LXII

A vontade de Tomás era falar para o público, hábito velho de professor viciado nos grandes auditórios, mas tinha a noção de que, para efeitos formais, o seu destinatário não eram as pessoas que enchiam o grande salão do Palazzo Vecchio, mas o juiz. Ajeitou o casaco, consciente de que se encontrava demasiado amarrotado após as sucessivas e atribuladas viagens que fizera nas últimas quarenta e oiro horas, e pigarreou.

"O meu nome é Tomás Noronha e sou historiador em Lisboa", apresentou-se. "Tenho um amigo de infância chamado Filipe Madureira que, sei-o agora, foi contratado pela digníssima procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional para integrar a equipa de investigação do processo de crimes contra a humanidade relativos à crise. Acontece que, enquanto desenvolvia o seu trabalho, o meu amigo Filipe cruzou-se com dois técnicos franceses que tinham sido contratados há uns anos pelo antigo presidente da Comissão Europeia para investigar suspeitas de fugas de informação dentro da própria Comissão. A contratação desses técnicos tinha sido feita em segredo, de modo a não alertar os responsáveis pelas fugas de informação, e a ambos foi dada carta branca para interceptarem todas as comunicações no interior do edifício da Comissão, em Bruxelas, e todas as comunicações do interior do mesmo edifício para o exterior, incluindo e-mails e telefonemas. Como o anterior presidente da Comissão Europeia era 413


português, grande parte do trabalho dos dois técnicos incidiu nos gabinetes portugueses, onde eram maiores as suspeitas de fuga de informação, embora as intercepções tivessem também abrangido outros serviços existentes nas instalações."

O juiz Seth remexeu-se no lugar, incomodado com o que escutava.

"Essas intercepções foram autorizadas por algum juiz?" Tomás ainda abriu a boca para responder, mas a procuradora-chefe antecipou-se.

"Sim, meritíssimo", apressou-se ela a dizer, acenando com uma folha.

"Está aqui a ordem assinada pelo juiz Joossens." "Deixe-me ver."

"Com certeza, meritíssimo."

A professora Chalnot aproximou-se da mesa do juiz e estendeu-lhe o documento. Axel Seth pôs os óculos de leitura e estudou-o atentamente antes de o devolver.

"Parece estar tudo regular", constatou, voltando a tirar os óculos.

Desviou o olhar para Tomás. "Prossiga, professor Noronha."

"As escutas e intercepções levadas a cabo pelos dois técnicos franceses na sede da Comissão Europeia em Bruxelas duraram alguns anos e só terminaram quando eles identificaram enfim a fonte da fuga de informação", disse o historiador, retomando o raciocínio. "Todo o material recolhido foi levado para a empresa dos dois técnicos para ser tratado no âmbito do processo judicial instaurado para processar criminalmente o funcionário responsável por essas fugas. Acontece que, por essa altura, a crise desencadeada pelo colapso do Lehman Brothers começou a estender-se à Europa através do problema das dívidas soberanas. Enquanto reviam o material que tinham gravado, os dois técnicos aperceberam-se de que algumas das conversas interceptadas tinham relevância para o apuramento de responsabilidades sobre o que estava a acontecer."

"Esse apuramento de responsabilidades já foi feito pelo procurador Del Ponte", observou o juiz Seth. "Isso que me está a descrever parece-me redundante."

"Receio que não seja bem assim, meritíssimo", corrigiu Tomás, 414


fazendo um gesto a indicar Carlo del Ponte. "O senhor procurador apurou responsabilidades e indiciou suspeitos ligados ao colapso da bolha do imobiliário e da banca americana em 2008. Acontece que a crise, como o meritíssimo bem sabe, não se limitou à América. A Europa foi profundamente abalada, começando pelo Leste, pelos países bálticos e pela Islândia e acabando na própria zona euro. Por muitas culpas que tenham, e têm, os senhores Obama, Bush, Greenspan, Summers e companhia não são responsáveis pelos problemas europeus. A crise na Europa foi criada na própria Europa."

"Lamento", corrigiu o juiz, "mas toda a gente sabe que foi o colapso de 2008 nos Estados Unidos que provocou a crise europeia."

Apesar da insistência de Axel Seth, o português manteve-se firme na sua posição.

"O colapso de 2008, meritíssimo, apenas apressou uma crise que já estava em gestação na Europa devido à transferência da produção para a Ásia, aos erros na arquitectura do euro e à má governação em vários países. Se não fosse a falência do Lehman Brothers, seria outra coisa qualquer a gerar a crise europeia. Admito que, sem a crise americana, a crise das dívidas soberanas na Europa só viria a ocorrer mais tarde, mas que ninguém duvide que essa ocorrência era inevitável porque a zona euro sofria de desequilíbrios estruturais que não eram sustentáveis e porque a produção de bens se transferiu do Ocidente para a Ásia. Ora, e como todos sabemos, o que não é sustentável não se sustentará. O colapso de 2008 foi o abalo que fez desmoronar mais cedo o baralho de cartas do euro e da economia ocidental."

