LXXV

Apesar de se tratar de um albergue de terceira categoria situado numa ruela perdida nas vizinhanças do Duomo, para alguém que como Tomás passara as duas últimas noites a dormir sentado, a primeira num camião e a segunda num comboio, a apresentação limpa e arrumada e o conforto do quarto davam a impressão de que se encontrava no mais luxuoso dos hotéis de Florença. O Ritz não lhe pareceria melhor.

Depois de tomar banho, o primeiro desde que saíra do seu apartamento em Lisboa para visitar a mãe em Coimbra, dois dias antes, estendeu-se na cama e sentiu os olhos pesarem; sabia que dormiria profundamente nessa noite. Havia uma coisa, porém, que precisava de fazer antes de adormecer. O seu olhar desviou-se para o mostrador digital do relógio pousado sobre a mesinha-de-

-cabeceira.

Duas e meia da manhã.

Não era propriamente a melhor hora para ligar a ninguém, pois não? O assunto, no entanto, era da máxima urgência e não ficaria descansado enquanto não o resolvesse. A confusão das últimas quarenta e oito horas mantivera-o de tal modo ocupado que não tinha tido oportunidade de lidar com a questão, mas agora que deixara de ter perseguidores no encalço e dispunha enfim livremente de acesso aos meios de comunicação, precisava de resolver as coisas.

Agarrou no telefone do quarto e digitou os algarismos no teclado, começando pelo indicativo internacional, zero zero, depois o de Portugal, três cinco um, e a seguir o número.

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O sinal de chamada tocou três vezes.

"O Lugar do Repouso, boa noite."

Atendeu uma voz feminina estremunhada, com certeza a funcionária encarregada do turno da noite.

"Boa noite, minha senhora", disse com voz mansa, consciente de que a hora não era a melhor. "Peço desculpa por estar a ligar tão tarde. Sou o filho da dona Graça Noronha, uma das pessoas alojada aí no lar. Sabe dizer-me se a minha mãe está bem?"

Ouviu o que parecia um bocejo do outro lado da linha. "Sim, com certeza", foi a resposta da mulher, visivelmente fatigada. "Porquê?"

"É que... bem, havia um problema com o pagamento da mensalidade e foi-me dado um prazo até esta noite para regularizar a situação, senão... senão ela seria expulsa às oito da manhã de amanhã.

Sabe dizer-me como está isso?"

"Sou a auxiliar de serviço, não sei nada sobre essas coisas. Se é para questões administrativas, terá de ligar amanhã de manhã."

"Pois, justamente, amanhã de manhã poderá ser demasiado tarde porque ela... enfim, será expulsa, não é? Queria tratar do assunto antes que isso acontecesse, como decerto compreenderá."

"Como lhe disse, sou a auxiliar de serviço", retorquiu a mulher, a impaciência a espreitar-lhe na voz. "Para questões administrativas ligue amanhã de manhã, se faz favor."

A pessoa do outro lado da linha começava a parecer uma gravação. Tomás percebeu que com ela não resolveria o problema.

"Tem por acaso o contacto da senhora directora?" "A doutora não está."

"Sim, com certeza. Mas tem o contacto dela?" A mulher hesitou.

"Não se telefona à senhora doutora a uma hora destas", acabou por dizer, empertigando-se. "Faça o favor de ligar amanhã."

Não estava a ser fácil conseguir a cooperação daquela alma.

"Tem toda a razão", disse Tomás, sempre com a voz dócil. "O

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problema, como decerto compreenderá, é que queria evitar que a minha mãe amanhã fosse posta na rua. Daí a minha urgência em falar com a doutora Maria Flor..."

"Ligue amanhã."

O historiador massajou o couro cabeludo com a ponta dos dedos, como se tivesse esperança de assim arranjar ideias que lhe permitissem convencer aquela casmurra.

"Oiça, não haverá mesmo nenhuma maneira de..." "Ligue amanhã, já lhe disse!"

Esta última frase foi disparada de forma mais ríspida, como se a mulher indicasse, e não com subtileza, que estava a atingir o limite da paciência.

Tomás suspirou.

"Pronto, está bem. Muito obrigado."

