar, chamado de seu refúgio na aldeia por um criado sonolento. Exceto por umas poucas criadas da cozinha, acendendo o fogo e limpando tudo, não havia mais ninguém de pé. Raiko e suas damas ainda dormiam e poucas acordariam antes de meio-dia. — Isso os deixaria furiosos, mas primeiro deixe-me contar o que consegui realizar aqui...



— Mais tarde. Primeiro, temos de formular um plano. Uma igreja? A idéia é interessante...



Katsumata exibia uma expressão dura e fria, não mais disfarçado, como se apresentara em Hodogaya. Parecia agora um bonzo, um sacerdote budista, o rosto raspado, a não ser por um bigode. A cabeleira era antes uma peruca e desaparecera. A cabeça tinha fios de cabelo curtos como a de um bonzo, ele usava a túnica laranja budista, sandálias e um cinto de contas de oração. A espada longa, com a bainha usada nas costas, estava ao seu lado, sobre os futons, e a mon, as cinco insígnias na túnica, proclamavam que era membro de uma ordem monástica militante.



Essas virtuais ordens militares eram constituídas por samurais que haviam renunciado a essa condição para servir a Buda, em caráter permanente ou temporário, para pregar e vaguear pela terra, fazendo boas ações, sozinhos ou em bandos, punindo assaltantes e bandidos, protegendo os pobres dos ricos e os ricos dos pobres... e alguns mosteiros. O Bakufu e a maioria dos daimios os toleravam, desde que mantivessem sua violência dentro de limites.



Ontem, ao crepúsculo, ele passara pela barreira, arrogante, os documentos falsos perfeitos. Estava um dia atrasado, não era esperado, mas Raiko, no mesmo instante, lhe dera o melhor bangalô disponível. Ao contrário dos outros shishi, o único entre eles, sua família era rica e ele sempre andava com numerosos oban de ouro.



— Uma igreja — repetiu ele, apreciando cada vez mais a idéia. — Eu não teria pensado nisso... deixaríamos uma mensagem, alegando que fora feito por ordem de Yoshi, o tairo Anjo e os roju, como uma advertência para que deixem nossas praias. Precisamos muito de vingança contra Yoshi.



Um pouco de espuma se concentrou nos cantos de sua boa, que ele logo limpou, irritado.



— Yoshi é o arqui-inimigo. Um de nós tem de ir contra ele. Yoshi matou muitos dos nossos guerreiros em Quioto, atirou em alguns pessoalmente. Se eu pudesse emboscá-lo, não hesitaria. Isso também, mais tarde. Portanto, a igreja será incendiada. Ótimo.



Hiraga sentia-se apreensivo, achando Katsumata estranho, diferente. Agora se mostrava impaciente, agindo como se fosse um daimio, e Hiraga um goshi a quem podia dar ordens. Sou o líder dos shishi de Choshu, pensou, irritado ainda mais, não um discípulo sob as ordens de um sensei de Satsuma, por mais renomado que ele seja.



— Isso converteria toda Iocoama num ninho de vespas. Eu teria de ir embora, o que seria péssimo no momento, já que o meu trabalho é muito importante para a nossa causa. A situação aqui é muito delicada, sensei. Concordo que devemos planejar... por exemplo, para onde escaparemos, se precisarmos escapar?



— Iedo. — Katsumata fitou-o nos olhos. — O que é mais importante, sonno-joi ou seu refúgio seguro entre os inimigos gai-jin?



Sonno-joi — murmurou ele, acreditando. — Mas é importante aprendermos o que eles sabem. Conhecer seu inimigo como...



— Não preciso de citações, Hiraga, mas de ação. Estamos perdendo a luta, Yoshi está vencendo. Só temos uma solução: lançar esses gai-jin em ação violenta contra o Bakufu e o xogunato. Isso avançará sonno-joi como nada antes e tem precedência sobre tudo. Precisamos desesperadamente disso, pois assim recuperaremos apoios... e a honra... guerreiros virão em levas para o nosso estandarte, enquanto a vanguarda dos shishi se reagrupa, aqui e em Quioto. Pedirei reforços de Satsuma e Choshu e tornaremos a atacar os portões, para libertar o imperador. E desta vez teremos êxito, porque Ogama, Yoshi e o sórdido xogunato estarão distraídos, enfrentando os gai-jin hostis. Assim que dominarmos os portões, sonno-joi será um fato.



Não havia como duvidar de sua confiança.



— E o que acontecerá se provocarmos os gai-jin, sensei!



— Eles bombardeiam Iedo, o xogunato retalia, atacando Iocoama... e ambos perdem.



— Enquanto isso, todos os daimios correm a apoiar o xogunato, quando os gai-jin voltarem, o que é inevitável.



— Eles não voltariam antes do quarto ou quinto mês, se é que voltarão. Antes disso, teremos os portões e, por sugestão nossa, o imperador terá o maior prazer em entregar o culpado aos gai-jin, Yoshi ou seu chefe, Nobusada, Anjo, e quaisquer outros líderes de que eles precisarem para saciar a sede de vingança. E também por sugestão nossa, o filho do céu concordará em lhes permitir o comércio, sem mais guerra, mas apenas através de Deshima, na enseada de Nagasáqui, como ele fizeram por séculos. — A certeza de Katsumata era total. — É isso o que vai acontecer. Primeiro, a igreja... e que tal um navio?



Hiraga, surpreso, murmurou:



— Como assim?



Sua mente transbordava de argumentos contra as suposições de Katsumata convencido de que não aconteceria assim, ao mesmo tempo em que tentava encontrar um meio de desviá-lo, fazê-lo continuar a viagem até Iedo e retornar dentro de um ou dois meses... as coisas iam muito bem aqui, com Taira e Sir Wrum, Jami-sama e o shoya, e ele não queria arriscar tudo isso. Haveria bastante tempo para enfurecer os gai-jin mais tarde, com a igreja, quando um refúgio se...



— Afundar um navio de guerra os inflamaria, não é?



Hiraga piscou os olhos, aturdido.



— Como... como nenhuma outra coisa.



— Usamos a igreja como uma manobra diversionária, enquanto afundamos um navio, o maior de todos.



Atordoado, Hiraga observou Katsumata abrir uma mochila. Havia quatro tubos de metal, presos com um fio. E estopins.



— Estes tubos contêm explosivos, pólvora de canhão. Um deles, jogado por uma vigia de bombordo ou preso no casco do navio, abriria um rombo; dois seriam um golpe fatal.



Hiraga sentia-se paralisado, todo o resto esquecido. Pegou um tubo. Em sua mão, a bomba parecia pulsar com vida. Havia na extremidade uma pequena abertura para o estopim e, em sua imaginação, ele viu o estopim aceso, seu braço lançando a bomba por uma vigia de bombordo, depois outra... e em seguida se abaixando para o barco, oculto em grande parte pela neblina marinha, afastando-se em silêncio, para depois assistir, são e salvo, à tremenda explosão, as bombas acionando outras cargas, depois o enorme navio afundando.



E, com isso, todos os seus planos.



— É uma idéia incrível, Katsumata — murmurou ele, angustiado. — Precisaríamos escolher o momento da lua oportuno, assim como o mar certo, planejar tudo com o maior cuidado. As melhores épocas seriam a primavera ou início do verão. Depois disso, eu não poderia mais permanecer aqui e... Há muito o que lhe contar sobre o que descobri.



Hiraga quase revelou que sabia agora falar inglês muito bem, mas se conteve a tempo, e acrescentou:



— Só mais umas poucas semanas, e terei concluído tudo aqui. Depois, a igreja e o navio.



— Incendiaremos a igreja e afundaremos o navio amanhã de noite.



— Impossível!



Katsumata divertiu-se com seu choque, e refletiu que era uma pena que Ori estivesse morto e Hiraga vivo... pois Ori era muito superior. Mas também era Satsuma, não de Choshu.



— Quantas vezes devo dizer que a surpresa é a melhor arma dos shishi? Isso e a rapidez decidida. Onde está Akimoto?



— Na aldeia. Achei melhor não trazê-lo.



A mente de Hiraga era um turbilhão. Desde que voltara de Hodogaya, não partilhara seus pensamentos mais íntimos com o primo, apenas que Katsumata lhe dissera que Sumomo morrera, traída por Koiko a Yoshi, não que ele acreditasse que as duas haviam sido lançadas à perdição pelo acaso. Como seremos lançados inutilmente nesse plano delirante, e todo o meu trabalho terá sido em vão.



— Amanhã é cedo demais. Sugiro...



— A igreja será fácil para um homem só. Akimoto. Precisaremos de um barco. Pode arrumá-lo?



— Talvez. — A resposta de Hiraga foi automática, embaçada por incontáveis indagações e temores. — Talvez eu possa roubar um. Sensei, eu...



— Não está pensando com clareza. Um pescador sempre remove os remos quando não está usando seu barco. Não há necessidade disso. Compre um.



Katsumata tirou da manga uma pequena bolsa de seda e a largou na mesa, negligente.



— Hiraga, concentre-se! — exclamou ele, endurecendo a voz. — A vida com os gai-jin o contagiou até que ponto, com todos os demônios, que esqueceu o juramento a sonno-joi? Concentre-se! O plano é bom, o momento é perfeito. Pode comprar um barco?



— Posso... mas, sensei, para onde batemos em retirada?



— A retirada é simples. Três de nós, você, Takeda e eu, afundamos o navio de guerra. Depois, seguimos no barco até um ponto na praia o mais próximo possível de Iedo, e sumimos na cidade.



— E o outro homem, o que incendiará a igreja?



— Ele escapará a pé.



— Precisamos do apoio de mais shishi, pois se trata de grande missão, toda esta área se tornará letal.



— O que torna a fuga mais fácil. Quatro homens serão mais do que suficientes. Vou liderar o ataque ao navio e, se estiver ventando amanhã, o incêndio na igreja poderá destruir toda locoama, uma dádiva adicional. Volte esta noite, trazendo Akimoto, e definirei os planos finais.



— Mas... onde está Takeda?



— Deixei-o em Hodogaya. Chegará aqui esta tarde. Até de noite, Hiraga.



Bruscamente, Katsumata fez uma reverência, dispensando-o. Atordoado, Hiraga retribuiu, por muitos anos fora um discípulo reverente do sensei, mestre espadachim e tático, não podia agora deixar de aceitar a dispensa. Saiu, atravessou a ponte de volta à colônia, passou pela rua da aldeia, alcançou o passeio, foi andando por ali, sem ver nada, a cabeça um tumulto de pensamentos sinistros e impossibilidades, seu futuro liquidado, tudo porque o forasteiro Satsuma se mostrava determinado a forçar o destino.



Mas o sensei tem razão, remoeu ele. Esses dois atos deixariam os gai-jin desvairados, a esquadra investiria contra Iedo, Iedo arderia, Iocoama seria arrasada em retaliação. Dentro de poucos meses, as esquadras voltariam, desta vez com exércitos. Até lá, os shishi não controlariam os portões, mas todo o Nipão estaria em armas. E isso não faria a menor diferença para os gai-jin.



De um jeito ou de outro, teremos de nos abrir para o mundo deles. Os gai-jin já decidiram. Portanto, terão uma base em Iocoama, e também em outros lugares porque possuem o poder de dizimar nossas costas, de fechar nossos portos, para sempre, se assim desejarem, e nenhum Vento Divino nos ajudará.



— Olá, companheiro. Para onde vai?



— Ah... — Hiraga se descobriu diante da legação. — Bom dia, senhor sentinela. Eu ir a Taira-sama.



— Ele não está aqui, companheiro — informou o soldado, bocejando. — Mister Tyrer e o chefe foram a Kanagawa.



— É? — Hiraga olhou através da baía. A paisagem marinha era invernal. Mal dava para avistar Kanagawa. Uma fragata, que ele reconheceu como a Pearl, navegava lentamente ao largo, contra o vento, firme e mortífera. No estreito, a nave capitânia, com seus quarenta canhões de sessenta libras, se encontrava ancorada, a favor do vento. — Eu voltar mais tarde.



Desconsolado, ele se encaminhou para a aldeia, a fim de comprar um escaler. Por mais que desaprovasse, era um shishi acima de tudo.







No início daquela tarde, na sala dos oficiais da Pearl, Seratard bateu seu copo no de Sir William, ambos se congratulando pela reunião.



— Um passo à frente maravilhoso, Henri, meu velho — disse Sir William, jovial. Ele pegou a garrafa, tornou a verificar o rótulo. — Nada mal para um 48. E excelente repasto também.



Na mesa, havia sobras do almoço providenciado pelo chefde Seratard: tortas de pombo frias, quiche, migalhas de pão francês e umas poucas fatias de um Brie devorado, trazido pelo último navio mercante que chegara de Xangai.



— Ainda não posso acreditar que Yoshi tenha oferecido tudo o que ofereceu, Henri.



— Concordo. E maravilhoso é a palavra certa. Nós treinaremos a marinha, vocês cuidam do exército, nós nos encarregamos do sistema bancário e alfândega.