O juiz fez uni gesto impaciente com a mão.

"Está bem, está bem", concedeu, sem vontade de se embrenhar numa discussão. "Prossiga."

O historiador teve de se concentrar para retomar o fio condutor da sua exposição.

"Pois, dizia eu que..." Fez uni esforço de memória. "Enfim, os dois 415


técnicos franceses contactaram um responsável para lhe comunicar o teor do material que tinham recolhido. Parece, no entanto, que o contacto não correu bem e os técnicos sentiram-se ameaçados e puseram-se em fuga."

"Ameaçados?", estranhou o juiz. "Ameaçados por quem?"

"Pelos vistos o responsável por eles contactado não era inteiramente alheio às actividades ilegais que constavam das escutas, se é que me faço entender."

"Quem era esse responsável?"

"Infelizmente ignoro-o, meritíssimo. Apenas sei, com base em documentos que me foram entregues pelo meu amigo Filipe Madureira, que os dois técnicos foram de algum modo informados de que o Filipe estava encarregado pela senhora procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional de investigar a crise e, em desespero de causa, entraram em contacto com ele. Entregaram-lhe o DVD e depois desapareceram. Uma semana mais tarde os seus corpos foram encontrados num apartamento em Nice."

O juiz arregalou os olhos.

" E s t á a i n s i n u a r q u e f o r a m . . . a s s a s s i n a d o s ? " "Torturados e assassinados, sim. É o que está escrito no relatório da autópsia."

A procuradora Chalnot acenou com uni papel.

"Está aqui o relatório, meritíssimo! Vou juntá-lo aos autos." "Muito bem", concedeu Axel Seth, mantendo a atenção concentrada em Tomás. "E o seu amigo?"

"Pouco depois da morte dos dois técnicos franceses, o Filipe começou a ser perseguido e viu as suas contas bancárias bloqueadas.

Entrou em pânico e, percebendo que o DVD mexia com interesses ao mais alto nível, cortou os contactos com toda a gente." Indicou a procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional. "Até com a professora Chalnot. Pura e simplesmente, não sabia em quem confiar. Apesar de ter ficado sem meios para se sustentar, arranjou maneira de partir para 416


Portugal, o seu país de origem, e contactar as duas únicas pessoas em quem confiava, uma agente espanhola da Interpol e eu."

"Onde está o senhor Madureira?"

"Infelizmente, foi abatido. Um atirador baleou-o em Lisboa." O juiz Seth abriu e fechou a boca, uma expressão incrédula a bailar-lhe nos olhos.

"Outro homicídio?", admirou-se, quase escandalizado. "Isto já me está a parecer Hollywood a mais! Tem a certeza do que está a dizer?"

"Ele pelo menos perdeu a consciência nos meus braços", confirmou Tomás. "A informação oficial da polícia portuguesa é que o Filipe morreu. Contudo, ontem recebi um e-mail dele a dizer-me que tinha escapado e que está internado no hospital."

Axel Seth revirou os olhos, contrariado.

"Mau, mau!", exclamou com um certo ar de enfado. "Tudo isto está demasiado confuso para o meu gosto. Afinal morreu ou não?"

Fez uma pausa, como se aguardasse resposta, mas como nenhuma foi dada prosseguiu. "E esse DVD? Onde está ele? O senhor tem-no consigo?"

"Não. O Filipe nunca mo entregou."

O juiz enrubesceu e virou a sua atenção para a procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional.

"Professora Chalnot, tudo isto me parece suspeito e duvidoso.

Este seu colaborador vem para aqui com uma história do faroeste e pelos vistos não tem nenhum documento na sua posse que a consubstancie, nem o tal DVD onde supostamente se encontram gravações comprometedoras. Pior ainda, veio para aqui contar a história de um morto que agora lhe envia e-mails do Além. A senhora procuradora-chefe estará por acaso a fazer pouco de mim? Este processo é demasiado importante para andarmos aqui com brincadeiras!"

"Meritíssimo, estamos apenas a expor os factos tal como os conhecemos", respondeu a professora Chalnot, atrapalhada. "Eu sei 417


que tudo isto parece bizarro, mas se as coisas aconteceram deste modo rocambolesco o que podemos fazer?"

O juiz não parecia convencido. Lançou a Tomás um olhar furioso, a roçar o ultimato.

