XXVI

"Alto!"

Ouviu o grito atrás dele e percebeu que o graduado de serviço vinha no seu encalço. Que raio de azar o seu, pensou enquanto corria desenfreado rua abaixo, o corpo ainda dorido mas a adrenalina a ferver-lhe no sangue; com tantos pançudos na PSP, logo tinha de lhe calhar de plantão um polícia novinho e ágil.

"Alto ou atiro!"

Pois, pois!, raciocinou; estás mesmo à espera que acredite que vais disparar? A ameaça não o intimidou, sabia que não passava de um truque a ver se pegava. Mas tinha igualmente consciência de que o seu perseguidor era mais novo e estava fresco, enquanto ele passara um dia absolutamente infernal, sofrera vários hematomas e feridas em todo o corpo, incluindo nas pernas, e não conseguiria manter o ritmo de corrida muito mais tempo. Precisava de arranjar maneira de se escapar ao guarda que o caçava pelas ruas escuras de Almada.

A noite caíra e havia pouco trânsito e ainda menos transeuntes nos passeios. As calçadas eram iluminadas pela luz amarelada dos candeeiros públicos e pelos focos esquivos dos faróis de automóveis ocasionais. Tomás percebeu instintivamente que a sombra poderia ser sua aliada; tinha de tirar partido da escuridão para despistar o betinho da PSP. O problema é que, e ao contrário do seu perseguidor, não conhecia Almada e não podia planear o itinerário de fuga.

Teria de improvisar.

Ao passar para o outro lado da rua vislumbrou o lençol tranquilo 193


do Tejo a reluzir entre dois prédios e percebeu que o cais de Cacilhas ficava a meros dois passos de distância; era a via óbvia de fuga. Virou naquela direcção e meteu por uma área arborizada que desembocou numa zona habitacional. Atrás dele, o seu perseguidor deixara de gritar, talvez para poupar energia, se calhar porque percebera que de nada servia ordenar-lhe que parasse, provavelmente pelas duas coisas.

Virou à esquerda, direitinho ao cais, até que mergulhou numa zona de sombra e, tirando proveito da invisibilidade momentânea, dobrou a esquina de um prédio e contornou-o pelas traseiras, metendo por um caminho de cabras numa zona descampada. Agora é que se ia ver se o polícia se deixava ou não enganar.

"Alto!", gritou o seu perseguidor, a voz de novo a ecoar entre as ruas. "Faça o favor de se entregar!"

Mergulhado na sombra, e apesar de se encontrar à beira da exaustão, Tomás deixou escapar um sorriso. Despistara-o. Os berros eram a prova de que o polícia lhe perdera o rasto; só assim se compreendia o regresso àquele método desesperado.

A nova realidade impunha uma bem-vinda mudança táctica; em vez da correria desenfreada em que tanto se desgastava, teria de se mover devagar e sub-repticiamente pela penumbra. A invisibilidade constituía o seu maior trunfo. Caminhou com cuidado e procurou o abrigo de um arbusto para repousar por momentos. Os pulmões suplicavam por ar e precisava de lhes dar o que eles pediam.

Ouviu sirenes e percebeu que o polícia recebia reforços. Em breve toda a zona de Cacilhas estaria enxameada de guardas, mas isso não o preocupou. Encontrava-se a quinhentos metros do prédio atrás do qual desaparecera e o arbusto e a noite protegiam-no dos olhares perscrutadores dos homens da PSP.

O que fazer? O seu olhar desviou-se quase instantaneamente para os cacilheiros encostados ao cais, ao fundo da colina. Era a escapatória evidente, pensou de novo; talvez por isso mesmo fosse a 194


rota que mais convinha evitar. Se ele fosse polícia, com certeza poria ali homens a vigiar os passageiros. De facto, aquela via estava-lhe interditada. A alternativa parecia-lhe a Ponte 25 de Abril, claro, mas depressa concluiu que a PSP ia ter a mesma ideia e provavelmente estabeleceria vigilância apertada na zona das portagens.

Em suma, o acesso a Lisboa estava-lhe vedado. "Mas o que raio vou eu fazer a Lisboa?"

Sussurrou a pergunta por baixo da respiração e percebeu que tinha acabado de formular a questão mais importante de todas naquele momento. Sim, o que iria ele fazer a Lisboa? Não podia usar o apartamento porque os perseguidores, e se calhar a esta hora também a polícia, o estavam a vigiar. Para onde quer que fosse na cidade sujeitava-se a ser localizado e apanhado pelas autoridades. Como se tornava cada vez mais claro que as forças que o perseguiam de uma maneira ou de outra controlavam a polícia, ser capturado pela PSP ou pela Judiciária era equivalente a ser apanhado por elas.

Um coro longínquo de latidos excitados irrompeu na noite.

"Cães!"

Ergueu-se de um salto e retomou o caminho de fuga, agora já recuperado e espevitado pelo medo que os latidos distantes lhe provocaram. Que burro fora em não ter pensado naquilo!, repreendeu-se a si mesmo; era evidente que a polícia iria recorrer aos cães e isso poderia desequilibrar os pratos da balança contra ele. Os homens da PSP estavam cegos pela treva nocturna, mas os cães tinham o faro a guiá-los e não havia noite que apagasse o odor da transpiração que lhe empapava a camisa.