Desligou o telefone e ficou de olhar perdido na janela. Por cima dos telhados podia ver a cúpula iluminada do Duomo, mas a última coisa naquele momento presente no seu pensamento eram as maravilhas arquitectónicas de Florença. Agora que resolvera a inopinada situação em que se metera, precisava de desatar o nó que envolvia a mãe no Lugar do Repouso antes que ela fosse expulsa, mas a hora e a distância pareciam acorrentá-lo ainda.

A verdade é que não havia maneira de se assegurar de que as suas contas bancárias já estavam desbloqueadas. Com toda a certeza as autoridades não tinham tido tempo para resolver esse problema.

Suspeitava até que teria de meter uns requerimentos em Lisboa e envolver-se numa complicada burocracia até conseguir superar a dificuldade. Assim sendo, de que lhe valeria falar com Maria Flor? A directora tornara muito claro que os proprietários não queriam conversa, mas o dinheiro em falta. E acesso ao seu próprio dinheiro era o que ele, bem vistas as coisas, ainda não tinha.

Nessas condições, a única coisa que poderia fazer era ir buscá-la 514




ao lar e tratar dela enquanto o bloqueio das contas bancárias não se resolvesse. O problema é que ele se encontrava em Florença e, mesmo que apanhasse o primeiro voo da manhã, apenas poderia ter a esperança de chegar a Lisboa ao princípio da tarde, uma vez que de permeio teria de apanhar um voo de ligação, pelo que só chegaria a Coimbra umas duas horas depois. No entretanto, só Deus sabia o que aconteceria à mãe. Como poderia sair daquela alhada?

Um toque na porta interrompeu-lhe os pensamentos. Estranhando uma visita a hora tão imprópria, enrolou-se na toalha de banho, abriu a porta e espreitou para o corredor.

"Posso?"

Era Raquel.

"Passa-se alguma coisa?"

A bela espanhola, que se encontrava envolvida num roupão branco, tirou as mãos de trás das costas e exibiu uma garrafa de espumante italiano e dois copos.

"Trouxe isto para comemorarmos", disse ela com um sorriso juvenil.

"Terminou o nosso pesadelo e parece-me uma óptima razão para improvisarmos uma pequenita fiesta, não achas?"

Tomás abriu totalmente a porta e, com um gesto, fez-lhe sinal de que entrasse.

"Vamos a isso."

A agente da Interpol invadiu-lhe o quarto e encheu os copos de champanhe.

"Qué pasa? Estás com cara de caso."

"É a minha mãe. Ando preocupado com ela."

"A tua mãe?", admirou-se a espanhola. "Aconteceu-lhe alguma coisa?"

O historiador sacudiu a cabeça; explicar a situação da mãe parecia-lhe muito complicado e até inútil, uma vez que Raquel não o poderia ajudar.

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"Não aconteceu nada", disse. "Esquece." Pousou o olhar nos copos que ela acabara de encher e, esforçando-se por deixar as preocupações de lado, até porque nada poderia resolver nesse instante, tentou animar-se. "Então, esse champanhe?"

A visitante estendeu-lhe o copo dele e depois ergueu alto o seu.

"Salud!"

"Tchim-tchim!"

Tomás tinha sede e, fechando os olhos, engoliu todo o champanhe do copo de uma só vez. Quando reabriu as pálpebras quase deixou cair o copo. O roupão de Raquel escorregara até aos pés e ela estava nua diante dele, o corpo sinuoso e bem desenhado, o peito arrebitado e ofegante, os grandes olhos verde-esmeralda a cintilarem.

"A fiesta tem banquete", ronronou ela, deslizando para a cama e abrindo os braços convidativos. "Faz-me o que devias ter feito naquela sala de demónios, cariño..."

"O champanhe não estava mal", murmurou o português, contemplando o corpo bem desenhado da mulher, "mas o prato principal parece de arromba!"

Com um gesto rápido e uma gargalhada travessa, a espanhola agarrou a toalha que o cobria e puxou-a, desnudando-o também.

"Hola!", exclamou ela, arregalando os olhos perante o que via.

"Também não me posso queixar..."

