LXIII

O caminho para a porta principal estava vigiado pelos homens que tomavam posição entre a multidão que nesse momento abandonava o Salone dei Cinquecento, pelo que Tomás hesitou. O que deveria fazer? Pedir ajuda à procuradora-chefe? A tentação era grande, mas percebeu que isso de nada serviria se aqueles indivíduos o quisessem mesmo neutralizar. A sua única verdadeira hipótese era escapar da armadilha.

Sentindo o cerco a fechar-se, varreu o espaço com o olhar e a sua atenção recaiu numa porta que ainda não estava vigiada. Parecia-lhe evidente que os homens suspeitos que se aproximavam tinham acabado de chegar e improvisavam o cerco; claramente não haviam notado a existência daquela porta, e muito menos que ela conduzia a outro sector do Palazzo Vecchio.

Sem perda de tempo, convergiu naquela direcção e mergulhou na porta. Apercebeu-se de que a sua fuga desencadeou um rebuliço repentino atrás dele, com empurrões e vozes a protestarem, e presumiu que eram os homens suspeitos a abrir caminho à força no meio da multidão para chegarem à porta e o perseguirem.

Estugou o passo e a marcha acelerada tornou-se, acto contínuo, uma corrida pelos corredores internos do Palazzo Vecchio perante o olhar surpreendido dos vários funcionários camarários com os quais se foi cruzando. Escutou passos desordenados na sua peugada e concluiu que os perseguidores também corriam.

"Stop!", gritou uma voz algures na retaguarda. "Stop!"

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Parar era a última coisa que o português planeava fazer. Invadiu a zona dos aposentos dedicados a Leão X; viu uma escadaria e trepou por ela aos saltos de três em três degraus, as coxas a pesarem-lhe do esforço, o peito a arfar, o coração a ribombar mas o olhar sempre a dardejar em múltiplas direcções numa busca desesperada de alternativas e outras vias de fuga. Como poderia escapar àquela ratoeira?

Foi dar à varanda interna superior do salão e meteu por uma porta discreta. O interior dava para um corredor apertado entrecortado por sucessivos lanços de escadas, mas percebeu que o caminho o conduziria a um beco sem saída algures no telhado e optou por ficar onde estava. Aguardou um instante, até os perseguidores chegarem à varanda sobre o salão c, com cuidado, consciente de que o seu esconderijo acabaria por ser avistado, esgueirou-se para essa varanda interna e correu pelo caminho inverso.

"Stop!"

Esperava escapar-se sem ser detectado, mas não teve sorte. Os perseguidores avistaram-no e foram de imediato no seu encalço.

Como uma lebre de passo ligeiro, Tomás desceu até ao Salone dei Cinquecento e atravessou-o em corrida até sair pela porta principal, para onde a multidão ainda convergia. Desceu as escadas aos encontrões às pessoas e chegou ao átrio, esperando fazer-se à Piazza deita Signoria e fugir assim à armadilha, mas viu o caminho cortado por mais homens com ar ameaçador e, junto às estátuas dos leões, ainda no átrio e sem mais opções, meteu por uma porta e foi dar a uma pequena sala fechada. Estaria de novo encurralado?

Olhou em redor, quase em pânico, e avistou uma saída interna, estreita e escura. Meteu por ela e verificou que era tão apertada que os seus dois ombros roçavam nas paredes, mas avançou porque não lhe restavam alternativas. O corredor foi dar a um lanço acanhado de escadas em espiral, apareceu mais um corredor e novas escadas em 422


espiral, que percorreu sempre aos encontrões às paredes, aflito e ofegante, sem já perceber onde se encontrava mas sempre a avançar e a subir, até que desembocou numa sala com uma porta. Os passos dos perseguidores estavam próximos. Franqueou a porta e foi dar a uma antecâmara sombria, forrada de quadros com temas mitológicos.

Encurralado.

Não viu qualquer saída e, com o som dos passos dos desconhecidos cada vez mais próximo, percebeu que ia ser apanhado, era uma questão de segundos. Que fazer? Precisava de ajuda e foi nesse momento que pensou em Raquel. Onde diabo se havia ela metido? A espanhola era polícia, não era? Então o que esperava para intervir? Ah, aquilo parecia típico da profissão. A polícia nunca estava onde mais era precisa! A agente da Interpol misturara-se com as pessoas que enchiam o salão para acompanhar a sessão preliminar do processo do Tribunal Penal Internacional e nunca mais lhe pusera Os olhos em cima. Será que ela se tinha apercebido da chegada dos suspeitos? A dúvida instalou-se na mente de Tomás enquanto aguardava o desfecho inevitável naquela antecâmara perdida algures no interior do Palazzo Vecchio. Será que os suspeitos que estavam à beira de o capturar já haviam deitado a mão à agente da Interpol? A possibilidade deixou-o inquieto. Seria por isso que Raquel não dava sinais de vida? Teria sido apanhada? E se...