— Sonhador! — interrompeu-o Sir William, com uma risada. — Mas não vamos discutir sobre a divisão. Londres e Paris cuidarão disso. — Ele arrotou, contente, antes de acrescentar: — Tudo se reduzirá ao “quanto”, no final das contas, pois é óbvio que teremos de emprestar os recursos para que comprem nossos navios, fábricas, ou qualquer outra coisa... por mais que eles digam que pagarão.



— É verdade, mas haverá as salvaguardas habituais, receitas de alfândega etc.



Os dois riram.



— Haverá mais do que o suficiente para nossos dois países — comentou Sir William, ainda não acreditando de todo. — Mas quero que me faça um favor, Henri: não provoque o almirante. Já temos problemas suficientes sem isso.



— Está bem, mas ele é tão... ora, não importa. O que me diz de Nakama? Espantoso! Acho que você teve sorte por ele não matá-lo numa noite qualquer, já que é o inimigo número um. O que deu em você para assumir tamanho risco?



— Ele não estava armado e ajudava Phillip a aprender japonês. — Até onde Sir William podia determinar, apenas os quatro, Tyrer, McFay, Babcott e ele próprio, sabiam que o homem falava inglês e não havia razão para partilhar esse segredo. — Além disso, era bem vigiado.



Sir William arrematou num tom de indiferença, embora sentisse uma pontada de angústia ao pensar no perigo que haviam corrido.



— O que fará com ele?



— O que eu disse a Yoshi.



Todos haviam ficado chocados com as revelações de Yoshi — Sir William quase tanto quanto Tyrer —, em particular ao saberem que Nakama era procurado pelo assassinato de Utani, um dos anciãos, entre outros crimes. No mesmo instante, ele dissera:



— Phillip, diga a lorde Yoshi que, tão logo retorne a Iocoama, iniciarei um inquérito formal, e se os fatos forem mesmo como ele diz, entregarei o homem imediatamente às autoridades. Phillip!



Mas Tyrer, mudo de incredulidade, olhava aturdido para Yoshi. André se recuperara depressa e traduzira para ele, tendo tido um sobressalto quando Yoshi lhe respondera em tom ríspido.



— Hum... lorde Yoshi diz: Duvida das minhas palavras?



— Diga que não, absolutamente não, lorde Yoshi. — Sir William mantivera a voz calma, pois percebera os olhos se estreitando. — Mas assim como vocês têm suas leis e costumes, e não podem, por exemplo, ordenar que esse daimio Sanjiro lhes obedeça, também tenho de respeitar nossas leis, que pelos termos do tratado são as leis dominantes em Iocoama.



— Ele diz, Sir William: Ah, sim, os tratados. Neste novo espírito de amizade, ele concorda em lhe conceder o dever de entregar... o assassino. Mandará homens para assumirem a custódia amanhã. Sobre o tratado, senhor, ele diz, disse exatamente, que algumas mudanças são necessárias, podemos discuti-las daqui a vinte dias.



Tyrer interveio, em voz baixa:



— Com licença, Sir William, sobre Nakama, posso sugerir...



— Não, Phillip, não pode. André, diga a ele, exatamente, o seguinte: Teremos o maior prazer em discutir as questões que afetem nossos interesses mútuos a qualquer momento.



Ele escolhera as palavras com o maior cuidado e deixara escapar um suspiro de alívio ao ouvir a resposta:



— Lorde Yoshi agradece, e diz: vamos nos encontrar em vinte dias, se não antes, e agora voltarei para Iedo com o Dr. Babcott.



Concluídos os gestos polidos e as reverências, depois que Yoshi deixara a sala Seratard dissera:



— William, acho que você se esquivou da armadilha com muita habilidade Ele é astuto demais. Meus parabéns.



— Sobre a marinha... — começara o almirante, veemente. Sir William não o deixara continuar:



— Primeiro, deixem-me testemunhar a partida de Babcott e Tyrer. Vamos Phillip!



Lá fora, ele sussurrara.



— Mas qual é o seu problema?



— Nenhum, senhor.



— Então por que faz uma coisa dessas? Por que esquece que seu trabalho é apenas interpretar, não fazer sugestões?



— Desculpe, senhor, mas sobre Nakama...



— Sei que é sobre ele, pelo amor de Deus! Você fez a maior cagada! Pensa que nosso astucioso hóspede não percebeu? Sua função é traduzir o que for dito, manter-se impassível, mais nada! Esta é a segunda vez que tenho de adverti-lo!



— Desculpe, senhor, mas Nakama é importante e...



— Está se referindo a Hiraga ou qualquer outro nome que ele use no momento? Ele é acusado de assassinato. Concordo que tem sido uma fonte de informações, mas um proscrito renegado? Temos sorte por ele não haver nos matado enquanto dormíamos, já que podia vaguear à vontade pela legação!



— O que pretende fazer, senhor?



— O que eu já disse: investigar e, se for verdade, como desconfio que é, somos obrigados pela honra a entregá-lo.



— Não poderia considerá-lo refugiado político?



— Ora, pelo amor de Deus! Você perdeu o juízo? Exigimos reparações e os assassinos pelo assassinato de nossos cidadãos, como podemos então nos recusar a lhes entregar um dos seus, acusado e provavelmente culpado de assassinar um dos seus governantes? Yoshi prometeu que ele teria um julgamento justo.



— Ele pode se considerar um homem morto, pois esse é todo o julgamento que terá.



— Se ele é culpado, isso é tudo o que merece.



Sir William contivera sua irritação, pois Tyrer fizera um bom trabalho hoje e constatara que a crescente amizade entre os dois o beneficiava.



— Phillip, sei que ele tem sido muito valioso, mas não podemos deixar de entregá-lo... depois que tivermos uma conversa. Adverti-o no início que teria de ir embora, se eles o pedissem. Agora, esqueça Nakama e concentre-se em descobrir tudo o que puder sobre o paciente de Babcott. Com um pouco de sorte, deve ser o tairo.



Ele seguira à frente para o pátio, onde Yoshi estava montando. Babcott esperava ao lado de um cavalo que Pallidar lhe emprestara e outro para Tyrer. A guarda de honra os cercava, alerta. Por ordem de Yoshi, os carregadores se afastaram das varas com os fardos. Depois, ele chamara Tyrer, que se adiantara, escutara, fizera uma reverência, e voltara.



— Ele disse que pode... hum... contar o dinheiro à vontade, Sir William, e lhe dar o recibo amanhã, por favor. Aquele homem... — Tyrer apontara para Abeh. — virá buscar Nakama amanhã.



— Agradeça a ele, e diga que tudo será feito como deseja.



Tyrer obedecera. Yoshi acenara para que Abeh partisse.



Ikimasho!



Partiram a trote, com o palafreneiro e os carregadores em sua esteira.



— Tudo bem, George?



— Tudo, obrigado, Sir William.



— Boa viagem. Phillip, saiu-se muito bem hoje. Mais algumas reuniões assim, e recomendarei sua promoção a intérprete de primeira classe.



— Obrigado, senhor. Posso estar presente quando conversar com Nakama?



Sir William quase explodira.



— Como pode estar presente, se vai para Iedo com George? Use seu cérebro! George, dê-lhe um remético, pois o pobre rapaz ficou obtuso!



— Não preciso realmente de Phillip — disse Babcott. — Apenas achei que poderia ser importante que ele conhecesse essa “pessoa anônima”.



— E tinha toda razão, esse encontro pode ser muito importante... Nakama ou Hiraga, qualquer que seja o seu nome, não é. Phillip, isso já entrou na sua cabeça?



— Já, sim, senhor. Desculpe.



Babcott inclinara-se, baixara a voz:



— Talvez seja uma boa idéia não entregar Nakama até voltarmos... para qualquer emergência.



Sir William fitara-o nos olhos, tal possibilidade projetando a consulta médica para um novo nível.



— Está querendo dizer que eles podem tentar retê-lo? Como um refém? Aos dois?



Babcott dera de ombros.



— Nakama é importante para ele e não há mal nenhum em ser precavido, não é?



Sir William franzira o rosto.



— Espero que voltem amanhã.



Ele ficara observando-os até que todos sumissem de vista e, depois, voltara à sala de audiência. No mesmo instante, o almirante explodira:



— Nunca ouvi tanta conversa fiada em toda a minha vida! Construir uma marinha para eles? Perdeu completamente o juízo?



— Não cabe a nós decidir sobre isso, meu caro almirante — dissera Sir William, sem perder a calma. — É uma atribuição do Parlamento.



— Ou, mais provável, do imperador Napoleão — dissera Seratard, incisivo.



— Duvido muito, meu caro senhor. — O almirante tinha o rosto e o pescoço roxos. — Os assuntos navais estrangeiros são da competência da marinha real; qualquer interferência francesa em áreas de influência britânica será tratada com o rigor necessário.



— É isso mesmo — dissera Sir William, alteando a voz para se sobrepor ao dois, pois o rosto de Seratard também ficara roxo e ele fazia menção de responder com veemência. — De qualquer forma, seria uma decisão política. De Londres e Paris.



— A política que se dane! — exclamara o almirante, as bochechas tremendo de raiva. — Uma dúzia de nossos melhores navios de guerra nas mãos desses selvagens, quando vemos o que eles são capazes de fazer com duas espadas? Eu me oponho totalmente!



— E eu também — declarara Sir William, a voz ainda calma —, e é o que vou recomendar.



— Como?



— Concordo com a sua posição. Uma decisão desse porte cabe ao almirantado ajudado pelo Ministério do Exterior. O mesmo em Paris. Não há nada que possamos fazer, além de relatar tudo a nossos superiores. Você deve também agir assim. Graças a Deus, as autoridades japonesas finalmente aprovaram nosso direito de tomar a iniciativa de agir contra partes culpadas. Não concorda, almirante?



— Se está falando sobre sua proposta e desavisada expedição punitiva, aqui, ali, em qualquer lugar, ainda não foi aprovada pelo almirantado, portanto não conta com a minha aprovação. E sugiro que voltemos para a Pearl, antes que a chuva comece...



Sir William suspirou, olhou por uma das vigias da sala dos oficiais. A chuva parara por um momento, o mar ainda tinha cor de chumbo, mas seu espírito se tornara animado. Tinha o dinheiro da indenização, não havia necessidade agora de arrasar Iedo e através desse Yoshi ajudaremos a modernizar o Japão, refletiu ele. Arrumaremos um lugar feliz para o Japão na família de nações, tão feliz para eles quanto para nós. E é melhor que sejamos nós a fazer isso, incutindo as virtudes britânicas, do que os franceses, implantando as francesas, embora seus vinhos e atitudes em relação à comida e fornicação sejam muito superiores aos nossos.



Mas é isso mesmo. Exceto na fornicação, os japoneses serão beneficiados. Nisso, a atitude deles é sem dúvida superior. Uma pena que não possamos importá-la para a nossa sociedade, mas a rainha nunca admitiria. Uma coisa lamentável, mas é a vida. Teremos de nos contentar por abençoarmos a nossa sorte de viver aqui... depois que os civilizarmos.



— Henri, vamos respirar um pouco de ar fresco.



Ele sentiu-se contente ao voltar ao convés. O vento estava impregnado de maresia, forte e firme, a fragata sob vela agora, numa velocidade admirável. Marlowe se encontrava na ponte de comando... os oficiais e marujos nas proximidades contrafeitos pela presença do almirante, sentado lá em cima, com uma cara azeda, encolhido em seu capote.



— Pelo amor de Deus Marlowe, leve-a para mais perto do vento!



— Pois não, senhor.



Sir William não era um especialista, mas a ordem parecia pedante e desnecesária. Mas que desgraçado! Ainda assim, não posso culpá-lo por querer a confiracão das ordens, pois é seu pescoço que está em jogo, se alguma coisa sair errada.



Quando a fragata assumiu um novo curso, ele apertou as mãos na amurada. Amava o mar, se integrar nele, ainda mais no convés de um navio de guerra britânico, orgulhoso dos navios do império dominarem os mares, tanto quanto quaisquer navios podiam reinar sobre as ondas. Ketterer está certo ao não querer criar outra marinha, pensou Sir William, não com estes homens... afinal, as marinhas francesa, americana e prussiana já constituem problemas suficientes.



Ele olhou para a popa.



Ali, além do horizonte, ficava Iedo. Iedo e Yoshi prenunciavam problemas, por qualquer ângulo que se olhasse, qualquer que fosse o futuro róseo que ele prometia. À frente, ficava Iocoama. Mais problemas ali, mas não importa, porque esta noite Angelique será minha companheira ao jantar... fiquei contente por ela não ter partido, mas ainda não entendi o motivo. Isso não deixa o jogo ainda mais nas mãos de Tess Struan?



É estranho pensar em Angelique sem Malcolm Struan. Lamentável que ele tivesse tanto azar, mas agora ele se foi, e nós continuamos vivos. Joss. Quem será o tai-pan agora? O jovem Duncan tem apenas dez anos, o último dos meninos Struans. Terrível para Tess, mais tragédia para suportar. Não ficaria surpreso se isso a liquidasse. Sempre a admirei por sua coragem, carregando a carga de Culum e dos Brocks, para não falar de Dirk Struan.



