LXVII

A sala estava mergulhada na escuridão, apenas iluminada pelas chamas trémulas de quatro velas assentes em cruz, cada uma num ponto cardeal. Vestidos com as tónicas ásperas que haviam retirado dos sacos, Tomás e Raquel entraram em passo leve na Sala Borticelli e juntaram-se ao grupo de acólitos que, também de túnica, se encontrava de costas, toda a gente virada para a parede interior. Diante dessa parede, decorada com um tríptico de Van der Goes a representar a adoração ao menino Jesus, estava uma mesa que, ornamentada por Uma enorme cabeça de bode, parecia desempenhar a função de altar; o contraste entre o altar demoníaco e o tríptico cristão era evidentemente uma maldade intencional.

Os recém-chegados espreitaram e perceberam que havia uma mulher estendida sobre a mesa, deitada de costas com uma vela negra em cada mão, as chamas trémulas a bambolearem como serpentes hipnotizadas. Um homem envolvido num manto escarlate brilhante e com um capuz a ocultar-lhe a cara, como de resto toda a gente naquele espaço, aproximou-se dela em passos lentos e, com um movimento brusco, meteu-lhe a mão por dentro da túnica para lhe apalpar uni seio. De seguida inclinou-se e beijou-a lascivamente na boca.

"Madre mia!", sussurrou Raquel, chocada. "Que é isto?" "Uma missa negra", retorquiu Tomás num sopro. "Chiu." "E aquele? Quem é?"

Aquele era o homem de manto escarlate que, inclinado a beijar a mulher, parecia dominar o altar e dirigir o que se passava na Sala Botticelli.

"É Magus, o mestre-de-cerimónias." O português colou as palmas das mãos e esboçou um gesto de súplica. "Agora cala-te, por favor. Ainda nos 447




denuncias!..."

Depois de executar os preliminares de natureza sexual, designadamente beijos concupiscentes e prolongadas carícias nos seios e entre as pernas da mulher estendida sobre o altar, Magus endireitou-se e, voltando-se para Os fiéis, passou para um acólito um cálice de bronze com um pentagrama invertido.

O acólito bebeu do cálice e passou-o ao acólito seguinte, de modo que o cálice percorresse toda a congregação. Fez-se assim um compasso de espera, que Os dois intrusos aproveitaram para estudar o que os cercava. Os vários quadros renascentistas que ornavam a sala pareciam espectros sob a luz trémula das velas, sentinelas estáticas a que as sombras em movimento conferiam vida, projectando formas bizarras sobre o chão e as paredes. Os dois intrusos encontravam-se na retaguarda da congregação e nesse instante, com surpresa, o historiador apercebeu-se de que a parede atrás deles era decorada por La nascita di Venere, o célebre quadro de Botticelli que retrata o nascimento de Vénus, uma das pinturas mais notáveis do Renascimento; pareceu-lhe um sacrilégio uma cerimónia daquelas decorrer diante de tal obra.

O cálice chegou por fim às mãos de Tomás, que molhou os lábios com o líquido no seu interior e de imediato o passou a Raquel. A espanhola vacilou, desconfiada, quando espreitou a mistela que se agitava lá dentro.

"O que é isto?"

"Bebe e cala-te."

Percebendo que o momento não era o mais adequado para alimentar dúvidas, a agente da Interpol provou um trago e passou o cálice para o acólito seguinte. Quando o copo se afastou, ela voltou a encostar a sua cabeça à de Tomás.

"Que era aquilo?"

"Vinho tinto com álcool destilado e incenso misturado com mirra e ervas tóxicas, como meimendro e beladona. E asfalto, claro."

"Agh! Asfalto?"

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"As missas negras usam essas substâncias para subverter o ritual de consagração cristã. A beladona, por exemplo, é uma planta cujo nome científico é Atropa belladonna, nome que vem de Átropos, a terceira das Meras, ou destinos da mitologia grega, aquela que corta o fio da vida.

Considerando que esta missa pretende honrar Satanás, trata-se de substâncias adequadas, não te parece?"

O cálice regressou entretanto ao altar. Magus pegou numa lâmpada com carvão incandescente, deitou-lhe incenso e começou a balouçá-la, fumegante, pelo espaço em redor, espalhando o fumo sobre a mulher estendida no altar e sobre a cabeça de bode.