"Aqui!"

Sentiu uma mão vinda do nada agarrá-lo e puxá-lo para um buraco que aparecera no lugar do segundo quadro à direita. O

quadro abriu-se como se fosse uma porta e deu por ele num espaço estreito e sombrio. Sem que tivesse tempo para estudar a abertura para onde fora arrastado, viu o quadro fechar a passagem e com ele levar a luz. Ficou às escuras num lugar estranho, com a impressão de ter sido transportado para uma qualquer quarta dimensão, um buraco perdido entre realidades alternativas.

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"Que é isto?", assustou-se ele, atarantado com a forma como fora puxado para ali e com a irrealidade que impregnava o local.

"Quem está aqui?"

"Chiu!", foi a resposta sussurrada da treva por uma voz feminina.

"Cala-te!"

Era Raquel.

"Raquel, és tu?"

"Cala-te, já te disse!"

Obedeceu e o silêncio impôs-se naquele espaço fechado dentro da parede. Ouviram passos ecoar no outro lado da parede e vozes a disparar em várias direcções. Suspendendo a respiração, perceberam ambos que se tratava dos perseguidores que tinham chegado à antecâmara dos quadros mitológicos e se mostravam desconcertados com a volatilização da sua presa. Ao fim de alguns instantes de aparente desorientação, os ruídos desvaneceram-se e, aliviados, os dois fugitivos recomeçaram a respirar.

"O que é isto?", soprou Tomás, mal se atrevendo a usar as cordas vocais. "Onde estamos nós?"

"Numa passagem secreta", respondeu ela. "Anda. Tem cuidado com os degraus..."

Uma corrente de ar soprou-lhe no rosto, indício seguro de que havia por ali uma qualquer ligação com o exterior, e sentiu a mão de Raquel agarrá-lo pelo braço e puxá-lo para a direita. Receando o que a escuridão ocultava, explorou o chão com o pé até o sentir a embater em algo; tratava-se do primeiro degrau para cima.

Tacteando as paredes e sondando o piso, ambos subiram quatro degraus e deram com uma porta invisível a travar-lhes a progressão.

"Uma passagem secreta, hem?", sorriu Tomás. "Onde raio descobriste isto?"

"Informei-me, ora essa!", retorquiu a espanhola com uma risadinha nervosa. "Parece que esta passagem oculta foi construída 424


na Idade Média por um dos Mediei para se esconder no palácio." Deu uma nova risadinha. "Excelente ideia, hem? Dá-nos cá um jeitão..."

"Pois dá", concordou ele. "Só faltavam uns archotes para iluminar o caminho."

Franquearam a porta e acederam a uma câmara apertada em formato cúbico; o chão desenhava um xadrez de mármores gastos, via-se branco de Carrara, vermelho de Siena e verde de Florença. O

compartimento secreto era iluminado por uma pequena janela rústica, sem vidros e enquadrada por uma grade de ferro medieval, com vista para os telhados da cidade e por onde brotava a luz solar.

A câmara oculta estava rodeada de portas altas de madeira, três em cada parede, doze ao todo. Abriu uma dessas portas e encontrou objectos de cobre e jarros de vidro alinhados em prateleiras.

"Uma câmara de alquimia."

Ao inspeccionar a terceira porta deparou-se com uma corda grossa, daquelas usadas no mar. Tomás pegou nela e testou a sua solidez. Satisfeito com a resposta da corda, aproximou-se da janela e, inclinando-se, espreitou lá para baixo; eram dois andares até à rua. Sem hesitar, atou a corda à grade de ferro que enquadrava a janela.

"Que estás a fazer?", questionou-o Raquel, alarmada com o que via.

"Eres loco?"

O português testou a solidez do nó com dois puxões fortes.

Constatando que a corda se encontrava bem atada, atirou-a para a rua e virou-se para a sua companheira.

"Vocês na Interpol fazem testes de destreza física, não fazem?", perguntou-lhe em tom de desafio. "Então estou certo de que serás capaz de descer por aqui."

Sem esperar que ela respondesse, empoleirou-se na janela e, agarrando a corda com firmeza, passou para o lado exterior e começou a deslizar pelas muralhas do Palazzo Vecchio. Olhou para cima e viu a 425


espanhola imitá-lo. A descida foi relativamente rápida, as mãos agarradas à corda e as pernas a calcorrearem a parede como se caminhasse para trás, até que sentiu o chão próximo e, largando a corda, saltou para a rua.

A sua companheira fez o mesmo alguns segundos mais tarde, juntando-se a ele na via della Ninna.

"Ufa!", suspirou Raquel com alívio, inebriada pelo ar fresco.

"Desta já nos safámos!"


























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