VIII

O murmúrio suave do ar condicionado e o ambiente soturno das paredes forradas de madeira conferiam ao secretariado do gabinete do director um ar tranquilo e acolhedor propício à sonolência. Tomás chegara à hora prevista à sua faculdade da Universidade Nova de Lisboa, onde leccionava no Departamento de História, e a secretária do director mandara-o aguardar sentado num sofá tão macio que parecia convidá-lo a uma soneca. O historiador acordara nessa manhã cedo para vencer o trânsito de Lisboa, nos tempos que corriam menos intenso do que noutros anos mas mesmo assim suficientemente irritante, e, mergulhado na modorra doce em que a ambiência suave do gabinete o embalara, fez um esforço por se manter acordado e combater o peso que se lhe formara nas pálpebras, mas sem grande sucesso.

"Senhor professor?", murmurou uma voz feminina. "Senhor professor, está a ouvir-me?"

Como se fosse atingido por um raio invisível, Tomás endireitou-se com um salto e, o olhar desfocado pelo sono, viu Graciete Batalha plantada diante dele.

"Desculpe!", titubeou, atarantado e estremunhado. "Acho que passei pelas brasas!..."

A secretária exibiu um sorriso profissional.

"Fez muito bem", disse no mesmo tom suave. Indicou com um gesto a porta ao lado do secretariado. "O senhor director já o pode 72


atender. Faça o favor de entrar."

O historiador bocejou e pôs-se de pé com vontade de se espreguiçar, mas conteve-se e conseguiu distender os músculos com discrição. Seguindo as indicações da secretária, dirigiu-se à porta do gabinete do director da faculdade e franqueando-a, deparou-se com o seu superior hierárquico sentado numa escrivaninha a assinar papéis.

"Dá-me licença?"

O director da faculdade levantou o olhar por cima dos óculos encavalitados na ponta do nariz.

"Ah, professor Noronha!" Ergueu-se do seu lugar e, de mão estendida, veio acolher o recém-chegado à porta e indicou-lhe um sofá.

"Entre, faça o favor! Esteja à vontade!"

"Obrigado."

Com gestos formais, quase a sentir-se uma múmia dentro de um fato, Tomás instalou-se no lugar indicado e o seu anfitrião sentou-se num cadeirão diante dele.

"Vai um cafezinho?"

"Não, obrigado. Já tomei o pequeno-almoço."

O director prendeu nesse instante a atenção no rosto maltratado do seu subordinado.

"Oh, o que lhe aconteceu?", admirou-se. "Foi atropelado por um camião ou quê?"

O historiador passou a ponta dos dedos pelo inchaço sobre o olho esquerdo e hesitou; poderia aldrabar uma desculpa qualquer, como fizera nos últimos dias sempre que o interrogavam sobre as equimoses na face, mas estava diante do director da faculdade e pareceu-lhe que deveria ser sincero.

"Foi uma chaticezinha que tive na Grécia", explicou. "Fui convidado para fazer uma peritagem a um manuscrito avéstico recentemente descoberto em Atenas e acabei por me ver apanhado numa manifestação contra a crise. Aquilo acabou tudo à batatada e... olhe, acabei por levar 73


por tabela." Encolheu Os ombros num gesto de resignação. "Ossos do ofício, não é verdade?"

"Que horror!", exclamou o director. "O professor já foi ao hospital ver isso?"

"Sim, está tudo bem."

O anfitrião abanou a cabeça com incredulidade, a atenção ainda presa às equimoses que desfiguravam a cara do seu subordinado.

"Veja lá o ponto que as coisas chegaram! Aquilo por lá está mesmo assim tão mal?"

"Nem imagina."

O director calou-se por momentos, possivelmente a meditar nos acontecimentos que abalavam a periferia da Europa. Os dois homens conheciam-se apenas de pequenas conversas de circunstância; no fim de contas tinham origens diferentes e a faculdade era um espaço tão vasto que nem todos os Professores se relacionavam. O director da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa chamava-se João Água e viera do Departamento de Ciências da Comunicação, enquanto Tomás fizera toda a sua carreira académica no Departamento de História. O

convívio entre professores de departamentos diferentes era raro e quase só acontecia em assembleias-gerais ou em reuniões especiais da faculdade.

João Água respirou fundo.

"Como sabe, nós também não estamos grande coisa"' disse. "A crise alastrou pela Europa e depois da Islândia, dos países bálticos, do Leste da Europa, da Grécia e da Irlanda, Portugal foi atingido com toda a força por este furacão destruidor antes de ele seguir para Espanha e Itália. Desde que o FMI, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia cá chegaram que isto é só cortar, cortar, cortar. O

desemprego disparou e a austeridade não tem fim."

"Então não sei?", retorquiu Tomás. "Cortaram-me o salário e aumentaram os impostos. A vida está cada vez mais difícil e parece que 74




não vamos para melhor."

