XVII

Uma neblina densa pairava languidamente sobre o Mondego, criando a estranha ilusão de que o casario de Coimbra se erguia sobre as nuvens como uma cidade do céu, a torre sineira da universidade a coroá-la no alto, resplandecente à luz baça da manhã. O velho Volkswagen azul cruzou a rua ladeada de plátanos e virou à esquerda, na zona da Quinta de Santa Comba. Depois de deixar Alexandre a uma esquina, não muito longe da garagem do primo, Tomás meteu por uma ruela que desaguou numa praceta tranquila, rodeada de pinheiros mansos cujos ramos acariciavam os telhados de várias vivendas.

O automóvel imobilizou-se junto de uma moradia branca protegida por um muro coberto de trepadeiras e com uma sebe bem adelgaçada plantada no topo.

"Chegámos!", anunciou o condutor enquanto desligava o motor e puxava o travão de mão. Voltou-se para o companheiro de viagem.

"Tenho de ir ver a minha mãe. Ficas aqui ou vens?"

Filipe soltou o cinto de segurança.

"Vou, claro", disse, sempre agarrado ao seu envelope. "Preciso de desenferrujar as pernas."

Apearam-se e dirigiram-se para a vivenda. Ao lado do portão havia um azulejo branco com um nome a azul. O Lugar do Repouso. Entraram no jardim a pisar as pedras semeadas pelo caminho entre a relva acabada de regar, como ilhotas cinzentas num mar verde, e só pararam diante da porta. Tomás carregou na campainha e ouviu um som eléctrico contínuo no interior do edifício.

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Volvidos alguns segundos, a porta abriu-se e apareceu uma mulher de bata e touca branca.

"Professor Noronha!", exclamou ela, reconhecendo o visitante.

"Bons olhos o vejam!"

"Olá", devolveu o historiador, embaraçado por não se lembrar do nome da enfermeira. "Vim visitar a minha mãe."

A mulher da bata branca fez-lhes sinal de que entrassem.

"Venha daí, ela está na varanda a apanhar sol."

O interior da moradia exalava um odor característico, talvez uma mistura de sopas, medicamentos e detergentes; era um cheiro que Tomás inadvertidamente associava à velhice. A enfermeira conduziu os visitantes pelas escadas para o piso superior.

"Como está ela?"

A enfermeira exibiu a mão e dançou com ela no ar, num gesto não muito optimista.

"Tem dias, como sabe", disse. "Hoje parece-me que não é dos melhores, receio bem. Prepare-se."

O aviso desanimou Tomás. Não valia a pena dizerem-lhe que se preparasse, sabia; a verdade é nunca se está verdadeiramente preparado para um dia mau de alguém que sofre de Alzheimer. A degradação do estado da mãe era felizmente muito lenta, mas parecia-lhe inegável que com o tempo ela perdera faculdades.


Dona Graça estava sentada a uma esquina da varanda com uma manta amarela sobre os joelhos, voltada para a mata fronteira à vivenda, os olhos fechados a saborearem o bafo quente do sol. O ar enchia-se do estridular irrequieto dos insectos, sobretudo das cigarras que enxameavam a mata e embalavam a manhã com a sua estranha melodia.

"Dona Graça, olhe quem a veio visitar."

O olhar verde da velha senhora desviou-se para a enfermeira, 135


depois para o filho e a seguir para o amigo que o acompanhava, mas depressa se voltou a fechar, sempre inexpressivo, como se nada tivesse visto de relevante.

Mantendo um sorriso nos lábios, Tomás dobrou-se sobre ela e beijou-a na testa.

"Olá, mãe. Está boa?"

Apanhada de surpresa pelo beijo, dona Graça abriu os olhos com um sobressalto e atirou-lhe uma nova mirada, desta feita prolongada e inquisitiva.

"Quem é o senhor?"

O filho respirou fundo para aparar o golpe; a mãe não estava realmente num dos seus melhores dias. Não era a primeira vez que ela não o reconhecia, mas ainda não se habituara a essa realidade.

