LXIV

A trattoria diante da estação de Santa Maria Novella estava a tornar-se o poiso de Tomás e Raquel. Chegaram a considerar a possibilidade de se instalarem num hotel ou numa pousada, mas a necessidade de mostrarem documentos dissuadiu-os; não tinham dúvidas de que os homens que os caçavam percorreriam todos os lugares da cidade onde se pudesse passar a noite.

Quando chegaram ao restaurante, vindos do Palazzo Vecchio, instalaram-se na mesinha que haviam ocupado nessa manhã e mandaram vir comida. Quando o empregado do bigode revirado se afastou com os pedidos, o historiador abriu o bloco de notas sobre a mesa e ambos estudaram o criptograma que teriam de quebrar antes de a sessão preliminar ser retomada na manhã seguinte.


G O T O s a t a n + & S E A R C H O V E R S A T A N ' S T O M B .


"Vai para satanás mais e procura sobre o túmulo de Satanás", leu Raquel literalmente. Levantou os olhos para o português. "Olha lá, não tinhas já decifrado esta algaraviada em Madrid? Na altura fiquei com essa impressão..."

"O que eu percebi no apartamento da tua amiga é que o Filipe tinha escondido o DVD aqui em Florença", esclareceu Tomás. "Foi a notícia dada na televisão sobre a sessão preliminar do Tribunal Penal Internacional, mais o facto de o Filipe me ter dito que viera de Itália, 427


que me puseram nesta pista." Indicou a charada. "Agora o criptograma vai dar-nos a localização exacta do esconderijo."

A agente da Interpol examinou mais uma vez a frase, desta feita com tanta intensidade que dava a impressão que acreditava que os olhos bastavam para arrancar o segredo escondido nas estranhas palavras.

"Isto não se percebe nada!", acabou por desabafar, frustrada.

"Que chinesice!"

Também com a atenção centrada na charada, Tomás coçou distraidamente o queixo.

"Já reparaste que há uma coisa bizarra neste criptograma?"

"Uma coisa bizarra?", questionou Raquel, a voz carregada de ironia. "Como! Tudo é bizarro. Tudo."

"Sim, mas... não notaste que, no meio desta frase toda em maiúsculas, existe uma palavra em minúsculas?" Apontou para a palavra em questão. "Este primeiro satan, precedido por um sinal de adição. Está em minúsculas, já viste?"

O olhar da espanhola fixou-se na palavra e no símbolo da adição.

"Sim, e depois? O que tem isso de especial?"

"Por que raio iria o Filipe escrever esta palavra com um formato diferente das restantes? Porquê esta palavra em minúsculas e as restantes em maiúsculas?" Apontou para o "+" colado à palavra. "E, já agora, porquê este símbolo de adição? Ele quer somar o satan a quê?"

Raquel releu a frase em voz baixa, como se falasse para ela própria.

"Vai para satanás mais e..." Calou-se por um instante e fitou Tomás. "Vai para satanás mais!", repetiu, desta vez com intensidade.

"Temos de ir a satanás mais!"

O historiador soltou uma gargalhada.

"Pois, mas que raio de lugar é esse? Onde é satanás mais? No Inferno?"

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A agente da Interpol ignorou a graçola e, contorcendo-se no lugar, levantou o braço e chamou o empregado italiano com um gesto frenético.

"Desculpe, pode dar-me uma informação?"

O empregado abeirou-se dela, solícito.

"Si, signora. Cosa vuole sapere?"

"Existe aqui em Florença algum sítio chamado... uh... satanás mais?"

O italiano arregalou os olhos, pensando que ouvira mal. "Satanás quê?"

"Satanás mais."

O homem recuou um passo, como se receasse que a cliente se metamorfoseasse no Demónio e lhe lançasse um ataque de fogo com enxofre.

"Scusi, signora, mas eu, de Satanás, felizmente sei pouco. Sabe, sou católico praticante e... enfim... essas práticas do Demo..."

Raquel percebeu que assim não ia lá. Fez um gesto com a mão a mandar o empregado embora.