Tomás deixou-se resvalar para a cama e, como um náufrago, afundou-se num abraço feito de gemidos e suspiros, sentindo a carne quente e palpitante da mulher, a pele aveludada a tornar-se leitosa e arredondada nos seios e nas nádegas, a garganta a arquejar de volúpia, os olhos entreabertos de desejo, as entranhas húmidas e sequiosas, os corpos a contorcerem-se no dueto de um movimento sincronizado, os lábios molhados entreabertos com sofreguidão, gulosos e glutões, as línguas sôfregas a digladiarem-se numa refrega sedenta, imitando os corpos na gula insaciável de amantes que se 516


descontrolavam e perdiam numa sinfonia de vagidos ofegantes, espada a penetrar em carne, pedra áspera na almofada de seda, gelo no fogo, uma dança de ritmo crescente, primeiro devagar, a fruir o toque, a saborear a lenta doçura do instante, depois a ganhar velocidade à medida que o corpo pedia mais e mais, como uma locomotiva a acelerar, a bigorna a bater em ferro em brasa, o...

"Não!", disse ele de repente. "Não!"

Saiu dela e rolou para o lado.

Raquel abriu os olhos, apanhada de surpresa com a interrupção, na verdade sem entender o que sucedera.

"Qué pasa?", perguntou, alarmada e atarantada. "Que aconteceu?

Porque paraste?"

De pálpebras cerradas, o português abanou a cabeça.

"Não."

Ela apoiou o cotovelo na cama e ergueu-se, observando-o para ver se estava tudo bem.

"Não, o quê?"

Tomás respirou fundo e abanou a cabeça.

"Desculpa, mas não posso", titubeou. "Não posso, não posso."

"Porquê? O que se passa?"

O português ergueu o braço e indicou a porta do quarto. "Tu não tens culpa, não é nada contigo, mas... preciso de ficar sozinho."

A espanhola abriu a boca, sem saber o que pensar. "Estás a mandar-me embora?"

"Sim, por favor", confirmou ele, sem vontade de se explicar.

"Desculpa, mas não posso. Preciso de ficar só."

Raquel saltou da cama e vestiu o roupão com gestos bruscos, a fúria a crescer-lhe no corpo e a indignação a enrubescer-lhe a face.

"Cabrón de mierda", resmungou entre dentes, "hijo de puta, coro de maricón!"

Sem olhar para trás, saiu do quarto como um furacão e bateu a 517


porta com violência. Enfim sozinho, Tomás enroscou-se na cama e puxou o lençol, ele próprio sem compreender o que fizera e porque o fizera. A única coisa que sabia é que, enquanto amava e beijava e penetrava aquela mulher que tão inesperadamente rejeitara, um rosto se lhe impusera com tal força que fora incapaz de prosseguir, uma cara materializara-se-lhe diante dos olhos, travara-lhe o corpo e obrigara-o a parar.

Maria Flor.


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Epílogo




O céu escurecia já sobre os pinheiros e o clarão crepuscular do Sol tornara-se um hálito arroxeado no horizonte quando a pacatez na praceta foi quebrada pelo guinchar da travagem repentina de um automóvel. O

Volkswagen azul estacionou com grande fragor diante da vivenda no meio do pinhal, o motor traseiro a estalar de fadiga depois da corrida louca de Lisboa até Coimbra, e o silêncio só voltou quando a viatura foi desligada. Ouviu-se uma porta a abrir e o condutor saltou para o passeio e, apressado, correu a tocar à campainha da moradia.

Soaram passos no interior do edifício e uma mulher de bata e touca branca abriu a porta do Lugar do Repouso e olhou para o exterior.

"A minha mãe?"

A pergunta de Tomás foi atirada de chofre, com ansiedade e impaciência, sem sequer uma saudação preliminar.

"Boa tarde, professor Noronha", devolveu ela com um sorriso profissional. "Veio ver a dona Graça?"

"Onde a puseram?"

A empregada deu um passo para o lado, convidando-o a entrar.

"Faça o favor", disse. "Está lá em cima, no quarto dela. Faça o favor de subir."

Sem se preocupar com cerimónias, Tomás franqueou a entrada e 519


trepou as escadas em grande velocidade, saltando de três em três degraus, e só abrandou diante do quarto da mãe. Tocou de mansinho, quase com medo que ninguém respondesse, e sentiu um alívio profundo quando ouviu do interior uma voz familiar.

"Quem é?"

"Sou eu, mãe. Posso entrar?"

"Tomás? Entra, filho, entra."