"Que este incenso te faça rejubilar, Senhor dos Infernos", disse Magus com uma voz cavernosa.

"Que os teus poderes venham até nós", respondeu a congregação em coro.

Magus pôs-se então a deambular diante da linha dianteira dos acólitos, espalhando também entre eles o fumo da lâmpada.

"Que Lúcifer esteja convosco."

"E contigo também, poderoso Magus."

"Corações ao alto."

"Ergamos os nossos espíritos a Satanás."

"Dêmos as boas graças ao mestre infernal", entoou Magus, estendendo o braço numa saudação romana. "Ave Belzebu, Senhor do poder, imperador da Terra e do Inferno, nosso guia e rei da morte e da treva infinita."

O mestre-de-cerimónias pousou a lâmpada aos pés do altar e, abrindo a túnica da mulher deitada sobre a mesa, mergulhou a cabeça entre as pernas dela e começou a lambê-la. Acto contínuo, os membros da congregação deixaram cair as túnicas e ficaram nus, mantendo apenas o capuz a tapar-lhes a cabeça.

"Que é isto?", assustou-se Raquel. "Que se passa aqui?" O

português imitou o resto da congregação e soltou também a sua 449


túnica.

"As missas negras envolvem orgias rituais", esclareceu em voz baixa. "Despe-te e faz como toda a gente."

Ali estava um conselho que a agente da Interpol não fazia tenções de seguir.

"Ah, isso não!", retorquiu ela, sacudindo enfaticamente a cabeça.

"Nem pensar!"

"Despe-te, senão atrais a atenção sobre nós!"

"Não!"

Os elementos da congregação que se encontravam mais próximos começaram a deitar olhares inquisitivos na direcção de Raquel, que por esta altura era a única das fiéis ainda vestida na sala.

"Então?", disparou um deles, a voz e o olhar carregados de censura. "Não te despes?"

A espanhola ficou sem saber o que fazer.

"Ela é nova", apressou-se Tomás a esclarecer, tentando disfarçar.

"Ainda tem inibições difíceis de superar. Vamos dar-lhe tempo, meus irmãos."

"As inibições ficam lá fora", rosnou o acólito com um olhar feroz. "Ela que se dispa."

Rendendo-se ao inevitável, Raquel respirou fundo. Ou se despia, percebeu, ou seria apanhada. Resignada, deixou a túnica escorregar para o chão e ficou igualmente nua, apenas a cabeça tapada. O

problema, tinha consciência, é que aquilo n ão iria acabar por ali.

Não fora Tomás que falara numa orgia? Que coisas mais seria ela forçada a fazer para manter o disfarce? Será que o mestre-de-cerimónias também lhe meteria a cabeça entre as pernas, como nesse mesmo instante fazia à mulher deitada sobre o altar? Pior ainda, será que ela, Raquel, teria de lhe fazer o mesmo? As perspectivas pareciam-lhe demasiado grotescas para poderem ser contempladas. Por que raio concordara ela com aquele plano 450


louco? Como sairia daquele imbróglio?

A situação no altar evoluíra entretanto. Magus tinha-se libertado também do manto escarlate e a mulher que estava deitada sobre a mesa erguera-se e tinha a cabeça mergulhada entre as pernas dele, fazendo movimentos rítmicos para cima e para baixo. À distância não se viam os pormenores, mas era evidente o que se passava. Depois ela voltou a estender-se de costas sobre o altar e o mestre-de-cerimónias pôs-se em cima dela e levou o acto sexual até ao termo. Terminou entre vagidos e urros e, quando por fim se levantou, pegou num pequeno sino e tocou-o três vezes.

Tratava-se com certeza de um sinal, pois, logo que soou o terceiro toque, os acólitos nus abraçaram-se e começaram a beijar-se com volúpia e gula carnal. Vendo o que se passava em redor, e percebendo que teria de imitar a congregação, Tomás abraçou Raquel e beijou-a nos lábios. A espanhola permanecia hesitante, sem perceber se deveria cooperar ou pôr um travão àquela loucura desenfreada.

"Confesso que estava ansiosa por fazer isto contigo, cariño", sussurrou-lhe ela ao ouvido. "Mas não aqui, não nestas circunstâncias nem desta maneira. O que vamos agora fazer?"

"Teatro", devolveu ele. "Vemos o que eles fazem e fingimos que fazemos o mesmo. Estão todos entretidos, ninguém vai notar."

