XXVIII

O envelope que Filipe lhe deixara continha uma agradável surpresa.

No meio das centenas de páginas de um dossiê sobre a crise e de uma pequena folha de papel com o nome e o telefone do contacto em Madrid, a tal Raquel de la Concha, Tomás descobriu um maço de notas atadas com um elástico. Devolveu-as ao envelope logo que percebeu do que se tratava, não fosse o camionista ver o dinheiro e assustar-se ou começar a alimentar suspeitas em relação ao passageiro.

Com toda a excitação acumulada ao longo do dia, o fugitivo tomou consciência de que não conseguiria dormir tão cedo, pelo que ligou a luz de leitura e passou as horas de viagem a estudar o dossiê.

A leitura apenas foi interrompida uma ou duas vezes, quando o condutor do camião TIR, evidentemente para combater a solidão e o sono, fez alguns comentários sobre futebol, em particular a propósito do último jogo do Glorioso, o nome que dava ao Benfica, e insurgindo-

-se contra "as trafulhices do Bimbo".

"Com as arbitragens nas mãos dos corruptos é que não vamos lá", resmungou. "Não viu aquele penalty que nos gamaram? Um roubo de catedral, foi o que foi!"

O camionista era um transmontano de Alfândega da Fé a quem Tomás, que nem ligava muito ao futebol, respondeu polidamente com vários "pois é!", um "este ano vamos ganhar tudo" e outro "precisamos é de um novo Eusébio", antes de voltar ao dossiê.

Às três da manhã o motorista saiu da auto-estrada e estacionou na zona de descanso de uma área de serviço.

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"Não posso mais com o sono", confessou, os olhos a pestanejarem assustadoramente. "Vamos mas é bater uma soneca."

Desligou o motor e uma calma retemperadora assentou no interior do camião. Os dois homens inclinaram os assentos para trás e Tomás, o sono enfim a tomar conta dele, escondeu o taser dentro do envelope por recear que ele se tornasse visível à sua cintura e cerrou as pálpebras, preparando-se para dormir.

De repente sentiu um desagradável e intenso odor a queijo estragado e abriu um olho.

"Que é isto?"

Espreitou para o lado e constatou que o motorista acabava de descalçar os sapatos. Com um grunhido conformado, o passageiro virou-se para o outro lado, na ilusão de que as costas chegariam para tapar o cheiro. Ainda matutava naquele fedor pestilento quando, sem dar por isso, escorregou para o sono solto.


Chegaram a Madrid por volta das dez da manhã e o camionista saiu da Autovía de Extremadura e largou-o na zona de Alcorcón, junto ao Parque de los Castillos. Não foi fácil encontrar cabinas telefónicas num mundo de telemóveis, mas acabou por localizar uma delas ao lado da sucursal de um banco. Entrou na cabina, procurou o papel com o contacto que Filipe lhe dera e digitou o número.

Ao terceiro toque atendeu uma voz feminina.

"Hola?"

"Buenos dias", saudou Tomás, ele próprio arrepiado com o seu portunhol horripilante. "Raquel de la Concha?"

"Si, soy yo."

"Chamo-me Tomás Noronha", identificou-se, desistindo do portunhol e optando por falar um português lento. "Sou amigo de Filipe Madureira, não sei se conhece..."

"Si, muy bien. Como está Filipe?"

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O historiador engoliu em seco.

"O Filipe... enfim, ele morreu. Ontem."

"Perdón?"

"O Filipe morreu", repetiu, quase soletrando cada sílaba. "Ontem...

uh, ayer. Foi assassinado."

"Filipe? Asesinado?"

"Receio bem que sim."

"Dios mio!"

Sentiu o choque do outro lado da linha e deixou a notícia assentar.

Não sabia o tipo de relação que o amigo tinha com a espanhola e achou que era melhor ser cauteloso.

"Antes de morrer deu-me o seu contacto", explicou. "Quem o matou está agora a perseguir-me e o Filipe disseme que viesse ter consigo. Encontro-me agora em Madrid e estou na posse de material importante para a investigação na qual ele estava envolvido e que..."

