XXII

Não era fácil acelerar pelas ruas de Lisboa, mesmo estando elas menos congestionadas do que no passado, até porque havia já alguns anos que Tomás não pegava numa moto e sentia que lhe faltava prática. Apesar disso carregou um pouco mais no acelerador e sentiu que ganhava confiança e destreza a cada minuto que passava; era um pouco como andar de bicicleta, depois de se aprender nunca mais se esquecia.

"Então?", atirou para trás. "Já o despistámos?"

"Não. Tens de ir ainda mais depressa!"

Mais depressa?, interrogou-se Tomás. Como? Mais veloz do que aquilo parecia-lhe impossível, ou pelo menos imprudente. Sentia o vento esbofetear-lhe a cara e esforçava-se por encontrar um compromisso entre velocidade e agilidade, imprescindível para manter um mínimo de segurança, mas o facto é que a Kawasaki levava duas pessoas e isso, dando um peso extra ao veículo, roubava-lhe equilíbrio e atrasava-os alguns metros preciosos. Como poderia ser mais rápido?

"Mais depressa!"

A voz de Filipe transmitia urgência e Tomás percebeu que a fuga não se poderia arrastar até que um deles ficasse sem combustível. Isso dar-lhe-ia uma hipótese em duas de ser apanhado; não podia entregar-se a esse tipo de probabilidades. Aliás, antes disso seria decerto apanhado; o outro vinha só na moto e tinha assim maior liberdade de movimento. Precisava de um plano. Mas qual? O que poderia fazer? Por mais que carregasse no pedal, o perseguidor não desgrudava; parecia uma carraça.

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Aceleravam pela Avenida da Índia e percebeu que se aproximavam do Cais do Sodré. Como por encanto, ou mais provavelmente devido à pressão das circunstâncias, uma ideia começou a formar-se na sua mente.

Um plano.

"O tipo que está atrás de nós", atirou para o companheiro nas suas costas, "é português ou vive em Portugal?"

"Quem? O pistoleiro?"

"Sim. Ele é de cá?"

"Não, claro que não. É de certeza um estrangeiro. Porquê?"

Tomás não respondeu. Desrespeitou o semáforo vermelho situado diante do Cais do Sodré, evitou o trânsito que vinha do outro lado e meteu pela Ribeira das Naus até ao Terreiro do Paço, confiante de que o arrojo da manobra lhe tinha conquistado alguns segundos valiosos.

Olhou para a direita e apercebeu-se de que um cacilheiro estava colado ao cais flutuante e se preparava para iniciar a travessia do Tejo rumo à outra banda. Saltou com a moto para o passeio à frente do Cais das Colunas, acelerou até ao cais dos cacilheiros travou com um guincho diante do hangar de cal branca e suja, a roda traseira a girar em semicírculo como numa prova de motocross.

"Sai!", ordenou, empurrando apressadamente Filipe para fora da mota.

"Espera por mim!"

O empurrão foi tão forte que o amigo caiu no chão.

"O que estás a fazer?"

Mais uma vez Tomás não lhe deu resposta, não porque não o quisesse fazer, mas porque não havia tempo. Rodou o manípulo do acelerador e arrancou com um novo rugido entre uma nuvem arroxeada que os tubos de escape cromados da Kawasaki exalaram num bafo, refazendo o caminho por onde viera.

O perseguidor apareceu diante dele.

"Agora nós", rosnou entre dentes. "Vamos ver se gostas de passar de 172


caçador a caça!..."

Acelerou na direcção do desconhecido e sentiu-o hesitar, surpreendido e desconcertado com a mudança de táctica da sua presa, agora transformada em predador. Tudo se passou tão depressa que o pistoleiro não teve tempo de agir. Tomás carregou sobre ele como uma bala e, no último instante, virou o guiador e, rodando no eixo, embateu com a roda traseira na moto do outro.

Por instantes o mundo deixou de fazer sentido, o alcatrão em cima e o céu azul em baixo, num momento estava sobre a Kawasaki e na fracção de segundo a seguir já rebolava pelo chão, projectado pelo impacto do embate. Rolou sobre si mesmo e ficou imóvel sobre o passeio, embalado pelos grasnidos melancólicos das gaivotas que descansavam sobre as colunas imersas na água.


Sentiu o corpo.

Após uma pausa em que permaneceu quieto no chão, quase receando mover-se, começou por verificar se os dedos mexiam. Assim era. A seguir tentou perceber se tinha alguma dor; tirando o corpo moído, parecia que estava bem. Depois mexeu os braços e a seguir as pernas; pareceu-lhe tudo normal.

Levantou-se devagar, quase a medo, e olhou na direcção do inimigo. O

trânsito parara diante do Cais das Colunas, havia duas motos deitadas no meio da rua sobre uma grande mancha de óleo e viu o homem de negro sentado sobre o alcatrão, combalido com o choque. Não ficara knockout, percebeu Tomás com desânimo, mas estava aberta a oportunidade de que precisava.

Largou a correr, primeiro com prudência, uma vez que não tinha a certeza absoluta de ter saído ileso da colisão, mas quando constatou que estava tudo bem ganhou velocidade e dirigiu-se para o cais dos cacilheiros, uma centena de metros adiante. Deu com Filipe especado à sua frente, atarantado e sem saber o que fazer, e apontou para o cacilheiro que se preparava para largar.

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"Vamos!", disse. "Depressa!"

"Mas... mas... não temos bilhete."

Se não estivesse a correr, Tomás teria revirado os olhos. Quem diabo pensaria em comprar bilhetes numa altura daquelas? Se tivessem de pagar uma multa, pagariam! Que interessava isso perante o homem que andava aos tiros atrás deles para os matar?

