VII

A primeira coisa que Tomás fez quando chegou à sua casa em Lisboa foi atirar a mala para cima da cama, despir-se e meter-se no chuveiro. Os últimos dias haviam sido inesperadamente desgastantes, sobretudo com os tumultos nas ruas de Atenas, a detenção durante setenta e duas horas e as agressões que sofrera na cadeia às mãos dos anarquistas.

Tudo isso fora demasiado. Daí que, quando finalmente o juiz grego o enviou em liberdade, tivesse decidido regressar de imediato a Portugal. O

Museu de Arqueologia de Atenas havia-o contratado para fazer uma peritagem ao pergaminho em avéstico que tinha sido descoberto nas escavações da Biblioteca de Pantainos, mas considerando as circunstâncias ninguém levantou qualquer obstáculo quando solicitou dispensa do trabalho. Ficou combinado que regressaria no mês seguinte para completar a peritagem e investigar a possibilidade de haver mais antigos manuscritos zoroástricos escondidos no local das escavações, questões que, considerando as circunstâncias, tinham perdido toda a urgência.

Quando saiu do banho ligou o pequeno televisor que tinha no quarto e sintonizou-o num canal de notícias.

"Iorque o índice Dow Jones sofreu um novo colapso alimentado pelos receios relativos aos activos tóxicos na posse da banca e à instabilidade na zona euro", disse a apresentadora do programa de economia, uma rapariga coquette que dava as notícias com o sorriso de quem apresentava a meteorologia e falava dos activos tóxicos como se 64


fossem o anticiclone dos Açores. "Os juros da dívida soberana voltaram a disparar, com os investidores a desconfiarem da capacidade de vários países europeus de cumprir os seus compromissos."

Havia já alguns meses que o historiador ouvia estas notícias na televisão, pelo que não ligou. Era verdade que a sua experiência em Atenas lhe dera um contacto em primeira mão com realidades da crise grega, mas tudo aquilo lhe parecia acontecer num mundo irreal, situado no outro canto da Europa ou do outro lado do ecrã.

"A taxa de desemprego disparou na Grécia, em Portugal, na Irlanda e em Espanha, países onde atingiu novos máximos dos últimos trinta anos", prosseguiu a apresentadora do sorriso artificial. A imagem no televisor passou a mostrar uma multidão em fúria. "Uma nova greve geral na Grécia, acompanhada por uma manifestação culminou em Atenas com tumultos na Praça Syntagma, diante do parlamento, com manifestantes e polícia a envolverem-se em confrontos que se saldaram em dois mortos, trinta feridos e duzentas pessoas detidas."

Estas imagens prenderam a atenção de Tomás; eram-lhe familiares e a sua experiência estava ainda demasiado viva para as ignorar. Viu confrontos nas ruas, bandeiras alemãs em chamas, a polícia de choque a carregar e, nesse instante, virou a cara. Tudo aquilo lhe parecia deprimente. Sem voltar a mirar o ecrã, vestiu-se rapidamente e saiu.


O homem gordo de bigode estava junto à mesa em mangas de camisa, os pêlos do peito a espreitarem pelo colarinho, gotas de transpiração a deslizarem-lhe pela face rechonchuda. Ao ver o cliente entrar na tasca puxou a cadeira e fez-lhe sinal para se sentar.

"Ora viva, sô professor!", saudou o anfitrião com descontraída familiaridade. "Bons olhos o vejam!"

Tomás sorriu e sentou-se no lugar que lhe era indicado.

"Olá, Horácio."

"O que Ih'aconteceu à cara, sô professor? Andou no recreio à 65


porrada ou quê?"

"Foi... uma queda", devolveu o cliente, sem vontade de explicar o inchaço sobre o olho e os curativos no rosto. "Está tudo bem?"

Os lábios finos do homem curvaram-se num esgar e ele esboçou uma careta.

"Nem por isso, sô professor. Ist'anda mal."

"Ai anda?", surpreendeu-se Tomás. "Que aconteceu? Não me diga que está doente..."

"Isso não, graças a Deus! Tenh'uma saúde de ferro!"

"Ah, ainda bem."

Com um gesto largo a indicar o restaurante, Horácio fez um ar desalentado.

"O problema é o negócio, c'um catano!" Apontou para três mesas vazias junto à janela. "Ó p'ra isto, sô professor! já viu? Onde é que no ano passado a esta hora eu tinha uma mesa vazia aqui no restaurante? Mas agora... ó, é só ver!"

O historiador desviou o olhar para as mesas vazias; teria sido realmente impensável ver o restaurante assim no ano anterior.

"Que aconteceu?"

"São os cortes nos salários, sô professor. Isso e mais a subida do IVA. O governo está a apertar, a apertar, a apertar... Uns abutres!

Onde irá isto parar, meu Deus? Só lhe digo, é uma desgraçal..."

"Pois é, Horácio. Também eu já levei um cortezinho no ordenado."

O anfitrião inclinou-se para o cliente e Tomás sentiu-lhe o fedor ácido a transpiração e o bafo quente de vinho tinto.

