LVII

A estação de Santa Maria Novella regurgitava de gente. As plataformas estavam cheias de passageiros que aguardavam a ligação para o seu destino, sendo Roma e Milão os principais. Quando uma composição entrava na gare, uma multidão desaguava das carruagens para a plataforma e as coisas só normalizavam quando os viajantes de partida entravam nessas mesmas carruagens e os de chegada se dirigiam, numa massa desordenada, para a saída da gare.

A calma regressava então a Santa Maria Novella.

Balam instalara-se numa cadeira a ler o Corriere della Sera no grande átrio da estação, diante do placard com os horários das partidas e das chegadas. Espreitou o relógio por cima do quadro e sentiu o nervoso miudinho característico das operações delicadas. Baixou a cabeça por detrás do jornal e, abrigado assim dos olhares indiscretos, ligou o walkie-talkie.

"Águia para Condor 1", chamou. "Tudo a postos?"

Após um compasso de espera, o aparelho de comunicação estralejou com o som raspado da estática.

"Condor 1 para Águia", foi a resposta. "Afirmativo. Estou em posição na plataforma."

"Sentes-te tranquilo quanto às fotos? Elas chegam para identificares os alvos?"

"Sim, Águia. Não haverá problema. Tenho a fuça dos gajos marcada a ferro na cabeça."

Balam assentiu, satisfeito, mas não replicou. Em vez disso carregou 382


no segundo botão.

"Águia para Condor 2. Tudo a postos?"

Novo refrulhar de estática no walkie-talkie, desta feita c o m u m a v o z d i f e r e n t e a r e s p o n d e r d o o u t r o l a d o . "Condor 2 para Águia.

Afirmativo."

"Os rostos nas fotografias estão memorizados?" "Afirmativo."

Terceiro botão.

"Águia para Condor 3. Tudo a postos?"

"Condor 3 para Águia. Tutto bene."

Escondido atrás do jornal, o olhar de Balam dançava no átrio entre as horas de chegadas no placard e o relógio sobre o quadro.

Tratava-se seguramente de um efeito da tensão do momento, mas a verdade é que o ponteiro dos segundos parecia acelerar. Sem já se dar ao trabalho de fingir que lia o Corriere della Sera, o chefe de segurança seguiu a marcha de progressão do ponteiro com crescente ansiedade e esperou que atingisse o ponto mais alto.

Quando isso aconteceu carregou em todos os botões do walkie-talkie e entrou em comunicação simultânea com os três homens que espalhara na plataforma.

"Águia para Condores 1, 2 e 3."

"Sim, Águia?"

"Um minuto", anunciou. "Falta um minuto para o comboio chegar."

O tecido urbano espraiava-se para lá da via-férrea quando apareceu a plataforma com placas a indicarem Firenze. A composição abrandou ainda mais e, pressentindo o fim da viagem, os passageiros que saíam naquela estação puseram-se de pé e comprimiram-se no corredor, alinhando-se numa fila silenciosa até à porta da carruagem, as malas e os sacos nas mãos, os olhares fixos na saída.

O comboio travou e imobilizou-se por fim com um soluço e um longo suspiro. Foi nessa altura que Raquel e Tomás abandonaram o 383


quarto de banho e se juntaram à fila dos viajantes que se preparavam para desembarcar na estação de Florença.

"Puf, chegámos!", bufou ela, inclinando a cabeça para espreitar o exterior. "já não era sem tempo."

O historiador inclinou a cabeça para a sua companheira de viagem.

"Não te esqueças de me ajudar a descer as escadas, hem?"

A porta abriu-se automaticamente e os passageiros começaram a saltar para a plataforma número nove. Por causa das bagagens, o processo não se revelou tão fluido quanto desejável, mas mesmo assim foi avançando e ao fim de alguns segundos Raquel pulou para fora, pousou os dois sacos de viagem e voltou-se para trás para ajudar o português.

"Isso está mal", constatou ela, estendendo-lhe o braço. "Vamos, apoia-te em mim."

Tomás desceu as escadas muito devagar, curvado, até conseguir pousar o pé trémulo em solo firme.

"Ah, chegámos!"

