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Saiu muito cedo de casa nessa manhã de segunda-feira. O céu azulava e o bafo luminoso da aurora crescia ainda no horizonte.

Dirigiu-se à paragem do autocarro; decidira não voltar a usar o automóvel enquanto não arranjasse trabalho. Esperou dez minutos até o laranja da Carris aparecer. Quando o viu chegar quase se arrependeu da promessa de deixar o carro na garagem; o autocarro vinha apinhado de passageiros. Contudo não se deixou desencorajar e saltou para bordo.

"Um euro e setenta e cinco por um bilhete?", admirou-se quando teve de pagar. "Ena, isto está caro!..."

A observação arrancou gracejos aos outros passageiros.

"Olha lá, em que mundo é que andas, pá?", perguntou um homem de barba rala. "Isto agora é pagar e calar. Somos nós a trabalhar e os gajos, os políticos, a roubar!"

"Eu pago quase cinquenta euros por um passe L1", soltou uma mulher de faces coradas e ar de poucos amigos. "Um escândalo, é o que é! um roubo! Gatunos!"

Tomás quase lamentou ter-se queixado em voz alta do preço do bilhete. Furou a massa compacta de passageiros e foi instalar-se a meio do veículo, perto da porta de saída. Olhou pela janela e avaliou o trânsito; felizmente não era muito compacto, o que significava que a viagem seria relativamente rápida. Lembrou-se do que era o trânsito naquela mesma rua àquela hora uns anos antes e sentiu um arrepio 84


percorrer-lhe o corpo; parecia impressionante como a circulação automóvel diminuíra tanto em apenas dois ou três anos.

Saltou para o passeio quinze minutos depois e encaminhou-se para o seu destino, um prédio branco de traça ultrapassada, um daqueles formigueiros inestéticos construídos nos anos 60 e 70, de varandas transformadas em marquises de alumínio pavorosas. Uma longa fila de gente enchia o passeio da esquina à porta e Tomás interpelou a última pessoa, um rapaz de barba densa e cabelos revoltos.

"É esta a bicha para o centro de emprego?"

"É sim."

"Caramba, é enorme!"

O rapaz sorriu sem humor.

"E são só oito da manhã", observou. "Espere mais uma hora e já vai perceber." Indicou um poste distante. "Está a ver aquele poste ali ao fundo, ao pé do semáforo? Daqui a pouco a bicha chega lá."

"A sério? Assim tão cedo?"

"A malta quer ficar com as primeiras senhas. Senão arriscamo-

-nos a nem sequer ser atendidos. É por isso que há gente que chega aqui às cinco da manhã. Só quando o centro abrir portas e o pessoal começar a tirar as senhas é que a bicha desaparece. Quem chegar mais tarde já não apanha senha nenhuma."

A situação era pior do que Tomás alguma vez imaginara. É certo que via nas notícias que o desemprego disparara, mas sempre achara que aquilo era um exagero dos jornalistas. No fim de contas até então sempre tivera trabalho e as pessoas à volta dele também. Ao pôr-se nessa manhã na fila do centro de emprego, porém, tomou enfim consciência da verdadeira dimensão do problema; o tamanho da fila àquela hora era eloquente.

"Isto está mesmo mal, hem?", observou para o rapaz com quem entabulara conversa. "Há quanto tempo anda à procura de emprego?"

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"Um ano."

"Tanto tempo? Qual é a sua área?"

O rapaz suspirou.

"Tirei Direito e quando saí da faculdade pus-me a fazer oficiosas.

O problema é que o estado pagava com atraso superior a um ano.., e isto quando pagava! Tinha colegas que andavam há sete e oito anos para receber uns pagamentos e, por mais requerimentos que fizessem, nada. Assim não dava, claro. Não se podia viver dessa maneira. Decidi por isso mudar de vida e, como sempre tive jeito para mecânica, consegui emprego na garagem de um primo meu em Coimbra."

"Você é de Coimbra?"

"Não, mas o meu primo é. Fiquei lá uns tempos. Só que as pessoas começaram a poupar nos arranjos, deixaram de meter os carros na oficina e a garagem... enfim, teve de cortar no pessoal.

Como a lei protege os mais velhos, fui dos primeiros a saltar. Desde então que vivo à custa do subsídio de desemprego."

"Que chatice!"

"E tenho sorte! Conheço muita malta que fez a faculdade, não arranja emprego e não tem direito ao subsídio de desemprego porque nunca trabalhou e por isso nunca descontou. Só quem trabalhou é que tem direito ao subsídio. A malta jovem está tramada."

Esta última observação deixou Tomás a pensar no assunto.

"Pois é, a maior parte dos desempregados são jovens..."

"É estranho, não é?", disse o seu interlocutor. "Vendo bem, nós, os jovens, temos muito mais sangue na guelra e em geral até somos menos exigentes quanto aos salários. Seria normal que os empresários nos preferissem, não acha?"

O historiador abanou a cabeça.

"Tudo isso é verdade", admitiu. "Mas o problema, e sobretudo o vosso problema, é que a lei protege quem tem trabalho. É dificílimo um empresário despedir um funcionário dos quadros, de maneira que 86


ninguém quer criar mais empregos. Para quê? Para depois não conseguir reduzir o número de funcionários se o negócio correr mal?

Isso criou um desequilíbrio no mercado de emprego, é evidente. Vocês, os jovens, é que pagam a factura. Quem tem emprego, isto é, os mais velhos, só o perde se a empresa for à falência. Quem tem trabalho precário ou não tem emprego, ou seja, os mais novos, não consegue ser contratado porque os empresários têm medo de, se as coisas correrem mal, nunca mais o conseguirem despedir. Conclusão? Os jovens é que se tramam!"