"Lá p'ró Norte a coisa 'inda é pior, sô professor. Sou de Santo Tirso, como sabe. Pois as fábricas por lá estão todas a fechar, é um horror. Aqui em Lisboa as pessoas nem fazem ideia. A minha prima Ermelinda, o Zé da Pipa, o Chico Lingrinhas... anda tudo nos centros de emprego à cata de trabalho. E não há nada de nada, o que pensa o senhor? Aqui em Lisboa ainda há o estado e todos os 66


negócios em redor dele, como os restaurantes e o comércio, tudo a alimentar-se dos funcionários públicos. Mas lá em cima não há nada, sô professor, as pessoas estão entregues a si mesmas. A Ermelinda, coitadinha, já fala em emigrar p'rá Suíça ou p'ró Canadá, como há anos fez o pai dela, o Ti Nando. E o resto do pessoal está na mesma."

O cenário não era animador e Tomás ficou sem saber o que dizer.

"Pois é, Horácio. Isto parece mesmo difícil."

O homem do restaurante respirou fundo, como se ele próprio estivesse já a preparar-se para fugir para o estrangeiro.

"Atão não está, sô professor? Estes políticos falam, falam, mas não fazem nada! Só sabem apertar e gamar, e a malta é que se lixa, n'é verdade?"

"Pois é, pois é."

Horácio retirou o bloco de apontamentos do bolso e preparou-se para tomar notas.

"Ora diga lá, sô professor", entoou num tom subitamente profissional. "O que vai ser hoje? Temos um bacalhau à Zé do Pipo que está um estalo. E a douradinha... ui, veio tão fresquinha qu'até parece qu'inda se passeia pelo mar, a malandra."

"Está mesmo fresca ou isso é conversa?"

O empregado fez uma expressão ofendida.

"Or'essa, sô professor! Acabou de vir da lota, eu próprio fui lá buscá-la. Um mimo, só lhe digo."

"Então traga-a lá."

"A douradinha grelhada com arrozinho de tomate e um copinho de branco, sô professor?"

"Isso." Ergueu o dedo para fazer uma ressalva. "Branco do Douro, se fizer o favor. Bem geladinho."

O empregado registou o pedido no bloco de notas e afastou-se em passo apressado. Tomás recostou-se na cadeira e descontraiu; tinha 67


fome e o peixe grelhado vinha mesmo a calhar depois da dieta forçada a moussaka e calamari na esquadra de Atenas.

Sem nada para fazer enquanto esperava pelo prato, desviou a atenção para o televisor pregado à parede. Decorria o noticiário e um apresentador orelhudo com expressão sisuda dava notícias frescas da crise; uma imagem gráfica ao lado dele mostrava o rosto compenetrado do presidente da Comissão Europeia, um juiz de profissão que abraçara a política, e, por baixo, a palavra "inquérito".

"Axel Seth foi nomeado juiz do processo judicial às origens da crise financeira e económica", noticiou o apresentador. "O processo está a ser conduzido pelos procuradores Agnès Chalnot e Carlo del Ponte, a quem o presidente da Comissão Europeia exige resultados rápidos. O juiz Seth responsabilizou os mercados financeiros e os banqueiros gananciosos pelo colapso da economia mundial e acusou-os de terem um plano secreto para destruir o estado social."

O ecrã encheu-se com a imagem do homem-forte de Bruxelas, um francês alto e magro, a falar num palco em tom solene perante uma plateia atenta de homens engravatados.

"Os especuladores, essa gente sem rosto que opera na sombra e busca o lucro fácil à custa do trabalho e do sofrimento do cidadão comum, têm de responder pelos seus actos criminosos, porque a culpa, meus caros amigos, a culpa não pode morrer solteira!", declarou o juiz Seth com grande convicção, as palavras pronunciadas com força, gestos enfáticos a reforçá-las. "Aqui assumo pois o meu compromisso de que a justiça actuará, célere e impiedosa, no sentido de restituir a ordem e punir os responsáveis pela dramática situação em que o mundo mergulhou!"

Uma entusiástica salva de palmas no auditório acolheu estas palavras. O apresentador passou para a notícia seguinte e Horácio regressou à mesa com o couvert, uma cesta de pão e um queijo de Azeitão fatiado.

"G'and'a homem!", exclamou o empregado com um suspiro aprovador. "É

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ele que vai pôr enfim a malandragem na ordem!"

"Convenhamos que é um bocado estranho o presidente da Comissão Europeia ser nomeado juiz..."

"O gajo é juiz de profissão, s'ô professor. A malta de Bruxelas quer mostrar assim que leva esta coisa muito a sério e que o processo vai ser a doer. Houve um tipo que disse no telejornal que uma situação extraordinária como esta crise requer um juiz extraordinário."

"Já vi que você anda a seguir as notícias, Horácio."

"Pois atão, tenho de seguir! Preciso de perceber se terei ou não de fechar o estaminé, n'é? As notícias ajudam-me a topar o que se passa neste mundo louco!" Fez um gesto a indicar o televisor. "Esse juiz, por exemplo, é a nossa grande esperança! Um homem íntegro e religioso como não há muitos!"

