LXXI

O computador portátil que Marilú tinha trazido foi instalado no altar satânico, mesmo ao lado da cabeça de bode, e o DVD inserido no espaço próprio. O ecrã registou a presença do disco e fixou a primeira imagem, uma sala vista de cima com homens engravatados lá em baixo à volta de uma mesa cheia de papéis, e uma seta gráfica a indicar play.

"O que vamos agora ver é uma sequência de imagens captadas por dois técnicos franceses, Éric Garnier e Hervé Chopin, em várias salas da sede da Comissão Europeia em Bruxelas", esclareceu Tomás, dirigindo-se especificamente aos dois procuradores do Tribunal Penal Internacional.

"Como esta tarde expliquei na sessão preliminar do processo, estes técnicos foram contratados em segredo pelo anterior presidente da Comissão para detectar a fonte de fugas de informação. Foi-lhes dada autorização para interceptarem as comunicações internas e as comunicações para o exterior, incluindo e-mails e telefonemas. O que vamos ver são intercepções relevantes para o processo do TPI contra os responsáveis pela crise por crimes contra a humanidade."

Os olhos dos dois procuradores colaram-se à imagem paralisada no ecrã do portátil.

"Esta imagem", perguntou Agnès Chalnot, "diz respeito a essas intercepções?"

"Correcto", confirmou o historiador. "Segundo o dossiê que o Filipe me deu, corresponde a uma reunião entre o comissário europeu encarregado da arquitectura do euro e economistas a quem foi entregue a tarefa de analisarem as consequências da criação de uma moeda única."

Apontou para o comissário. "Reconhecem o comissário europeu?"

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Os procuradores inclinaram-se sobre a imagem e, depois de estreitarem as pálpebras num esforço de leitura do que viam, arregalaram os olhos.

"Axel Seth!?"

O juiz bufou.

"Protesto!", vociferou. "Essas imagens são montadas!" Tomás ignorou-o.

"Antes de ser presidente da Comissão Europeia, como sabem, o juiz Seth foi comissário europeu, indicado pela França, e, enquanto tal, esteve envolvido na arquitectura do euro", lembrou. "Vamos então ver o diálogo captado pelas câmaras e pelos microfones escondidos dos senhores Garnier e Chopin."

O português carregou no play e a imagem começou a rolar, com as figuras à volta da mesa a movimentarem os braços e as cabeças, evidentemente em conversa acesa.

"Que porcaria de textos são estes?", questionou na gravação a voz de Axe! Seth. "Eu pedi-vos relatórios a enumerar os custos e benefícios da moeda única e vocês... vocês entregam-me esta porcaria?"

"Mas, juiz Seth, estas são as conclusões a que chegámos", respondeu um dos economistas. "Falámos com muita gente e consultámos todos os estudos sobre uniões monetárias e existe um consenso quanto a essa questão: sem união política, a moeda única europeia não vai funcionar! Não há volta a dar ao problema. uma união monetária beneficia sempre o centro e prejudica a periferia. A união monetária que criou o franco em França, por exemplo, beneficiou Paris e prejudicou a Bretanha e o Midi. Em Espanha a peseta beneficiou Madrid e penalizou a Galiza e a Andaluzia.

Sempre que há uma união monetária, segue-se uma transferência de recursos da periferia para o centro. Isto implica que a união monetária só é viável se o centro depois estiver disposto a fazer transferências financeiras para a periferia, de modo a compensá-la pelas suas perdas. Mas sem união política este passo não será dado e as periferias desintegrar-se-ão."

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"Está a dizer que os países periféricos não aguentam uma moeda única europeia?"

"Aguentam se houver união política que permita as transferências compensatórias", respondeu o economista. "Caso contrário, não aguentam. E há outra coisa: os países periféricos terão de fazer reformas urgentes no sector labora! para suportarem o impacto da competição internacional. Não se esqueça que eles vão entrar numa moeda forte e não a poderão desvalorizar para reequilibrar as suas contas externas. Sem reformas, vão acabar por ser esmagados pelas importações. Além do mais é preciso que no espaço da moeda única haja mobilidade labora!, flexibilidade de salários e de preços e integração orçamental, coisas que não existem agora e não existirão porque não se vislumbram quaisquer planos para as criar."

"Então qual é a vossa conclusão final?"

"A moeda única, tal como está a ser concebida, não se vai aguentar.

À primeira crise poderá desmoronar-se como um baralho de cartas. E se o euro não sofrer um colapso rápido, os países da moeda única irão saltitar de crise em crise numa agonia sem fim até que a união se desfaça."

As imagens mostraram Axel Seth a afagar o queixo com a ponta dos dedos, avaliando o que acabara de escutar.