Abriu a porta e viu a mãe sentada num sofá a ler uma revista social preenchida de imagens de pessoas a posar com sorrisos artificiais.

"Tudo bem, mãe?"

"Claro que está tudo bem, Tomás", devolveu ela, estranhando a aflição que lhe surpreendia no rosto. "Porque não haveria de estar?"

O filho ficou desconcertado.

"Eles não... quer dizer, a mãe não... não teve de sair daqui?"

"Sair daqui? Para onde?"

Era uma boa pergunta. Tomás entrou, fechou a porta e foi beijá-

la. Depois sentou-se na cama, ao lado do sofá dela, e pegou-lhe na mão.

"Não ligue", acabou por dizer. "Está tudo bem, não está?" Dona Graça encolhe u os ombr os, despreocupada . "Claro que está tudo bem." Fez um gesto a indicar uma fotografia na revista. "Já viste esta lambisgóia da televisão?

Veio para aqui dizer que conheceu agora o amor da vida dela e que fez com ele... enfim, coisas na praia. Minha nossa senhora, as pessoas já não têm tino nenhum! Agora vêm para as revistas falar sobre a sua intimidade! Credo, que mundo este! Já viste isto?"

Depois de se despedir da mãe desceu as escadas e foi bater à porta do gabinete da directora. Ouviu uma voz mandá-lo entrar, abriu a porta e espreitou para o interior.

"Olá", cumprimentou com um sorriso. "Tem um minuto?" Ao vê-lo ali Maria Flor arregalou os olhos de chocolate e pôs-se de pé num salto.

"Professor Noronha!", exclamou, surpreendida. "Por aqui?"

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Tomás entrou e cumprimentou-a com dois beijos no rosto; eram macias e quentes aquelas bochechas. Depois acomodou-se diante da secretária da responsável do lar e tirou um cheque do bolso.

"Felizmente consegui resolver o equívoco e a polícia já reconheceu que foi induzida em erro", disse. "Vim aqui regularizar a situação da minha mãe."

Ao vê-lo de cheque na mão a directora corou.

"Oh, não precisava de ter vindo tão depressa!"

"Não precisava?", admirou-se ele. "O prazo para pagar a diferença em falta na mensalidade terminava ontem, não terminava?

A senhora disseme que, se não pagasse a horas, os proprietários do lar punham a minha mãe na rua. Como deve compreender, a minha prioridade logo que me vi livre da situação em que me envolvi inadvertidamente foi vir aqui pagar o que devia."

"Pois, mas isso era a situação de ontem. Neste momento está tudo controlado."

"Está? Os proprietários aceitaram dar-me mais tempo para repor a diferença?"

Maria Flor hesitou, na incerteza sobre o que deveria dizer.

"Não exactamente", acabou por admitir. "Mas a situação da sua mãe ficou regularizada e isso é tudo o que interessa."

Tomás esboçou uma careta de incompreensão.

"Regularizada? Mas como?"

A directora fez um gesto vago com a mão, como se quisesse passar à frente.

"Não interessa", disse ela, claramente com pouca vontade de remexer na questão. "Esteve agora com a sua mãe?", perguntou, mudando de assunto. "Que tal a achou?"

O olhar do visitante iluminou-se.

"Ah, muito melhor! Para começar, reconheceu-me. Só isso é coisa digna de registo, não é verdade? Além do mais, conversou 521


normalmente. Até parece outra!"

"Pois é, tenho andado a controlar-lhe mais a medicação", sorriu Maria Flor. "Por outro lado, o facto é que ela tem uns dias melhores e outros piores, e hoje pareceu-me estar num dia bom. Fez ginástica de manhã e tudo! Já a tarde foi passada a ler."

"Pois é. A minha mãe gosta de cusquices e vocês arranjaram-lhe umas boas revistas de fofocagem, não foi?" Riram-se os dois como velhos cúmplices.

"Ela adora essas coisas, não há dúvida!"

Tomás deixou a boa disposição prolongar-se, mas havia uma questão ainda por resolver no seu espírito.

"A senhora disse há pouco que..."

"Não me chame senhora", cortou ela, empertigando-se. "Até pareço uma velha. Chame-me Maria Flor, se não se importar."

"Maria Flor?", disse ele, testando a sonoridade do nome. "Muito bem, desde que me chame Tomás. Era o que tínhamos combinado, não é verdade?"