Bom, fiz o melhor que podia por Tess, e também por Malcolm... vivo e morto. E por Angelique. Quando ela for embora, deixará um vazio aqui que não será preenchido com facilidade. Espero que ela recupere a juventude que perdeu, o que é outra tristeza, mas tem toda uma vida pela frente... se estiver ou não esperando uma criança de Malcolm. As apostas ainda são meio a meio.



Ordens na ponte de comando atraíram sua atenção por um momento, mas não era nada urgente, apenas acrescentar mais velas. O vento zumbia. A fragata aumentou a velocidade. Faltava uma hora para chegarem ao ancoradouro. E duas horas para o pôr-do-sol. Tempo suficiente para deter Nakama antes do jantar.







O pôr-do-sol foi apenas uma redução da claridade, o sol morrendo por trás de uma camada de nuvens, lamentando a perda do dia. Hiraga disse ao grupo de pescadores:



— Aquele barco servirá... sem os equipamentos de pesca, mas os remos e a vela estão incluídos.



Ele estava na praia perto da cidade dos bêbados e pagara ao dono o que fora pedido, sem regatear, ainda relutando em perder a honra por negociar, embora já soubesse agora — o que lhe fora incutido por Mukfey — que era enganado, o homem cobrara demais e riria dele, junto com seus companheiros, assim que se afastassem. Sabia também que era o culpado por isso, já que se vestia como um gai-jin, sem as suas espadas.



Metade dele sentia vontade de esbravejar, puni-los por seus maus modos, obrigá-los a rastejar na praia, suplicando pelo privilégio de lhe darem o barco de presente. A outra metade aconselhava paciência: Você fez o que deve, o barco é seu, amanhã morrerá com honra pela causa de sonno-joi, esses vermes não têm mais valor do que as cracas no barquinho miserável que me venderam.



— Deixem tudo no barco — disse ele.



Untuoso, o dono fez uma reverência e recuou, inclinado, depois se afastou com os companheiros, todos abençoando a sorte pelo lucro duplo.



O barco era de pesca, pequeno, comum, para um a três homens, com uma pequena vela e um único remo na popa. Parte do treinamento de samurai era o uso de barcos para curtas distâncias, atravessar rios ou alcançar navios ou galés ao largo de águas costeiras, por isso todos sabiam manobrá-los. A notícia de que ele comprara um barco voaria por toda a aldeia, mas isso não tinha importância. Quando o shoya e os outros descobrissem o uso provável, já seria tarde demais.



Satisfeito de que o barco se encontrava seguro, ele começou a atravessar a cidade dos bêbados, através das vielas apinhadas, passando por cima de corpos de homens embriagados e do lixo, repugnado com a sujeira. Taira diz que sua Londres é a cidade mais limpa, maior e mais rica do mundo, mas não acredito... não se tantos de sua gente vivem assim, com o resto da colônia não estando muito melhor. Pegando um atalho, ele avançou por uma viela menor. Homens passavam, mendigos estendiam a mão, olhos espiavam desconfiados de portais, mas ninguém o incomodou.



A terra de ninguém, como sempre, se encontrava coberta de mata, fedendo, o principal vazadouro de lixo da colônia. Uns poucos vagabundos esfarrapados vasculhavam pelo lixo mais recente. Observaram-no por um instante. Os olhos de Hiraga se desviaram para o poço à frente. A tampa de madeira quebrada, que ocultava a passagem secreta para a Yoshiwara, parecia intacta. O rosto de Ori aflorou em sua memória, e o tempo que passaram lá embaixo, quando estava disposto a matá-lo, e Ori jogara — ou fingira jogar — a cruz de ouro nas profundezas. Ori era baka ao desperdiçar sua vida por causa daquela mulher. Bem que poderíamos aproveitá-lo amanhã. Ele tratou de remover Ori de sua mente.



Agora, todo seu ser se concentrava no ataque. Todo o raciocínio em contrário desaparecera. Havia um consenso, Akimoto a favor, exultante, Takeda e o sensei. Portanto, ele também era a favor. O barco estava pronto. Agora, buscaria Akimoto e acertariam os detalhes finais do plano. Na verdade, Hiraga sentia-se contente também. Morreria no esplendor da glória, cumprindo os desejos do imperador. O que mais um samurai podia desejar da vida?



Com a violência súbita de um banho gelado, ele foi arrancado da euforia e desapareceu numa porta. Três soldados ingleses postavam-se diante da casa do shoya, mais dois saíam da choupana ao lado, que ele e Akimoto alugavam. Akimoto se encontrava entre os soldados, berrando a plenos pulmões uma das poucas frases em inglês que aprendera:



— Sinto muito, não compreender Nakama!



— N-a-k-a-m-a — disse o sargento, devagar, bem alto. — Onde ele está?



Uma pausa e o sargento acrescentou, ainda mais alto:



— Onde está Nakama?



— Nakama? — A voz de Akimoto também era alta e clara, sem dúvida tentando alertá-lo, se por acaso estivesse nas proximidades. — Nakama não compreender sinto muito.



Em japonês, Akimoto disse:



— Alguém traiu alguém. — E voltou ao inglês gutural: — Nakama não compre...



— Cale-se! — berrou o sargento, furioso. — Cabo, este idiota não sabe de nada. Butcher, você e Swallow ficam aqui, até mister Nakama voltar, e peçam a ele... isso mesmo, peçam, um convite... para acompanhá-los, pois Sir William quer falar com o homem. Mas não deixem de levar o patife. Você... — O sargento espetou um dedo de ferro no peito de Akimoto, enquanto acrescentava: — Venha comigo, para o caso de o chefe querer falar também com você.



Protestando em japonês, a voz bem alta, Akimoto acompanhou-os, e depois repetiu várias vezes, em inglês, “Nakama não compreender”.



Ao se recuperar do choque, e constatar que era seguro, Hiraga saiu do portal, pulou uma cerca, e correu de volta para a terra de ninguém. Ali, agachou-se no vão de porta de um barraco. Ainda não era seguro correr para o poço, havia claridade demais e os três homens vasculhando o lixo se encontravam muito próximos, pareciam ameaçadores. Tinha de manter em segredo a passagem pelo poço.



Quem nos traiu?



Não havia tempo para pensar sobre isso agora. Ele se encolheu ainda mais nas sombras, quando um dos homens se aproximou, murmurando e praguejando pelo pouco que encontrara, um saco ensebado numa das mãos. Todos os três eram esqueléticos e imundos. Um se aproximou das sombras em que se escondia, mas passou sem vê-lo. Mais meia hora e a luz desapareceria, não havia outra coisa a fazer que não esperar. Subitamente, o vão de porta foi bloqueado.



— Pensou que eu não tinha visto você, hem? — disse o homem, a voz rouca, carregada de ameaça. — O que está fazendo?



Hiraga empertigou-se devagar. Tinha a mão na pequena pistola no bolso. E depois viu a faca aparecer no punho que mais parecia uma garra, o homem desferir um golpe violento para a frente. Só que Hiraga foi mais rápido, segurou a mão, acertou uma cutilada na garganta do homem. Ele ganiu como um porco estripado e arriou no chão. No mesmo instante, os outros dois levantaram os olhos e se adiantaram apressados para investigar.



Pararam abruptamente. Hiraga aparecia agora no vão de porta, a pistola numa das mãos, a faca na outra, por cima do homem que se contorcia na terra, sufocado. Facas apareceram e os dois homens atacaram. Hiraga não hesitou e arremeteu contra um dos homens, que saiu correndo, proporcionando-lhe a abertura de que precisava. Passou em disparada entre os dois, correndo para a cidade dos bêbados, não querendo perder tempo numa luta. Momentos depois, alcançou uma rua transversal, mas descobriu que o chapéu caíra na corrida. Olhou para trás e viu um dos homens pegá-lo, com um grito. Em segundos, o outro homem também pôs mão no chapéu e os dois se puseram a brigar e a praguejar por sua posse.



O peito arfando, Hiraga deixou que ficassem com o chapéu. Outro olhar para o céu. Seja paciente. Depois que eles forem embora, você poderá ir até o poço. Não deve revelar sua existência, pois é essencial para o ataque. Seja paciente Compre um chapéu ou um gorro. O que saiu errado?







— Para onde será que ele foi?



— Não pode estar longe, Sir William — garantiu Pallidar. — Coloquei homens nos portões e na ponte para a Yoshiwara. É bem provável que ele esteja numa das estalagens. Uma questão de tempo antes que apareça. Quer que o ponhamos a ferros?



— Não. Quero apenas que o tragam até aqui, desarmado, sob vigilância.



— E esse sujeito?



Akimoto estava sentado, de costas na parede, um soldado ao lado. Já fora revistado.



— Decidirei depois de falar com ele. Ah, André, entre. Você não precisa esperar, Settry. Jantarei com o ministro russo. Assim que pegar Nakama, vá me chamar.



Settry bateu continência e se retirou.



— André, lamento incomodá-lo, mas não conseguimos encontrar Nakama. Como Phillip não está aqui, você poderia servir de intérprete para mim, perguntando a esse sujeito onde ele se encontra?



Ele ficou observando, enquanto André começava a interrogar Akimoto, tentando conter sua irritação, desejando que Phillip Tyrer tivesse ficado, em vez de partir com Babcott. Espero que tudo corra bem. Droga, se Nakama não for apanhado, Yoshi ficará furioso, e com toda razão.



— Ele diz que não sabe — informou André, que não tirara o capote. A sala de Sir William estava sempre congelando, mesmo no dia mais frio, seu fogo de carvão mínimo. — Parece retardado, murmura que Nakama pode estar em qualquer lugar, talvez na Yoshiwara, até mesmo em Kanagawa.



— Hem? — Sir William ficou chocado. — Ele não deveria deixar a colônia sem a minha aprovação. Pergunte a ele... pergunte quando Nakama saiu?



— Ele diz que não sabe, não conhece Nakama, se ele saiu ou onde se encontra, não sabe de nada.



— Talvez uma noite na cadeia refresque sua memória. Cabo! — A porta aberta no mesmo instante. — Ponha este homem na cadeia durante a noite ou até que eu dê ordens em contrário. Ele deve ser bem tratado. Entendido?



— Entendido, senhor.



— Ele deve ser bem tratado.



— Sim, senhor.



O cabo sacudiu um polegar para Akimoto, que saiu da sala de costas, fazendo reverências. A cadeia, usada para os arruaceiros e os soldados sujeitos à disciplina militar, ficava no final da rua, um prédio baixo de alvenaria, com uma dúzia de celas. Depois do clube, fora o segundo prédio construído, um costume normal na maioria das colônias britânicas.



Merci, André.



De rien.



— Tem alguma idéia do lugar em que poderíamos encontrá-lo?



— Não, monsieur, afora o que o homem disse. Vejo-o no jantar.



André sorriu, saiu, começou a descer pela High Street, o vento agitando as folhas, papéis e detritos diversos. Não restava muita claridade no céu.



Ainda bem que não somos responsáveis por encontrá-lo, pensou ele. Para onde teria ido? Se tiver um mínimo de bom senso, para Quioto ou Nagasáqui ou embarcou como clandestino no navio mercante que partiu ontem para Xangai, se sabe que Yoshi o procura. E deve saber, com toda certeza... não há segredos no Bakufu nem aqui. Grande reunião, boa para nós também, pois temos uma vantagem com Yoshi... mas Phillip já começa a se tornar bom demais. Sem qualquer dúvida, será paciente com Anjo. André cuspiu, irritado. Eu deveria ter aproveitado a oportunidade... afinal, a idéia foi minha e Raiko e Meikin devem ter transmitido a proposta de alguma forma. Mon Dieu, elas têm mais poder do que eu imaginava.



Um calafrio percorreu seu corpo. Raiko pedira para vê-lo naquela noite, urgente. O que seria agora? Só podia ser encrenca.



— Boa noite, senhor — disse o guarda da Struan na porta da frente.



— Tenho um encontro com madame Struan.



— Sim, senhor. Ela o espera na sala do tai-pan, no final do corredor. Desculpe a confusão lá dentro, senhor, mas o Sr. McFay está arrumando suas coisas. Terrível a sua saída, não acha?



— Concordo, mas vamos torcer para...



O canhão de sinalização do capitão do porto soou neste momento, interrompendo-o. Atônitos, os dois olharam para o mar, pois nenhum navio era esperado ou estava atrasado. O movimento na apinhada High Street cessou e, depois, um murmúrio de excitamento circulou por Iocoama. Um clíper contornava o promontório distante, todas as velas enfunadas, na velocidade máxima. As pessoas avistaram a fumaça de sua salva para a nave capitânia e depois ouviram a saudação em resposta. O navio ainda se encontrava longe demais para que se pudesse divisar a bandeira.



— É um dos nossos — declarou o guarda, orgulhoso. — Só pode ser, como nos velhos tempos... oh, boa noite, senhor.



Jamie McFay passou pela porta apressado, focalizou o binóculo.



— Olá, André. Só quero verificar... mas é o Prancing Cloud! Aleluia! As implicações seriam claras para todos. O navio deveria seguir para Londres. O retorno a Iocoama, tão depressa, significava que trazia notícias urgentes... ou Passageiros. E podia ser bom ou mau.