Saiu do descampado à primeira oportunidade e emergiu nas ruas de Almada, que percorreu em passo lesto, suficientemente devagar para não atrair atenções, prudentemente rápido para se escapar da zona onde a polícia e os cães operavam. O movimento permanecia baixo, dava a impressão de que toda a povoação se recolhera a casa, 195


mas ainda se viam algumas pessoas a circular por ali.

Reconheceu a rua onde desembocara do trajecto que fizera ao final da tarde até à esquadra e seguiu-a em sentido inverso, como se regressasse ao hospital. Ao fim de quarenta minutos chegou a um troço que dava acesso à auto-estrada. Viu as luzes de um restaurante acesas e apercebeu-se de que estava esfaimado; não comia desde que haviam parado na estação de serviço de Pombal para reabastecer. Pareceu-lhe que isso tinha acontecido uma semana antes mas afinal fora nesse mesmo dia. Quantas coisas haviam sucedido entretanto!

Meteu a mão ao bolso e verificou que, embora não tivesse dinheiro, possuía ainda os seus dois cartões de crédito; estava à vontade para o jantar. Entrou no restaurante, sentou-se num canto discreto e, depois de consultar a ementa, pediu um bitoque. Enquanto esperava pôs-se a pesar as alternativas diante dele. Ir para Lisboa, como já constatara, era um disparate; arriscava-se a ser apanhado pela polícia ou pelo pistoleiro, estava absolutamente fora de questão regressar ao apartamento.

Assim sendo, o que faria? Tudo pesado, percebeu que só lhe restava cumprir o desejo de Filipe. Ele tinha falado numa mulher qualquer da Interpol em Madrid... Como se chamava ela? Rute... não, não era Rute. Começava também por R, mas não era Rute. Rita?

Hmm... também não. Se bem se lembrava, tinha um a no meio. Ra...

Raquel, não seria? Isso, Raquel. Raquel qualquer coisa.

Suspirou de alívio por se lembrar do nome próprio e a seguir ocorreu-lhe que o amigo lhe dissera que o número de telefone dela estava no envelope. Voltou os olhos para o sobrescrito, mas quando o ia inspeccionar foi interrompido pelo empregado com o bitoque.

Comeu com gosto e teve vontade de repetir, mas achou que devia ser prudente nos gastos e matou o resto da fome com pão. Pediu a conta, entregou o cartão e digitou o código.

"Não está a aceitar", disse o empregado, mostrando o visor da 196


máquina a indicar que a transacção não tinha sido autorizada. "Tem de tentar outra vez."

Digitou novamente o código e o resultado foi o mesmo.

Que estranho!", observou, inspeccionando o cartão; parecia-lhe normal. Meteu a mão ao bolso e tirou o outro cartão. "Tente este."

A operação repetiu-se com o segundo cartão e mais uma vez o resultado veio negativo. O suor brotou-lhe na testa no momento em que começou a suspeitar que nada daquilo era acidental; sabia que tinha fundos nas contas, pelo que só podia haver um bloqueio no acesso ao dinheiro.

O rosto do empregado fechou-se.

"Quer tentar de novo?"

O cliente assentiu, mais por descargo de consciência do que por convicção, e o resultado negativo repetiu-se.

"Pois, não está a aceitar", disse, embaraçado. Meteu as mãos ao bolso para verificar o que já sabia. "E a chatice é que não trouxe dinheiro comigo." Encarou o seu interlocutor com uma expressão de impotência. "E agora?"

O empregado manteve o semblante cerrado.

"Vou chamar o patrão."

O homem deu meia volta e Tomás percebeu que se avizinhavam problemas. O dono ia com certeza chamar a polícia e... e...

Saltou do lugar e correu até à rua, mergulhando de imediato na noite. Ainda ouviu um grito atrás dele, mas ignorou-o; perdido por cem perdido por mil. Se era para enfrentar as autoridades, ao menos tentaria a sua sorte. Passou pelo troço que conduzia à auto-

-estrada na direcção de Lisboa e prosseguiu em corrida até chegar a um ramal que conduzia à Auto-Estrada do Sul.

Passavam alguns automóveis pelo local e estendeu a mão a pedir boleia. Permaneceu assim durante dez minutos, ignorado pelos carros que por ali passavam. As luzes encandearam-no por momentos 197


dando-lhe a ilusão de que seria dessa vez, para de imediato o desapontarem fazendo-o regressar à escuridão. Por fim um enorme camião TIR ligou o pisca-pisca e encostou na berma com um bafo profundo. A porta abriu-se, empurrada por uma mão, para o deixar entrar.

"Muito obrigado", agradeceu Tomás ao saltar para o lugar de passageiro. "Para onde vai?"

O motorista, um homem peludo com um bigode negro farfalhudo e a barba por fazer, estudou-o com o olhar.

"Marselha", disse. "Como vou viajar a noite toda, dá-me jeito a companhia."

"Passa por Madrid?"

"Com certeza."

Com o primeiro sorriso de satisfação desde que viera de Coimbra, o passageiro recostou-se no seu lugar e apertou o cinto.

"Então vamos."






















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