A espanhola soltou uma risadinha baixa.

"Muy bien", assentiu. "Mas com uma condição: quando esta confusão acabar, fazemos tudo isto, mas a sério e em privado."

Tomás calou-a com um beijo, os olhos meio abertos para espreitar o que se passava em redor. A certa altura os acólitos puseram-se a copular e, sob o olhar virginal da Vénus de Bottieelli, o português deitou-se sobre a sua companheira e ambos fingiram que o faziam também.

Por esta altura Magus pronunciava estranhas palavras rituais, como uma litania concebida para acompanhar o acto, segurando 451


diante da boca uma bola de quartzo tetraedro.

"Nee-thrar-ethun-aye-att-arz-oth", entoou. "Binn-ann-ath-ga-waf-amm."

De rosto colado ao de Tomás, Raquel fez um sinal na direcção do mestre-de-cerimónias.

"O que raio está ele para ali a fazer?"

"Usa uma fórmula de Paracelso para invocar Satanás e os demónios, pedindo-lhes que se juntem à orgia", esclareceu o historiador, mantendo os movimentos rítmicos da anca a simular a cópula. "As seitas satânicas acreditam que as orgias libertam a energia sexual reprimida pelo cristianismo. Essa energia é canalizada para a bola de quartzo que ele tem na mão, conferindo-lhe assim maior força. Essa força será depois usada para o Magus cimentar o seu poder."

A espanhola manteve os olhos presos no companheiro por cima dela; parecia na dúvida sobre como o deveria avaliar.

"Como diabo sabes tudo isso?"

"Sou historiador", sorriu ele. "As missas negras vêm da Idade Média e tive de as estudar. Até li o Malleus Maleficarum."

"Maleus... quê?"

"É um velho manual sobre bruxaria." Ergueu as sobrancelhas.

"Muito instrutivo."

Terminaram o acto simulado ao fim de um curto minuto, fingindo o êxtase no final. Quando concluíram olharam em redor. Alguns acólitos também já haviam terminado o sexo ritual e vestiam as túnicas, pelo que os imitaram.

Os mais retardatários da congregação puseram fim à orgia uns cinco minutos mais tarde. Magus encerrou então a formulação das palavras mágicas diante da bola de quartzo tetraedro, escolhida devido às suas vibrações especiais, e regressou ao altar. Pegou na lâmpada e voltou a espalhar incenso pelo espaço em redor.

"Glória a ti, senhor Belzebu, mestre dos Infernos, rei da..." "Dá 452


licença, poderoso Magus?"

A prece foi interrompida pelo homenzarrão que guardava o cortile e que entrou nesse momento na sala. O mestre-de-cerimónias pousou no chão a lâmpada com o incenso.

"Ah, Mefistófeles! Que se passa?"

O guarda aproximou-se de Magus e segredou-lhe umas palavras imperceptíveis à distância. O mestre-de-cerimónias fez um sinal, mandando o homenzarrão de volta para a porta, e encarou a congregação.

"Meus irmãos, a hora aproxima-se", disse Magus. "É meia-noite e Mefistófeles acabou de me anunciar que os nossos convidados chegaram. Dêmos graças ao Senhor dos Infernos."

"Louvado seja Belzebu, o todo-poderoso!", devolveram os acólitos em coro. "Que o poder incomensurável de Satanás esteja connosco!"

Um silêncio pesado abateu-se então sobre a sala, como se todos esperassem pelos acontecimentos. Ouviram a porta chiar e os olhares convergiram para a entrada. O vulto de Mefistófeles recortou-se diante da luz do corredor e atrás dele vinham duas figuras de túnicas negras e cabeças tapadas por capuzes.

Magus abriu os braços para os acolher.

"Sejam bem aparecidos, meus senhores! Entrem, entrem."

Os dois recém-chegados deram uns passos para o interior da sala, hesitantes e a medo, e Mefistófeles, depois de fechar a porta atrás deles, apresentou-os.

"O professor Tomás Noronha e a señorita Raquel de la Concha!", anunciou o guarda com solenidade. "Ambos ao nosso dispor, poderoso Magus."

Imbuído de perturbadora jovialidade, o mestre-de-cerimónias fez-lhes sinal de que se aproximassem do altar.

"Bem-vindos ao Inferno!"


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