"Os principais cortes estão a decorrer na saúde, na Segurança Social e nos transportes, onde as despesas estavam pelos vistos descontroladas. Mas a razia estende-se a todos os sectores do estado e, receio bem, envolve também o Ministério da Educação."

"Parece que houve milhares de professores do secundário que não foram colocados, não foi?"

O director da faculdade revirou os olhos.

"Um horror!"

"O que nos vale é a autonomia do ensino universitário", observou Tomás. "Senão, também os tínhamos à perna!..."

A observação desencadeou um ataque de tosse do anfitrião.

João Água bebeu um gole de água e, quando pousou o copo, respirou fundo, como se ganhasse balanço.

"Pois, o problema é que a autonomia universitária tem limites", observou. "E os maiores limites têm a ver justamente com a questão do financiamento. Como sabe, o estado está sem dinheiro e por isso deixou de ser o principal financiador das universidades. Para compensar a perda desses fundos, temos andado a virar-nos para os privados e a fazer investigação vocacionada para o mercado e paga pelas empresas. Essa actividade tornou-se uma importante fonte de financiamento. Outra são as propinas, claro. O problema é que a crise tem estado a afectar também todo o sector privado, que retraiu as suas despesas e deixou de nos fazer encomendas, e as famílias, que têm menos dinheiro disponível para pagar propinas. Há até um número crescente de estudantes a desistir da faculdade por falta de dinheiro. Ou seja, o estado, as empresas privadas e os estudantes começaram a pagar menos, o que significa que entra menos dinheiro nas universidades. A situação está a tornar-se insustentável."

"Então, presumo eu, é preciso cortar nas despesas."

"Pois, é justamente isso o que estamos a fazer. Controlámos os 75


gastos em energia, nas fotocópias, em material educativo, em equipamento de limpeza, na compra de livros.., enfim, cortámos em tudo o que podíamos cortar."

Fez-se um silêncio inesperado no gabinete.

"E então?"

O director da faculdade abanou a cabeça.

"Não chega."

"Não chega como?"

"Não chega."

"Tem de chegar", insistiu Tomás. "As despesas têm de ser equivalentes às receitas, isso é evidente. É uma questão de ver qual a principal fonte de despesa da faculdade e actuar aí."

João Água agitou-se no seu lugar; parecia incomodado e o seu subordinado percebeu que isso não estava relacionado com o cadeirão onde se encontrava sentado, mas com o tema da conversa.

"A nossa principal fonte de despesa é o pessoal", indicou. "Mais exactamente o quadro docente."

"A sério?", admirou-se o historiador. "Não fazia ideia. Qual é o peso dos professores nas despesas da faculdade?"

"Mais de noventa por cento."

A revelação deixou Tomás boquiaberto. Por momentos chegou a pensar que ouvira mal, o peso era tão incrível que só poderia tratar-se de um equívoco, mas o semblante carregado do seu interlocutor não lhe deixava dúvidas. Ouvira bem. .

"Noventa por cento?"

O director balançou afirmativamente a cabeça.

"Receio bem que sim."

"Mas... mas... como é isso possível?", questionou o historiador, ainda atónito. "Não há outras despesas?"

"Haver, há. Mas são relativamente marginais. Repare, uma universidade é sobretudo feita pelos professores e pelos alunos. Tudo 76


o resto, se for a ver bem, é coisa pouca. São as instalações e alguns funcionários administrativos ou de limpeza, a generalidade com salários baixos. A fatia de leão das despesas vai para os professores, como é evidente. Acredite ou não, eles levam mais de noventa por cento do orçamento anual."

Tomás permanecia estarrecido; nunca imaginara que as universidades gastassem tanto no corpo docente. Mas, bem vistas as coisas, os professores eram realmente os principais activos das universidades. Sem eles nada seria possível.

"E... e agora?"

"Temos de cortar as despesas", repetiu o director da faculdade.

"As receitas caíram e, como o professor reconheceu ainda há momentos, os gastos têm de se adequar a essa realidade. Em conformidade, iniciámos um programa para reduzir o nosso quadro de pessoal. Passei toda a semana a chamar aqui ao meu gabinete professores que não pertencem ao quadro para lhes explicar a situação e lhes dizer que, infelizmente, não podemos continuar a contar com eles, como seria nosso desejo, devido à situação terrível em que nos encontramos."

O silêncio voltou ao gabinete, mais pesado que nunca. Tomás manteve os olhos cravados no seu anfitrião, tentando digerir o verdadeiro significado do que acabara de escutar. Ele próprio, tomou consciência, não pertencia aos quadros e fora chamado pelo director.

"O professor convocou-me para... para me despedir?"

Incapaz de se suster perante a brutalidade da pergunta, o olhar de João Água baixou para o soalho de cerejeira do gabinete. O director engoliu em seco antes de reunir coragem para voltar a encarar o seu abismado interlocutor.

"Lamento muito, Tomás."


77

Загрузка...