XXI

A porta da garagem do prédio abriu-se com um zumbido eléctrico.

Depois de terem largado Alexandre no Campo Pequeno, Tomás e Filipe dirigiram-se para casa. O Volkswagen azul desceu a rampa da garagem e, como habitualmente, parqueou no lugar reservado ao morador do segundo esquerdo. Depois de se certificar de que não se esquecera de nada no carro, o historiador trancou o automóvel e conduziu o seu convidado pelo corredor até à porta interior que levava à escadaria do prédio.

Puxou a maçaneta, mas a porta não se abriu.

"Porra, está trancada!", constatou com um esgar de contrariedade.

"Esquecime da chave em casa..."

"Então o que fazemos?"

O anfitrião suspirou com irritação, tentando manter a paciência perante a contrariedade; não se tratava de nada grave, como era evidente, mas dispensava a volta que agora teriam de dar pelo exterior do edifício.

"Temos de sair pelo portão e entrar pela porta principal", disse com resignação, fazendo ao amigo um gesto para que ele o seguisse.

"Anda."

Percorreram o corredor em sentido contrário e dirigiram-se ao portão da garagem do prédio. Tomás carregou num interruptor e o portão voltou a abrir-se. Saíram para o passeio e dirigiram-se para a entrada principal do prédio. O historiador olhou para o amigo e viu-o ainda agarrado ao mesmo envelope de sempre.

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"Olha lá", gracejou. "Casaste com esse envelope?"

"É um dossiê que preparei", explicou Filipe. "Não me posso separar dele."

"Um dossiê sobre quê?"

"São informações relacionadas com o processo no qual estou envolvido."

"É por causa disso que andas fugido?"

O olhar do amigo toldou-se com uma sombra fugaz.

"Também", disse num tom velado, cheio de subentendidos. "Não só, mas também."

Tomás achou que não devia fazer mais perguntas; se o companheiro dos tempos do liceu nada ou pouco dissera sobre as circunstâncias da sua presença ali, lá teria as suas razões. A ele, Tomás, cabia apenas o dever de o ajudar na sua hora de necessidade e confiar que não se envolveria em sarilhos, embora quanto a isso não tivesse tanta certeza. Se Filipe ali estava era justamente porque se metera em trabalhos, parecia evidente. Como poderia ter a certeza de que isso não viria de alguma maneira a afectá-lo? Na verdade, não havia quaisquer garantias. Só esperava que estivesse tudo dentro da lei e que o seu convidado não tivesse roubado nem matado ninguém. O

pensamento provocou-lhe um arrepio, mas logo tentou sacudi-lo. Tinha a convicção de que Filipe não fizera nada ilegal. Se assim era, contudo, por que razão andava fugido e não fora à polícia? Vendo bem, era estranho, não era? Se tudo era legal, qual o problema de pedir ajuda à polícia?

"Desculpe, senhor, será que..."

Uma mulher idosa, de aspecto educado mas com a cabeça envolta num lenço, como se se quisesse esconder do olhar público, interpelou-o com a mão estendida a medo e a balbuciar alguma coisa que Tomás não entendeu bem.

"Perdão?"

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"... para comer e..."

A mulher tinha lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto e nem chegou a terminar a frase. Baixou a cabeça e afastou-se em passo rápido, embaraçada pela vergonha. Estupefacto, sem capacidade de reacção, ficou a vê-la afastar-se no seu passo curvado. Ao que as coisas estavam a chegar!, pensou, chocado; até pessoas de aspecto educado andavam a pedir esmola. Pelo aspecto, aquela mulher podia ser sua mãe ou sua tia e andava pela rua a implorar ajuda. O espanto e o desconforto levaram-no quase instintivamente a desviar os olhos para a janela do seu apartamento, como se buscasse a protecção de um lugar familiar que mantivesse intactos os pontos de referência.

Deteve-se diante da porta do prédio.

"Que estranho", murmurou, estreitando as pálpebras. "Muito estranho mesmo..."

"O quê?", quis saber o amigo. "Passa-se alguma coisa?"

Os olhos de Tomás mantinham-se colados à janela da sala do seu apartamento.

"Antes de sair de casa abro sempre as cortinas para deixar entrar o sol e fazer parecer que o apartamento está ocupado", observou. "Mas agora estão fechadas..."

"Deves ter-te esquecido de as abrir."

"Não esqueci não", devolveu o historiador com grande convicção.

"Abri-as e agora estão fechadas."

Ficaram os dois um longo instante plantados diante da porta principal, voltados para a janela do segundo andar, os olhos fixos nas cortinas corridas, as mentes a laborarem como formigas para retirar as consequências do que acabavam de descobrir. As cortinas tinham sido abertas antes de saírem e nesse momento estavam corridas. Se não tinha havido esquecimento, como se explicava isso?

A cortina mexeu-se.

"Está ali alguém!", exclamou Tomás, estupefacto. "Viste? Está ali 166


alguém!"

Entreolharam-se, confusos. Após uma breve hesitação, Filipe desatou a correr na direcção da rua.

"Foge!", gritou. "Foge!"

O historiador ainda vacilou. Então havia um desconhecido em sua casa e ele é que fugia? As prioridades pareciam-lhe trocadas, mas o alarme do amigo e as estranhas circunstâncias em que ele lhe aparecera constituíam indício evidente de que algo de anormal se passava. Se Filipe lhe dizia que fugisse, teria com certeza boas razões para isso. Na dúvida, o melhor era seguir o conselho.

