XXVII

Um homem engravatado e de aspecto sisudo assomou à saída do gabinete e espreitou para a salinha de espera. Sentado no sofá com ar de menino bem-comportado que aguardava o momento de ser recebido estava o recém-chegado. O homem da gravata atirou-lhe um esgar carregado de desdém antes de lhe fazer um sinal com a cabeça.

"Faça o favor", disse num tom seco, convidando-o a entrar. "Ele quer falar consigo."

Decarabia levantou-se de pronto e, como um aluno que era chamado ao reitor para receber o correctivo, encaminhou-se em silêncio para a porta e entrou no gabinete, o rosto co mpro m etido, os olhos baixos, mas o po rte altivo.

Sentado no grande cadeirão atrás de uma vasta secretária, Magus parecia absorto na leitura de um dossiê volumoso. Seguindo uma instrução silenciosa do homem engravatado, o visitante deslizou até à secretária e, de pé, quase como se fosse uma sentinela, aguardou que o responsável máximo terminasse a leitura e lhe dirigisse a palavra.

Teve de esperar cinco minutos.

"Não tenho de te dizer que estou muito decepcionado contigo, pois não?"

Magus falou de repente com uma voz assustadoramente baixa e controlada, prenhe de ameaças, os olhos ainda presos aos documentos que lia. Perturbado com o tom, mas aliviado por o seu chefe lhe dirigir enfim a palavra, Decarabia manteve a postura hirta.

"Sim, grande Magus."

"Foste acolhido de braços abertos, mostraste-nos as tuas 199


credenciais e garantiste-nos que não falharias. Mas não foi o que aconteceu, pois não?"

O operacional ponderou por momentos como deveria responder.

"Nas operações existe sempre uma dose de imprevisibilidade", disse.

"Neste caso ela assumiu a forma do historiador."

O olhar sombrio de Magus ergueu-se por fim do dossiê e deteve-se no interlocutor.

"No entanto, tinhas sido avisado."

"É verdade", reconheceu Decarabia. "O problema é que uma coisa destas não se planeia assim. Não o tinha estudado em pormenor, não conhecia o seu modus operandi e... enfim, fui apanhado de surpresa."

Estreitou as pálpebras, numa expressão de forte determinação. "Não voltará a acontecer, grande Magus."

O chefe ajeitou-se no cadeirão e pegou no dossiê que acabava de consultar.

"Podes estar c erto que não" , murmu rou c om a voz carregada de tensão. "Logo que fui informado de que a polícia portuguesa falhara na captura desse indivíduo pedi um relatório completo sobre ele. O

passado, os dinheiros, os trabalhos, os amigos, as gajas que comeu e anda a comer, o que vê na Internet, a declaração de IRS..."

Largou o dossiê sobre a mesa com estrondo. "Está tudo aqui.

Tudinho." Calou-se por um instante e inclinou-se sobre a secretária, os olhos cravados no seu interlocutor para obter um melhor efeito.

"Incluindo a maneira como lhe poderemos deitar a mão."

A atenção de Decarabia assentou por instantes no dossiê.

"Que maneira é essa, grande Magus? Tem alguma coisa em mente?"

O superior hierárquico cruzou os braços e ficou a contemplar o seu subordinado com a expressão de um avaliador, como se ponderasse ainda o destino que haveria de lhe dar.

"Como posso ter a certeza de que desta vez não falharás?"

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O fantasma de um sorriso perpassou por momentos no rosto do operacional.

"Não falharei", disse com grande ênfase. "Já o vi em acção, sei como raciocina sob pressão... desta vez não haverá surpresas. Pode confiar em mim, grande Magus."

"Ver para crer", devolveu o chefe sem pestanejar uma única vez enquanto o fitava. "Vou dar-te uma segunda oportunidade, ouviste?"

Decarabia manteve-se impassível, mas no olhar perpassou um lampejo de alívio.

"Sim, grande Magus", soltou. "Não se arrependerá."

"Mas não irás sozinho."

O subordinado pareceu ficar desconcertado.

"Não preciso de amas-secas, grande Magus. Sou perfeitamente capaz de dar conta do recado e de..."

"Já não vou correr mais nenhum risco", atalhou Magus com ar de quem não admitia que a decisão fosse discutida e muito menos contestada. "Vais levar alguns irmãos para esta operação e não falharás.

Entendeste?"

Decarabia baixou a cabeça.

"Sim, grande Magus."

O chefe indicou o dossiê com o olhar.

"Leva a papelada e lê", ordenou. "Presta em particular muita atenção à ligação do nosso homem à mãe. Ele tem pelos vistos o hábito de falar regularmente com ela e tenho a certeza de que... enfim, tu sabes."

O operacional sorriu pela primeira vez desde que um jacto privado o trouxera de emergência de Lisboa ao local da reunião.

"Não escapará, grande Magus."




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