XXXIV

Os pratos de sobremesa eram uns petit gâteaux que Raquel tirou do congelador e apressadamente cozinhou no microondas. Pô-los tempo de mais no aparelho, uma vez que os doces vieram a fumegar e com o molho de chocolate solidificado. Tomás retirou um pedaço da sua sobremesa e provou-a quase a medo.

"Então?", quis a espanhola saber. "Qual foi o crime do século?"

O seu interlocutor apontou com a pequena colher para o doce pousado diante dele.

"Este petit gâteau", indicou. "Cozinhá-lo desta maneira é o crime do século. Não podia ao menos ter preservado o molho de chocolate?"

A anfitriã fez uma careta.

"Vá, não abuse. Ter sobremesa já não é mau, isto não é nenhum restaurante." Mordeu o lábio inferior. "Dizia você que foi cometido o crime do século. Explique lá isso melhor."

Tomás trincou mais um pedaço do seu doce; havia de facto sido demasiado cozinhado, mas continuava delicioso.

"Estamos perante a tempestade perfeita", começou por dizer enquanto se lambuzava com o seu petit gâteau. "A uma crise estrutural do Ocidente e em particular das economias do Sul da Europa juntou-se a crise financeira americana e a crise estrutural do euro."

"Tudo relacionado?"

"De certo modo", assentiu o historiador. "Acontece que as crises estruturais, a do Ocidente, a das economias sul-europeias e a do 230


euro, eram silenciosas e prolongadas. Só se tornaram visíveis graças à crise financeira, que pôs tudo a nu. É um pouco como se vivêssemos numa casa com as estruturas rachadas, está a ver? Um dia vem um terramoto e... pimba, lá vai a casa abaixo! O que dizemos então? Ai, a minha casa foi destruída pelo terramoto!" Estreitou as pálpebras.

"Mas estaremos a dizer a verdade?"

"Sim e não", retorquiu a agente da Interpol. "Sim, porque foi o terramoto a causa próxima. Não, porque a casa já tinha as estruturas debilitadas e mais dia menos dia viria abaixo."

"O mesmo se passou com esta crise. As economias ocidentais e o euro são a casa com os pilares rachados, a crise financeira americana foi o terramoto. Para perceber esse terramoto temos de recuar no tempo e ver o que aconteceu no terramoto anterior, ocorrido em 1929."

"Ou seja, a Grande Depressão", observou Raquel. "Porque diabo vocês, os historiadores, explicam tudo recorrendo ao passado?"

"Porque o passado dá-nos pistas para o presente, ora essa!", exclamou Tomás, defendendo a sua formação académica. "Já viu como para se perceber alguma coisa do presente é preciso conhecer a história?"

Pigarreou. "Recuemos pois aos anos 20. Ao longo de quase toda essa década, a Reserva Federal dos Estados Unidos manteve as taxas de juro artificialmente baixas, o que encorajou os bancos a emprestarem dinheiro em condições arriscadas. Como o dinheiro era tão barato, as pessoas endividaram-se à louca, criando uma bolha de consumo, em particular na bolsa e no imobiliário. Com tanta procura, os preços começaram a subir. Receando que a inflação se descontrolasse, em 1928 o Fed foi forçado a aumentar os juros. Isso fez rebentar a bolha.

Os consumidores viram de repente dificultado o acesso ao crédito a que estavam habituados e, como passaram a ter menos dinheiro, deixaram de pagar as dívidas e de comprar acções, bens e propriedades. Os bancos não conseguiam reaver o dinheiro que 231


haviam emprestado e as empresas produziam bens que ninguém comprava. Sem conseguirem vender, baixavam os preços para atrair clientes, mas o consumo permaneceu baixo porque os juros continuavam altos. As empresas acumularam prejuízos e começaram a falir. Com as empresas a perderem dinheiro ou a fecharem, as acções aceleraram a queda e provocaram o colapso de Wall Street."

"O famoso colapso de 1929, não é?"