Vendo o companheiro já em terra, a agente da Interpol pegou num dos sacos e esperou que ele pegasse no outro. Tomás, contudo, ignorou o saco e começou a caminhar em passos vacilantes, trôpego e com as costas curvadas. A espanhola revirou Os olhos, encanzinada, pegou também no segundo saco e apressou o passo no encalço do historiador.

"Mira, hombre, estás a exagerar um pouquito, não te parece?", protestou, mostrando os dois sacos que carregava. "Achas que sou tua criada ou quê?"

T o m á s i n d i c o u c o m o p o l e g a r a s c o s t a s c u r v a s . "Desculpa, mas não vês o meu estado?", perguntou. "Não estou em condições de carregar os sacos."

Com os lábios comprimidos, Raquel atirou às costas dele um olhar carregado de suspeita.

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"Hmm... não sei. Quer-me cá parecer que isso é tudo uma grande desculpa que inventaste para me pores a carregar esta tralha toda.

Não tens vergonha?"

O companheiro de viagem respondeu com um esgar dorido e apoiando a mo direita na região lombar.

"Ui! Isto custa!"

A chegada do comboio atraiu Balam para a porta que ligava o átrio às plataformas. Viu a composição oriunda de Barcelona estacionada na linha nove e os passageiros a desaguarem continuamente das múltiplas portas e a percorrerem a plataforma com as bagagens. Acto contínuo, os viajantes que partiam entraram para as carruagens e, instantes mais tarde, escutou o apito e o comboio recomeçou a rolar, ganhou velocidade e desapareceu para lá da gare.

Procurou os seus homens com o olhar e confirmou que eles se encontravam nos seus postos, Condor 1 na ponta mais afastada da plataforma nove, Condor 2 na extremidade mais próxima, Condor 3 numa cabina com visão geral sobre a gare. Voltou a atenção para a multidão de passageiros recém-chegados e procurou um rosto familiar em cada uma das pessoas. Nada descortinou que lhe chamasse a atenção.

Impaciente, aproximou o walkie-talkie da boca e carregou no primeiro botão.

"Águia para Condor 1", chamou. "Viste alguém?"

"Negativo, Águia. Mas tenho-os neste momento de costas, pelo que é difícil ver a cara de quem quer que seja. Estão todos a dirigir-se para Condor 2."

Segundo botão.

"Águia para Condor 2. Alguma novidade?"

O segundo homem levou alguns segundos a responder. "Condor 2

para Águia", foi a resposta. "Estou neste momento a proceder a verificação. Stand by."

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Quase automaticamente, Balam desviou o olhar para o seu segundo operacional. O homem encontrava-se de facto numa posição frontal aos passageiros que acabavam de desembarcar e estudava todos os rostos com muita atenção, comparando-os discretamente com fotografias que escondia numa mão.

Apesar de o chefe de segurança estar à porta do átrio, e portanto mais afastado, também ele se concentrou nos recém-chegados e procurou identificar os alvos que todos procuravam.

O walkie-talkie ganhou vida.

"Condor 2 para Águia", disse uma voz. "Negativo. Não identifiquei ninguém."

Balam premiu o terceiro botão.

"Águia para Condor 3. Qual é a situação?"

"Condor 3 para Águia. Negativo."

A plataforma nove foi-se esvaziando até que só sobravam quatro pessoas: duas freiras e um casal idoso. Balam respirou fundo e, reprimindo a frustração, deu meia volta e regressou ao átrio. Ergueu os olhos para o placard das partidas e chegadas e estudou a lista das origens; não estava prevista para esse dia mais nenhuma ligação proveniente directamente de Barcelona. Teria de contemplar as alternativas.

Voltou a colar o walkie-talkie à boca e carregou nos três botões em simultâneo.

"Águia para Condores 1, 2 e 3", chamou, os olhos sempre colados ao placard. "Provavelmente eles apanharam outra ligação." Estudou as horas previstas de chegada. "Atenção ao próximo comboio. Vem de Milão e chega daqui a cinco minutos."

Pegou no Corriere della Sera e, resignado, sentou-se de novo no seu lugar, alheio ao casal de idosos e às duas freiras que, em passo lento, dir-se-ia mesmo arrastado, atravessavam nesse momento o átrio e se dirigiam para a rua.

O dia ia ser longo.


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