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Um mar de gente enchia Las Ramblas, em plena baixa de Barcelona, caminhando com o propósito de chegar a um destino ou deambulando distraidamente enquanto espreitava as vitrinas. Como o trânsito que subia a grande avenida parecia não avançar, Tomás impacientou-se e estendeu o braço para a frente de modo a tocar no ombro do taxista.

"Deixe-nos aqui", disse por prudência em português, consciente de que nem todos os catalães gostavam de ouvir castelhano. "Fazemos o resto a pé."

Os dois passageiros apearam-se na esquina do Carrer de la Boqueria e Raquel, que conhecia bem a cidade, fez um gesto para o ponto mais alto da avenida.

"A Praça da Catalunha é lá em cima."

"Então vamos."

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Subiram Las Ramblas em passo determinado e apenas pararam numa gelataria para comprar dois gelados de chocolate e morango; tinham fome e uma certa gula por algo doce que lhes desse energia.

Depois retomaram o caminho e, alguns minutos volvidos, chegaram de facto à Praça da Catalunha. O trânsito era imenso e enchia o enorme largo. Meteram pela esquerda e entraram no grande edifício da FNA.

"Que raio de altura para comprar livros", protestou a espanhola. "De que estás à procura?"

"Não é de livros", retorquiu Tomás, dirigindo-se direc amente à t

secção de computadores. "Quero comprar um portátil."

Raquel arregalou os olhos, espantada.

"Para quê?"

"Preciso de contactar o lar da minha me", explicou. "Se usar um telefone fixo, eles vão perceber que estamos em Barcelona. Se usar um telemóvel, podem localizar-nos por GPS. Só me resta o computador."

"Porque não usas um cibercafé?"

"Porque os tipos iam ver o IP de onde a mensagem foi enviada e perceberiam que estávamos em Barcelona."

A agente da I nterpol bateu com a palma da mão na própria testa.

"Ah, pois! Tens razão!", exclamou. "Lá me esquecia da porcaria do IP."

Os portáteis estendiam-se por duas longas estantes. Depois de inspeccionar os vários aparelhos, Tomás acabou por optar por um computador minúsculo de baixo preço e bateria duradoura; a placa de venda falava em sete horas de bateria e acesso a Wi-Fi.

"Este é perfeito."

A Calle Montsió era uma ruela estreita por onde só passavam peões, tão discreta que pareceu a Tomás o local adequado para se instalarem e ligarem a Internet. Meteram por uma porta em arco 334


que se abria à esquerda e refugiaram-se no Eis Quatre Gats, um restaurante típico com ar de tasca, sombrio e de luz amarelada.

Escolheram um lugar no salão, junto às janelas foscas e o mais longe possível da porta.

"Que pontaria, Tomás!", disse Raquel, apreciando a decoração e as fotografias antigas emolduradas nas paredes. "Sabes onde estamos?"

"No restaurante que Picasso frequentava", respondeu o historiador. "Porquê?"

A espanhola riu-se e deu-lhe uma palmada no braço. "És impossível!", repreendeu-o de uma forma benigna. "Às vezes penso que sabes tudo..."

"Tudo não direi. Mas tive de estudar História da Arte e Picasso era incontornável. Este restaurante tornou-se o centro do movimento modernista."

O empregado aproximou-se da mesa e estendeu-lhes a ementa.

Raquel pegou no grande caderno e, antes mesmo de consultar os pratos, voltou a capa do menu na direcção do seu companheiro de viagem e exibiu o desenho da fachada do Els Quatre Gats mostrando um homem de cinzento sentado com uma bengala a uma mesa de madeira na esplanada.

"Estás a ver?", disse. "O desenho da capa foi feito pelo próprio Picasso."

Consultaram os pratos. Tomás pediu em catalão um arrós caldós de llamàntol enquanto Raquel se ficou em castelhano por um entrecot de vaca. Quando o empregado se afastou, o historiador assentou o portátil sobre a mesa e ligou-o. Logo que a ligação à Internet ficou estabelecida, procurou o site do lar e identificou o endereço electrónico.

A seguir entrou na sua própria conta. Tinha muitas mensagens por abrir. Percorreu-as com os olhos; a esmagadora maioria era lixo.

Naquela sucessão de mensagens irrelevantes identificou um e-335


mail da faculdade que abriu de imediato; tratava-se da derradeira folha de vencimento a indicar que o salário fora enviado para a sua conta, à qual não tinha acesso por decisão da polícia ou de qualquer outra entidade estranha. Reconheceu a seguir alguns e-mails de amigos e de colegas da faculdade. Abriu dois. Um deles questionava-o sobre as notícias de que a polícia o procurava por homicídio, o outro era de um professor do departamento de História a manifestar-lhe a sua solidariedade. Seria pelo despedimento ou pelo caso da polícia?, interrogou-se; a mensagem não o esclarecia.

Voltou ao inbox e percorreu de novo com os olhos as mensagens ainda por abrir.

Congelou.

"Que é isto?"

A pergunta foi formulada com tal choque na voz e com tamanha estupefacção estampada no rosto que inquietou Raquel.

"Que se passa?", inquiriu ela. "Aconteceu alguma coisa?" "O

Filipe!", exclamou Tomás, ainda incrédulo. "Tenho aqui uma mensagem do Filipe!"

"O quê?"

Colaram ambos os olhos ao ecrã do portátil; ali estava, no inbox, a mensagem por abrir de Filipe Madureira. Sem perder tempo, Tomás entrou nela e ambos devoraram o conteúdo a dar conta do coma e do encontro na meia-noite do dia seguinte nos Uffizi para falar com o tal Mefistófeles.