— Aleluia — repetiu André.



Ele divisou Seratard com uma luneta nos degraus da legação francesa, William em sua janela com um binóculo, e Dmitri na entrada do prédio da Brock, ao lado, também com uma luneta. Ao baixar a luneta, Dmitri notou Jamie, hesitou, fez o sinal de polegar para cima. Jamie acenou em resposta, tornou a focalizar o navio. O clíper avançava imponente para o ancoradouro.



— Será que ela se encontra a bordo? — murmurou André.



— Pensei a mesma coisa. Descobriremos em breve.



— Mande uma mensagem.



— Quando eu alcançar o capitão do porto para hastear as bandeiras aclaridade já terá acabado. De qualquer forma, não é problema meu agora, mas sim uma decisão do Sr. MacStruan. — Jamie fitou-o. — Saberemos muito em breve. Vai falar com Angelique?



— Isso mesmo.



— Não precisa preocupá-la, até sabermos, está bem?



— Concordo, mon brave. — André tornou a olhar para o clíper. — Vai ao seu encontro?



— Do navio? — O mesmo sorriso duro. — Você iria?



Entraram juntos no prédio. Albert MacStruan descia a escada, meio vestido nos trajes para a noite, a gravata desfeita, mas elegante.



— O Prancing Cloud?



— Isso mesmo — confirmou Jamie.



— Foi o que pensei. — Os olhos estranhos contraíram-se. — Boa noite, André. Como tem passado?



— Muito bem, obrigado. Até mais tarde.



Jamie esperou até que André batesse na porta e a seguir entrasse na sala do tai-pan, que era agora de MacStruan.



— Vai ao seu encontro?



— Claro. — MacStruan desceu o último degrau, mas agora os passos não tinham a mesma animação. — Por favor, acompanhe-me.



— Obrigado, mas esse é um privilégio seu agora. Mandei Vargas avisar o contramestre. A lancha estará pronta em cinco minutos.



MacStruan disse, gentilmente:



— Venha a bordo comigo, receba o navio, como costumava fazer e ainda deveria estar fazendo.



— Não. É tempo de seguir adiante. É tudo seu agora. Mas, obrigado.



— Soube que o banquete de Zergeyev esta noite será espetacular, agora que Angelique confirmou sua presença. Mude de idéia e compareça.



— Não posso, não esta noite. Ainda não terminei de arrumar minhas coisas. — Jamie sorriu, depois gesticulou para o corredor. — Angelique está usando o escritório junto com você?



— Isso mesmo e é um prazer para mim. Melhor do que deixar Angelique ir receber visitantes em sua suíte lá em cima, esse homem em particular. Não posso dizer que gosto dele.



— André é uma boa pessoa, sua música é excelente, sem dúvida a melhor que temos aqui. Espero que sejam boas as notícias trazidas pelo Prancing Cloud.



— Eu também, mas duvido muito. Acha que Tess está a bordo?



— A idéia me ocorreu. — Jamie sorriu, não mais um empregado de Tess. — Explicaria a mudança de curso do Cloud. É isso o que Dirk teria feito.



— Ela não é Dirk, mas é muito mais astuta... o que é uma pena, meu caro.



Não havia amor perdido entre os meios-irmãos e Tess Struan, mas uma cláusula no testamento de Dirk estipulava que se os dois meninos se destacassem nos estudos seriam aproveitados na Casa Nobre, ao limite de sua capacidade. Os dois eram inteligentes, tinham contatos com amigos de Eton e da universidade em altos postos, espalhados pela aristocracia, na City e no Parlamento, onde Frederick acabava de ganhar um assento, o que os tornava ainda mais valiosos. Mesmo assim, ambos sabiam que Tess Struan os dispensaria se não fosse pela cláusula.



— Espero que ela não tenha vindo nos fazer uma visita... o que seria bastante incômodo.



McFay riu.



— Vamos correr as escotilhas.







— Olá, André.



— Boa noite, Angelique.



Ela sentava em sua cadeira predileta, perto da janela, as cortinas abertas para a enseada.



— É o Prancing Cloud?



— É, sim.



— Ótimo. Ela está a bordo?



André exibiu um sorriso irônico.



— Isso explicaria a volta do clíper.



— Não faz diferença, de qualquer maneira — murmurou Angelique, embora sentisse um frio no estômago. — Aceita um drinque?



— Obrigado. — Ele viu a garrafa de champanhe aberta no balde de gelo e um copo pela metade na mesa. — Posso?



— À vontade.



Tornara-se costume de Angelique contemplar o pôr-do-sol, o crepúsculo e o cair da noite, com champanhe. Apenas um copo, a fim de se preparar para a longa noite, e depois a madrugada interminável. Seu padrão de sono mudara. Não mais encostava a cabeça no travesseiro para mergulhar no sono no mesmo instante, só bordando ao amanhecer. Agora, o sono se lhe esquivava. A princípio, isso a assustara, mas Babcott a convencera de que o medo só servia para agravar a insônia.



— Não precisamos de mais que oito ou dez horas, por isso não deve se preocupar. Aproveite o tempo em seu benefício. Escreva cartas, ou seu diário, tenha bons pensamentos... e não se preocupe. Ontem, Angelique escrevera:





Querida Colette:



O conselho que ele me deu funciona, mas acontece que não percebeu o melhor aproveitamento, que é o de PLANEJAR, porque aquela mulher está tramando a minha queda.



Se Deus quiser, estarei em Paris em breve e poderei então lhe contar tudo. Às vezes é quase como se minha vida aqui fosse uma peça de teatro, ou uma história de Victor Hugo, e Malcolm, o pobre coitado, nunca existiu. Mas gosto do sossego e me sinto contente com a espera. Só mais alguns dias, e saberei sobre a criança, se vai haver ou não. Assim espero, e rezo, rezo e rezo para estar esperando um filho de Malcolm... e também para que o seu parto seja tranqüilo e nasça outro menino.



Tenho de ser sensata. Só posso contar comigo mesma, por aqui. Jamie é um bom amigo, mas não pode ajudar muito... não trabalha mais na Casa Nobre, e o novo gerente, Albert MacStruan, é gentil, um perfeito cavalheiro, britânico bem-nascido, mas só me tolera por enquanto... até ELA ordenar o contrário. Sir William? Ele é o governo, o governo britânico. Seratard? Só Deus sabe se ele de fato ajudará, mas será apenas pelo proveito que possa tirar de mim. O Sr. Skye? Ele faz o melhor que pode, mas todos o odeiam. André? Ele é muito esperto, e sabe demais, e creio que a armadilha em que se encontra o está deixando louco (mal posso esperar para saber o que VOCÊ PENSA!!!). Minha única esperança é Edward Gornt. Ele já deve ter chegado a Hong Kong e já se encontrou com ela, a esta altura. Minhas orações — e sei que as suas também — pelo êxito dele são abundantes e diárias.



Assim, aproveito minhas noites acordadas para planejar. Agora, tenho muitos planos e idéias excelentes sobre a melhor maneira de enfrentar todas as emergências possíveis... e muita força para lidar com as que não ousei considerar; por exemplo, se Edward me falhar, ou, Deus me livre, nunca chegar, pois há rumores de terríveis tempestades nos mares da China, normais nesta época do ano. A Cooper-Tillman, do pobre Dmitri, perdeu outro navio. Os pobres marujos, como o mar é terrível, e como são bravos os homens que por ele navegam!



André diz, com toda razão, que não posso sair daqui, nem tomar uma iniciativa, até que ELA anuncie sua posição. Sou a viúva de Malcolm, é o que todos dizem, o Sr. Skye registrou todos os tipos de documentos com Sir William, e mandou mais para Hong Kong, mais ainda para Londres. Tenho dinheiro suficiente e posso permanecer aqui por tanto tempo quanto quiser. Albert MacStruan disse que posso usar a sala de Jamie sempre que estiver vaga; tenho mais dez vales que Malcolm fez para mim, deixando a quantia em branco — não foi previdente de sua parte? —, que Jamie e agora Albert concordaram em honrar, de cem guinéus cada um.



Quando ELA se manifestar, entrarei na batalha. Sinto que será até a morte, mas posso lhe garantir, minha querida Colette, que a morte não será aminha... será o Waterloo dela, não o meu, a França será vingada. Sinto-me muito forte, muito capaz...





Ela observava André, esperando que ele começasse. A expressão de André era dura, a pele pálida e esticada, ele emagrecera. O primeiro copo fora esvaziado. E depois o segundo. Agora, ele se pôs a tomar o terceiro.



— Você está mais linda do que nunca.



— Obrigada. Como vai sua Hinodeh?



— Mais linda do que nunca.



— Se a ama tanto, André, por que seus lábios se contraem e os olhos se esbugalham de raiva quando menciono o nome dela... disse que eu podia interrogá-lo a respeito.



Poucos dias antes, ele falara sobre o acordo. Em parte, não tudo. Irrompera quando o desespero o dominara.



— Se era tão intransigente em fazer amor no escuro e com o preço absurdo que Raiko exigia, por que concordou, em primeiro lugar?



— Eu... era necessário — murmurou ele, sem fitá-la.



André não podia contar o verdadeiro motivo. Era suficiente ver os lábios de Seratard se contraírem e evitar qualquer contato físico desde então, tomando cuidado para nunca usar os mesmos talheres, nem o mesmo copo, embora a doença só fosse contraída de um homem ou uma mulher... ou será que não?



— Apenas dei uma olhada nela... e mon Dieu, não compreende o que é o amor, como...



As palavras definharam. Ele serviu-se de outro copo, a garrafa quase vazia agora.



— Não pode imaginar como ela se mostrou totalmente desejável desde o Primeiro momento. — Ele tomou um gole do champanhe. — Desculpe, mas preciso de dinheiro.



— Claro. Mas só me restou um pouco.



— Tem o papel, com o sinete dele.



— Como?



O sorriso de André se tornou ainda mais insidioso, se é que isso era possível.



— Por sorte, os cambistas falam com os cambistas, os escriturários com os escriturários. Preencha outro amanhã. Por favor. Quinhentos mexicanos.



— É demais.



— Nem a metade do que preciso, chérie — murmurou ele, a voz quase inaudível.



André levantou-se, foi fechar as cortinas para o resto de claridade do dia depois acendeu o lampião a óleo, que estava na mesa, estendeu a mão para garrafa. A borra caiu em seu copo, e ele bateu com a garrafa de volta no balde d gelo.



— Acha que gosto de fazer isso com você? Pensa que não sei que é chantagem? Não se preocupe, sou razoável, só quero o que você pode me dar no momento. Cem mexicanos, ou os guinéus equivalentes, esta noite, duzentos amanhã, cem no dia seguinte.



— Não é possível.



— Tudo é possível.



André tirou um envelope do bolso. Continha uma única folha de papel, que ele desdobrou com todo cuidado. Dezenas de fragmentos de um papel verde estavam colados ali, de forma meticulosa, formando um perfeito quebra-cabeças. Pôs na mesa, fora do alcance de Angelique. No mesmo instante, ela reconheceu a letra de seu pai. A segunda página da carta que vira André rasgar, há tanto tempo.



— Pode ler daí? — indagou ele.



— Não.



— Seu afetuoso pai escreveu, assinou e datou... “e espero, como conversamos, que você arrume um noivado e casamento rápido, por quaisquer meios que puder. É importante para o nosso futuro. A Struan resolverá em caráter permanente os problemas de Richaud Frères. Não importa...”



— Não importa, André — murmurou Angelique, sem saber como disfarçar o veneno. — As palavras estão indelevelmente gravadas em meu cérebro. Indelevelmente. Estou comprando isso ou será uma ameaça permanente?



— É um seguro — respondeu ele, dobrando o papel e tornando a guardá-lo no envelope. —Voltará agora para um lugar bem guardado, com detalhes do affair Angelique, caso alguma coisa desagradável me aconteça.



Abruptamente, ela soltou uma risada, deixando-o desequilibrado.



— Oh, André, acha mesmo que eu tentaria assassiná-lo? Eu?



— Acabaria com qualquer acordo financeiro que Tess possa oferecer ou possa ser forçada a oferecer e a levaria ao banco dos réus.



— Ah, como você é tolo!



Angelique pegou seu copo e tomou um gole do champanhe. Ele notou, inquieto, que ela tinha a mão firme. Ela o observava, plácida, pensando que André era mesmo um tolo, por deixá-la saber que fizera aquilo, que era um trapaceiro. Ainda mais tolo ao se irritar com Hinodeh por preferir o escuro — talvez ele seja horrível nu — e mais ainda por protestar pelo preço que pagara, porque as duas coisas são insignificantes, se a moça é de fato tudo o que ele diz.



— Eu gostaria de conhecer essa Hinodeh. Por favor, combine um encontro.



— Hem?



Divertida com a expressão de André, ela acrescentou:



— O que há de tão estranho nisso? Tenho interesse por ela, já que a estou financiando, o amor de sua vida. Não concorda?



Trêmulo, ele se levantou, foi até o aparador, serviu-se de conhaque.