"Foi na chamada terça-feira negra. A derrocada da bolsa ameaçou ainda mais a liquidez dos bancos, muitos dos quais tinham investido demasiado em acções. Os depositantes assustaram-se com as informações de que os bancos não estavam bem e correram para levantar os dólares e trocá-los por ouro ou escondê-los debaixo dos colchões. Em vez de injectar dinheiro na economia, onde faltavam dólares, o Fed manteve as taxas de juro altas. Com os cofres vazios, os bancos faliram em cascata. Os que sobreviveram, escaldados, tornaram-se muito conservadores nos empréstimos. Sem os bancos a financiá-las, as acções em baixo e o dinheiro dos consumidores guardado debaixo dos colchões ou em ouro, as empresas não vendiam produtos nem se financiavam, e as insolvências aceleraram. Mais pessoas ficaram sem emprego. O caos espalhou-se pela América e depois pelo mundo."

"Isso é estranho, não é?", interrogou-se Raquel. "Se o problema era americano, porque contagiou o resto do mundo?"

"Porque a Europa vivia à custa de dinheiro que vinha da América. Os Aliados europeus combateram na Primeira Guerra Mundial com dinheiro emprestado pelos bancos dos Estados Unidos.

Quando a guerra acabou chegou a hora de pagar. Mas pagar com quê, se a Europa não tinha dinheiro? Assim, pediram empréstimos novos para pagar os antigos. Ou seja, resolveram a dívida com mais dívida, um esquema piramidal que caracterizou a vida nos anos 20. Por outro lado, a Alemanha, sobrecarregada pelas reparações de guerra, 232


também só se sustentava com o dinheiro que pedia emprestado à América. Quando os bancos americanos entraram em colapso toda a pirâmide se desfez. Os países europeus, que viviam viciados nos empréstimos americanos, viram a torneira fechar-se e ficaram sem dinheiro. As economias paralisaram e os estados entraram em incumprimento. Como metade do planeta estava nas mãos dos europeus, a crise globalizou-se."

Raquel emitiu um assobio.

"Madre de fios, sempre ouvi falar na crise de 1929 mas nunca a tinha entendido realmente", observou em tom aprovador. "Você explicou isso muito bem, sim senhor!"

O historiador arqueou as sobrancelhas sucessivamente para cima e para baixo, brincalhão.

"Não é por acaso que sou... ou era, o professor mais requisitado da minha faculdade."

Ela soltou uma gargalhada.

"Ai que vaidoso!", gracejou com uma careta trocista. "Já vi que é peneirento."

"Não confunda sinceridade com vaidade", retorquiu Tomás. "De qualquer modo, vale a pena notar que, se for a ver bem, tudo o que lhe expliquei referente à Grande Depressão é hoje estranhamente familiar, não acha?" Começou a enumerar com Os dedos. "Dinheiro fácil, endividamento das pessoas, endividamento dos países, bolhas que crescem, subida das taxas de juros, bolhas que rebentam, dívidas que ficam por pagar, bancos sem dinheiro, países insolventes, desemprego a alastrar..."

"Tem razão, hoje em dia ouvimos tudo isso nas notícias."

"A história económica tem o seu quê de monotonia", notou o português. "Tende a repetir-se com previsibilidade enfadonha. Como dizia Aldous Huxley, 'o charme da história e a sua lição enigmática consiste no facto de que, de era em era, nada muda e apesar disso 233


tudo é completamente diferente'."

"Acha que a actual crise é igual à de 1929?"

O historiador passou o indicador pelas manchas de chocolate que restavam no prato de sobremesa.

"Sabe, convém primeiro perceber como foi enfrentada a Grande Depressão", disse ao lamber o dedo. "Uma das coisas que as autoridades

americanas

perceberam

foi

que

os

bancos

desempenharam uni papel crucial em toda a crise. Fecharam onze mil bancos na América, e isso não podia ser. Os governantes tentaram perceber o que correra mal e tomaram consciência de que, na mira do lucro fácil, os bancos se haviam envolvido em investimentos de alto risco. Além disso, emprestaram dinheiro a pessoas, empresas e países que não tinham condições de pagar e que, quando as dificuldades surgiram, entraram em incumprimento. Por outro lado, havia um problema de confiança dos depositantes, que nessa época corriam aos bancos para levantar o dinheiro à menor notícia de que eles enfrentavam dificuldades, com receio de perderem todos os seus depósitos. Havia, pois, que mudar isso."

"Ah, foi assim que nasceram as garantias do estado aos depósitos até um determinado valor, não é verdade?"

"Exactamente. Essa foi a medida concebida em 1933 para parar com as corridas aos bancos. O problema é que essa garantia tinha algo de imoral. Ela significava que, se o banco gerisse mal, os contribuintes pagariam para cobrir essa má gestão, mas se gerisse bem o banco ficaria com todos os lucros, nada entregando aos contribuintes que arriscavam o dinheiro com a garantia que davam.