"O Filipe está vivo!", exultou Tomás, virando-se para a espanhola.

"Vivo!"

Abraçaram-se os dois para festejar a notícia; tudo aquilo lhes parecia incrível, dava a impressão de um filme de Hollywood com final feliz.

"Ainda me custa acreditar!"

O olhar do historiador regressou ao ecrã para se certificar de que 336


lera bem o e-mail.

"Mas... eu vi-o morrer nos meus braços!", interrogou-se. "Além disso houve notícias na televisão e nos jornais a dizer que eu era procurado pelo homicídio do Filipe. Até a Interpol recebeu uma nota da polícia portuguesa a dar conta do caso."

"Viste-o morrer nos teus braços?", devolveu Raquel. "Às vezes o estado de coma confunde-se com a morte. Quanto às notícias, devem ter sido os nossos perseguidores que plantaram tudo isso. É costume a polícia inserir na imprensa notícias falsas para ludibriar os suspeitos que procura. Trata-se de uma prática perfeitamente normal. Os tipos querem deitar a mão ao tal DVD e simularam a morte do Filipe para conseguirem o que queriam."

Sentindo um peso sair dos ombros, Tomás respirou fundo. "Ufa!

Que alívio", suspirou. "Ainda bem que ele está vivo! Ferido, mas vivo!

Valha-nos isso!"

Concentraram-se mais uma vez na mensagem que tinham acabado de abrir, desta feita atentos não ao facto de o amigo comum dar notícias e estar vivo, mas às instruções.

"Ele quer-nos em Florença", observou Raquel depois de reler a mensagem. "Amanhã." Virou-se para o seu companheiro de viagem.

"Parece que vamos ter de alterar o nosso destino..."

O historiador deitou a mão ao bolso e extraiu dois bilhetes de comboio que adquirira na estação de Atocha, em Madrid.

"O nosso destino sempre foi Florença", revelou, com um : sorriso triunfal. "Esta mensagem apenas confirma aquilo que eu já suspeitava."

Incrédula, a espanhola verificou os bilhetes adquiridos horas antes. As indicações impressas confirmavam que iam de facto apanhar um comboio que saía nessa noite da estação de Barcelona com destino a Florença. Chegariam pela manhã.

"Florença?", admirou-se, levantando os olhos e fitando Tomás.

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"Nós íamos para Florença? A que propósito?"

"Lembras-te quando esta tarde estávamos no apartamento da tua amiga? Na altura tinhas a televisão ligada e dava o noticiário. Uma das notícias era que começava amanhã a sessão preliminar do Tribunal Penal Internacional sobre os crimes contra a humanidade que conduziram a esta crise. A informação ficou-me às voltas na cabeça, até que me lembrei que o Filipe me tinha dito que a última vez que tinha tomado banho fora em Itália. Isto só podia significar que havia escondido aí o DVD."

"Está bem, mas como chegaste a Florença?"

"Pela notícia da televisão. O conteúdo do DVD escondido em Itália relaciona-se com os crimes da crise, o TPI reúne-se em Florença para investigar os crimes da crise. É evidente que o Filipe guardou o DVD na mesma cidade onde o Tribunal Penal Internacional irá conduzir o processo, não te parece?"

Raquel voltou a abraçá-lo.

"Brilhante!", exclamou. "És realmente brilhante!"

Como se uma força invisível os atraísse, colaram os lábios num beijo, mas sentiram uma presença ao lado e viraram-se; era o empregado que trazia o arroz de lagosta e o entrecosto de vaca e os fitava com uma expressão desaprovadora por vê-los em cenas daquelas no meio do restaurante. Apartaram-se com relutância e deixaram que ele pousasse os pratos.

Quando o empregado se afastou, Tomás voltou a sua atenção de novo para o ecrã e releu a mensagem. Depois carregou no reply e redigiu a resposta.

Olá, Filipe.

É óptimo saber que estás vivo, rapaz! Estou com a tua amiga Raquel e nem imaginas o que temos passado à tua custa, meu grande camelo!

Fingiste que morrias e deixaste-nos uma bela prenda nas mãos, hem? És um ordinário!

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;-)

O criptograma está bem apanhado, sim senhor. Ia matando a cabeça para o decifrar! Fez-me lembrar os nossos tempos no Liceu Afonso de Albuquerque, lá em Castelo Branco. Lembras-te das nossas charadas?

Lá estaremos nos Uffizi amanhã à meia-noite. A coisa está difícil e precisamos mesmo de ajuda. Espero que esse Mefistófeles (que raio de nome o tipo arranjou! — deve ser alcunha, não?) resolva esta maldita embrulhada. Além dos rapazes que te balearam, temos a polícia à perna. Um pesadelo. Depois conto-te.

Um abraço dos teus amigos, Tomás e Raquel.

Deixou a espanhola ler a mensagem e, depois de ela fazer sinal com a cabeça a aprovar, carregou no send e o e-mail foi enviado.

"Esse criptograma", murmurou Raquel. "O que diz ele?"

Tomás saiu do seu endereço electrónico e desligou o computador. Enquanto esperava, levantou os olhos para a agente da Interpol e sorriu.

"O sítio exacto onde se esconde o DVD", respondeu.

"É isso o que revela o criptograma."

Baixou de novo o olhar para o portátil e preparou-se para escrever uma segunda mensagem, esta destinada à directora do lar. O

problema da mãe era outra prioridade sempre presente na sua mente.








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