"Sí, venga, vengar, atalhou Raquel, ainda mal refeita do choque.

"Estou numa pequena povoação pertinho de Madrid, alguns quilómetros a sul. Pode vir até cá?"

"Com certeza", assentiu Tomás, aliviado com a abertura mostrada pela amiga de Filipe e preparando a caneta para rabiscar o endereço.

"Onde é isso?"

"Em Seseha, a quarenta minutos de carro."

"Não tenho automóvel e não posso pagar táxi, receio bem. Há autocarro ou comboio?"

"Existe um serviço de autocarros que parte de Madrid. Pode tomar nota?"

"Diga."

"Vá à Plaza Beata Maria Ana de Jesús e apanhe o 304 às onze e meia. Leva quarenta minutos de viagem, é um tirinho."

"Estará à minha espera à chegada?"

Ela fez uma pausa para pensar.

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"O mais fácil é encontrarmo-nos à entrada do Café Nirvana. Que tal ao meio-dia e meia?"

"Perfeito."


Quando desligou e saiu da cabina telefónica Tomás consultou o relógio; eram dez e vinte da manhã, tinha muito tempo. Cravou o olhar na sucursal do banco instalada mesmo ao lado e vacilou, indeciso em relação ao que fazer a seguir. Deveria confiar inteiramente em Raquel ou seria melhor manter-se prudente? Filipe assegurara-lhe que ela era de confiança absoluta, mas o historiador não tinha assim tanta certeza; os acontecimentos das últimas vinte e quatro horas haviam-no ensinado a ser cuidadoso.

Vencendo as dúvidas, entrou no banco e pôs-se na fila dos clientes.

Quando chegou a sua vez encostou-se ao balcão e encarou a funcionária bancária.

"Hola, señorita!, disse, regressando ao seu portunhol trapalhão.

"Será possível alugar um cofre?"

"Sí, como no?", devolveu ela. "Terá de abrir uma conta, por supuesto."

A funcionária ao balcão indicou-lhe um espaço privado protegido por biombos onde uma segunda funcionária se encontrava sentada a uma mesa. Tomás dirigiu-se a ela e explicou-

-lhe o que desejava. Depois de preenchida a papelada e cumpridas as formalidades, a segunda funcionária entregou-lhe uma chave e passou-o a um segurança que o conduziu por um corredor até ao sector onde se situavam os cofres. O segurança indicou ao cliente o cofre que lhe estava destinado e afastou-se, deixando-o a sós.

Sentindo-se enfim à vontade, Tomás tirou o maço de notas do interior do envelope e contou a soma. Eram quinhentos euros em notas de vinte; não se tratava de nenhuma fortuna mas dava para as despesas correntes agora que tinha as contas bloqueadas. Satisfeito 205


com a maquia, certificou-se a seguir de que o taser se encontrava também dentro do sobrescrito. Assim era. Por fim depositou o envelope no cofre e trancou-o com a sua chave.

"Já está!", disse, fazendo sinal ao segurança de que terminara.

"Podemos ir."

O homem acompanhou-o até à saída e deixou-o no passeio. Ao sentir o bafo do sol quente queimar-lhe a face, Tomás consultou o relógio; eram quase onze, hora de partir para Seseña.

Abeirou-se da rua para procurar um táxi, mas o seu olhar desviou-

-se quase irresistivelmente para a cabina telefónica; havia um telefonema que tinha mesmo de fazer. Verificou de novo as horas, no gesto quase reflexo de quem procurava convencer-se de que ainda tinha tempo para mais uma chamada.


Depois de inserir a moeda, digitou o número. Fazia calor no interior da cabina, mas nada disso o incomodava.

O sinal de chamada soou duas vezes e foi interrompido por um clique.

"O Lugar do Repouso, bom dia."

Reconheceu a voz de mulher que atendera e não reprimiu um sorriso; como era bom escutar uma voz amiga nas circunstâncias em que se encontrava nesse momento.

"Maria Flor? Daqui Tomás Noronha, como está?"

Fez-se uma curta pausa do outro lado da linha.