— Quer também?



— Não, obrigada.



Apenas os olhos de Angelique se mexiam. Ele voltou a sentar à sua frente. Uma aragem agitou a chama e fez os olhos dela faiscarem.



— Cem. Por favor.



— Quando eu paro de pagar, André? — indagou ela, jovial.



O conhaque caiu melhor do que o champanhe. Ele enfrentou a pergunta.



— Quando ela pagar, antes de você ir embora.



— Antes de eu ir embora? Quer dizer que não poderei partir até lá?



— Quando ela pagar, antes de você ir embora.



Angelique franziu o rosto, foi até a mesa, abriu uma gaveta lateral. A bolsinha continha o equivalente a cerca de duzentos mexicanos, em obans de ouro.



— E se não houver dinheiro?



— Virá de Tess, não há outro jeito. Ela pagará... de alguma forma, nós faremos com que isso aconteça.



— “Nós”?



— Eu prometo — murmurou André, os olhos injetados. — Seu futuro é o meu futuro. Pelo menos nesse ponto ambos concordamos.



Angelique abriu a bolsa, contou a metade. Depois, sem saber por que, guardou tudo de novo na bolsinha e entregou-a a André.



— Há cerca de duzentos mexicanos aí — disse ela, com um estranho sorriso. — Por conta.



— Eu gostaria de poder compreendê-la. E antigamente compreendia.



— Naquele tempo, eu era uma jovem tola. Não sou mais.



Ele balançou a cabeça, lentamente. Tornou a tirar o envelope do bolso, estendeu-o para a chama. Angelique soltou uma exclamação de espanto quando pegou fogo. André largou-o num cinzeiro e observaram juntos as chamas se espalharem, o papel se enroscar, até queimar por completo. Ele esmagou as cinzas com o fundo do copo.



— Por que, André?



— Porque você compreende sobre Hinodeh. E quer goste ou não, somos sócios. Se Tess não pagar a você, estou perdido. — André estendeu a mão. — Paz?



Ela apertou a mão estendida, sorriu.



— Paz. Obrigada. André levantou-se.



— É melhor eu ir dar uma olhada no Prancing Cloud. Se Tess estiver a bordo, tado sairá mais depressa.



Depois que ele saiu, Angelique examinou as cinzas, mas não dava para reconhecer uma única palavra. Seria fácil para André forjar uma cópia, rasgá-la, apresentá-la como o original e queimá-la... e ainda ter o original restaurado escondido, para uso posterior. É o tipo de estratagema que ele adoraria. E por que queimar a falsificação? Para me fazer confiar nele ainda mais, perdoar a chantagem.



Paz? A única paz de um chantagista é quando a denúncia terrível com que ele a ameaça não precisa mais ser escondida. No meu caso, será quando ELA pagar e o dinheiro estiver em meu poder. E depois que André conseguir o que quer... Hinodeh, talvez. O que ela deseja? Esconde-se de André no escuro. Por quê? Poi causa da cor dele? Para se excitar? Por vingança? Porque ele não é japonês?



Sei agora que o ato de amor pode ir do terror ao êxtase e à ilusão, com todas as variações intermediárias. Minha primeira vez com Malcolm foi na luz, a segunda no escuro; ambas foram maravilhosas. Com ele, da outra vida, sempre foi no claro, e ele era lindo e fatal, sua cor linda, tudo lindo e fatal, aterrador e poderoso, nada como meu marido Malcolm, a quem eu amava de verdade. E honrava... e ainda honro, honrarei para sempre.



Os ouvidos aguçados de Angelique captaram o apito do cúter a vapor. Ela abriu as cortinas, avistou a lancha se afastar apressada do cais da Struan, as luzes de bombordo e boreste acesas, Albert MacStruan na cabine. Na enseada, o Prancing Cloud mal era visível, recolhendo as velas e se preparando para ancorar.



A mente de Angelique projetou-se para bordo, e na imaginação viu sua inimiga.



— como sempre, lábios finos, olhos claros, alta e empertigada, magra, malvestida. — para depois seguir mais além, até o lugar em que Malcolm fora sepultado. Ela sorriu, exultando com essa vitória, o som de seu coração pulsando nos ouvidos. E depois ela tornou a se enroscar na cadeira — a cadeira de Malcolm, a cadeira de ambos, outra vitória — e observou a escuridão se tornar mais escura, apenas as luzes de ancoragem se destacando. Angelique mal conseguia conter seu excitamento.



Com toda certeza, Edward estaria a bordo.


53





A porta da sala de Jamie foi aberta e Vargas entrou quase correndo, esbaforido.



— A lancha deixou o Cloud, senhor — anunciou ele, ainda de capote, chapéu e um cachecol em torno do rosto, a luneta na mão. — Com quatro ou cinco passageiros.



— Ela está a bordo? — perguntou Jamie, sem levantar os olhos da caixa que enchia de documentos. Como não houvesse resposta, ele acrescentou, com alguma irritação: — E então, ela está ou não a bordo?



— Eu... acho que sim.



— Eu disse para me avisar quando tivesse certeza, não antes!



— Desculpe, senhor, mas eu estava no cais, espiei pela luneta, pensei que era melhor vir informá-lo e perguntar o que... o que devo fazer.



— Volte para recebê-la, mas primeiro certifique-se de que todos os criados estão prontos, mande acender um fogo na suíte do tai-pan, que ela vai ocupar, pois o Sr. MacStruan a deixará, com toda certeza.



— Mas isso significa que ela ficará ao lado da Sra. Angeli...



— Sei disso, mas é a suíte do tai-pan, e é lá que ela vai se instalar.



Vargas saiu. Incapaz de resistir, Jamie foi até a janela. O cúter aproximava-se da praia. Apenas com as luzes de ancoragem acesas, e balançando nas ondas. Ele focalizou o binóculo. Vultos indefinidos na cabine, mas uma mulher, sem a menor sombra de dúvida. Não havia como se equivocar com a touca, o porte ereto e a maneira como ela suportava o balanço do barco.



Merda!



A respiração saiu de sua boca num suspiro. Para firmar a imagem, Jamie encostou-se à janela. Não melhorou muito. Identificou um dos vultos como o capitão Strongbow, mais pela altura e corpulência do que por qualquer outra coisa. Dois outros homens, não três... e um deles era MacStruan.



O cúter veio depressa, os danos na proa causados pela tempestade ainda fáceis “e se ver, os reparos ainda não completados. Espectadores curiosos esperavam sob a lanterna balançando no cais, todos agasalhados contra o frio do inverno, de chapéu e cachecol, itens que eram agora obrigatórios. Difícil ver os rostos, mas ele teve a impressão de reconhecer André e... ah, sim, Vervene, Heavenly, até Nettlesmith. Os abutres se reunindo, pensou Jamie, embora os principais estejam observando de suas janelas, como eu.



A escuridão o oprimia naquela noite. O fogo em sua sala era bom, mas agora parecia ter perdido o calor. Ele sentia a garganta apertada, uma pressão no peito. Controle-se, disse a si mesmo. Ela não é problema seu.



O capitão Strongbow foi o primeiro a passar para o cais, em seu grosso capote de marujo. Ainda era difícil ver com nitidez, mas sua aparência era inconfundível. Depois... ah, sim, MacStruan. Os dois se viraram, ajudaram-na a subir. Ela estava toda agasalhada contra o frio, empertigada, roupas escuras, touca escura, presa com a inevitável echarpe. O tamanho dela. Merda!



Os outros dois passageiros subiram para o cais. Jamie reconheceu-os. Um momento de hesitação e depois ele saiu de sua sala, atravessou o corredor, até o gabinete do tai-pan. Angelique esquadrinhava a escuridão lá fora por uma fresta na cortina, o fogo ardendo, lampiões acesos, a sala aconchegante.



— Ah, Jamie, não consigo vê-los direito. É mesmo ela?



— Receio que sim. — Ele não percebeu qualquer mudança na expressão de Angelique. — Pegue meu binóculo. Achei que gostaria de dar uma olhada melhor



— Não preciso olhar, Jamie, nem ter medo. Quem mais poderia ser? — A voz era a mais tênue que Jamie já ouvira. — Quem está com ela?



— Strongbow, Hoag e Gornt.



Ela tornou a se virar para a janela, a fim de ocultar, mas por um instante Jamie divisou a alegria intensa que inundou seu rosto. Não importava que Jamie visse, pensou ela, com uma vertigem de excitamento. Aquela mulher e Edward juntos? Os dois juntos, Hoag também! Isso não pressagia o sucesso, o sucesso de Edward, que ele conseguiu convencê-la?



— Estarei lá em cima, preparando-me para o jantar. Se alguém quiser me ver, descerei de novo. Obrigada, meu caro Jamie.



Num gesto impulsivo, Angelique abraçou-o. E saiu. Jamie ficou olhando para a porta. Por que a alegria? Se Tess está com Hoag, os canhões pesados chegaram. Ou será que não?



Ele voltou à sua sala, perplexo, deixou a porta entreaberta e continuou a arrumar papéis e livros, os dedos fazendo o trabalho, a mente em outro lugar: em Tess, o futuro, o shoya, Nemi naquela noite, a Casa Nobre, a quem dera vinte anos — seja honesto, você não quer realmente sair e sabe que não é uma ocasião oportuna para se estabelecer por conta própria —, pensando no futuro sombrio de Angelique, no encontro amanhã com o ministro suíço, as possíveis importações de suas fábricas de armamentos e relógios, tudo misturado com as incríveis notícias sobre a reunião com Yoshi, Babcott e Tyrer agora em Iedo, o ouro enviado pelo Bakufu já contado e certo... e sobre Nakama, o pobre coitado.



Pobre coitado? Ele é um assassino, do pior tipo. Nunca me senti assim, nunca me senti ameaçado, nem uma única vez. Ele deve estar na cidade dos bêbados ou em algum lugar da Yoshiwara. Se a notícia chegou ao nosso conhecimento, alguém deve ter contado a ele, que tratou de fugir. Droga! Agora terei de envolver Tyrer ou Johann...



Vozes no vestíbulo interromperam seus devaneios. Vozes poliglotas: MacStruan, Vargas, Hoag, os criados se agitando ao redor.



Não há necessidade de sair para cumprimentá-los. Serei chamado muito em breve. Deprimido, ele continuou em seu trabalho, quase concluído agora.



— Jamie!



Ele se virou. E ficou paralisado. Maureen. A sua Maureen na porta! Maureen Ross, a touca azul-marinho, os olhos azuis espiando por cima das dobras da grossa echarpe de lã. Capote azul-marinho, vestido azul-escuro. Maureen Ross, vinte e oito anos. Alta, uma fração mais alta do que Tess... a altura média agora em torno de l,55 m, a rainha Victoria tendo 1,50 m.



— Deus Todo-Poderoso! — balbuciou ele, a voz estrangulada, incapaz de pensar.



— Olá para você, Jamie McFay. — Maureen permaneceu na porta, empertigada, como o pai, a voz melodiosa. — Posso entrar, por favor?



Ela tirou a echarpe, sorriu, hesitante. Jamie podia vê-la com nitidez agora. O mesmo rosto puro, não lindo, mas forte, curiosamente atraente, sardas castanhas, como ele a vira há pouco mais de três anos — no cais, em Glasgow — embora na ocasião houvesse lágrimas pela separação. Esquecera como os olhos de Maureen...



— Olá, Sparkles — murmurou ele, sem pensar, usando o apelido que lhe dava. — Por Deus... Maureen?



A risada foi ressonante.



— Considero isso como um sim; você não vai mais blasfemar, meu rapaz. Uma vez é compreensível, eu surgindo como uma aparição na noite, querendo lhe fazer uma surpresa.



O sorriso e a cadência da voz tornavam-na mais atraente do que realmente era, assim como a luz que faiscava em seus olhos, e o amor que usava como um escudo. Maureen fechou a porta, e tornou a contemplá-lo.



— Você está ótimo, Jamie, talvez um pouco cansado, mas ainda tão bonito quanto antes.



Ele se empertigara, mas continuava parado atrás da mesa, a mente atordoada, então é você, não Tess, foi fácil confundir no escuro, quase a mesma altura, porte ereto... recordando suas cartas desoladas, negativas, ao longo do último ano, e a derradeira, rompendo o noivado, a voz silenciosa dizendo sinto muito, Maureen, escrevi para você, não vamos casar, sinto muito, não quero casar, não posso agora, ainda mais agora que estou trabalhando por conta própria, o pior momento possível, e por que você não...



— Puxa, Jamie — disse ela, do outro lado da sala, observando e esperando, o sorriso aumentando —, não pode imaginar como me sinto feliz em vê-lo, por estar aqui finalmente; as aventuras por que passei na viagem encheriam um volume inteiro.



Como ele não se mexesse, nem respondesse, um pequeno franzido surgiu na testa de Maureen.



— Está fora de si, meu rapaz?



— Tess! — balbuciou ele. — Eu pensei... nós pensamos que era Tess Struan.