"Religioso? Como sabe você isso?"

"Atão não sei, s'ô professor? Noutro dia contaram a vida dele ali na televisão. O homem chamava-se Bagus ou coisa qu'o valha, e aos vinte e tal anos mudou de apelido e adoptou o nome de um personagem bíblico."

"Seth?"

"Seth, terceiro filho d'Adão e Eva, irmão de Caim e Abel", disse Horácio.

"Leia a Bíblia, sô professor! Leia o Génesis, 4:25!"

"Pois, tem razão. Seth foi concebido para substituir Abel, que Caim tinha morto. Se bem me lembro, a tradição judaica estabelece Seth como antepassado de Noé, o que faz dele antepassado de todos nós, não é verdade?"

"Tem nome de planta, dizem."

"Nome de planta?", admirou-se Tomás. Fez um esgar, pensativo.

"Quer dizer, a origem etimológica do nome Seth está na palavra hebraica que se refere à semente das plantas. Suponho que isso faz de Seth uma semente."

O homem fez um novo gesto na direcção do televisor. "A semente da justiça", proclamou. "Um santo nome para um santo homem!"


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Nesse semestre Tomás não tinha aulas, razão pela qual aceitara o trabalho que lhe fora solicitado pelo Museu Arqueológico de Atenas, mas isso não impedia que houvesse coisas para fazer. Haviam sido publicadas recentemente em Israel novas descobertas referentes aos manuscritos do Mar Morto e o historiador queria incorporar essa informação na matéria do semestre seguinte.

Depois do almoço, Tomás regressou por isso ao seu apartamento.

Foi preparar um café e acomodou-se no escritório com o caderno de apontamentos para as aulas, uma lupa e as cópias dos pergaminhos de Qumran que lhe haviam chegado recentemente de Jerusalém.

Começou a lê-los e a rabiscar a tradução no caderno, mas depressa se sentiu oprimido pela solidão e ligou o rádio em busca de companhia.

O som de uma canção dos U2, "Sometimes You Can't Make It on Your Own", encheu o escritório e embalou-o para o trabalho. Os pensamentos dos essénios eram realmente apaixonantes, em particular a sua visão da grande batalha final entre os filhos da luz e os guerreiros das trevas, ou seja, entre o bem e o mal, Deus e o Diabo. Parecia-lhe evidente que os essénios faziam a ligação entre o pensamento zoroástrico, que profetizava a derrota de Ahriman no fim dos tempos, e a escatologia cristã, que previa a chegada do Reino de Deus e a submissão dos ímpios ligados ao mal.

Às três da tarde em ponto, como sucedia de hora a hora, a estação de rádio onde o seu aparelho estava sintonizado interrompeu a programação musical para um pequeno noticiário.

Soou o curto genérico musical do noticiário e uma voz Masculina rasgou o ar.

"Boa tarde, o Tribunal Penal Internacional anunciou que irá marcar para breve a sessão preliminar do processo para investigar as causas da crise e acusar formalmente os responsáveis por crimes contra a humanidade", anunciou o apresentador. "O anúncio seguiu-se à nomeação do presidente da Comissão Europeia, Axel Seth, para juiz desse processo. Seth 70




tem exigido que o processo seja mais célere, de modo que se punam o mais depressa possível os especuladores, que ele responsabilizou pelo caos na economia mundial."

O noticiário prosseguiu com informações sobre os preparativos para a Cimeira Europeia em Roma, onde a crise das dívidas soberanas seria de novo discutida daí a alguns dias, mas a atenção de Tomás regressou aos manuscritos do Mar Morto e à teologia dos essénios, assuntos que lhe pareciam bem mais apaixonantes.

Nesse instante tocou o telemóvel.

"Boa tarde", cumprimentou a voz feminina do outro lado da linha com uma certa musicalidade. "Posso falar com o professor Tomás Noronha?"

"Sou eu mesmo."

"Olá, professor. Daqui Graciete Batalha, do gabinete do director da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. O senhor director convocou-o para uma reunião amanhã de manhã, pelas nove horas. O professor Água pode contar consigo?"

"Com certeza." Hesitou. "Qual é o assunto?"

Foi a vez de a voz do outro lado hesitar.

"Isso... enfim, não posso dizer, receio bem", balbuciou a secretária, evidentemente embaraçada. "É... é matéria confidencial."

"Hmmm… estou a ver. Nove da manhã, não é?"

"Nove em ponto, se fizer o favor. Até amanhã."

Tomás desligou o telefone e permaneceu um longo minuto a passar em revista a conversa. "Matéria confidencial", dissera ela. Que estranho. E a própria perturbação quando a questionara sobre o tema da reunião também não lhe parecia normal. Que raio de assunto delicado seria esse que não podia ser exposto ao telefone?

Incapaz de encontrar respostas nesse momento, abanou a cabeça e sacudiu a perplexidade da mente; cada coisa a seu tempo.

No dia seguinte saberia.

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