XXIII

O cais de Cacilhas estava bem à vista do cacilheiro e a embarcação preparava-se já para iniciar as manobras de acostagem quando a enfermeira Avelina se voltou para Tomás e lhe fez sinal de que se aproximasse. O historiador acocorou-se junto à cabeça de Filipe e viu-lhe os olhos acesos de vida. Estava desperto apesar da expressão nublada que lhe turvava o rosto pálido.

"Então pá? Como vai isso?"

O ferido forçou um sorriso.

"Já estive melhor", gracejou com voz débil. "O sacana apanhou-

-me, hem?"

"Sim", confirmou. "Mas vamos agora ao hospital e já vão tratar de ti, fica descansado. Daqui a uns dias estás porreiraço. Vais até dar umas pinocadas às enfermeiras..."

Filipe voltou a sorrir, agora com mais naturalidade.

"Sempre foste um péssimo mentiroso, pá", murmurou. "E isso das pinocadas é mais contigo. Não é por acaso que a malta do liceu te chamava Casanova, grande malandrão." Desfez o sorriso e esboçou uma careta de contrariedade. "Que chatice, isto!" Todo ele estremeceu, como se alguma coisa tivesse acabado de ocorrer, e tentou levantar a cabeça, de repente alarmado. "O meu envelope? Onde está o meu envelope?"

O amigo acenou-lhe com o sobrescrito.

"Calma, está aqui!", disse. "É justamente por causa dele que queria falar contigo. Ao longo deste dois dias não o largaste de modo algum. Nem quando foste baleado. Não é preciso ser um génio para perceber que o conteúdo é precioso." Afinou a voz e 178


aproximou-se mais da cabeça do antigo companheiro do liceu.

"Precisas que o mande a alguém?"

Filipe engoliu em seco e balançou afirmativamente a cabeça.

"Sim."

"Quem?"

O ferido ficou uns segundos calado, como se juntasse energia para responder.

"Ouve com atenção", pediu. "Há uns tempos, dois técnicos franceses de electrónica que trabalhavam na Comissão Europeia, em Bruxelas, vieram ter comigo para me pedir ajuda", disse, falando pausadamente. "Chamavam-se Éric Garnier e Hervé Chopin. Já tinham feito uns trabalhos comigo e sabiam que eu tenho uma ligação ao Tribunal Penal Internacional."

"Tens?"

"Sim, tenho. Era um segredo meu." Respirou fundo. "Não sei se sabes, mas o TPI abriu um processo por crimes contra a humanidade contra quem..."

"... tenha provocado a crise económica", completou Tomás. "Sim, ouvi isso nas notícias. Não me digas que estás envolvido!..."

"Mais do que gostaria", admitiu o amigo. "Graças ao Éric e ao Hervé. Eles andavam nervosos com um material que tinham em mãos.

Um DVD, para ser mais exacto. Achavam que alguém os andava a vigiar e sentiam-se pouco seguros. Decidiram por isso entregar-me o DVD e desaparecer de circulação. Na altura não liguei muito, até porque estava mais envolvido no processo dos crimes contra a humanidade cometidos no Ruanda, mas depois li no jornal que eles foram encontrados mortos num apartamento de Nice com sinais de terem sido torturados."

"Assassinados, portanto."

"Claro. O jornal dizia que a polícia suspeitava de um ajuste de contas da máfia marselhesa, mas... hmm, não me cheira." Fez um novo 179


esgar de dor e a voz tornou-se mais arrastada. "Percebi logo que eles afinal tinham razão para ter medo e que alguém andava mesmo atrás do material que tinham recolhido. Acontece que esse material estava agora na minha posse, era decerto o DVD. Fui ver o que lá se encontrava registado e... fiquei embasbacado. Perante o que ali encontrei caí em mim e tomei consciência de que a seguir viriam no meu encalço. Se o Éric e o Hervé tinham sido torturados, com certeza que se viram obrigados a falar no meu nome. Tinha de me pôr ao fresco. Fugi para Itália e..."

"Viste o DVD?"

Filipe assentiu.

"O conteúdo é explosivo."