"Tem razão, profes... uh... Tomás. O problema é que ainda não nos habituámos."

O visitante pigarreou, preparando-se para regressar ao terna que o apoquentava.

"Pois, dizia eu que a senh... hã... a Maria Flor revelou há pouco que a situação da minha mãe foi regularizada. O que queria dizer com isso?"

A directora voltou a fazer um gesto indefinido com a mão, tentando passar à frente.

"Ah, não se preocupe, isso já lá vai!", devolveu ela. "Já reparou que a sua mãe é um bocado vaidosa? Noutro dia levei-a a passear à Baixinha e dei com ela a apreciar um vestido numa montra."

Tomás fitou-a com intensidade e cruzou os braços, como um menino traquina a fazer birra.

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"Já vi que está a tentar desviar a conversa", constatou. "Pois eu não saio daqui enquanto não me explicar como é que a situação da minha mãe foi regularizada. Pressinto que há aí um mistério qualquer e gostaria de o esclarecer."

"Apre que é teimoso!", protestou ela, carregando as sobrancelhas.

"Sempre foi assim?"

"Sempre", confirmou ele. "Então conte lá, como é que a situação da minha mãe foi regularizada?"

"Não interessa, Tomás." Ajeitou-se no assento. "Olhe, se fosse a si ia à Baixinha com ela. A dona Graça anda de olho num vestido que..."

"Escusa de tentar desviar o assunto porque daqui não saio", avisou ele, interrompendo-a. "Sou filho e responsável por uma pessoa que vive nesta instituição e tenho o direito de saber qual a situação das mensalidades dela." Inclinou a cabeça. "Ou não tenho?"

A directora engoliu em seco.

"Tem sim."

O visitante manteve os braços cruzados, manifestando a sua posição irredutível, e soergueu uma sobrancelha. "E então?", insistiu.

"Desembuche."

"A situação da sua mãe está regularizada", disse ela num fio de voz tímido. "Não tem de se preocupar com nada este mês."

"Que a situação este mês está regularizada já eu percebi", devolveu ele. "Mas como foi ela regularizada?"

Maria Flor engoliu em seco.

"Pagaram a diferença em falta."

Tomás estremeceu, apanhado de surpresa.

"Pagaram?", admirou-se. "Quem?"

O corpo da directora do lar pareceu encolher-se no assento e os olhos de chocolate desviaram-se para o chão, incapazes de o encarar.

"Fui eu."

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Fez-se um silêncio estarrecido no gabinete.

"Você?", perguntou Tomás quando recuperou a fala, ainda embasbacado com o que acabava de ouvir. "Pagou o que faltava da mensalidade da minha mãe? Do seu bolso?"

Maria Flor assentiu com a cabeça, o olhar baixo, a garganta emudecida, incapaz de o dizer novamente.

"Porquê?", perguntou ele, assombrado. "Porque fez isso?"

A directora levantou enfim os olhos e fitou-o.

"Porque não podia deixar que a pusessem na rua!", retorquiu, a voz de repente assertiva, o olhar incendiado por uma paixão que Tomás sempre lhe adivinhara mas nunca realmente vira. "Porque estou aqui para cuidar de pessoas, não para alimentar um mero negócio!

Porque o mundo pode estar de pernas para o ar, mas eu ao menos ainda sei quais são as minhas prioridades e responsabilidades! Porque, enfim, tenho vergonha na cara e sei que há muito mais na vida do que vender a alma por um punhado de patacos!"

Falou com exaltação, com o arrebatamento das pessoas que sabiam quem eram e para onde iam, e Tomás teve nesse instante vontade de a abraçar e a beijar e fazer com ela o que ainda nessa noite não conseguira fazer com Raquel. Mas conteve-se. Até então tinha mantido com Maria Flor uma relação estritamente profissional, ela era a directora do lar, ele o filho de uma idosa ali alojada.

Tornava-se evidente, todavia, que uma linha invisível entre os dois havia sido cruzada e não existia caminho de retorno.

Quando Maria Flor se calou, Tomás agradeceu-lhe por ele, pela mãe, pela compaixão que ela sentira por eles. Ainda pensou em pagar-lhe o valor que a directora metera do seu próprio bolso mas teve vergonha, percebeu que seria um insulto à grandeza e ao gesto de profunda humanidade de que fora objecto e por isso conteve-se.

