IX

Um enorme e profundo vazio instalou-se na vida de Tomás.

Chegou nessa manhã a casa com a angústia a pesar-lhe no peito e deitou-se na cama ao abandono, sentindo-se invadido pelo mais absoluto dos despojamentos. Era como se tivesse sido declarado um inútil, um falhado, um pedaço de nada, reduzido à insignificância, humilhado, descartado como um trapo sem valor.

Derrotado.

Sim, a palavra que melhor definia o seu estado de alma era mesmo essa. Fora derrotado. Pela vida, pela universidade, pela crise.

Aquela maldita crise que desde 2008 vinha a ruminar, longínqua mas sempre a aproximar-se com insidiosa malícia, até o atingir com a força de um murro no estômago. Um murro não, um pontapé. E que pontapé! Abalara-o de alto a baixo, atingira-o no seu âmago mais profundo, vergara-o com a simplicidade desconcertante de apenas três palavras.

"Lamento muito, Tomás."

A frase que lhe fora dita apenas uma hora antes ainda lhe reverberava na memória. O director dissera que lamentava muito. Lamentaria mesmo? Que idiota, aquele tipo! Como era fácil dizer a alguém que se lamentava uma coisa e depois passar à frente, adeus que eu tenho mais que fazer. O director lamentava, mas continuava no seu emprego, confortável, o salário assegurado, decerto de consciência tranquila; despedira um subordinado com palavras delicodoces e um ar compungido adequado, mas o mais provável era àquela hora já se ter esquecido do assunto e 78


estar entretido a apalpar as tetas da secretária.

Ele, Tomás, não esquecera. Fora ele afinal quem realmente ficara com o problema nas mãos, ou não fora? O problema do director resumira-se ao anúncio da decisão, o seu problema era viver com as respectivas consequências. Respirou fundo e esforçou-se por ir para além do ressentimento e da humilhação e perceber que o director se limitara a fazer o que tinha de fazer. Não fora pessoal, pensou repetidamente. Não fora pessoal.

"Não foi pessoal uma ova!", murmurou com fúria mal contida, vertendo em palavras os pensamentos que lhe fervilhavam na mente.

"Não foi pessoal para ele, cabrão!, mas foi bem pessoal para mim!"

Revirou-se na cama e esforçou-se por pensar noutra coisa. Como se sentia só! Lembrou-se da filha e da mulher de quem se separara e sentiu uma enorme saudade delas, uma saudade tão grande que lhe fez doer o corpo e lhe roubou o ar nos pulmões. Ah, como se sentia só e como daria tudo para refazer a sua vida com as que perdera. Mas a realidade era aquela e não outra. Aprendera no Tibete que a vida era mudança e o sofrimento resultava da incapacidade de aceitar essa verdade cruel. A vida é mudança. Se queria sobreviver, se tencionava reerguer-se, se desejava uma segunda oportunidade, teria de interiorizar isso.

A vida é mudança.

O pensamento martelou-lhe a consciência e agarrou-se a ele como uma bóia de salvação. Se a vida era mudança, o que acabava de lhe acontecer não passava de um reflexo dessa realidade, decerto mais fácil de enunciar do que de aceitar. Mas teria de aceitar e viver com a realidade. A vida era mudança e a sua acabara de mudar.

Quanto mais depressa interiorizasse isso mais depressa se poderia reerguer. E para o fazer teria de lutar. Lutar.

O pensamento deu-lhe energia. Levantou-se da cama e, com ânimo súbito, disposto a não se deixar vencer, empenhado em fazer 79


das fraquezas forças, foi à escrivaninha buscar a sua agenda de contactos. Se a Universidade Nova de Lisboa prescindia dos seus serviços, outras universidades haveria que estariam até dispostas a matar para o ter nas suas fileiras. Poderia haver dúvidas disso?


Quando desligou o telefone pela última vez nesse dia já passava das cinco da tarde e o sentimento de derrota voltara a apossar-se dele.

Ligara para a Universidade Clássica, para a Universidade Católica, para a Universidade de Coimbra, para a Universidade do Porto, para a Universidade do Minho, para a Universidade de Évora, tentara as privadas, como a Universidade Lusíada, a Universidade Fernando Pessoa e muitas outras.

Nada. Todos os contactos, todos os telefonemas, todas as conversas deram num grande nada. Nada de nada.

"A crise também aqui chegou", dissera-lhe um colega de Coimbra.

"Estamos a reduzir quadros, a cortar despesas, a eliminar cursos. O

estado já paga pouco, as empresas privadas andam aflitas e diminuíram as encomendas, os alunos começaram a desistir porque as famílias não conseguem pagar os estudos, o desemprego aumentou e isto está mal e vai para pior. Não dizem que o governo vai fazer mais cortes, que a troika está a fazer mais exigências, que o mercado irá encolher ainda mais?"

