LXV

A fachada de mármore níveo da basílica, com três grandes portas de madeira maciça e coberta de relevos rectangulares com uma grande estrela de David no topo, parecia olhá-los de esguelha, quase com sobranceria. Atravessaram a Piazza delia Croce, tranquila ao fim da tarde, e subiram a escadaria exterior. Quando iam a entrar pela porta central, a maior, cruzaram-se com um monge franciscano.

"Desculpe", interpelou-o Tomás, "será que me pode dar uma informação profissional?"

"Com certeza", retorquiu o monge, solícito. "O senhor é da equipa de restauro que vem de Pisa?" Virou-se para o interior da basílica. "Os frescos de Giotto encontram-se ali ao fundo, na capela."

"Não, não é isso", atrapalhou-se Tomás. "Somos... enfim, turistas. Disseram-nos que havia aqui alguns túmulos importantes, designadamente de Miguel Ângelo e Caldeu, de modo que..."

O olhar do monge iluminou-se.

"Ah, os túmulos!", exclamou, percebendo o seu equívoco. "Peço desculpa, confundi-vos com uma equipa que... ah, não interessa."

Voltou-se de novo e apontou para as alas. "Os túmulos estão nos dois lados da basílica." Baixou a voz, quase em confidência. "O de Miguel Ângelo é fabuloso, com figuras de Vasari, não o percam." Juntou os dedos para cima, num gesto muito italiano. "Bellissimo!"

"Os corpos deles encontram-se mesmo aqui?"

O franciscano fez um ar escandalizado, como se tal hipótese nem 432


pudesse ser questionada.

"Seguramente!" Hesitou. "Excepto, claro, os de Marconi, Fermi e Dante Alighieri, não é verdade? Esses têm aqui os túmulos mas, receio bem, Os seus restos mortais não se encontram na basílica."

Raquel arregalou os olhos.

"Marconi, Fermi e Dante também têm túmulos na basílica?"

"Madonna!, são sabia? Não é em vão que chamam a Santa Croce, basílica fundada pelo próprio S. Francisco, que Deus o tenha eternamente sentado à Sua direita, o tempio dell'Itale glorie!" Fez uni gesto convidativo a indicar o interior da basílica. "Prego, vejam por vós mesmos!"

Os dois visitantes agradeceram ao monge e penetraram enfim na basílica. O historiador apreendeu o interior com o olhar, assimilando quase instantaneamente as características do santuário. A decoração de Santa Croce era mareada pela austeridade franciscana, com a planta em formato de cruz egípcia e as alas separadas por linhas de colunas octogonais. A luz natural jorrava das janelas e dos vitrais no alto, a despejar focos numas partes do chão de tijoleira e a deixar outras partes na penumbra, competindo com a iluminação amarelada das lâmpadas penduradas do tecto. Pairava um cheiro quente a cera no ar, embora não se avistassem velas em parte alguma.

Depois de absorverem o conjunto, Tomás e Raquel deslizaram para a esquerda e, por detrás das colunas, depararam-se com estruturas de mármore enquadradas por pequenas estátuas e separadas por pinturas gigantescas.

"Que é isto?", quis a espanhola saber. "São capelas?" De olhar fascinado a contemplar as estruturas, o historiador abanou a cabeça.

"Túmulos."

Abeiraram-se do segundo sepulcro a contar da esquerda e viram, na base da urna, uma inscrição em caracteres latinos que se iniciava com o nome Galilaeus Galileus.

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"É este o de Galileu?"

Sem pronunciar palavra, Tomás assentiu com a cabeça. Nos minutos seguintes percorreram as duas alas da basílica, sempre a registarem os nomes que iam encontrando, o historiador a identificá-

los em voz baixa e a agente da Interpol a tornar nota num pequeno bloco.

"Enrico Fermi, físico", murmurou ele, passando ao seguinte.

"Leonardo da Vinci." Parou para contemplar o túmulo do autor da Gioconda, antes de recomeçar a andar. "Vittorio Alfieri, poeta e dramaturgo... Eugenio Barsanti, um dos inventores do motor de combustão... Lorenzo Bartolini, escultor..." Estacou diante do seguinte. "Leon-Battista Alberti, arquitecto e autor de uma das mais famosas cifras de criptografia, a cifra de Alberti."