"Corre!"

Puxou-o pelo braço, mas nesse instante sentiu-o desfalecer.

"Agh!..."

Ouviu um estampido distante e percebeu que o amigo tinha sido atingido; como sempre, a bala chegara antes do som da detonação da pistola.

"Filipe!", chamou, fazendo força para o obrigar a erguer-se. "Levanta-te!"

Pegou-lhe pela nuca e virou-lhe a cara; estava pálido e os olhos reviravam-se nas órbitas, como uma bússola que tivesse perdido o norte, mas ainda não largara o precioso envelope; devia ser coisa importante, raciocinou Tomás, admirado com a tenacidade com que o amigo segurava o sobrescrito. Espreitou e viu uma mancha vermelha a crescer e a empapar-lhe as costas. Tinha sido atingido ali.

Levantou a cabeça e varreu o horizonte. Viu o homem de negro ao fundo, em pé e a caminhar na sua direcção. Parecia arrastar a perna esquerda, mas isso pelos vistos não o travava. Virou-se para o lado e apercebeu-se de que o cacilheiro ia partir dentro de segundos. O

amigo permanecia prostrado, entre a consciência e a inconsciência. E

era evidente que precisava de cuidados médicos urgentes. O que fazer?

Pensou em procurar ajuda, mas apercebeu-se de que o pistoleiro se aproximava, devagar mas inexoravelmente. Estava fora de questão permanecerem naquelas paragens.

Respirou fundo e levantou Filipe com o esforço de um halterofilista numa final olímpica.

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"Uuuuupa!"

Era pesado o amigo; não admirava que estivesse tão em baixo de forma. Devia comer como um lorpa, o lambão! Caminhando como um ébrio, o peso do corpo que transportava a coarctar-lhe os movimentos, arrastou-se até ao cais e, com um derradeiro e supremo esforço, conseguiu saltar para o cacilheiro.


Já a embarcação tinha partido em direcção a Cacilhas quando os passageiros se aperceberam de que um dos dois últimos passageiros a entrar, aquele que parecia adormecido, tinha afinal as costas em sangue. Os tripulantes quiseram dar meia volta, nem pensar em prosseguirem naquelas condições, mas Tomás explicou que não podia ser, o amigo fora baleado e o atacante estava à espera deles junto ao cais; voltar ao ponto de partida era entregá-los ao assassino.

Tudo aquilo parecia aos tripulantes fruto de uma imaginação demasiado fértil, coisa de alucinado, um enredo de filme americano, mas o estado do passageiro ferido e a mancha de sangue no chão constituíam a prova de que algo de grave realmente acontecera e acabaram por aceitar seguir viagem.

O elemento da tripulação com mais responsabilidades recolheu à cabina e, instantes depois, a sua voz encheu os altifalantes do cacilheiro.

"Senhores passageiros, a vossa atenção", pediu. "Se houver algum médico a bordo, faça o favor de se apresentar à tripulação com a maior urgência. Obrigado."

Por momentos ninguém se mexeu, todos na expectativa de haver algum médico no cacilheiro, até que uma senhora de meia-idade abriu caminho entre os passageiros e aproximou-se do espaço onde Tomás e dois tripulantes se encontravam, com Filipe estendido a seus pés.

"Chamo-me Avelina e sou enfermeira no Hospital de Santa Maria", apresentou-se a mulher. "Como pelos vistos não há nenhum 175


médico, talvez eu possa ajudar."

A oferta foi prontamente aceite. Avelina ajoelhou-se ao lado do ferido e franziu o sobrolho perante o taser que ele escondia no cinto, mas nada disse. Com uma tesoura rasgou a camisa para expor as costas ensanguentadas. À falta de água fervida, pediu água mineral e lavou as costas de Filipe até expor um pequeno buraco escuro na região lombar; tratava-se evidentemente do ponto por onde a bala entrara. Estudou a ferida com atenção e, voltando-se para a cabeça, analisou os olhos mortiços do paciente.

"Então, senhora enfermeira?", quis saber Tomás, ansioso. "O que acha disso?"

Avelina suspirou.

"Embora tenha tido há uns anos uma experiência de alguns meses nos politraumatizados, hoje em dia trabalho sobretudo em pediatria", explicou. "Por isso, acho prudente não fazer nenhum diagnóstico."

A escusa não era aceitável para o historiador.

"Sim, mas o que lhe parece? Ele safa-se?"

A enfermeira mordeu o lábio inferior, relutante em exprimir o que pensava, mas ao mesmo tempo percebia que alguma coisa teria de dizer.

"O senhor é familiar?"

"Não, sou amigo", impacientou-se ele, a irritação a transparecer-

-lhe na voz. "Diga lá o que se passa."

Avelina encolheu os ombros; se lhe pediam com tanta insistência um diagnóstico, ela dá-lo-ia.

"É impossível ter certezas", acabou por dizer. "É preciso fazer-lhe uma TAC para ver quais as áreas que a bala perfurou." Hesitou. "Mas se o projéctil lhe destruiu o fígado, o baço ou o pâncreas... enfim, isso não é nada bom."

"O que quer dizer exactamente com 'nada bom'?"

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Ela voltou a titubear.

"Pode não sobreviver."

O olhar de Tomás desviou-se para o amigo. Custava-lhe acreditar num desfecho daqueles. Seria possível que Filipe tivesse vindo ter com ele a pedir ajuda e acabasse por... por morrer?

"Ele está inconsciente?"

A mão da enfermeira dançou de um lado para o outro. "Meio cá meio lá", disse. "Mas deve ser possível despertá-lo totalmente em caso de necessidade."

Tomás respirou fundo.

"Então faça-o", pediu. "Preciso de falar com ele."





























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