"Oiçam, isto não pode ser assim", disse o comissário europeu por fim, a decisão tornada. "Refaçam-me estes relatórios e mostrem só as vantagens da criação da moeda única. Parece-me que..."

"Mas, senhor juiz, isso não pode ser feito dessa maneira!", protestou um segundo economista. "Ternos o dever de alertar os decisores e a opinião pública para os grandes perigos da arquitectura que está a ser pensada para o euro. Se escrevermos um relatório nos moldes que nos pede..."

"Silêncio!", cortou Axel Seth num tom agreste. "A decisão está tomada. O projecto da moeda única europeia irá avançar, custe o que custar! Quero um relatório que só mostre as vantagens da união monetária!"

"E o que acontecerá depois, quando o euro entrar em colapso?"

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O comissário europeu encolheu os ombros.

"Quando isso acontecer, meus caros, provavelmente já cá não estaremos", sentenciou com um sorriso despreocupado. "Quem estiver nessa altura no poder que se desenvencilhe! E os contribuintes que paguem, claro!"

A imagem foi a negro e Tomás carregou no stop. Os olhares dos presentes desviaram-se para o juiz Seth, que abanava a cabeça.

"Tudo montado", repetiu. "Nada disso tem valor em tribunal.

Foi tudo montado!"

O historiador ignorou-o de novo.

"A gravação desta reunião é particularmente importante porque mostra que os decisores europeus foram informados dos perigos que a arquitectura pensada para o euro encerrava, e silenciaram os avisos.

Pior ainda, manipularam os relatórios para que apresentassem uma imagem cor-de-rosa da viabilidade e do futuro do euro."

"Parece-me realmente um documento muito relevante para o processo do Tribunal Penal Internacional", considerou a procuradora-geral, Agnès Chalnot.

Sem mais comentários, Tomás avançou no DVD e localizou a imagem seguinte. A gravação mostrava uma outra sala, esta com sofás. Dois homens apareciam sentados, um descontraído e de pernas cruzadas, o outro em posição mais formal.

"Isto foi captado numa reunião entre os ministros das Finanças alemão e português", explicou o historiador. "Decorreu em Bruxelas num gabinete da delegação portuguesa uma hora antes da reunião do Ecofin, o conselho dos ministros das Finanças da União. Antes das cimeiras é normal haver estas reuniões bilaterais, normalmente sem testemunhas, para que as duas partes discutam assuntos de interesse mútuo. Foi o caso, como poderão constatar."

Tomás carregou no play e a imagem começou a rolar.

"Ach, meu caro Augusto, tenho aqui um problemazinho que preciso 476


de resolver consigo", disse em inglês uma voz com um sotaque gutural, evidentemente do ministro alemão. "Nada que com boa vontade não se possa ultrapassar, não é verdade?"

"Então, Günter? Que se passa?"

"Tenho uma empresa lá na Alemanha que está com dificuldade em obter encomendas", disse. "Eles fabricam submarinos de guerra mas, desde a queda do Muro de Berlim, ninguém está interessado nas maquinetas deles.

Não há compradores para a porcaria dos U-Boote."

"Pois é, acabaram-se as encomendas militares, não é? Esses fabricantes vão todos à falência..."

O alemão suspirou.

"É uma grande Scheisse, porque esses tipos são bons amigos, financiaram a campanha do meu partido nas últimas eleições, está a ver?

Vieram pedir-me ajuda e, como compreende, não posso dizer-lhes que não.

Já falei com os gregos e eles vão comprar quatro submarinos, mas é necessária outra encomenda. Então estava a pensar se a Marinha portuguesa não andará a precisar de uns submarinos..."

"Submarinos, Günter?", admirou-se o ministro português. "Para que queremos nós submarinos? Temos o Barracuda e já nos dá água pela barba.

Não precisamos de mais."

"Ach, você não está a compreender, Augusto", rosnou Günter, endurecendo o tom. "Temos-vos ajudado nos fundos de coesão, como sabe, e vocês têm derretido o nosso dinheiro em estradas e obras públicas, entregando-o a construtoras amiguinhas que vos financiam as campanhas eleitorais." Baixou a voz e piscou o olho ao seu interlocutor. "Também vos dão umas verbazitas para as vossas contas pessoais, ou não dão?" Emitiu uma gargalhada intimidatória antes de retomar o tom normal. "Ou seja, o dinheiro dos contribuintes alemães tem sido usado para financiar os vossos esquemas e os vossos partidos. Pois preciso agora que nos devolvam o favor e usem o dinheiro dos contribuintes portugueses para financiar esta empresa que ajudou o meu partido lá na Alemanha." Mostrou os dentes, como um 477


felino a ameaçar a presa. "Entendeu?"

Sentindo que tinha pouco espaço de manobra, o ministro português remexeu-se no 1ugar.

"Quanto é que uma coisa dessas custa?"