— A Sra. Struan? Não, ela ficou em Hong Kong. Uma mulher e tanto, arrumou tudo para que eu viesse até aqui, não me cobrou nada. “Vá se encontra com o seu Jamie McFay, com os meus cumprimentos”, disse ela, e me apresentou ao capitão Strongbow — que providenciou um camarote só para mim —, ao excelente Dr. Hoag e ao mister Irresistível Gornt.



— Como?



— Aquele rapaz pensa que é a dádiva de Deus para as mulheres, mas não para mim. Estou noiva, eu disse a ele, noiva, diante de Deus, do Sr. Jamie McFay. Ele disse que era seu amigo, Jamie, e o Dr. Hoag me contou que Gornt salvou sua vida, e por isso me mostrei simpática, mas mantive distância. Puxa, meu rapaz, há muito o que saber, muito o que contar.



— Por Deus, — murmurou ele, sem ouvi-la, — foi fácil cometer o erro, com a echarpe em seu rosto, você e Tess são do mesmo tamanho, o mesmo porte...



— Chega! — Os olhos de Maureen faiscaram de repente. — Eu agradeceria se você não usasse o nome do Senhor em vão, e ela é um pouco mais baixa, muito mais corpulenta, muito mais velha, tem os cabelos grisalhos, enquanto os meus são castanhos, e nem mesmo no escuro somos parecidas!



Como o súbito sorriso pelo próprio gracejo não o afetasse, ela suspirou. Exasperada, correu os olhos pela sala. Viu a garrafa de cristal. No mesmo instante foi até lá, farejou para se certificar de que era uisque, torceu o nariz em repulsa, mas serviu-lhe um copo, algumas gotas em outro.



— Tome aqui. — Maureen fitou-o, de perto pela primeira vez, com um sorriso radiante. — Papai sempre precisava de uma dose de uisque quando o choque de a Escócia ser parte das ilhas britânicas o atingia.



O encantamento se desfez. Jamie riu, abraçou-a, dando as boas-vindas; os copos nas mãos de Maureen quase derramaram.



— Cuidado, meu rapaz! — balbuciou ela.



Maureen conseguiu largar os copos na mesa, abraçou-o também, na maior ansiedade, depois de tanta espera, finalmente em sua presença, vendo o choque de Jamie, não a recepção que esperava, tentando ser forte e adulta, sem saber o que fazer ou como dizer que o amava e não pudera suportar o pensamento de perdê-lo, por isso arriscara, deixara seu santuário, depositara sua confiança em Deus, pegara o livro de orações e a Bíblia, pusera a pequena pistola do pai na bolsa e partira às cegas, por quinze mil quilômetros de medo. Por dentro. Mas não por fora... oh, não, jamais, não é esse o estilo da família Ross!



— Puxa, Jamie, meu rapaz...



— Está tudo bem agora — murmurou ele, desejando que Maureen parasse de tremer.



Jamie tirou-lhe a touca, deixou que caísse a trança comprida, de cabelos castanho-avermelhados.



— Assim é melhor. Você é um homem bonito. Obrigada.



Ela entregou-lhe um copo, pegou o outro, bateram num brinde.



— Escócia para sempre — murmurou Maureen, e tomou um gole. — O gosto é horrível, Jamie, mas nem imagina como me sinto contente por vê-lo.



O sorriso era ainda mais hesitante agora, pois ela perdera parte de sua confiança. O abraço de Jamie fora como o de um irmão, não o de um apaixonado, oh, Deus, Deus, Deus... Para ocultar sua expressão, Maureen tornou a olhar ao redor, enquanto tirava o capote e as luvas. O vestido era quente, bem cortado, outra tonalidade de azul, realçava suas curvas, a cintura de ampulheta.



— O seu Sr. MacStruan diz que você pode usar a suíte dele, eu ficarei nos aposentos ao lado, até termos o nosso próprio lugar. Já arrumou outros aposentos, Jamie?



— Ainda não. — Confuso, sem saber como iniciar, mas certo de que tinha de fazê-lo. E o mais depressa possível. — Isto... arrumei primeiro todos os meus papéis e livros; ia começar lá em cima amanhã. Todo o resto, os móveis aqui e lá em cima, pertencem à Struan.



— Não importa. Podemos comprar os nossos.



Maureen sentou na cadeira diante da mesa e fitou-o. Com as mãos no colo. Esperando. Certa, agora, de que tinha de morder a língua e esperar que ele começasse. Fizera sua parte, ao chegar. Talvez até tivesse exagerado, chegando sem avisar, mas pensara a respeito com todo cuidado e fizera o melhor que podia, escrevendo a carta, e imaginara o reencontro, hora após hora, ao longo dos meses nauseantes no mar, durante as tempestades, e uma ocasião, nos mares da China, ao largo de Cingapura, durante um motim dos passageiros chineses da terceira classe, entre os quais havia piratas, e que fora reprimido de forma sangrenta. Jamie era sua estrela guia e agora chegara o momento do ajuste de contas.



— Ele é um homem que não presta, esse Jamie McFay — dissera sua mãe, quando anunciara a decisão. — Já falei e repeti, ele não será bom para você, menina. Suas cartas são tudo menos encorajadoras, justamente o contrário.



— Quero ir de qualquer maneira, mamãe. Será que papai me emprestaria o dinheiro?



— Acho que sim, se pedir a ele.



— Tenho de ir. Estou com vinte e oito anos, já velha, além da idade normal de casamento. Esperei por muito tempo, e esperaria mais três anos, se fosse necessário, mas... é agora ou nunca. Já decidi. Pode compreender, mamãe?



— Posso, sim. Mas... pelo menos você estará com ele, com o seu homem, se casar, não como eu.



Ela vira as lágrimas, escutara os conselhos nunca oferecidos antes, segredos jamais sussurrados, e depois a mãe arrematara:



— Abençoada seja, menina, vá com Deus. Vamos falar com seu pai.



Ele era major do exército indiano, reformado, vinte e cinco anos de serviço militar, dezoito dos quais no regimento gurkha, voltando para casa em licença a intervalos de dois ou três anos, antes de ser obrigado a se aposentar, de ferimentos recebidos dez anos antes, detestando o afastamento...



— Muito bem, menina, pode ir, com a minha bênção, sob duas condições — dissera o pai. — Se ele a repudiar, avise que o encontrarei em qualquer parte e o matarei; segundo, se ele a violentar, machucá-la, corte seus ovos... emprestarei minha kookrie, o jovem Duncan não vai precisar pelo menos por mais dez anos.



— Está bem, papai.



A kookrie, a faca gurkha, era o seu bem mais prezado. Maureen era a mais velha de três irmãs, com um irmão de oito anos, e a primeira a sair de casa... os filhos da Grã-Bretanha eram filhos para o império.



Jamie pôs mais carvão no fogo, chegou sua cadeira para mais perto, antes de sentar. Pegou a mão dela.



— Maureen, escrevi para você há três meses.



— Escreveu muitas cartas, mas isso não era suficiente — respondeu ela, jovial, a fim de ganhar mais tempo para se preparar.



— Em todas as minhas cartas, durante o último ano, tentei ressaltar, da melhor forma que podia, que este não é lugar para uma dama, não é como a índia, onde existe a vida dos regimentos...



— Nunca estive na índia, Jamie, como sabe, minha mãe só foi lá uma vez e nunca mais voltou. — Ela pegou a mão de Jamie entre as suas. — Não se preocupe, este lugar pode ficar uma beleza, é trabalho para uma mulher. Posso dar um jeito.



O aperto na garganta de Jamie quase o sufocava. Não havia uma saída fácil para seu problema, o cérebro apregoava, faça logo ou jamais conseguirá, faça agora! Claro que não é justo, mas você não tem sido absolutamente justo com ela, é asqueroso por ter se aproveitado de sua boa fé durante todos esses anos, por Deus, está noivo há três anos, e já a conhecia por dois anos antes disso, é um homem sórdido... admita-o, e fale depressa. Agora! O fluxo começou:



— Escrevi-lhe há três meses, a carta deve ter chegado depois de sua partida, e disse que achava mais sensato rompermos o noivado, e que você deveria me esquecer, lamentava muito, mas era o melhor para você, pois não vou voltar para casa, não posso viver lá, não posso trabalhar lá, não deixarei a Ásia até ser obrigado, se ficar doente ou... não irei embora, não posso, amo a Ásia, amo meu trabalho, não há esperança de um tempo feliz para você, não valho a pena, admito que me aproveitei de você, mas não podemos casar, não é possível, agora que vou me estabelecer por conta própria... — Jamie parou para respirar e depois acrescentou, a voz rouca: — Não sei o que mais dizer, não há mais nada para dizer, exceto pedir desculpas mais uma vez... é isso aí.



Ele tirara sua mão. Sentia o estômago embrulhado. Tirou o lenço do bolso-enxugou a testa.



— Desculpe — balbuciou ele, levantou-se, tornou a sentar, mexeu no copo — Desculpe.



Maureen tinha as mãos no colo. Os olhos continuavam abertos, concentrados, não se desviaram do rosto de Jamie por um instante sequer.



— Não precisa se desculpar — disse ela, gentilmente, a testa apenas um pouco franzida. — Essas coisas acontecem, meu rapaz.



Ele ficou boquiaberto.



— Então concorda?



Maureen riu.



— Claro, com parte do que você disse, mas não com tudo... você é homem, eu sou mulher, vemos as coisas de maneiras diferentes.



— Como assim?



— Bom, primeiro, sobre empregos. O emprego de uma mulher, seu trabalho, é cuidar de um homem, fazer um lar, e é para isso que fui educada, o lar e a família são as coisas mais importantes no mundo.



Ela viu Jamie fazer menção de interrompê-la, por isso se apressou em continuar:



— Meu pai acha que o império vem em primeiro lugar, mas ele é um homem. Os homens têm empregos para onde ir, têm de trabalhar para trazer para casa o mingau, um pouco de carne, outras coisas. Mas tem de haver um lar para o qual ele possa trazer essas coisas. Sem uma mulher, não há lar. É muito importante para um homem ter alguém em quem possa confiar, alguém para partilhar o fardo, enquanto trabalhar, ou procurar um emprego, ou se estabelecer por conta própria. Você pode confiar em mim. Entre duas coisas, tentar iniciar seu próprio negócio é o melhor para você. O Sr. Gornt quer fazer a mesma coisa.



— É mesmo?



— E, sim, em algum momento no futuro, ele diz. Voltou para assumir a Brock and Sons, e...



— É mesmo? — murmurou Jamie, aturdido.



— É, sim. Ele diz que vai ficar no lugar do homem que tentou matar você, o Sr. Greyfifth.



— Greyforth... Norbert Greyforth. — A mente de Jamie recuperou o controle: devo estar perdendo o juízo, com você aparecendo desse jeito, que nem um fantasma, e me esqueci de Hoag, Malcolm e Hong Kong. — O que aconteceu em Hong Kong? Sobre Malcolm Struan? Gornt disse alguma coisa sobre Morgan Brock ou Tyler Brock?



— Paciência, meu bonito rapaz, isso vem mais tarde. De volta a você e a mim, já que levantou a questão. Formaremos uma grande dupla, a melhor, eu prometo. Estamos noivos. E prometo que serei a melhor esposa que já existiu.



— Mas será que não percebe, menina, que não vai dar certo? — disse Jamie, odiando a si mesmo, mas com certeza absoluta. — Este lugar é difícil, a vida aqui e árdua, há poucas mulheres, não terá amigas, nada para fazer.



Maureen soltou uma risada.



— Jamie, Jamie, não ouviu uma só palavra do que eu disse. Agora, é isso... Uma batida na porta a interrompeu. Ela gritou:



— Espere um instante! — Levantou-se e continuou, no mesmo tom de voz gentil, mas firme: — Deve ser o Dr. Hoag, ele tinha urgência em lhe falar, mas pedi que me desse alguns minutos antes, pois me sentia ansiosa em vê-lo. Agora, vou deixá-los a sós.



Maureen pegou o chapéu, as luvas, o capote e a echarpe.



— Não se preocupe comigo, Jamie. Trocarei de roupa e ficarei pronta a tempo. Baterei em sua porta. O jantar é às nove horas, não se esqueça.



— Hem? — balbuciou ele.



— Esse conde russo, Zerevev ou outro nome parecido. Aceitamos o convite para o jantar. O Sr. MacStruan me falou a respeito.



Ela saiu, agradeceu a Hoag. Antes que Jamie pudesse dizer qualquer coisa, Hoag entrou na sala, fechou a porta, adiantou-se e disse, ofegante, as palavras saindo aos borbotões:



— Hong Kong foi como um sonho, Jamie, Malcolm foi sepultado com todas as honras, no mar, como ele e Angelique queriam!



— Ele foi o quê?



Hoag riu.