O historiador passou os dedos pelo cabelo do amigo; tinha a fronte molhada e o suor deslizava-lhe em gotas pelas têmporas.

"Está bem", murmurou. "Quando ficares melhor vemos tudo isto.

Agora vamos levar-te para o hospital e..."

Filipe abanou a cabeça com as poucas forças que lhe restavam; o olhar começava já a apagar-se.

"Não", sussurrou. "Tens de partir agora."

"Não digas disparates. Não vou a sítio nenhum."

"Tens... tens de partir." Respirou fundo, como se precisasse de recuperar o fôlego. "Eles... eles virão atrás de nós... atrás de ti. Se ficares, eles apanham-te. Entendes?"

"Não te preocupes com isso", tranquilizou-o Tomás. "Vou pedir a protecção da polícia e os tipos não se atreverão a..."

O ferido voltou a sacudir a cabeça.

"A polícia não pode nada", disse, a voz num fio. "Eles são demasiado poderosos. A tua... a tua única hipótese é partires imediatamente. Senão dão cabo de ti."

"Que disparate!..."

O peito de Filipe arfava, o fôlego nas últimas.

180


"Há uma pessoa que te pode ajudar". Fez uma pausa para recuperar energia. "Chama-se Raquel... Raquel de la Concha.

Trabalha para a Interpol em Madrid." Desviou o olhar para o sobrescrito. "0 número dela está no envelope." Fez um esforço para sorrir. "Quando a vires vais gostar dela." Nova pausa. "Diz-lhe que não vou poder levá-la à Disneylândia." Um sorriso débil desenhou-se nos seus lábios mas depressa se desfez. "Não confies em ninguém, ouviste? Em ninguém." Fez um esforço para inspirar e expirar. "Mas nela.., nela podes confiar." Nova pausa. "Tens de encontrar o DVD e levá-lo para o Tribunal Penal Internacional. Vai ser essencial para...

para..."

"Vamos os dois ter com a tua miúda."

Os olhos de Filipe já se reviravam nas órbitas, como se se aprestassem a perder o contacto com a realidade.

"Leva o dossiê que está no sobrescrito e lê-o", repetiu. "Leva o... o taser também. Podes precisar dele."

"Vamos os dois, já te disse. Não te abandono."

"Tens de partir", insistiu o ferido. "Não podes ficar aqui. Eles vêm aí e..."

"Achas que te vou deixar sozinho a enfrentá-los? Deves estar a brincar!..."

A expressão do rosto de Filipe recuperou momentaneamente vida e a sua atenção fixou-se no companheiro do liceu.

"Tens uma missão, soldado!", exclamou com súbita voz de comando, num derradeiro assomo de energia. "Cumpre-a!"

A ordem era reminiscente das brincadeiras de juventude entre ambos e Tomás sabia que havia um acordo tácito que recuava a esses tempos, o entendimento de que para tais palavras não havia recurso nem recuo. Uma vez proferidas, a missão estava entregue. Claro que aquilo eram brincadeiras de moços entediados, coisas que no complexo mundo dos adultos não tinham o mínimo valor, mas...

181



"Onde encontro esse famoso DVD?"

O ferido tentou falar, mas nenhum som lhe saiu da boca. Em desespero, desviou os olhos para o grosso envelope que o antigo companheiro do liceu tinha entre os dedos e, a mão trémula, quase descontrolada, apontou para a cifra rabiscada numa face.

rabiscada nu





Acto contínuo, a mão tombou no chão e o olhar ausentou-se. Ao perceber que nesse momento se encontrava sozinho, Tomás reprimiu um soluço. Os olhos de Filipe Madureira estavam imóveis, esvaziados de sentido, a fitar um ponto no infinito, paralisados com a expressão vidrada daqueles que tinham perdido a vida.

Com um gesto terno, Tomás passou-lhe os dedos pelo rosto, numa derradeira carícia. Depois pegou no envelope e no taser pousados ao seu lado e ergueu-se devagar, com respeito mudo.

Endireitou-se e, sempre fiel aos rituais da juventude, colou a mão às têmporas e reproduziu a continência que fazia sempre que brincavam às charadas nas longínquas férias de Verão.

"Sim, meu capitão! "











182

Загрузка...