"Onde está esse DVD?"

"Não o tenho, já disse."

Axel Seth fitou-o por um longo momento com uma expressão pensativa; era claro que avaliava o assunto e ponderava uma decisão.

"Oiça, com o DVD o senhor tem uni caso", sentenciou. "Sem DVD

não há caso nenhum." Pegou no martelo e preparou-se para bater com ele na mesa. "Assim sendo, cumpre-me o dever de pôr fim a esta..."

"Apresento-o amanhã."

As palavras de Tomás tiveram o condão de interromper o juiz a meio da frase. Seth suspendeu o movimento do braço com o martelo e voltou a olhar o historiador.

"Afinal tem ou não tem o DVD?"

"Não o tenho agora, mas tenho-o amanhã."

O juiz esboçou um esgar inquisitivo.

"Porquê amanhã e não agora?"

"Porque o Filipe deu-me indicação do local onde se encontra escondido o D VD, mas ainda não fui lá." "Que indicação é essa?"

"Veremos amanhã."

O olhar de Seth carregou-se de cólera mal contida.

"Professor Noronha, aconselho-o a respeitar este tribunal!", avisou com uma voz ameaçadora. "Faz favor de me dizer que indicação lhe foi dada, para que eu melhor possa avaliar a situação."

O português deixou descair os ombros, vencido. "A indicação é um criptograma que tenho estado a decifrar", revelou. "Dá-me licença que me aproxime?" "De mim? Bem... sim."

Depois de tirar o seu bloco de apontamentos de uma mala, o historiador abeirou-se da secretária do juiz.

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"Não posso ler o criptograma em voz alta, não vá alguma das pessoas presentes decifrá-lo e chegar ao material antes de nós", explicou, pousando o bloco na mesa. "O segredo para chegar ao DVD

esconde-se nesta frase, meritíssimo."


G O T O s a t a n + & S E A R C H O V E R S A T A N ' S T O M B .


Axel Seth fez a careta de um leigo a quem pediam que lesse em voz alta Os hieróglifos da pedra de Roseta.

"O que raio é isto?"

"É a identificação do paradeiro do DVD. Queria solicitar-lhe que me concedesse o resto da tarde para quebrar esta mensagem críptica.

Sugiro que o tribunal se reúna amanhã, altura em que acredito estar em condições de apresentar o material em causa."

O juiz fez Uma careta reticente.

"Não sei se isto é regular", observou, a voz a deixar transparecer a relutância. "Além do mais, tenho amanhã à tarde um importantíssimo conselho europeu em Roma c..."

"Meritíssimo, o regimento que regula este tribunal prevê o prolongamento das sessões preliminares por vinte e quatro horas quando solicitado pela acusação", lembrou a procuradora-chefe, folheando já o dito regimento. "Está aqui na cláusula décima quarta, alínea..."

"Eu sei, eu sei", concedeu Seth. Bufou de impaciência e pegou de novo no martelo. "Muito bem, esta sessão preliminar fica agora suspensa e será retomada amanhã pelas nove da manhã neste mesmo salão. Se o dito DVD não aparecer, no entanto, ficam já avisados de que não mais será admitido neste processo. A acusação teve plena oportunidade para reunir as provas de que necessitava e está na altura de concluirmos esta fase de inquérito e passarmos ao julgamento. Está encerrada a sessão."

Bateu com o martelo na mesa.

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A primeira coisa em que Tomás pensou foi que, devido à diferença horária, a hora em que o processo seria reatado no dia seguinte, nove da manhã em Florença, eram oito da manhã em Coimbra, precisamente a hora a que a mãe seria expulsa do lar. O

pensamento bateu-lhe no coração e ensombrou-lhe o espírito. O

tempo esgotava-se e precisava de resolver o assunto em Itália o mais depressa possível de modo a ficar livre para lidar com o problema da mãe.

Quando o historiador virou as costas e se preparou para sair, a mente mergulhada nesta dificuldade, um movimento estranho de homens que o observavam com ar suspeito chamou-lhe a atenção.

Estudou o movimento e apercebeu-se de que eles assumiam posições estratégicas no Salone dei Cinquecento, preparando-se para o interceptar junto à saída. Tomou nesse instante consciência de que, considerando os altos interesses que o processo punha em causa, as pessoas visadas no DVD que ele se comprometera a trazer a público no dia seguinte não recuariam perante nada, nem perante o escândalo de o assassinarem diante daquela multidão e de toda a imprensa. A realidade pura e dura era que, custasse o que custasse, a pessoa que tudo poderia pôr em perigo tinha de ser travada. Essa pessoa era ele próprio.

Teria pois de lutar pela vida.



















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