— Também fiquei espantado. Tess arrumou tudo, ao largo de Shek-O, um dos lugares que Malcolm mais apreciava no mundo inteiro. Aconteceu poucos dias antes da minha chegada. Com todas as honras, Jamie, todas as bandeiras a meio mastro, os navios baixando suas bandeiras, salvas de canhão, gaitas de foles, tudo enfim, o funeral do tai-pan, embora ele nunca fosse. Os jornais cobriram tudo, tenho recortes, luto de um mês em Hong Kong, o governador ordenou um serviço especial em nossa igreja, no outeiro em Happy Valley, Gordon Chen organizou a maior e mais explosiva procissão e velório na história de Chinatown... só atrás da que ele promoveu para Dirk... e como não podia deixar de ser os fogos desencadearam incêndios nas encostas, dizem que uns poucos milhares de choupanas desapareceram em fumaça, e não apenas isso, pois quando me encontrei com Tess... Posso tomar um drinque? Estou ressequido!



— Claro. Mas não pare, continue a falar. — Jamie foi servir os dois, seu próprio copo há muito vazio. Notou que seus dedos tremiam. Oh, Deus, por que Tess faria isso, um sepultamento no mar, e por que Maureen aceitou o convite para jantar, quando precisamos conversar? — Continue, pelo amor de Deus!



Primeiro, Hoag bebeu.



— Por Deus, como isso é bom! — Ele tirou o capote, sentou-se, respirou fundo e sentiu-se melhor. — Por Deus, como me sinto satisfeito em vê-lo! Onde era mesmo que eu estava? Ah, sim... quando me encontrei com Tess pela primeira vez, sentia-me transtornado por ela. Foi horrível. Encontrei-a no antigo escritório de Culum e ela disse: “Ronald, dê-me as notícias ruins, todos os detalhes, conte o que aconteceu.” Ela estava de pé, ao lado da escrivaninha enorme, empertigada. nunca tão pálida, Jamie... o retrato de Dirk na parede, olhando para você com aquela ameaça de olhos verdes, desafiando-o a mentir. Relatei tudo a ela, da melhor forma que podia, é claro que ela já tomara conhecimento de algumas coisas, por intermédio de Strongbow... lembra que eu pedi a ele para informá-la que seguiria no navio de correspondência, lamentava não poder viajar no Cloud, pois tinha uma operação a realizar.



Hoag fez uma pausa.



— Ela nunca tremeu, Jamie, não vacilou em momento nenhum, apenas escutou, enquanto eu falava sobre a Tokaidô, o noivado, casamento e morte, da melhor forma que podia, tão gentilmente quanto podia, o duelo, Norbert, você e Gornt. Tudo saiu, não me lembro das palavras exatas, mas contei como aconteceu.



Ele parou por um momento, menos nervoso agora.



— Sei como ela é, sempre se contendo, sempre escondendo, a mulher mais firme e impassível em toda a cristandade, e apenas me agradeceu, disse que tinha o atestado de óbito, os papéis do inquérito, entregues por Strongbow. Uma mulher extraordinária. Fantástica. E isso é tudo... ah, sim, ela me agradeceu por cuidar do caixão, junto com o agente funerário, e tudo correu bem, graças a Deus.



— Hem?



Os olhos de Hoag faiscaram.



— Naturalmente, eu não queria que o caixão fosse aberto. Dissera a Strongbow que mandasse direto para Blore, Christenson, Herberts. Tenho feito muitos negócios com Herberts e Crink e ordenei-lhes, “por motivos médicos”, que pusessem o caixão direto num deles, da melhor qualidade, alças de prata, e o fechassem no mesmo instante, sem deixar aberto, em exposição, recomendava isso por causa da decomposição, etc, e aconselhara Tess nesse sentido por uma carta, nos termos mais incisivos. Fico contente em dizer que tudo correu bem, do nosso ponto de vista, e de Malcolm. — Hoag tornou a encher o copo. — Ainda bem que fui até lá. De qualquer forma, tudo o que termina bem está bem.



— Falou a ela sobre o outro sepultamento, o nosso?



— Claro que não! Pensa que sou idiota? Está perdendo o juízo, Jamie.



— Só perguntei para ter certeza.



Jamie não se sentiu satisfeito ao lembrar que Maureen usara a mesma palavra. Portanto, deve ser isso mesmo. Acho que estou meio Atônito. Mas o que farei com ela?



— Tess disse alguma coisa sobre Angelique?



— O que ela planejava fazer? Não, embora me fizesse dezenas de perguntas. Como está Angelique?



— Bem... exteriormente. Calma, retraída, de vez em quando janta comigo. Esta noite vai jantar com Zergeyev, a pedido de Sir William. Nada como sua velha chama... — Essa idéia de novo, pensou Jamie, angustiado. — ...mas continua adorável, mais do que nunca. O que Tess perguntou?



— Nada demais, só sobre os fatos, como eu os conhecia. Respondi que achava que eles estavam mesmo apaixonados, que foi Malcolm quem a perseguiu, não o contrário, que ela se comportou como uma dama, aceitou o pedido de casamento, e concordou com a cerimônia a bordo da Pearl.



— Mas nada sobre o que ela planeja fazer?



— Não, e essa é a parte estranha. Pensei que ela se mostraria furiosa, pediria conselhos, daria uma indicação qualquer, mas isso não ocorreu. Afinal, sou o médico da família há anos, contratado por ela, pela Struan, e a conheço melhor do que qualquer outra pessoa. Tess não comentou coisa alguma, não revelou nada, as perguntas foram apenas para cobrir detalhes que eu me esquecera de mencionar Muito esquisito.



— É verdade. Ela deve ter um plano.



— Concordo. Claro que a história saiu na imprensa, os jornais mais sensacionalistas deram detalhes tétricos, TAI-PAN MORRE NA NOITE DE NÚPCIAS esse tipo de manchete, embora Tess tentasse abafar. Trouxe todos os recortes para você, e também isto aqui.



Os olhos de Hoag assumiram um brilho diferente. Entregou um envelope a Jamie. A letra de Tess. Sr. J. McFay, pessoal, em mãos.



— Antes que você pergunte, não sei o que contém. Ela disse apenas: Por favor, entregue isto ao Sr. McFay, assim que chegar.



Jamie largou o envelope em cima da mesa.



— Por que você voltou?



— Antes que eu me esqueça, mais uma coisa. O velho Brock e seu filho igualmente infame, Sir Morgan, compareceram ao funeral.



— O quê? Sem serem convidados?



— Causou a maior sensação. Aconteceu da seguinte maneira. Tess fez o funeral no China Cloud. O caixão seguiu em carruagem pelo passeio até o clíper. Quarenta convidados a bordo, o governador, todos os graúdos, o almirante Sir Vincent-Sindery, o general Skaffer... o novo comandante supremo na Ásia, muito formal, do exército indiano... todos os tai-pans, e Gordon Chen. Nada de imprensa. No momento em que o clíper fez a volta, ao largo de Shek-O, o serviço prestes a começar, o velho Brock e Morgan chegaram em seu clíper, o Hunting Witch. Parou a alguma distância, com a bandeira a meio mastro, ele e Morgan no tombadilho superior, vestidos em trajes de funeral, cartola, camisa de rufos. Quando o caixão foi lançado no mar, o desgraçado disparou uma salva de canhão, e abriu champanhe... todos a bordo disseram que ouviram o espocar da rolha. Beberam um brinde, jogaram os copos e a garrafa no mar, levantaram as cartolas, enquanto partiam, ruidosamente.



— Mas que filhos da puta!



— Concordo. Mais tarde, eles alegaram que foi “para homenagear o pobre rapaz falecido”. O governador se encontrava ao lado de Tess. Contou-me que ela nada fez, nada disse, permaneceu impassível, só que ele ouviu sua respiração sair num sibilo, com uma violência que o chocou, disse que fez seus ovos subirem, conhece a sensação... ah, esqueci de mencionar, Gornt também estava no navio dos Brocks.



— Maureen disse que ele veio assumir a Brock aqui.



— É verdade. Assim assim, acho que é um rapaz simpático. Ainda assim. Ele me disse que recebeu uma ordem para embarcar no Hunting Witch... ei, esqueci também de mencionar Maureen! Jamie, você é um homem de sorte.



— Obrigado.



— Muita sorte. — Hoag estendeu a mão. — Meus parabéns.



— Obrigado. — Jamie apertou a mão estendida e fingiu estar satisfeito, embora se sentisse deprimido. — Pensamos... eu pensei que era Tess. Mesmo com o binóculo, no escuro, ela toda coberta, era um erro fácil de se cometer.



— Hem? Não diga bobagem, ela não é nada como Tess!



Injuriado, Jamie declarou:



— Sei disso, mas elas são da mesma altura e seu porte ereto é igual ao de Tess.



Hoag franziu o rosto, soltou um grunhido.



— Isso nunca me ocorreu. Mas agora que você menciona, é verdade, mas ela não é nada parecida com Tess, quando se olha de perto. Deve ser pelo menos dez a quinze anos mais moça, tem cabelos castanho-avermelhados e uma personalidade exuberante.



— Sei de tudo isso, mas foi um erro compreensível.



— E afortunado. Eu não gostaria de fazer a viagem com Tess, de jeito nenhum! Sua Maureen é sensacional. Disse que tinha escrito para avisá-lo de sua chegada.



— Em Hong Kong, não aqui. E sem indicar a data da chegada lá.



— Ora, não havia tempo, pois o Prancing Cloud estava para zarpar quando ela chegou em Hong Kong. — Hoag riu. — Acho melhor tomar cuidado com ela ou vai perdê-la. Gornt ficou fascinado.



Jamie corou, com ciúme, contra a sua vontade.



— Obrigado pelo aviso. Como estão as crianças de Tess? Você as viu?



— Claro. Estão saudáveis, embora Duncan tivesse outro resfriado terrível. Compareceram ao funeral... ouvi dizer que foi muito triste, o pequeno Duncan tentando se mostrar corajoso, Emma e Rose chorando, Tess com um véu grosso... todos sabendo que era o fim de uma era, o fim da linhagem direta de Dirk, exceto por Duncan, e ele não poderá herdar por muito tempo, pois tem apenas dez anos. Não é um bom augúrio para a Casa Nobre. O boato mais quente em Hong Kong é o de que a Brock está prestes a liquidar a Casa Nobre.



— Não há a menor possibilidade! — Jamie tentou parecer convincente. — O novo tai-pan virá da linha de Robb, Robb Struan, o meio-irmão de Dirk. Um dos seus filhos ou netos será o tai-pan.



— Acho que você tem razão, mas não será a mesma coisa. É terrível o que aconteceu com Malcolm, pois ele era a esperança de Tess. Durante todo o tempo em que estive em Hong Kong, pensei em nosso sepultamento, tão desnecessário, hem? É melhor esquecermos isso para sempre. Malcolm foi sepultado lá, ao largo de Shek-O.



— Eu gostaria que tivesse sido assim, como Sir William e todos nós queríamos. — Jamie tivera outro pesadelo na noite anterior sobre o que o contramestre dissera ter visto, o cadáver se debatendo para aflorar à superfície, os olhos arregalados. — Mas fizemos o melhor que podíamos. E agora pode me explicar por que voltou?



Hoag levantou-se.



— Tess pediu-me para entregar a correspondência a MacStruan e a você, que procurasse Angelique para lhe dar uma carta. — Ele viu os olhos de Jamie. — Não sei o que há nelas.



— Nelas? Não tinha dito uma carta?



Hoag ficou vermelho.



— Ahn... é isso mesmo. Uma carta. Não sei o que contém. Bom, é melhor eu ir agora...



— Ora, não me venha com essa, pelo amor de Deus!



— Tess me pediu para lhe entregar... uma carta, e isso é tudo.



— Pare com isso! Eu o conheço muito bem!



Hoag se irritou.



— Acho melhor eu ir falar com Angelique agora. Ela vai querer saber...



— Sente-se! Que cartas, pelo amor de Deus?



— Não sei nada sobre...



— Não me venha com essa merda! Que cartas?



Hoag hesitou, mas acabou falando:



— Se você jurar pela cabeça de sua mãe... eu contarei.



— Juro!



O médico tornou a sentar.



— Tess disse apenas: “Entregue esta carta àquela mulher, espere uma semana, ou por aí, e depois lhe entregue uma destas duas cartas.” Ela me deu três cartas, mas não sei o que contêm. Juro por Deus que não sei.



— Uma semana? Ou seja, até o dia da gravidez? Uma de duas cartas, hem? Uma se ela estiver grávida, outra se não estiver?



— O dia 11 seria o primeiro dia, mas não é possível ter certeza nessa ocasião, será preciso esperar pelo menos mais duas semanas, e ainda assim será mais seguro aguardar o mês, para saber se ela menstruou ou não. A data pode demorar, porque às vezes é difícil determinar, em seu caso porque a pobre moça passou por um tremendo estresse... Tess me pediu para esperar até ter certeza absoluta. — Hoag deixou escapar um suspiro. — Pronto, agora você já sabe de tudo.



— Tess pediu que esperasse até examiná-la?



— Bom... sim, até eu ter certeza.



— Portanto, uma carta se ela estiver grávida, outra se não estiver?



— Isso mesmo... já disse.



— A quem mais você contou?



— A ninguém.



— Quem?



— Vá para o inferno! — explodiu Hoag. — Gornt!



— Oh, Deus! Por que ele?



