LXVIII
A configuração da sala mudou quase instantaneamente. Como se fosse uma unidade orgânica que obedecia a uma ordem inaudível, a congregação, até aí voltada para a parede interior diante da qual fora montado o altar, movimentou-se para preencher os flancos e formou um círculo compacto em redor de Magus e dos dois recém-chegados, cortando assim qualquer via de fuga.
Sentindo em torno dele a força surda dos acólitos, o mestre-de-cerimónias era o senhor absoluto da situação. Com a soberba dos vencedores, estudou o casal visitante e, rodeando-o em passos lentos e medidos, abeirou-se do homem.
"Professor Noronha", ciciou. "Finalmente encontramo-nos cara a cara! O senhor, devo admiti-lo, foi um adversário valente e temerário.
Congratulo-me por isso. As suas capacidades de improvisação e a sua rapidez de raciocínio conseguiram mantê-lo fora do meu alcance muito mais tempo do que eu julgaria possível. É um feito digno de registo e está de parabéns." Abriu as mãos, num gesto de resignação.
"Mas, hélas!, todas as aventuras, mesmo as mais românticas, chegam ao fim." Apontou para o chão. "No seu caso, o fim é aqui, nesta sala dos Uffizi, às minhas ordens e sob a minha autoridade." Estendeu a mão com a palma para cima, como se pedisse alguma coisa. "Acabou-se a farsa, meu caro. Passe para cá esse famoso DVD."
O casal encapuzado permaneceu quieto e silencioso, como se nada tivesse entendido, ou sequer escutado, do que fora dito. A mão de Magus manteve-se estendida por um instante mais, à espera que lhe entregassem o objecto que procurava havia tanto tempo, mas acabou 454
por baixá-la perante a evidência de que o prisioneiro não ia acatar a ordem.
"Continuam os joguinhos, professor Noronha?", perguntou, a irritação a trepar-lhe pela voz. "Pois faz muito mal, porque o tempo para a brincadeira acabou." Voltou a estender a mão. "O DVD, professor Noronha? Aconselho-o a entregá-lo a bem."
O prisioneiro voltou a ignorar a ordem. Despeitado, Magus virou-se para a congregação que os cercava e procurou entre os rostos encapuzados.
"Balam, onde estás tu?"
Um acólito, por sinal um dos que se encontravam na primeira linha, abandonou a formação e abeirou-se do mestre-de-cerimónias.
"Aqui estou, poderoso Magus", disse o homem, de túnica branco-suja e capuz na cabeça, pondo-se em sentido quando chegou diante do responsável máximo. "Ao seu serviço."
O chefe fez um sinal na direcção do casal, como se O entregasse ao seu chefe de segurança.
"Sabes o que tens a fazer."
Balam assentiu prontamente e posicionou-se diante do par. Fez um sinal para os seus cúmplices e de imediato Mefistófeles e um outro acólito igualmente corpulento plantaram-se nas costas dos recém-chegados. A um segundo sinal, agarraram-nos por trás e prenderam-lhes os braços e o tronco, imobilizando-os.
"Larguem-me!", protestou a mulher, indignada. "Larguem-me imediatamente!"
Os acólitos, como era previsível, não os largaram. As reacções do par eram diferentes; o homem parecia paralisado, mas a mulher mostrava-se inconformada e só se calou quando viu Balam retirar um punhal do interior da túnica.
"Então, señorita Raquel de la Concha?", perguntou o chefe da segurança com a voz impregnada de sarcasmo. "Que se passa?"
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Esboçou um gesto com o punhal. "A minha laminazinha fez-lhe perder o pio? Se ela tem este efeito mágico só por aparecer, imagine como será quando começar a trabalhar..."
"O senhor... o senhor não se atreva!"
Balam aproximou a lâmina do capuz e passeou a ponta diante da cara tapada.
"Aqui quem dá as ordens não é a señorita!" , rosnou num tom ameaçador. "Sou eu e a minha laminazinha." O punhal rodopiou-lhe na mão. "Sabe que foi com esta queridinha que degolei o meu primeiro cordeiro nesta história? Na verdade foram dois cordeirinhos tenros, dois francesinhos que também resolveram armar-se em espertos.
Apanhei os idiotas em Nice e eles não ficaram para contar a história." Girou de novo a lamina entre os dedos, parecia uma ventoinha. "Com a minha amiguinha fiz os primeiros sacrifícios, com a minha amiguinha farei Os últimos." Imobilizou o punhal com a ponta voltada para a base do pescoço da mulher.
"Os vossos."
"Afaste essa faca!", protestou ela, o medo a espreitar pela voz.