"Professor Noronha!", exclamou por fim a directora do lar num tom de surpresa. "Confesso que..." Hesitou e pareceu mudar a direcção da frase. "Vi-o... vi-o nas notícias."

"Não acredite em nada disso", apressou-se Tomás a esclarecer.

"Trata-se de um terrível equívoco e estou neste momento a tratar de o desfazer. Fique descansada que não sou assassino nenhum."

Ouviu um suspiro aliviado do outro lado da linha.

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"Ah, não imagina como folgo em ouvi-lo dizer isso", desabafou ela, de repente mais leve. "Nem sabe o choque que senti quando estava ontem a ver o Telejornal. Não queria acreditar! Parecia que... sei lá, o mundo tinha enlouquecido..."

Falava como se lhe tivessem retirado um peso de cima, a voz modulada em simpatia e familiaridade. Dava até a impressão de que eram íntimos havia muito tempo e que ela o conhecia tão bem que percebia pela voz que ele lhe dizia a verdade.

"Esta situação é terrível", desabafou Tomás. "Mataram o meu amigo e estão a acusar-me do crime."

"É incrível!", exclamou ela. "O senhor está bem?"

"Tanto quanto é possível", assentiu. "Por favor, chame-me Tomás.

Achava que já tínhamos acertado isso."

"Está bem... Tomás."

"Oiça, queria também saber da minha mãe. Como vai ela?"

"Já comecei a vigiar mais a medicação e notei-lhe esta manhã uma evolução. Falou-me um bocadinho do estado do tempo, coisa que ontem não fazia."

Tomás respirou fundo, ganhando balanço para abordar o tema que realmente o preocupava.

"Sabe, quanto ao pagamento da mensalidade da minha mãe...

neste momento não estou em condições de aceder às minhas poupanças, como deve compreender. Será que pode esperar mais algum tempo?"

Fez-se um silêncio do outro lado da linha tão desconfortável que não augurava nada de bom.

"Quando vi a notícia sobre si no Telejornal, e prevendo justamente este problema, tomei a iniciativa de falar com os proprietários do lar sobre o assunto."

"E... e então?"

"Lamento muito, mas eles dizem que não haverá excepções. A 207


diferença em falta tem de ser reposta até quinta-feira à noite."

"Isso é já amanhã!..."

"Eu sei". Fez uma pausa embaraçada. "Olhe, insisti muito, acredite..."

Agarrado ao telefone, Tomás encostou a testa ao vidro da cabina e, com as pontas dos dedos da mão livre, esfregou o couro cabeludo em desespero; as suas opções estavam a esgotar-se e, sem emprego e com a polícia à perna, não via maneira de resolver o problema.

Como era possível que a sua vida se tivesse desestruturado daquela maneira em tão pouco tempo?

"E agora?", murmurou para o bocal. "O que vou eu fazer?"

Fez-se uma pausa ao telefone.

"Não desespere, Tomás", disse ela. "Vou pensar numa solução qualquer."

"Mas que solução? O que se pode fazer?"

Novo silêncio embaraçado na linha.

"Pois, não sei", admitiu ela. "Sabe o que é, as filas de espera para entrar no lar são tão grandes que os proprietários se podem dar ao luxo de ser implacáveis com qualquer atraso nos pagamentos. Disseram-me por isso que, se a situação com a sua mãe não for regularizada até amanhã à noite, ela será posta na rua logo na manhã seguinte."

"Meu Deus!", exclamou Tomás em desespero. "Eles não podem fazer isso!"

"Mas olhe que vão fazer."

"Oiça, fale com eles, peça-lhes mais tempo."

"Vou tentar."

"Tem de conseguir. Enquanto a minha situação não for resolvida não posso aceder à minha conta. Explique-lhes isso!

"Eu explico", prometeu ela, compadecida. "E vou pensar noutras soluções. Ligue-me mais logo, pode ser?"

"Com certeza."

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Depois de trocarem mais algumas palavras, despediram-se e Tomás desligou o telefone. Quando saiu da cabina, e apesar da preocupação que o atormentava, a imagem que tinha na cabeça não era a da mãe, mas a de Maria Flor.








































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