— Não sei. Gornt parecia saber, chegou à mesma conclusão, e suponho que todos farão assim, concordo que é bastante óbvio, agora que estou de volta... Foi o que ressaltei para Tess, mas ela não me disse nada, apenas fitou-me com aqueles seus olhos cinzentos. É fácil para você, Jamie, é fácil para você e os Gornts deste mundo, são fortes, acostumados aos negócios, mentir não é parte dos negócios durante a maior parte do tempo? Só que não é assim com os médicos.



Repugnado com sua incapacidade de guardar segredos, Hoag exalou longo suspiro.



— Não posso mudar, depois de tanto tempo. Tess disse para explicar a Sir William o motivo da minha volta, a Albert e a você, a mais ninguém.



— Não se preocupe. Tem toda razão, não haverá um único homem em Iocoama que não compreenda o motivo de sua presença aqui. Para quem mais você trouxe correspondência de Tess?



— Não... Sir William.



— Quem mais? Quem mais, pelo amor de Deus?



— Heavenly Skye.







Fingindo uma tranqüilidade que não sentia, Hoag entregou a Angelique o envelope, lacrado com o sinete da Casa Nobre. Seu estômago se agitava desde que Jamie lhe dissera quem chegara com o Prancing Cloud, por mais que tentasse parecer indiferente. Nem mesmo a informação quase imediata de Vargas de que a mulher era a noiva do senhor McFay, e não Tess Struan, conseguira tranqüilizá-la. Nem o relato desconexo de Hoag sobre o funeral de Malcolm, que a confundira ainda mais. Estava escrito no envelope: “Angelique Richaud, em mãos.”



— Por que não lê enquanto estou aqui? — sugeriu ele, preocupado com o repentino rubor de Angelique.



— Para o caso de eu desmaiar? — indagou ela, ríspida, sentada na cadeira ao lado do fogo, a cadeira de Malcolm, que tirara da suíte, antes de desocupá-la para Albert MacStruan.



Hoag explicou, gentilmente:



— Porque você pode querer conversar. Sou um amigo, além de médico.



Ele subira correndo, ao sair da sala de Jamie, contente por escapar da inquisição, cumprimentara-a e abraçara-a, evitara a sua indagação imediata, sobre o que acontecera em Hong Kong, dizendo:



— Espere um instante. Deixe-me primeiro contemplá-la. Examinara-a com cuidado, primeiro como médico, depois como amigo. Nos dois casos, ficara satisfeito com o que vira.



— Foi apenas uma sugestão, Angelique.



— A carta não está endereçada da maneira correta. Deveria ser Sra. Angelique Struan ou Sra. Malcolm Struan.



Contrafeita, ela devolveu a carta.



— Tess previu que você faria isso.



Hoag falou em tom gentil.



— Se ela é tão esperta, por que não endereçou da maneira correta?



— É difícil para ela, assim como é difícil para você. Afinal, é uma mãe que perdeu o filho. Seja paciente, Angelique.



— Paciente? Eu? Quando estou sendo atacada por casar e amar um homem maravilhoso, que... Você está do lado dela, é a Struan que paga seu salário.



— É verdade, mas meu lado é o que julgo certo, e isso não se encontra à venda, nem mesmo para você.



Hoag sentou, sempre amável. A sala era aconchegante e feminina, impregnada de tensão. Ele viu a veia no pescoço de Angelique pulsar forte, os dedos tremendo um pouco.



— Eu a ajudei e a Malcolm, mas apenas porque achei que era o mais certo. Para seu conhecimento particular, pedi demissão quando cheguei em Hong Kong, Este é meu último serviço para a Casa Nobre.



Angelique ficou surpresa.



— Por que fez isso?



Outra vez o mesmo sorriso estranho.



— Voltarei para a índia. Vou tentar descobrir o que perdi. O mais depressa possível.



— Ah, Arjumand! — Isso a fez sentir-se melhor. Inclinou-se, pôs a mão no braço de Hoag. — Desculpe o que eu disse. Estava enganada. Desculpe... sinto muito.



— Não pense mais nisso. Lembre-se de que sou médico e compreendo a tensão a que você está submetida. Havia me preparado para algo pior.



Ele rompeu o lacre, abriu o envelope.



— Ela me disse para fazer isso. — Dentro, havia outro envelope. Endereçado mais simplesmente: Angelique. — Uma concessão, hem? Uma concessão sugerida.



— Por você?



— Isso mesmo.



— Sabe o que diz a carta?



— Não. Juro por Deus. Quer que eu saia?



O olhar de Angelique fixou-se na carta. Um momento depois, ela sacudiu a cabeça, e Hoag foi até a janela, a fim de lhe proporcionar um mínimo de privacidade, abriu as cortinas, observou a noite, seu próprio coração disparado.



Angelique hesitou, depois abriu o segundo envelope. Sem cumprimentos. Sem nome.





Não posso perdoá-la pelo que fez a meu filho.



Acredito sinceramente que, a pedido e exortada por seu pai, você deu em cima de meu filho, a fim de atraí-lo para o casamento, qualquer tipo de casamento. Seu “casamento” com meu filho não é válido, tenho certeza. Esse “casamento” precipitou a morte dele, tenho certeza — o atestado de óbito indica isso. Nesse sentido, os advogados da Struan estão preparando petições, a serem apresentadas o mais depressa possível no Tribunal Superior de Hong Kong. Mesmo que esteja esperando uma criança de meu filho, isso não desviará o curso da justiça, nem evitará a declaração de que a criança é ilegítima.



Não posso deixar de lhe agradecer pelas valiosas informações que me foram transmitidas, por instigação sua, pelo nosso conhecido comum.



Se, como acredito que acontecerá, o material provar ser válido, eu e a Casa Nobre ficaremos em dívida com você e com essa pessoa, a um preço inestimável. O fato de que ele indicou um preço, razoável, considerando-se o seu valor, não é da sua conta, já que nada pediu e nada receberá. Mas seu presente para a memória de meu filho e o futuro da Struan merece alguma consideração.



Como resolver esse impasse?



A solução, se é que alguma pode ser encontrada, deve ficar entre nós, como inimigas — sempre seremos inimigas — e como mulheres.



Primeiro, peço que coopere com o Dr. Hoag, permitindo que ele a examine na ocasião oportuna, para confirmar se espera ou não uma criança. Claro que o Dr. Babcott ou qualquer outro médico que desejar pode ser consultado, para corroborar o diagnóstico.



Segundo, vamos esperar até o segundo mês, para haver certeza, e depois seguiremos adiante. A esta altura, a petição já estará preparada, e pronta para ser apresentada ao tribunal... e não digo isso como uma ameaça, apenas como um fato. A esta altura, as informações de nosso conhecido já terão dado resultados, pelo menos parciais. No momento, não imagino como podem falhar. O fato de que o persuadiu a me procurar contribuiu para criar, como já ressaltei, uma obrigação minha e da Casa Nobre com você.



Talvez, a esta altura, com a ajuda de Deus, o impasse possa ser resolvido. Tess Struan, Hong Kong, 30 de dezembro de 1862.





A mente de Angelique oscilava entre a felicidade e o terror, vitória e derrota. Vencera ou fracassara? Tess Struan nada prometia, mas acenara com um ramo de oliveira? Petição legal? Tribunais? Banco das testemunhas? Pálida agora, ela recordou as palavras de Skye, como seria fácil para a oposição descrevê-la como uma Jezebel sem dinheiro, filha de um criminoso, e outras horríveis verdades distorcidas. “Impasse” e “solução”? Isso não significava que ela vencera, pelo menos uma vitória parcial?



Edward! Esta noite ou amanhã, Edward me contará tudo! E o Sr. Skye é esperto, ele saberá, oh, Deus, espero que saiba!



Angelique levantou os olhos e deparou com Hoag a observá-la.



— Oh, desculpe, eu tinha esquecido... — Atordoada, ela torceu o pano de uma manga, batendo com o pé no chão, inquieta. — Não queria um drinque? Posso chamar Ah Soh e... desculpe... parece que não consigo...



Era difícil organizar as palavras e Hoag percebeu a mudança, especulou se seria o princípio do colapso que previra. Os sinais existiam, as mãos se agitando sem serem notadas, o rosto pálido, os olhos arregalados, as pupilas alteradas.



— O que ela disse? — indagou Hoag, afável.



— Ahn... nada... exceto para esperar até...



As palavras definharam, o olhar de Angelique perdeu-se na distância.



— Até? — insistiu ele, a fim de trazê-la de volta, escondendo sua preocupação.



Mas ela se deixara arrebatar pelo que lera. Portanto, as linhas da batalha haviam sido traçadas. Angelique sabia o pior ou o melhor. Sua inimiga fizera o primeiro movimento, anunciara sua posição. Agora, ela podia ingressar na batalha. Em seus próprios termos. A náusea se desvaneceu. Em seu lugar, surgiu o fogo. O pensamento de que ELA expusera o torpe e o possível com tanta frieza a deixava ardendo de raiva... nada por ela, nenhuma preocupação, nenhuma concessão por todo o amor, agonia e dor pela morte de Malcolm. Absolutamente nada. E o pior de tudo, ilegítima, quando haviam casado dentro das leis britânicas... Tenho certeza!



Sem medo, pensou ela, isso está gravado em minha memória, em aço derretido. Angelique tornou a fitar Hoag, tremendo.



— Ela disse que quer esperar... esperar até que nós, você e eu, saibamos se estou ou não esperando uma criança de Malcolm. Quer ter certeza, é isso o que ela deseja.



— E depois?



— Ela não diz. Quer esperar e quer que eu espere também. Há uma vaga... acho que ela diz que talvez possa haver paz, uma solu...



O tremor parou quando uma decisão se definiu e a voz se tornou sibilante, impregnada de veneno:



— Espero que haja paz, porque... porque sou a viúva de Malcolm Struan e ninguém, nenhum tribunal, nem mesmo Tess Desgraçada Struan pode me tirar isso!



Hoag disfarçou seu nervosismo e disse, cauteloso:



— Todos achamos que é mesmo. Mas precisa manter a calma, não se preocupar. Se tiver um colapso, ela vence, você perde, qualquer que seja a verdade não há necessidade...



A porta foi aberta. Ah Soh entrou.



Miss tai-tai?



— Ah! — explodiu Angelique. — Por que não bateu?



Ah Soh firmou bem os pés no chão, secretamente satisfeita porque a demônia estrangeira perdera o controle.



— Mensagem, querer ouvir, hem? Mensagem, miss tai-tai?



— Que mensagem?



Ah Soh adiantou-se, arrastando os pés, entregou o envelope pequeno, fungou se retirou. A letra de Gornt. Angelique desceu da montanha de sua fúria.



Havia um cartão lá dentro, com E.G. gravado. A mensagem dizia: “Meus calorosos cumprimentos. A visita a Hong Kong foi bastante intrigante. Podemos nos encontrar amanhã de manhã? Seu mais obediente servidor, Edward Gornt.”



Abruptamente, Angelique sentiu-se íntegra de novo. Forte, transbordando de determinação, esperança e espírito de luta.



— Tem toda razão, doutor, mas não terei um colapso, juro que não terei, não por Malcolm, não por mim, não por você, Jamie e o Sr. Skye. É um amigo muito querido e já me sinto bem agora. Não há mais necessidade de falar sobre aquela mulher.



Ela sorriu, e Hoag compreendeu que o sorriso era ao mesmo tempo bom e mau... mais sinais de perigo.



— Vamos esperar e ver o que o futuro nos reserva. E não precisa se preocupar. Se eu não me sentir bem, pode ter certeza de que o chamarei imediatamente. — Angelique levantou-se, foi beijar o médico nas faces. — Obrigada mais uma vez, meu amigo querido. Vai ao jantar do conde Zergeyev?



— Talvez. Ainda não decidi. Estou um pouco cansado.



Hoag saiu, ocultando seu presságio. Ela tornou a ler o cartão. Edward se mostrava circunspecto, outro bom sinal, pensou. Se o cartão fosse interceptado ou lido, nada deixaria transparecer. “Intrigante” era uma boa palavra para se escolher, e “servidor obediente” também. Como as palavras daquela mulher, que apodreça no inferno.



O que fazer?



Vestir-se para jantar. Mobilizar seus aliados. Prendê-los a você. Pôr em prática os planos que concebeu. E transformar Iocoama no seu bastião inexpugnável contra aquela mulher.







Ignore os soldados gai-jin tentando encontrá-lo, Hiraga, e esqueça Akimoto disse Katsumata, contrariado com o inesperado contratempo em seu plano. — Três são suficientes. Atacaremos amanhã, incendiaremos a igreja e afundaremos o navio. Takeda, você cuida da igreja.



— Com o maior prazer, sensei, mas por que não aproveitar o plano de Ori e queimar toda Iocoama? Hiraga tem razão, vamos esquecer o navio. Sinto muito, mas ele está certo nesse ponto — disse Takeda, inclinando-se para o lado dele, pois Hiraga era o líder dos shishi de Choshu e sensato ao levar em consideração a retirada. — Seria muito difícil chegar perto de um navio sem sermos observados com este mar, com este vento. Por que não usar o plano de Ori, em vez disso, e incendiar todo o ninho de gai-jin?

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