Agradeceu até ficar sem mais palavras e perceber que o agradecimento a embaraçava, que ela na realidade nada fizera em 524


busca de reconhecimento mas apenas procedera com naturalidade, em verdade para consigo mesma.

De repente sem nada para dizerem um ao outro, como se à linha invisível que haviam cruzado se tivesse acrescentado uma barreira incorpórea mas estranhamente palpável, um silêncio desconfortável instalou-se entre ambos. Sentindo-se sem jeito nem conversa, atrapalhado pelo mutismo incómodo que surgira entre eles, o visitante levantou-se por entre palavras desajeitadas, dizendo que já se ia fazendo tarde e que estava na hora de se ir embora.

A directora permaneceu embatucada e balbuciou umas palavras de circunstância que ele nem percebeu, tão assarapantado se sentia.

Ao chegar à porta do lar, porém, Tomás estacou e fitou-a naqueles olhos castanhos, tão abertos e verdadeiros. Tentou dizer alguma coisa que expressasse o turbilhão que lhe ia na alma, mas nada lhe saiu e, derrotado, desistiu. Levantou a mão em despedida e, o espírito num tumulto, começou a caminhar em direcção ao automóvel, a timidez a vencer a ousadia, a inibição a impor-se ao atrevimento, a razão a ganhar à emoção. Pensou que tinha era de ter juízo e respeitar aquela mulher e o seu gesto e não fazer disparates.

Deteve-se a meio caminho, a vontade a desobedecer à cabeça, o coração a rebelar-se contra as convenções, o corpo todo ele em insurreição. Porque não proceder como o instinto lhe sugeria?, porque não render-se à doce tentação da loucura?, porque não escutar a voz que lhe soprava sussurros de atrevimento? Virou-se e olhou-a de novo, a coragem subitamente recuperada, a ousadia enfim vencedora. Maria Flor permanecia à porta do lar, os olhos brilhantes, o rosto corado, o cabelo a esvoaçar sob o efeito da brisa que soprava fresca de norte, como se a noite acabada de cair a quisesse abraçar com tanta vontade como ele.

"E que tal se fossemos jantar?"


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Nota Final




É difícil escrever sobre a Segunda Grande Depressão sem, de uma maneira ou de outra, mesmo que não o queiramos, nos posicionarmos no aceso debate ideológico que esse traumático acontecimento suscitou. A esquerda diz que a culpa é dos mercados desregulados, da ganância e do liberalismo económico, a direita responde que a verdadeira causa é o despesismo desmedido e o enorme estado social que a menor riqueza gerada já não consegue sustentar.

Como falar sobre a crise e as suas causas sem ser catalogado como "esquerdista irresponsável" ou "neoliberal radical"? Como fazê-lo sem ser arrastado para o debate ideológico, político e até partidário que o colapso financeiro e económico radicalizou? Talvez não seja possível. Falar sobre economia implica necessariamente uma certa visão do mundo. Haverá forma de escapar a essa armadilha ideológica e mesmo assim abordar o problema nas suas vertentes essenciais?

No seu romance I Married a Communist, Philip Roth de certo modo resolveu o dilema quando pôs um personagem a reflectir sobre a diferença entre o comunismo e o capitalismo. "Tudo o que os comunistas dizem sobre o capitalismo é verdadeiro", disse ele mais ou menos assim, em conversa com Nathan Zuckerman, o alter ego de Roth. "E tudo o que 526


os capitalistas dizem sobre o comunismo é também verdadeiro. A diferença, rapaz, é que os comunistas se baseiam no conto de fadas de que somos todos iguais e criam um estado policial para impor à força essa visão, enquanto o capitalismo se baseia em leis da natureza que, bem ou mal, existem de facto."

O mesmo, parece-me, se pode dizer sobre esta crise. O que a esquerda defende é verdadeiro, o que a direita afirma também. E ambas desvalorizam o que não lhes convém, embora igualmente verdadeiro. É

verdade que a experiência mostra que os mercados não podem ser deixados à solta e que, como estabeleceu Marx, o capitalismo encerra em si contradições que conduzem à sua própria destruição; e é verdade que, maior do que a dívida pública, é a dívida privada contraída pelas famílias e pelas empresas com a cumplicidade gananciosa dos bancos.