A fila atingiu de facto o poste e foi mais além. Quando o centro de emprego abriu as portas, no entanto, as pessoas começaram a movimentar-se e, poucos minutos depois, já Tomás estava a tirar a senha que lhe permitiria ser atendido. O seu papel era o quarenta e dois. Ao olhar para o placard electrónico instalado dentro do centro de emprego verificou que o número que estava a ser atendido nesse momento era o quatro. Aguardou vinte minutos e constatou que, nesse meio tempo, o placard só tinha avançado dois algarismos e se fixara no seis.

Isso significava que o ritmo de progressão rondava uma pessoa de dez em dez minutos. Ora ele tinha a senha quarenta e dois. Àquele ritmo, fez as contas, seria atendido daí a umas.., seis horas.

"Porra!", exclamou, chocado. "Seis horas?!"

Seguindo o exemplo de outras pessoas que também tinham levantado senha, saiu do centro de emprego e foi dar um passeio pelas redondezas. Depois de passar por um centro comercial e de ir ao supermercado voltou a casa de autocarro, fez um almoço rápido de bife de peru com ovo estrelado e, pelas duas da tarde, pôs-se a caminho de regresso ao centro de emprego. Ao preço a que estavam os bilhetes dos transportes públicos, concluiu com desalento, se queria continuar a usar os autocarros da Carris teria mesmo de comprar um passe social.

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O placard do centro de emprego assinalava o número trinta e nove. Faltavam três para chegar a sua vez. À média de um utente de dez em dez minutos, tinha ainda meia hora pela frente. Deixou o olhar percorrer o espaço em redor. Na salinha de espera todos os lugares estavam ocupados; viam-se mulheres com crianças, jovens, alguns velhos e muitos estrangeiros, em particular africanos. Passando os olhos pelos balcões, percebeu que só havia três funcionárias a atender o público e que cada caso era um caso. Uns levavam cinco minutos a ser despachados, outros precisavam de vinte.

"O quê, vou perder o subsídio de desemprego?", protestou um rapaz que estava a ser atendido a um dos balcões, erguendo de repente a voz e chamando a si as atenções na sala. "O que quer dizer com isso?"

"O senhor não se apresentou na junta de freguesia..."

"Já lhe disse que não pude! Estive doente!"

"Onde está o atestado médico?"

"Não fui tratado por nenhum médico, já lhe expliquei! Tive febre e fiquei em casa, foi só isso."

"Mas o senhor sabe que tem de se apresentar na junta de quinze em quinze dias."

Os balcões estavam tão perto que era impossível não ouvir.

Tomás desviou a atenção daquele diálogo em tom mais exaltado, não queria saber da vida do rapaz nem da sua febre, e olhou para duas mulheres à conversa diante dele.

"O meu Manel há muito que deixou de trabalhar", dizia uma delas. "Para quê? Desde que criaram o rendimento social de inserção que não está para se chatear."

"Mas isso não chega a duzentos euros, dona Ermelinda!"

"E então? Ainda são mais cento e trinta por mim e quase cem por cada uma das três crianças. Tudo junto dá uns seiscentos euros, o que pensa a senhora? É mais do que o salário mínimo! Quando o 88


Manel trabalhava a terra, lá em Rio Maior, ganhava uns quinhentos com muita suadeira. Agora dão-nos mais para não fazermos nada.

Para que ia ele trabalhar? Só se fosse parvo!"

"Realmente", concordou a amiga. "Ganhar seiscentos euros sem fazer nada é obra."

"E com os biscates que ele e eu fazemos por fora, sem facturas nem recibos, está a ver?, a coisa vai para cima de mil à vontade."

"Mas, ó dona Ermelinda, a ser assim quem é que trabalha a terra?"

Dona Ermelinda encolheu os ombros.

"Ninguém, ora essa!" Soltou uma risada. "Só se forem os otários e os imigrantes que não têm direito a nada..." A amiga suspirou.

"Pois olhe, o meu Zezinho é o contrário", disse num tom resignado. "Por mais que se esforce não consegue arranjar trabalho, coitadinho, e anda aos caídos lá em casa. Já bateu a todas as portas, já implorou por emprego, até nem se importa que lhe dêem uma coisinha menos prestigiante desde que seja trabalho, mas nada.

Dizem que está velho, veja lá! Tem quase quarenta anos e, desde que o banco lhe ficou com o apartamento, ele e a família vieram viver connosco. Agora não me desamparam a loja! Está a ver a minha vida?"

Tomás sacudiu a cabeça. Era feio ouvir a conversa dos outros, ensinara-lhe a sua mãe, e ele estava a prevaricar em grande. Não podia ser. Concentrou-se por isso no jornal que o seu parceiro do lado lia com afinco. Tratava-se de um diário desportivo de grande circulação e o tema do momento era, pelos vistos, uma qualquer contratação que o FC Porto acabara de fazer. Espreitou a notícia e viu a fotografia do jogador em causa, um defesa brasileiro que custara dezassete milhões de euros, Tomás até releu o número para ver se tinha visto bem, dezassete milhões por um defesa!, mas a leitura foi interrompida por um movimento brusco do seu parceiro. Olhou instintivamente para 89


ele e verificou que o homem do jornal o fitava com ar furioso, irritado por ter o vizinho a ler-lhe as "suas" notícias.









































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