Não podia ser. Assim, como contrapartida pelo risco que passou para o bolso dos contribuintes, o governo americano impôs aos bancos um quadro de regulação do mercado que limitou a competição selvagem e atingiu o seu expoente máximo com a aprovação no mesmo ano da Lei Glass-Steagall, que separou os bancos comerciais 234


dos bancos de investimento. Esta decisão foi crucial."

"Porquê? Como é que uma simples separação de bancos muda alguma coisa?"

"Repare, o que são bancos comerciais e bancos de investimento? Os bancos comerciais limitam-se a guardar as poupanças dos depositantes e a fazer empréstimos, enquanto Os bancos de investimento se caracterizam por gerir o dinheiro dos ricos e envolver-se em actividades de risco, como investimentos em acções e obrigações.

Ora o que se estava a passar? Os bancos que recebiam os depósitos andavam a fazer investimentos arriscados com o dinheiro dos depositantes.

Além do mais, ao juntarem as duas actividades, comercial e investimento, os bancos haviam-se tornado demasiado grandes e as suas falências afectavam todo o sistema e paralisavam a economia. Não podia ser. Foi por isso que a Lei Glass-Steagall os separou."

A espanhola fez uma careta e resmungou com cepticismo.

"Pois, mas essa medida falhou..."

"Pelo contrário", apressou-se Tomás a esclarecer. "As medidas de regulação foram um grande sucesso e as falências praticamente pararam logo que as novas regras entraram em vigor. Os bancos comerciais passaram a ser muito mais prudentes na gestão do dinheiro dos depositantes. Por um lado, o cidadão comum não queria de modo nenhum que as suas poupanças fossem arriscadas no casino das bolsas, pelo que o investimento de risco cessou. Por outro, os bancos comerciais passaram a viver exclusivamente da diferença entre os juros que pagavam aos depositantes e o juro que recebiam das pessoas, das empresas e dos países a que emprestavam o dinheiro. Como é evidente, tinham todo o interesse em só emprestar a quem pagasse, não é verdade? Isso garantiu a solidez do sistema."

"Desculpe, mas se assim fosse não teria havido o colapso financeiro em 2008, pois não? A ocorrência desse colapso prova que a regulação não funcionou."

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"Não, minha cara", retorquiu Tomás com grande ênfase. "O

colapso de 2008 prova que a regulação funcionou. Veja bem, durante um quarto de século o sistema financeiro não sofreu qualquer sobressalto, pois não?"

"Então o que correu mal?"

"O que correu mal foi que, nos anos 60, os bancos começaram a ser geridos por uma nova geração de banqueiros, gente que não tinha vivido os tempos da Grande Depressão e que queria expandir a sua actividade para áreas de maior risco, que eram mais lucrativas. Os novos políticos também não tinham passado pela grande crise de 1929

e aceitaram flexibilizar algumas regras de regulação, o que teve como consequência um maior comportamento de risco por parte dos bancos e o consequente aumento das falências nos anos 70."

"Se as falências aumentaram, porque não voltaram à regulação que tinha sido revogada?"

"Porque o clima ideológico se alterou", explicou o historiador.

"Lembre-se que a nova geração de líderes não tinha vivido a Grande Depressão e achava que os tempos tinham mudado e já não se justificavam determinadas medidas restritivas. Foi por isso que em 1980 o presidente Carter aprovou uma lei que permitia que os bancos se tornassem mais competitivos no pagamento de juros aos depositantes. Mas os grandes investidores de Wall Street achavam que isso não era suficiente e queixavam-se de que, ao limitar as actividades de risco, a regulação não os deixava fazer muito dinheiro. O que era verdade. A limitação do risco impedia as perdas catastróficas, mas também os lucros mirabolantes." Abriu os braços e sorriu. "Foi assim que, em 1981, a América elegeu para a Casa Branca um actor de Hollywood que tinha, o que não era inocente, o apoio entusiástico de Wall Street."

Raquel arregalou os olhos e, num tom de espanto, pronunciou o nome muito devagar.

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"Ronald Reagan ?"

Com um aceno afirmativo, o historiador anuiu.