Suspeitava aliás que nunca se habituaria.

"Sou o seu filho", retorquiu com suavidade. "O Tomás, lembra-se?"

Ela abanou a cabeça.

"O meu Tomás está na escola", disse ela com súbito orgulho. "A professora disseme que ele é o melhor da classe. Vivaço que até esmilha!" Sorriu. "Ah, sai ao meu pai, que também era muito esperto..."

O filho não insistiu, sabia que em dias assim não valia a pena; as memórias da mãe confundiam-se e parecia evidente que nesse momento a sua mente estava presa num qualquer ponto do passado.

Trocou com ela algumas palavras de circunstância e saboreou também o sol da manhã. Dona Graça manteve-se alheada da sua presença, apenas lhe prestando atenção ocasional. Ao fim de vinte minutos, sentindo-se incapaz de aguentar a situação, o filho deu à mãe um beijo de despedida e abandonou cabisbaixo a varanda.


Os olhos achocolatados da directora da instituição acolheram-no no átrio com um calor que lhe consolou a alma. Maria Flor tinha um esgar sonhador, doce e carinhoso, uma face abolachada, bonita e 136


fresca, com cabelo castanho ondulado em madeixas claras e lábios carnudos que lembravam gomos de laranja; vendo-a sorrir, parecia impossível não pensar em beijá-la.

"Que tal a sua mãe?"

Tomás suspirou.

"Hoje não está grande coisa", disse. "Não me reconheceu."

A directora do lar afagou-lhe o ombro.

"Há dias assim, não se apoquente. Às vezes ela deita os medicamentos fora às escondidas e piora um pouco. Mas vou dar ordens para a acompanharem melhor à hora de tomar os comprimidos. Vai ver que melhora logo."

O toque no ombro foi feito para o consolar, mas teve um efeito eléctrico no visitante. Tomás já conhecia Maria Flor havia alguns anos e, apesar de a achar muito atraente, nunca se atrevera a tentar o que quer que fosse. Talvez não passasse de parvoíce, mas ela de certo modo puxava pela sua timidez natural, quase como se o intimidasse.

"Estou certo que sim", acabou por dizer, ciente de que a responsável pelo lar tinha razão. "Da próxima vez que cá vier ela estará melhor."

Ficaram ambos momentaneamente sem saber o que fazer ou dizer. Ele queria alimentar a conversa e partilhar um momento mais com a sua anfitriã, mas não tinha tema. A mãe e a sua velhice não lhe pareciam o assunto mais empolgante para discutir com uma mulher tão interessante e as circunstâncias tornavam desapropriada qualquer iniciativa mais arrojada. Convidá-la-ia para jantar? Ali, no sítio onde a mãe vivia e pouco depois de ela nem sequer o reconhecer? Não podia ser. Além do mais, sentiu a presença de Filipe e da enfermeira atrás dele, a aguardarem o desfecho da conversa. Na verdade havia ainda um assunto para discutir, aquele que ela mencionara ao telefone sem nunca o explicar, mas cabia à directora mencioná-lo.

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"Sabe, professor Noronha..."

"Chame-me Tomás."

Ela hesitou e enrubesceu, mas acatou a sugestão.

"Muito bem... Tomás." Fitou-o com os seus grandes olhos castanho-claros, como se avaliasse a reacção dele à forma como ela pronunciara o seu nome. Depois fez uma careta, a indicar que tinha algo desagradável a dizer. "Sabe, Tomás, telefonei-lhe porque apareceu agora um problema aborrecido que queria discutir consigo.

Não é exclusivo da sua mãe, note bem, mas..."

"Que se passa?", perguntou ele, levemente alarmado com o embaraço que lhe lia nos olhos. "Sucedeu alguma coisa?"

Maria

Flor

suspirou,

claramente

incomodada

com

as

suas

responsabilidades nesse momento.