Mas também é verdade que o sonho do estado social se está a desmoronar perante o colapso do crescimento demográfico e a estagnação económica nos países industrializados e que não é possível sustentá-lo sem criar mais riqueza do que aquela que está a ser produzida; e é verdadeiro que as nossas economias enfrentam uma séria crise de competitividade perante os produtos oriundos das economias emergentes onde se praticam salários miseráveis, o que nos põe perante um dilema terrível: ou aceitamos que nos baixem os salários para que os bens que produzimos tenham preços competitivos, ou vamos para o desemprego porque as nossas empresas não conseguem sobreviver perante uma concorrência com preços tão agressivamente baixos.

Igualmente verdadeiro, existe um problema sério na forma como as nossas democracias estão a funcionar. Os políticos não buscam a resolução dos problemas, mas a sua eleição. Isto é válido para todos os políticos. Todos.

O que levanta interrogações naturais sobre a maneira como governam e como financiam as campanhas para as suas eleições. Por que razão se constrói uma determinada auto-estrada? Porque ela é realmente necessária ou porque uma construtora civil deu determinada quantia para a campanha 527


eleitoral de um partido e o político tem de retribuir o favor com o dinheiro dos contribuintes? E quando a Alemanha ou a França financiam um projecto em Portugal ou na Grécia fazem-no realmente para ajudar os Portugueses e os Gregos ou para ajudar as suas próprias empresas, num esquema de subsídio indirecto e disfarçado de ajuda? Todos dizem que a primeira opção é a resposta, todos intuímos que a segunda é que é verdadeira.

A Mão do Diabo apresenta uma avaliação das economias feita com base nas opiniões de economistas eminentes. Nada é minha opinião, tudo o que está escrito resulta do diagnóstico feito por profissionais. O livro inclui por isso informação económica e financeira genuína. De resto, trata-se quase sempre de informação pública. Contudo, o último segmento do romance, aquele em que se conhece o teor do DVD, apresenta-nos informação que não é necessariamente pública. Mas é, no seu espírito, verdadeira, embora devidamente mascarada pelas roupagens da "ficção".

Trata-se de informação que me foi fornecida ao longo do tempo, mas que, para os efeitos deste livro, não passa de informação "ficcional". Este livro é um romance, isso é "ficção".

O processo do Tribunal Penal Internacional contra os responsáveis pela crise por crimes contra a humanidade é igualmente, e como parece óbvio, pura ficção. Esse processo não existe, não há qualquer lista de suspeitos. Mas pareceu-me que faria sentido usar a ficção para pôr a justiça a fazer uma coisa que na vida real não faz: apurar responsabilidades pela crise. É um facto que todos somos responsáveis pelo que aconteceu, nem que seja pelo facto de votarmos em quem votamos ou até por nos abstrairmos em absoluto da actividade política, por desinteresse ou nojo, atitude que na prática significa que a deixamos nas mãos de pessoas que não conhecemos verdadeiramente — pessoas amiúde desqualificadas e por vezes corruptas. Mas, ao dizermos que somos todos responsáveis, seria errado presumir que somos todos igualmente responsáveis. Não somos. A responsabilidade de um primeiro-ministro, de um ministro das Finanças ou do governador de um banco central é muito diferente da responsabilidade 528


da minha mãe, por exemplo, que está reformada. Ou da sua responsabilidade, caro leitor.

Para a escrita deste livro consultei várias obras cujos títulos me parece importante partilhar para quem procure leituras adicionais. Assim, sobre a crise financeira, as principais fontes bibliográficas foram Freefall —America, Free Markets, and the Sinking of the World Economy, de Joseph Stiglitz; Crisis Economics — A Crash Course in the Future of Finance, de Nouriel Roubini e Stephen Milim; e uma série de ensaios publicados por Jeffrey Friedman em What Caused the Financial Crisis, designadamente "Capitalism and the Crisis: Bankers, Bonuses, Ideology, and Ignorance", de Jeffrey Friedman; "An Accident Waiting to Happen: Securities Regulation and Financial Deregulation", de Amar Bhidé; "Monetary Policy, Credit Extension, and Housing