Quando estava a fazer telefonemas para ver se arranjava alguma coisa, e enquanto procurava o número de telefone do Departamento de História da Universidade do Porto, o seu telemóvel tocou. Pousou nele os olhos esperançados. Seria finalmente uma resposta afirmativa?

"Professor Noronha?"

Do outro lado da linha soou uma voz feminina que não conseguiu identificar; talvez a secretária de um reitor qualquer com uma proposta que o retirasse do limbo para onde fora atirado.

"Sim, sou eu. Quem fala?"

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"Daqui Maria Flor..."

"Quem?"

"do Lugar do Repouso."

Como tinha a cabeça programada para os contactos com as universidades levou uma fracção de segundo a identificar a referência.

Tratava-se da directora do lar onde a mãe vivia.

"Que se passa?", sobressaltou-se, alarmado. "A minha mãe está bem?"

Era raro receber chamadas do lar e, sempre que elas aconteciam, diziam respeito a problemas com a mãe.

"Está óptima, fique descansado." A directora do Lugar do Repouso hesitou. "Quer dizer, dentro das circunstâncias da doença, claro. Mas sim, ela encontra-se bem."

"Ah", exclamou Tomás, aliviado. "Então o que... enfim, em que lhe posso ser útil?"

A voz na linha pigarreou, como se tacteasse o terreno antes de prosseguir.

"Precisava que o professor viesse cá a Coimbra", disse ela por fim.

"Existe um assunto urgente que temos de discutir."

"Há algum problema?"

"De certo modo, sim. Mas não tem a ver com a saúde da sua mãe, fique descansado", apressou-se a esclarecer. "Pode vir cá?"

Tomás massajou as têmporas com a ponta dos dedos; a última coisa de que precisava nesta altura confusa era de ir a Coimbra.

"Não me pode dizer ao telefone?"

"Receio bem que não. É... é um assunto delicado."

Por outro lado, havia já algumas semanas que não visitava a mãe.

Estava na altura de ir, até porque tinha saudades dela. Porque não agora?

"Muito bem", decidiu. "Vou aí na terça-feira. Combinado?"

"Excelente."

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Passou o resto do dia a preparar currículos, a mandar e-mails e a recuperar contactos antigos em busca de uma solução. Um colega da Universidade do Minho lembrou-lhe no final de mais uma recusa que, com as suas qualificações, talvez ele arranjasse lugar numa universidade britânica ou francesa, quem sabe mesmo se haveria uma americana ou uma israelita interessada nos seus conhecimentos de línguas antigas. Emigrar, todavia, estava fora dos seus horizontes.

"Só em último recurso", respondeu Tomás num tom peremptório, rejeitando a ideia. "Se for para fazer um ou outro trabalho de peritagem, ainda vá, tenho feito isso com frequência e, para ser sincero, até gosto. Aliás, ainda na semana passada o Museu de Arqueologia de Atenas me contratou para levar a cabo uma peritagem dessas. Mas... ir trabalhar para o estrangeiro? Não, nem pensar. A minha mãe está a viver cá e não a vou abandonar. Só se estiver a passar fome e não tiver para onde me virar é que admito ir para o estrangeiro."

Depois considerou a possibilidade de mudar de trabalho; afinal nada o obrigava a ser historiador até ao fim da vida. Telefonou ao Matias, um colega do liceu de Castelo Branco que ocupava um cargo de direcção numa grande empresa de vendas a retalho e com quem mantinha contactos regulares, e perguntou-lhe se tinha alguma coisa de interessante em perspectiva. Matias acolheu-o bem, como seria de esperar, mas esclareceu logo que as coisas andavam mal, a empresa estava a dispensar pessoal e não tinha margem para fazer novas contratações a não ser para carregadores de material de armazém, tarefa para a qual ele, Tomás, não estava evidentemente vocacionado. Além disso já não tinha idade para andar a carregar caixas às costas.

"Onde vai isto parar, meu Deus, já não há dinheiro para nada, nós que ainda há cinco anos íamos de férias para as Caraíbas com o dinheiro que os 82


bancos nos imploravam que aceitássemos a juros baixíssimos!", lamentou-se Matias num desabafo já no final da conversa. "Até faziam telefonemas para minha casa a perguntar se não queríamos mais um emprestimozinho, veja lá, o juro está baixinho, diziam, vá lá, o senhor sempre fica com mais uns tostõezinhos, vai a Cancún e a Punta Cana com a sua senhora e os pequerruchos, nós financiamos que somos uns porreiraços, não vê que até temos anúncios na televisão a oferecer crédito como se fossem papos-secos?

E agora, e agora..."

E agora Tomás não tinha emprego.





























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