"É um problema de... de dinheiro."

A palavra surpreendeu Tomás.

"Dinheiro?", estranhou. "Dinheiro como? Vocês recebem na íntegra a reforma dela, não é verdade?"

A directora do lar engoliu em seco.

"Com certeza", assentiu. "O problema é que... a reforma foi cortada, lembra-se?"

"Como?"

"Então não sabe?", admirou-se ela. "Por causa da crise, além de reduzir salários e eliminar subsídios o governo fez cortes nas pensões.

Ela levou uma talhada de quase dez por cento na reforma, veja lá."

Vacilou. "Ela não. Nós. Passámos a receber menos dinheiro, mas temos os mesmos gastos." Abanou a cabeça e suspirou num lamento.

"Ah, é um problema! Como sabe, não sou dona do lar, apenas a directora. Os proprietários já me chamaram a atenção para a questão e... enfim, temos de resolver isto. Há várias pessoas aqui que estão na mesma situação, não é só a sua mãe, pelo que temos pedido às famílias que... que reponham a parte em falta."

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Maria Flor desviou os olhos quando concluiu a sua exposição, evidentemente embaraçada com o que era forçada a pedir.

"Eu daria o dinheiro de muito bom grado", devolveu Tomás, desconcertado com a situação com a qual era confrontado. "O

problema é que perdi o emprego."

A sua interlocutora levou a mão à boca.

"Ah!", exclamou, chocada. "Não me diga!"

"É verdade", confirmou ele. "Também por causa da crise a minha faculdade teve de começar a dispensar os professores que não são do quadro. Fui apanhado na varridela.

Fez-se um súbito silêncio enquanto a directora do lar digeria a notícia e as suas implicações.

"Quer dizer que... que não tem modo de cobrir o dinheiro em falta?"

A pergunta ia direita ao centro do problema e Tomás teve de respirar fundo antes de responder.

"Bem, disponho de algum dinheiro amealhado", disse. "Além do mais, estou agora a receber do fundo de desemprego, claro. Isso dá-me alguma margem."

Maria Flor estudou-o com atenção.

"Sem querer ser indiscreta, esse dinheiro amealhado é coisa que se veja? "

"Não muito, infelizmente. Nem sei se chegará para aguentar a minha mãe muito tempo aqui."

"Então o que vai fazer?"

Tomás respirou fundo.

"Pois, não sei. A verdade é que não posso deixar que a ponham na rua, isso nem pensar. O que tem de ser tem muita força. Preciso de arranjar trabalho, nem que tenha de ir para as obras."

A sua interlocutora soergueu as sobrancelhas.

"Quais obras? Não vê que a construção civil está parada?"

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"Era uma forma de expressão", explicou ele. "O que quero dizer é que farei tudo o que for preciso para resolver o problema."

A directora do lar ficou por momentos a fitá-lo, os olhos presos nele, evidentemente a matutar no problema. Depois respirou fundo e esboçou um sorriso fraco, mas suficientemente caloroso para pelo menos lhe aquecer o coração. De seguida e sorriso desfez-se.

"Isto é uma chatice", desabafou com desânimo. "Os proprietários do lar não querem nem um tostão em falta. Como as pensões dos reformados estão a ser reduzidas, as famílias têm mesmo de entrar com a diferença. Os Proprietários disseram-me que comunicasse às famílias que têm de repor a diferença até... até quinta-feira à noite."

Tomás fez um gesto de desalento; como era terça-feira, seria daí a dois dias.

"Quinta-feira? Veja se me dão mais algum tempo..."

Maria Flor voltou a pousar a mão no ombro dele, derramando a doçura quente do seu olhar sobre a expressão preocupada do visitante.

"Posso falar com eles, mas não vão aceitar..."

O historiador suspirou, resignado.

"Está bem, terei de avançar com as minhas poupanças", rendeu-

-se. "Quando chegar a Lisboa vou pedir ao banco que faça uma transferência, não se apoquente."













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