A espanhola ergueu uma sobrancelha, alertada pela observação.

"Ora aqui está um túmulo curioso", constatou. "Não era o Filipe amante da criptografia?"

"De facto", anuiu Tomás, sem tirar os olhos do mausoléu do famoso criptógrafo italiano. "Ele e eu, de resto. Muitas vezes ocultámos mensagens com recurso à cifra de Alberti."

Com esta constatação em mente, prosseguiram a observação das paredes da basílica a estudar os restantes túmulos. Passaram pelo de Leonardo Bruni, entretiveram-se com os de Niccolò Machiavelli e Dante Alighieri, espreitaram furtivamente Os de Ugo Foscolo, Giovanni Gentile e Lorenzo Ghiberti, maravilharam-se com o de Miguel Ângelo, observaram com ar distraído os de Carlo Marsuppini, Raffaello Morghen, Clary, Gioacchino Rossini, Louise di Stolberg-Gedern e detiveram-se por momentos diante do mausoléu vazio de Marconi.

Quando terminaram, recuaram para o corredor central da basílica e contemplaram o conjunto dos túmulos.

"Sabes o que te digo?", perguntou Raquel. "Falta um."

Tomás olhou-a inquisitivamente.

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"Qual?"

A espanhola recuou umas páginas no seu bloco de notas até encontrar o que procurava. Elevou o bloco no ar e apontou ao historiador a frase que haviam arrancado do criptograma.


G O T O s a n t a c r o s s & S E A R C H O V E R S A T A N ' S T O M B


"Satanás", disse ela. "Falta o túmulo de Satanás." Baixou de novo os olhos para o bloco de notas. "Vai a Santa Croce e procura sobre o túmulo de Satanás", leu, traduzindo a frase. Voltou a fitá-lo. "Não podia ser mais explícito."

Uma expressão sarcástica desenhou-se no rosto do português.

"Que eu saiba, Satanás não é um herói italiano", observou num tom sibilino. "Duvido que tenha aqui algum túmulo."

Ignorando o sarcasmo, Raquel apontou para as duas últimas palavras da frase.

"No entanto, o Filipe é aqui muito claro quando diz que procure sobre o túmulo de Satanás. Se calhar é melhor espreitarmos outros pontos da basílica, não achas?"

O historiador fez um gesto largo, abarcando todos os túmulos que se encontravam incrustados nas duas paredes de Santa Croce.

"A referência a Satanás na mensagem do Filipe tem de ser lida de forma simbólica, como é evidente", estabeleceu. "Isso significa que o túmulo de Satanás é um dos que aqui estão, não tenhas dúvidas quanto a isso."

Hesitou, contemplando as placas a identificar cada figura. "A questão é saber qual."

Os olhares dos dois visitantes passearam entre os vários túmulos, tentando arrancar o segredo que um deles escondia. Galilcu, Alberti, Alfieri, Miguel Ângelo, Dante, Da Vinci, Machiavelli, Marconi, Fermi, Rossini, Morghen, Gentile, Barsanti,

"Ay, madre mia", suspirou Raquel, indecisa. "Como vou eu adivinhar 435


qual deles é Satanás?"

"Não estamos a falar de alguém que se chame Satanás", insistiu Tomás. "Basta um indício, uma obra que alguém tenha feito e que estabeleça uma qualquer ligação com o Diabo..."

"Mas o quê?"

"Sei lá", retorquiu o historiador. "Algum destes homens escreveu alguma coisa sobre Satanás ou fez uma pintura sobre o Inferno ou um poema a propósito de qualquer coisa do género?"

O olhar da espanhola percorreu de novo os nomes nas paredes da basílica. Galileu, Alberti, Alfieri, Miguel Ângelo, Dante...

Abriu a boca, presa a este último nome.

"Dante!", exclamou, o olhar incendiado pela epifania. "Dante Alighieri!"

Com uma expressão pensativa, Tomás mordeu o lábio inferior como se ponderasse a ideia.

"Dante? Por causa da Divina Comédia?"