Bubbles, 2008 and 1929", de Steven Gjerstad e Vernon Smith; "The Anatomy of a Murder: Who Killed the American Economy?", de Joseph Stiglitz; "Monetary Policy, Economic Policy, and the Financial Crisis: An Empirical Analysis of What Went Wrong", de John Taylor; "Housing Initiatives and Other Policy Factors", de Peter Wallison; "How Securitization Concentrated Risk in the Financial Sector", de Vira! Acharya e Matthew Richardson; "A Regulated Meltdovvn: The Base! Rides and Bank's Leverage", de Juliusz Jablecki e Mateusz Machaj; "The Credit-Rating Agencies and the Subprime Debacle", de Lawrence White; e "Credit-Default Swaps and the Crisis", de Peter Wallison. Destaque ainda para o documentário Inside Job, de Charles Ferguson.

Sobre a crise do euro e das dívidas soberanas, as principais leituras foram Bust — Greece, the Euro, and the Sovereign Debt Crisis, de Matthew Lynn; The End of the Euro — The Uneasy Future of the European Union, de Johan van Overtveldt; A Tragédia do Euro, de Philipp Bagus; The Imminent Crisis — Greek Debt and the Collapse of the European Monetary Union, de Grant Wonders; Endgame — The End of the Debt Supercycle and how it Changes Everything, de John Mauldin e Jonathan Tepper; This Time Is 529


Different Eight Centuries of Financial Folly, de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff; e ainda o estudo "Back to Mesopotamia? — The Looming Threat of Debt Restructuring", de David Rhodes e Daniel Stelter.

Sobre a crise portuguesa especificamente, as obras de referência para este romance foram O Fim da Ilusão, de Medina Carreira; Perceber a Crise para Encontrar o Caminho, de Vítor Bento; Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro, de Carlos Moreno; As 10 Questões da Crise, de João César das Neves; Portugal: Dívida Pública e Défice Democrático, de Paulo Trigo Pereira; Acabou-se a Festa, de Pedro Cosme Vieira; A Dividadura — Portugal na Crise do Euro, de Francisco Louçã e Mariana Mortágua; Só Um Milagre nos Salva — A Verdade sobre a Crise Portuguesa e a Sua Solução, de Joaquim Vieira; Economia Portuguesa — As Últimas Décadas, de Luciano Amaral; Má Despesa Pública, de Bárbara Rosa e Rui Oliveira Marques; Segurança Social —O Futuro Hipotecado, de Fernando Ribeiro Mendes; Olhos nos Olhos, de Medina Carreira e Judite Sousa; e ainda o estudo "O euro e o crescimento da economia portuguesa: uma análise contrafactual", de Luís Aguiar-Conraria, Fernando Alexandre e Manuel Correia de Pinho.

Por contributos vários que enriqueceram esta obra são devidos agradecimentos a Henrique Medina Carreira, antigo ministro das Finanças; a João Sáàgua, director da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; ao advogado Fernando Carvalho; a Paulo Teixeira de Morais, vice-presidente da Associação Transparência e Integridade; a Marina Ramos, antiga editora de Economia da RTP; e a pessoas de uma lista imensa de fontes anónimas que alimentaram o livro de informações menos conhecidas, de desempregados a empresários, banqueiros e antigos governantes, a juristas e magistrados que trabalham na área da corrupção e gestores e técnicos que lidam ou lidaram com investimentos públicos de contornos pouco claros.

Uma palavra final de apreço às minhas muitas editoras, de Lisboa a Atenas, de Roma a Nova Iorque, de Banguecoque a Moscovo, pelo entusiasmo que dedicam à publicação e à promoção dos meus romances. Um 530


agradecimento também aos meus agentes literários em Madrid, Nova Iorque, Hamburgo e Estocolmo, e a Massimo, o meu guia em Florença. Ao meu irmão, João, com quem tanto discuto sobre tudo o que nos está a acontecer. E, por fim, à Florbela, sempre a minha primeira leitora.

Já agora, quando lá atrás disse que o conteúdo do DVD revelado no final do romance era "ficção", espero, amigo leitor, que tenha estado atento e reparado na forma como escrevi a palavra "ficção".

Entre aspas, claro.

























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Para que o mal triunfe

basta que os homens bons

nada façam.

Edmund Burke













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