"Isso é... isso é crime de homicídio na forma tentada!"
A observação arrancou uma gargalhada incrédula ao acólito e à congregação.
"Crime de homicídio na forma tentada!?", riu-se ele, quase a soletrar a frase e virando a cara em redor para comungar com os seus companheiros. "Olhem para a señorita da Interpol a falar caro, hem? Parece que está a testemunhar em tribunal, a idiota!" Fez uma careta e voltou a imitar o que acabava de ouvir. "Isso é crime de homicídio na forma tentada!" A risada prolongou-se por uns segundos mais e acabou por morrer. Nessa altura Balam fitou-a de novo, os olhos a chisparem, a lamina outra vez com a ponta colada à base do pescoço da mulher. "Acabou-se a reinação, cabra! Passa para cá o DVD!"
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A mulher projectou a cabeça para ele, numa postura de desafio.
"Não sei do que estás a falar, imbecil."
A resposta foi recebida por Balam como se a prisioneira tivesse cuspido nele. O chefe da segurança fez um sinal silencioso a Mefistófeles, que apertou a mulher com mais força. Nessa altura Balam colou o punhal ao pescoço dela e virou-se para o homem.
"Espero, para o seu bem e o dela, que o senhor seja mais inteligente, professor Noronha", disse num tom carregado de ameaças. "Onde está o DVD?"
O refém abanou a cabeça.
"Não o tenho."
"No entanto, disse esta tarde em tribunal que o iria apresentar amanhã de manhã."
"Ai disse?", devolveu o homem num tom sibilino. "Olhe, não o tenho."
"Não o encontrou?"
"Não."
"Nem sabe onde encontrá-lo?"
O homem não respondeu de imediato, vacilando quanto à resposta que deveria dar.
"Talvez."
"O que quer isso dizer?"
"Talvez quer dizer talvez."
Sem saber como prosseguir o interrogatório, se calhar até perdido no rumo que a conversa tomara, Balam deu um passo para trás e encarou o seu dirigente como se aguardasse ordens.
"Que faço, poderoso Magus?"
"Se o DVD não apareceu, é melhor que não apareça", retorquiu o mestre-de-cerimónias, atirando um olhar enfastiado para o casal à sua mercê. "Faz o que tens a fazer."
Os acólitos que seguravam os dois prisioneiros aplicaram-lhes um 457
golpe nas costas com os cotovelos e obrigaram-nos a ajoelhar-se, a cabeça inclinada para a frente. Balam foi buscar um banco de madeira e pousou a cabeça da mulher sobre a cadeira.
"Por te teres armado em parva, vais tu primeiro, minha linda", disse entre dentes. "E vou fazer de modo que morras devagar e com muita dor, ouviste?"
"Largue-me!", protestou ela. "Socorro!", berrou de repente.
"Ajudem-me!"
Balam e o resto da congregação riram-se.
"A berraria não te levará a sítio nenhum, grande palerma", escarneceu ele. "Já passa da meia-noite, os Uffizi estão por nossa conta. Podes berrar à vontade que ninguém te ouve!" Inclinou-se sobre ela e aproximou a boca do ouvido. "Aliás, até prefiro que grites.
Dá-me tusa, sabias? Parecem gritos de prazer..."
Uma nova gargalhada percorreu a sala.
"Ajudem-me!"
O chefe de segurança acocorou-se diante dela e pôs-se a estudar o melhor local para aplicar o primeiro golpe. Escolheu o ponto vulnerável mesmo na base do pescoço. Depois encostou a ponta aguçada do punhal ao sítio escolhido e preparou-se para premir a lâmina.
"Parem com isso!"
A ordem foi dada por uma voz que se ergueu do meio da multidão. Apanhados de surpresa, Balam, Magus e os acólitos viraram as cabeças na direcção de quem acabara de falar.
"Que se passa?", perguntou o mestre-de-cerimónias, tentando destrinçar o elemento da congregação que os interrompera. "Quem disse isso?"
A massa humana que rodeava os prisioneiros e os seus algozes começou a movimentar-se para abrir espaço e um dos acólitos, de túnica e rosto ainda tapado por um capuz, avançou para o espaço central.
"Fui eu", disse. Apontou para os dois prisioneiros ajoelhados 458
diante de Balam. "Não os matem."
Magus não estava a entender esta iniciativa inesperada de um dos seus seguidores.
"Ora essa! Porquê?"
O acólito pôs a mão sobre o capuz que lhe ocultava por completo as feições e puxou-o para trás, destapando-se. Um "oooh" surpreendido encheu a sala.
"Porque sou eu o Tomás Noronha."
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