Tomás começou a correr, mais no encalço do amigo do que propriamente para escapar do que quer que fosse. Filipe já ia lá à frente, mas não parecia em forma e depressa o alcançaria. Acelerou a passada e, quando estava quase a apanhá-lo, sentiu um zumbido rente ao ouvido e, acto contínuo, ouviu um estampido atrás dele.

Virou-se e vislumbrou um homem de negro a correr na sua direcção com um objecto fumegante na mão.

Uma pistola.

A constatação de que alguém o perseguia e acabara de o alvejar deixou-o estarrecido. Não havia dúvidas, Filipe tinha de facto boas razões para fugir. Não era propriamente a melhor hora para indagar o que se passava, mas à primeira oportunidade o amigo teria de lhe explicar em pormenor os sarilhos em que o metera. No entanto, primeiro urgia escapar à mira do perseguidor.

Assustado com o zumbido que cortara o ar mesmo ao lado dele, correu mais depressa e apanhou Filipe, que tinha a respiração pesada e evidentemente não seria capaz de prolongar o esforço muito mais tempo. Atirou um olhar de relance para trás e viu o homem de negro mais próximo; não era preciso ser muito perspicaz para perceber que em breve os alcançaria.

Olhou em redor e detectou uma farda azul na berma da rua; era 167


um barrigudo da PSP.

"Senhor guarda!", berrou, chamando a atenção do polícia.

"Senhor guarda, estamos a ser perseguidos!" Apontou para trás.

"Aquele homem! Aquele homem vem armado!"

O polícia olhou na direcção indicada e, para seu espanto, constatou que assim era. Empertigou-se e, puxando as calças para cima da pança vasta, pôs-se a caminhar na direcção do desconhecido, de apito na boca e modos plenos de autoridade.

"Co'a breca, alto!", ordenou, levantando a mão como se quisesse parar o trânsito. "O senhor venha cá, se faz favor! Identifique-se!"

Tomás viu o desconhecido abrandar e sentiu um frémito de alívio percorrer-lhe o corpo. Felizmente aquela situação bizarra terminara e poderia enfim apurar o que se passava; o amigo teria muitas explicações a dar.

Sentiu algo puxá-lo pela mão.

"Anda! Foge!"

Voltou-se e viu Filipe, o pânico ainda a colorir-lhe a expressão do rosto.

"Tem calma", disselhe. "O polícia já o..."

Escutou nesse instante um novo estampido vindo lá de trás e voltou-se para perceber o que acontecera. Viu o polícia estendido no chão de barriga para o ar, a nuca desfeita numa massa de sangue e massa encefálica, e o desconhecido a correr de novo na direcção deles com a pistola fumegante na mão.

"O gajo... o gajo matou-o!"

Filipe voltou a puxá-lo, a voz tingida de medo. "Foge, caraças!

Foge!"

Recomeçaram a correr e agora Tomás tinha a perfeita convicção de que corria para salvar a vida. Não só o desconhecido o alvejara como, sobretudo, abatera um polícia a sangue-frio no meio da rua e à luz do dia. Quem fazia uma coisa dessas, sabia, faria muito mais. A 168


ameaça era séria.

Várias pessoas vinham em sentido contrário e viu-se forçado a ziguezaguear entre elas. No instante em que o fez sentiu um novo zumbido perto da orelha e escutou outro estampido. Fora mais uma vez alvejado. Em boa hora mudara de direcção, caso contrário com toda a probabilidade teria sido atingido. Estranhou momentaneamente o novo disparo na sua direcção; dava a impressão de que ele próprio era o verdadeiro alvo do perseguidor, não o seu amigo, mas o momento não lhe parecia adequado para reflectir, apenas para correr e escapar-se.

Atirou um novo olhar para trás. O desconhecido em breve apanhá-los-ia, não só porque parecia muito ágil mas também porque Filipe já dava as últimas; o amigo estava ofegante, tinha os pulmões exangues e perdia rapidamente o fôlego. Só um golpe de asa lhe permitiria escapar com vida.

Olhou para a rua, desesperado, à procura de um táxi. O trânsito estava imobilizado por causa de um semáforo vermelho e não havia qualquer táxi livre à vista. Para compensar, viu um jovem sentado numa Kawasaki encarnada de aspecto potente, com rodas grossas e dois grandes tubos de escape.

Estava ali o golpe de asa.

"Anda daí!"

Agarrou em Filipe e puxou-o na direcção da moto. Quando se abeirou dela desferiu um murro inesperado nos rins do motociclista, que se contorceu com dores, e fê-lo saltar da Kawasaki. Ajudou o amigo a montar, saltou para a posição de piloto e arrancou com um rugido furioso e tanta fúria que quase empinou a moto. Controlou-a de imediato e, em ziguezague entre os automóveis, passou o semáforo vermelho entre um coro desordenado de buzinadelas.

"Ufa!", bufou. "Já nos safámos!"

Espreitou brevemente para trás, de modo a verificar a posição 169


do perseguidor, e vislumbrou o vulto negro junto a outro motociclista parado à espera do verde. Seria possível que ele continuasse a perseguição? Precisava de se certificar, mas não tinha modo de o fazer, a condução da moto requeria toda a sua atenção.

"Que se passa?", quis saber Filipe, gritando para se fazer ouvir sobre o ronco da Kawasaki e do vento. "Está tudo bem?"

"Vê o que o tipo está a fazer!"

Sentiu o amigo voltar-se para trás e aguardou as novidades. Elas não tardaram.

"O gajo vem atrás de nós!", berrou Filipe, de novo o pânico a dominar-lhe a voz. "Mais depressa!"





























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