"A retórica do mercado livre e da regulação conheceu um novo e poderoso impulso com a eleição do presidente Reagan. A ideia era simples: os mercados funcionam bem por si mesmos, os regulamentos são empecilhos que impedem o bom funcionamento da economia livre, a regulação não é a solução mas o problema, o mercado deve ser totalmente livre. Desregule-se!"

"Há uma certa lógica nesse raciocínio..."

"Uma lógica que só um tolo engole!", devolveu Tomás num tom categórico. "Imagine que não havia uma lei a proibir o homicídio. O

que aconteceria? Um homem com fome via uma velhota sair do supermercado e matava-a na rua para comer o que ela tinha no saco. Ou seja, as pessoas estavam sempre a matar-se umas às outras por dá cá aquela palha. Foi justamente para impedir isso que o homicídio foi proibido. As leis são o que nos separa da bestialidade. Ora a lei é uma regulação criada para impedir que uni determinado sistema entre em curto-circuito. É uma estupidez pensar que não é preciso proibir os homicídios porque Os homicidas se auto-regulam livremente. Isso nunca funcionaria. No futebol, por exemplo, há Uma lei que impede que se jogue a bola com a mão. Se se acabar com essa lei, os jogadores começam a agarrar a bola com as mãos sempre que lhes convém e o jogo é destruído." Fez um gesto a indicar o que estava para lá da janela da sala. "Até a natureza está repleta de leis! As leis são regulação, minha cara. Se o universo, a natureza, a vida, a sociedade e até os desportos precisam de regulação para funcionarem, por que razão o mercado haveria de ser a excepção e prescindir de regulação? Isso não faz sentido nenhum!"

Raquel ponderou o argumento.

"Pois, tem razão", acabou por reconhecer. "A verdade é que a própria natureza é regulada por leis. Mas se assim é, como se passou a defender a desregulação do mercado?"

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"Porque isso interessava aos tubarões da alta finança, uma vez que lhes abria a porta a fortunas fabulosas. Que isso destruísse o próprio mercado e pusesse em causa a economia e a sociedade não era problema deles. Esses tubarões lançaram uma campanha ideológica a favor da desregulação e puseram-se a financiar com centenas de milhões de dólares as campanhas de políticos de vários partidos em troca de promessas de que, uma vez eleitos, removeriam as regulações que impediam a alta finança de fazer lucros pornográficos."

"E foram removidas?"

"Com certeza! A primeira coisa que Ronald Reagan fez foi pôr fim aos limites às taxas de juro oferecidas aos depositantes, permitindo assim a competição selvagem entre bancos e encorajando comportamentos de risco.

Depois autorizou que as caixas bancárias fizessem investimentos arriscados com o dinheiro dos depositantes. A seguir tentou anular a Lei Glass-Steagall e expandir os poderes dos bancos, mas não conseguiu.

Então o que fez Reagan? Nomeou para secretário do Tesouro o GEO do banco de investimento Merrill Lynch e pôs-se à procura para o cargo de regulador de alguém que não acreditasse na regulação. A escolha recaiu num tipo chamado Alan Greenspan. Com Greenspan à frente do Fed, os reguladores reinterpretaram os seus poderes no sentido de permitir que os bancos entrassem em actividades de risco que até então lhes estavam vedadas. A ideologia da desregulação alastrou, apoiada por economistas também subvencionados pela alta finança. Os presidentes seguintes, George H. Bush, Bill Clinton e George W. Bush, prosseguiram a mesma política e chegaram ao ponto de exportar esta ideologia de desregulação para o resto do mundo. Até que, em 1999, o grande objectivo foi finalmente alcançado."

"Desregularam tudo?"

"Na prática, sim. Isso foi conseguido com a Lei Gramm-Leach-Bliley, que eliminou enfim o que restava da Lei Glass-Steagall. Os bancos comerciais foram autorizados a ter actividades de bancos de investimento, 238


exactamente como acontecia antes do colapso de 1929."

Raquel olhou-o de olhos semicerrados.

"Essa lei foi eliminada em 1999, diz você?"

"Exacto", confirmou ele. "Nove anos depois, em 2008, veio o colapso financeiro."

"Acha que foi coincidência?"

O historiador afastou o prato de sobremesa que o seu indicador limpara de chocolate e encarou a sua interlocutora com uma expressão de desafio no rosto.

"Não me diga que também acredita no Pai Natal…"




















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