"Um submarino anda à volta dos quatrocentos e cinquenta milhões de euros."

"Ah, não pode ser! Andamos com o Orçamento do Estado apertadíssimo, nem imagina! Não há dinheiro."

O ministro alemão forçou uma gargalhada.

"Ó meu caro Augusto, não diga isso!", exclamou, a voz carregada de insinuações. "Esta empresa de que lhe falei está na disposição de apoiar os nossos partidos amigos em Portugal com uma quantia... digamos, generosa." Olhou o outro em busca de cumplicidade. "Penso que me está a entender, nicht wahr?"

O governante português endireitou-se, subitamente alerta. "Uma quantia generosa para o meu partido?" "Jawohl."

O ministro de Lisboa afinou a voz, a postura alterada.

"Na verdade já ouvi os almirantes protestarem com o Barracuda, dizem que está muito velho e coisa e tal. Pode ser que tenhamos mesmo de fazer essa compra, aliás absolutamente essencial para a defesa da longa costa portuguesa." Baixou a voz. "Essa quantiazinha que referiu.., quão generosa seria ela?"

"Quinze milhões por um submarino."

O português emitiu um assobio apreciativo.

"Ena, isso é interessante!", exclamou. Fez uma breve careta contrariada.

"Sabe, o problema é a oposição lá em Portugal. Eles vão logo questionar o negócio e fazer ondas e... e será uma chatice. É difícil explicar a compra de submarinos tão caros e tão evidentemente inúteis, não é verdade?"

"Não consegue falar com eles?"

"Com o principal partido da oposição em Portugal?" Fez um gesto de hesitação mas balançou afirmativamente a cabeça. "Sim, isso pode de facto 478


resolver-se. Teremos é de lhes dar uma parte do dinheiro, claro. Assim ficam todos satisfeitos e ninguém questiona nada."

"Wunderbar!", exultou o alemão, esfregando as mãos sapudas.

"Então faça isso, mein Freund!"

O encorajamento do alemão bastou para o português vencer a derradeira hesitação. Enchendo o peito de ar, o ministro de Lisboa empertigou-se, todo ele homem de estado a tomar decisões em benefício do seu país.

"Ah, não há dúvida, Portugal precisa urgentemente de submarinos!"

Ergueu o dedo, como um tribuno. "Urgentemente, digo-lhe eu! Imagine que os Espanhóis nos invadem? Além do mais, veja a dimensão da zona marítima sob a responsabilidade do meu país. Como é possível que não tenhamos submarinos?" Esfregou as palmas das mãos. "Acho até que vamos precisar de dois." Franziu o sobrolho, reconsiderando o número. "Não, dois não. Três! Três submarinos ainda vão custar mil trezentos e cinquenta milhões de euros, não é brincadeira nenhuma, mas... o superior interesse da nação impõe-se, não é verdade?" Voltou a baixar a voz. "Três submarinos vão dar quarenta e cinco milhões de euros em contribuições, correcto?"

"Jawohl. Quinze milhões por cada submarino." "Excelente! Assim haverá dinheiro suficiente para nós e ainda para calar os tipos da oposição."

"Parece-me sehr gut", aprovou o alemão. "Oiça, como iremos operacionalizar a transacção quando vocês confirmarem esta compra tão...

uh... imprescindível para o futuro do vosso país?"

"Temos uns amigos que possuem uma empresa com conta nas Bahamas e nas ilhas Caimão", observou pensativamente o ministro português. "O fabricante dos submarinos alemães mete a massa na Suíça, faz-se uma transferência para as Bahamas, depois para as Caimão, e a seguir, com o rasto já perdido, o guito vai para a empresa portuguesa, que fará um 'donativo' desinteressado ao meu partido e ao principal partido da oposição, com quem vou de imediato falar para assegurar que não haverá problemas." O olhar do português ganhou confiança. "Depois conversarei com 479


os meus amigos para operacionalizar a coisa, mas pode contar comigo, meu caro Günter. A bem de Portugal, temos acordo!"

O alemão pôs-se em pé e apertou a mão do seu interlocutor.

"Ach, Augusto, é um gross prazer fazer negócios consigo!" A imagem da gravação virou para negro e Tomás parou a imagem.

"Ilustrativo, não vos parece?"

"Muito", concordou a procuradora-geral, estendendo a mão. "Posso ficar com isso?"

Apesar de Agnès Chalnot estar de mão estendida à espera do DVD, o historiador permaneceu imóvel

"Claro que pode", acedeu ele. "Mas olhe que ainda há mais..."

"Perdão?"

O português sorriu.

"A procissão ainda vai no adro, minha cara", revelou. "Este DVD

está cheio de gravações muito interessantes." Virou a costas e enfrentou o computador portátil.






















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