A agente da Interpol agarrou-o pelos ombros e obrigou-o a voltar-se para o sepulcro do grande escritor.

"Sim, Dante!", exclamou, alterada. "Dante! O Inferno de Dante!"

Fez um gesto impetuoso a indicar o túmulo do famoso florentino.

"Dante é a resposta!" Colou-lhe o bloco de notas à cara. "Vai a Santa Croce e procura sobre o túmulo de Satanás, escreveu Filipe. Dante, o autor de A Divina Comédia e o criador do Inferno dos Infernos, é Satanás! Coño!, não é evidente?"

Sem perder tempo, a espanhola acercou-se do túmulo de Dante Alighieri e estudou-o. Era uma estrutura pesada, enquadrada por três estátuas, uma delas inclinada sobre o túmulo. Uma inscrição na base indicava Danti Aligherio.

"Não ouviste o que o monge franciscano disse?", perguntou Tomás.

"O túmulo de Dante, tal como os de Marconi e Fermi, estão vazios."

"E então?!", questionou ela. "Isso só reforça a minha ideia, aliás.

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Foi justamente por este túmulo estar vazio que Filipe o escolheu! Temos de abrir o túmulo de Dante! As ossadas dele não se encontram lá, mas o material que procuramos sim!"

Sem perder tempo, Raquel encavalitou-se sobre o túmulo e fez força para erguer a tampa de mármore, mas o português travou-a e puxou-a para baixo.

"Enlouqueceste?", perguntou num tom de repreensão. "O que diabo estás a tentar fazer?"

"A abrir o túmulo, ora essa!"

O historiador lançou um olhar em redor, para se certificar de que ninguém os estava a observar; os seus receios, porém, confirmaram-se, pois viu um monge encaminhar-se para eles com ar furioso.

"O que andam vocês aí a magicar?", questionou o monge. "Desça já daí, minha senhora!"

Apanhados em flagrante, Tomás e Raquel ficaram por momentos paralisados. O português foi o primeiro a reagir; recompôs-se de imediato e assumiu um ar doutoral.

"Somos da equipa de restauro", disse com voz surpreen-dentemente firme. "Viemos de Pisa."

O monge hesitou, desconcertado. .

"Ah! Mas... vocês não vinham restaurar o Giotto?"

"Claro que sim. Só que estamos também a fazer uma inspecção aos mausoléus. Se houver aqui algum problema, faremos o restauro sem encarecer o trabalho. Tudo incluído. Sabe como é, o patrão é muito católico e tem muito gosto em ser útil à nossa santa Igreja."

O franciscano esfregou as mãos, o semblante passando sucessivamente da cólera para a surpresa e depois para a satisfação.

"Ah, muito bem, muito bem!", condescendeu, desenhando uma cruz no ar diante de Tomás. "Que Deus vos abençoe, a vós e ao vosso patrão." Inclinou-se, muito atencioso. "Precisam de alguma coisa?"

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"Apenas de tranquilidade."

"Com certeza! Em caso de necessidade, chamem-me. Estou ali junto ao altar."

O monge virou costas e afastou-se, lançando olhares para trás. Os dois visitantes, conscientes de que estavam a ser vigiados, assumiram uma postura aparentemente profissional, como se inspeccionassem o estado do mármore do mausoléu de Dante.

"Excelente capacidade de improviso", elogiou Raquel logo que se sentiu mais à vontade. "Estou impressionada."

"Nada disto seria necessário se tivesses juízo", sussurrou ele em tom de repreensão. "Não se pode chegar a um sítio destes e começar a abrir túmulos, ouviste? Muito menos de personalidades como estas! Que ideia é essa de quereres abrir o túmulo de Dante, assim sem mais nem menos?"

"As ossadas de Dante não se encontram dentro do sepulcro, Tomás! Não há problema, o túmulo está vazio!"

"Não interessa! Tens de ter respeito, percebes?" Fez um gesto a indicar a pedra superior do túmulo. "Além do mais, isto é demasiado pesado para se abrir desse modo."

"Mas, Tomás, não percebes?", insistiu ela, indicando enfaticamente o túmulo de Dante. "Este túmulo está vazio! É obvio que foi por isso que Filipe o escolheu para esconder o DVD."

