XX

Fez duas chamadas sucessivas para o número de telefone e o facto de ninguém ter atendido deu-lhe a indicação segura de que o apartamento estava deserto. Essa era, de resto, a conclusão a que já havia chegado após duas horas a vigiar o edifício.

Manejando com destreza a chave-mestra, Decarabia forçou a fechadura e a porta do apartamento do segundo esquerdo abriu-se com um clique metálico.

"Correio!", anunciou, a cabeça espetada pela entrada a espreitar o interior. "Está alguém em casa?"

Como era de esperar, ninguém respondeu. A pergunta, aliás, só tinha sido lançada como medida adicional de segurança. Confiante de que não haveria surpresas, o intruso fechou a porta atrás dele e começou a revistar o apartamento. Procedeu metodicamente, iniciando a busca pela sala e terminando nos quartos de banho. Era por de mais evidente que estava num espaço masculino, a que faltava o toque artístico de uma mão de mulher. Não havia flores nem nenhum objecto de decoração para além de uns quantos souvenirs de viagem e das mais diversas velharias, um Buda tibetano assente numa coluna, uma placa com hieróglifos sobre a estante, um velho pergaminho com caracteres hebraicos pregado à parede, um boomerang aborígene australiano pousado no estirador, um vaso cheio de moedas romanas antigas.

Decarabia vasculhou nas gavetas, nos armários e até nos colchões, mas nada encontrou de relevante para além de fotografias.

Viu espalhadas pelos móveis imagens emolduradas de uma menina com síndroma de Down, a foto de uma mulher com sardas, possivelmente 160




a mãe da menina, um cliché antigo mostrando um casal com uma criança, decerto o morador do apartamento quando era criança a posar com os pais, e algumas fotos de um homem em diferentes pontos do planeta, aqui diante das pirâmides de Guiza, ali rodeado de gelo num cenário polar, acolá à frente do Potala em Lhasa, no outro lado a deambular pelo bairro muçulmano da cidade velha de Jerusalém.

Sentou-se no sofá, sacou do telemóvel que tinha no bolso e digitou o número.

"O nosso alvo não está em casa, grande Magus", disse logo que uma voz atendeu do outro lado. "Aliás, o apartamento está deserto."

"Deserto como? Achas que fugiram?"

Decarabia fez uma careta céptica.

"Não, isso acho que não. Dá a impressão de que simplesmente se ausentaram. Uma fuga em cima da hora implicaria sempre uma certa confusão." Passou os olhos pelo espaço em redor. "Está tudo demasiado arrumado para isso."

A voz na linha pareceu descontrair-se.

"Ainda bem", disse. "Então o que vais fazer agora?"

"Montar-lhes uma emboscada, claro."

"Perfeito." Fez uma pausa e ouviu-se o som de papéis a serem remexidos. "Olha, tenho aqui a identificação do amigo."

"Já sei. É um historiador qualquer que foi colega dele no liceu.

Quando vos enviei a imagem registada pela câmara da máquina multibanco disseram-me que..."

"Isso foi a identificação sumária que te deram", disse Magus. "Mas chegou-me agora um relatório completo sobre esse fulano e... com franqueza, fiquei preocupado."

O recurso a esta última palavra por parte do seu interlocutor surpreendeu Decarabia.

"Preocupado, grande Magus? Porquê?"

"Esse tipo significa sarilhos", foi a resposta. "Tem cara de vedeta de 161


cinema e um currículo de menino betinho, mas pelos vistos já esteve envolvido em operações muito delicadas." Baixou a voz. "Coisas com a CIA, se é que me entendes. Até com a Interpol."

O olhar do intruso colou-se à fotografia assente na mesinha ao lado do sofá e que mostrava o proprietário do apartamento a sorrir diante do Palácio da Potala, no Tibete.

"Este gajo?"

"Sim. Tens de ter muita atenção com o fulano. Não foi por acaso que o nosso amigo lhe pediu ajuda. Parece que esse professor Noronha já lhe tinha dado uma mãozinha num caso que ocorreu há uns anos. Se não tivermos cuidado, o nosso projecto pode estar em causa."

A atenção de Decarabia manteve-se fixa no rosto sorridente da fotografia, tentando ler o que a imagem não lhe dizia. "Mas ele não é historiador?"

"Afirmativo."

O operacional coçou a cabeça, sem perceber como poderia um simples historiador constituir uma ameaça, por menor que fosse.

"Ele trabalhou com a CIA e com a Interpol? Isso significa que tem formação específica em combate..."

"O tipo não é perigoso em combate, Decarabia. Mas parece que se trata de um crânio, um ás a resolver problemas complexos. Foi aos seus talentos intelectuais que a CIA e a Interpol recorreram e são eles que nos podem criar dificuldades sérias, não os músculos."

"Um crânio, grande Magus?" Voltou a coçar a cabeça, desconcertado, a tentar retirar um sentido do que lhe era dito. "Hmm... tem ao menos conhecimentos tácticos em operações?"

"Que eu saiba não."

"Então qual é exactamente o problema?"

"O gajo é mais esperto do que tu e eu juntos, ouviste? Foi-me descrito como um adversário formidável, rápido a pensar e fulminante a agir, capaz de improvisar perante o imprevisto e de dar a volta às situações 162


mais desfavoráveis. Tens de ter o máximo cuidado com ele, percebes?"

O intruso respirou fundo; o seu superior hierárquico não podia ter sido mais claro.

"Que lhe devo fazer?"

"Mata-o", foi a resposta imediata. "Antes mesmo de capturares e interrogares o nosso alvo, elimina esse gajo. Não lhe dês oportunidade para criar sarilhos, ouviste?"

O olhar de Decarabia voltou a descer para a fotografia pousada na mesinha ao lado do sofá. Semicerrou os olhos e gravou na memória o rosto que de Lhasa ainda lhe sorria.

"Sim, grande Magus."

Desligou o telemóvel, guardou-o no bolso e levantou-se. Deu três passos e encostou-se à janela da sala. As cortinas brancas estavam corridas para os lados, expondo-o aos olhares de fora. Puxou as cortinas para o centro e, sentindo-se invisível, espreitou enfim para o exterior. Via-se a rua e o passeio lá em baixo. Impossível alguém passar por ali sem que ele desse por isso. Desceu as mãos para o cinto, tirou a pistola, verificou as munições e destravou a cavilha de segurança.

Estava pronto.
















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