"Pronto, está bem, está bem!", disse ela com súbita impaciência.

"Já percebi..."

O italiano afastou-se, atirando olhares amedrontados à mesa dos clientes ibéricos, talvez a questionar-se quanto à sensatez de os seus antepassados terem ido à Ibéria tentar civilizar loucos daquele calibre.

Distraída momentaneamente na conversa com o empregado, a espanhola não observou a transformação que de repente se operou no olhar de Tomás, fixo naquele satanás mais inscrito no criptograma.

O historiador pôs-se a rabiscar letras no bloco de notas, mudando sucessivamente as suas posições até chegar a uma formulação que o satisfez.

"Já sei!", exclamou ele de súbito num tom triunfal. "Já sei!"

"O quê? Já sabes o quê?"

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"Já sei porque está esta palavra em minúsculas! É um anagrama!"

O olhar dela bailou para cima e para baixo, entre o rosto do seu interlocutor e a charada no bloco de notas. "Um anagrama? Que queres dizer com isso?"

Tomás apontou para o satan+ rabiscado no papel.

"O Filipe pôs o anagrama em minúsculas para assinalar que a sua decifração obedecia a regras diferentes do resto do criptograma, escrito em maiúsculas. Sendo um anagrama, temos de rearranjar a palavra satan de modo a dar uma palavra diferente com as mesmas letras. Entendes? É um anagrama! Uma vez fizemos este truque no liceu."

"Ai sim?", admirou-se ela. "E existe alguma palavra que nasça do rearranjo das letras de satan?"

O português indicou as letras que rabiscara instantes antes no bloco de notas.

"Santa", disse. "A palavra santa escreve-se com as mesmas letras de satan, mas arranjadas numa ordem diferente. Santa é um anagrama de satan. Basta tirar o n do fim e metê-lo no meio da palavra."

"Santa?", interrogou-se a agente da Interpol, voltando a concentrar-se na frase completa do criptograma. "Vai a santa mais e procura sobre o túmulo de santa?"

"O anagrama só se aplica no satan escrito em minúsculas, pelo que o segundo satan se mantém satan."

"Vai a santa mais e procura sobre o túmulo de Satanás", corrigiu Raquel.

"Que raio quer isso dizer? O que é santa mais?" O historiador riu-se.

"Não é mais", observou, apontando para o "+". "Não se trata do sinal de adição, mas de uma cruz, percebes? Ou seja, a mensagem diz: Vai a santa cruz."

Pegou na caneta e reescreveu o criptograma, desta feita com o anagrama desvendado.


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"Hmm...", murmurou Raquel, mordendo o lábio inferior. "Começa a fazer sentido."

Desta feita foi Tomás a levantar o braço e a chamar o empregado. O homem aproximou-se num passo um tudo-nada receoso, na dúvida sobre o que o esperava daqueles clientes.

"Signore?"

"Oiça, existe aqui algum sítio chamado santa cruz?"

Ao ouvir o nome, o olhar do italiano iluminou-se.

"Ah, a basílica! Sim, sim, é lá que vou rezar todos os domingos!", revelou. "La basilica di Santa Croce! É famosa e belíssima!" Deu um beijo ruidoso na ponta dos dedos. "Madonna, che bella! Uma obra de arte sem igual!"

Com o olhar de quem começava a relacionar as coisas, o historiador fez um gesto para a rua.

"Essa basílica.., não é aquela aqui no centro da cidade?" O

empregado balançou afirmativamente a cabeça.

"Si, signore."

"É o lugar onde estão enterrados os grandes de Itália, não é?

Miguel Ângelo, Galileu..."

O italiano esboçou um gesto largo pelo ar.

"Davvero, signore! A basílica é o tempio dell'ltale glorie! É lá que os grandes dos grandes dormem o sono eterno! Os gloriosos filhos de Florença e de Itália!"

Num movimento que parecia sincronizado, Tomás e Raquel cruzaram um olhar carregado de subentendidos. Enfim decifrado, o criptograma de Filipe tornara-se mesmo um mapa.





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