O português abanou a cabeça e indicou o bloco de notas que ela mantinha na mão.

"Lê a frase outra vez."

Sem entender o pedido, e muito menos o cepticismo dele, Raquel espreitou os apontamentos.

"Vai a Santa Croce e procura sobre o túmulo de Satanás", leu, levantando de seguida os olhos para o fitar com grande intensidade.

"Isto é muito claro." Apontou com insistência para o sepulcro. "Temos de procurar neste túmulo."

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"Procura sobre o túmulo de Satanás", repetiu Tomás. "Sobre o túmulo, não no túmulo ou dentro do túmulo. Entendeste? Não vale a pena abrires o túmulo porque não está nada lá dentro. O material que queremos está sobre o túmulo."

A atenção da agente da Interpol desviou-se de novo para o sepulcro de Dante Alighieri e fixou-se na estátua sobre o túmulo, mostrando um homem sentado de mão no queixo no topo, em pose pensativa.

"Achas que é aquela estátua que tem o material?"

O historiador encolheu os ombros, como se a resposta lhe fosse indiferente.

"Vai lá espreitar."

Raquel voltou a encavalitar-se sobre o túmulo e vasculhou por detrás da estátua no topo.

"Nada", constatou com desânimo. "Não está aqui nada." "Então desce."

A espanhola voltou a espreitar o topo do túmulo.

"Ouve, se calhar é melhor ver se está aqui no..."

"Desce!", ordenou ele com voz de comando. "Imediatamente!"

Ela obedeceu, mas não parecia contente.

"Olha lá, o que se passa contigo?", protestou quando voltou ao chão. "Não vês que temos de passar isto a pente fino? A busca tem de ser minuciosa."

Tomás abanou a cabeça com um movimento vigoroso. "Não é este o túmulo certo."

"Não?", admirou-se Raquel, cruzando Os braços e esboçando a expressão contrariada de uma menina mimada. "Então qual é, senhor Sabe Tudo? 1-lã? Diz-me, qual é?"

O historiador recuou de novo até ao centro da basílica e estudou os vários túmulos ao longo das duas paredes. Após uma pausa para reflexão, encaminhou-se para a parede direita e deteve-se diante do quarto túmulo, pousando a mão na placa com o nome.

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"É este."

A espanhola aproximou-se. Tratava-se de um túmulo simples, apenas com uma estátua, uma figura feminina sentada sobre o tampo com a mão direita a segurar um escudo redondo.

"Este?", admirou-se, ainda sem ver o nome esculpido na base.

"Porquê este?"

"Porque este homem, no seu tempo, era conhecido por Il Diavolo.

O Diabo." Arqueou os olhos. "Satanás."

O olhar de Raquel desceu para a placa na base do túmulo, tentando identificá-lo. O nome estava inscrito na segunda linha.

Nicolaus Machiavelli.

"Maquiavel?"

O historiador anuiu.

"A grande obra de Maquiavel, O Príncipe, foi denunciada repetidamente como uma criação do Diabo devido às suas teses amorais de que os fins justificam os meios e incluído no Index dos livros proibidos pela Igreja por ofender a ética cristã. O seu romance Belfagor arcidiavolo menciona até o Diabo explicitamente no título. Diz-se que o papa visitou Maquiavel no seu leito de morte e lhe perguntou se ele renunciava ao Diabo. Maquiavel não respondeu. O papa perguntou uma segunda vez, de novo sem obter resposta. À terceira, Maquiavel abriu os olhos e disse: 'Esta não é altura para fazer inimigos.'"

A espanhola mostrou os dentes, num sorriso forçado.

"E esta não é a altura para contar graçolas parvas", repreendeu-o. "Se Maquiavel é Satanás, onde está o material que Filipe escondeu?"

Foi a vez de Tomás se empoleirar no túmulo e tactear o espaço por detrás da estátua. Apalpou as costas da figura de pedra e só se deteve quando mexeu na parte de trás do escudo circular. Sentiu com a ponta dos dedos um objecto liso no verso do escudo e percebeu que estava colado por fita-cola. Arrancou a fita adesiva e retirou o objecto do 440




seu esconderijo.

Era um DVD.


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