XIX

Depois de parar à esquina da garagem para apanhar Alexandre, o carro esquadrinhou as ruas de Coimbra e virou na curva onde uma tabuleta branca com letras e linhas azuis indicava a auto-estrada e a direcção de Lisboa. Tomás ia calado ao volante, a atenção concentrada na condução, a mente a passar em revista o que na última hora acontecera no lar onde a mãe se encontrava.

"Gaja gira, hem?"

A pergunta de Filipe, feita num tom provocador, quebrou o silêncio no interior do Volkswagen.

"Quem?"

O amigo soltou uma gargalhada.

"Não te faças despercebido, Casanova!", atirou o amigo, usando a velha alcunha dos tempos do liceu. "Conheço-te de ginjeira."

O condutor não tirou os olhos da estrada.

"Estás a falar de quê?"

"Da senhora directora, de quem haveria de ser?" Estreitou as pálpebras, como se puxasse pela memória. "Como se chama ela?

Maria... Maria..." O olhar acendeu-se. "Flor, não é? Maria Flor."

Arqueou as sobrancelhas para cima e para baixo, peguilhento. "Uma brasa!"

"Oh! Não digas disparates!"

"Aqueles olhinhos de chocolate, aqueles lábios suculentos, aquele sorriso de sansardoninha... ui, a miúda estava mesmo a pedi-las!" Deu-lhe um empurrão amigável no ombro. "Ou me engano muito ou em breve vais fazer-te ao piso. Estou mesmo a ver o filme..."

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"Cala-te, pá!"

Filipe voltou a rir-se, divertido com a reacção do velho companheiro de tropelias do liceu. Sabia que tocara num ponto fraco e não tencionava largá-lo tão cedo.

"Diz lá que não achas a moça uma brasa?", atirou, sempre a provocar. "Hã? Ora diz lá, se és capaz..."

Tomás manteve os olhos fixos na estrada, sem sorrir, as mãos agarradas com força ao volante, o semblante de quem ia concentrado; não se sentia com vontade de brincar.

"Estou preocup ado com a minha mãe", acabou por desabafar, mudando o rumo à conversa. "Cortaram-lhe a pensão e estou no desemprego. Ou seja, há menos dinheiro e preciso de pagar o lar.

Vou ter de mexer nas minhas poupanças, que já não são muitas.

Como é que um gajo se safa?"

A pergunta não obteve resposta imediata. Filipe endireitou-se no seu lugar, o tema era sério, incompatível com o registo de graçola inofensiva com que falara da directora do lar. O carro entrou na auto-

-estrada e acelerou em direcção a Lisboa, proporcionando-lhes a pausa que o problema requeria.

"Nada disso vai melhorar, aviso-te já", disse por fim o amigo. "É

bom que te mentalizes."

"Não vai melhorar como? Achas que não arranjo emprego?"

"Arranjas, fica descansado. Todos os estudos mostram que as pessoas mais qualificadas conseguem safar-se em períodos de crise. O

desemprego atinge mais duramente aqueles que não têm estudos, não aqueles que os têm."

"Eu sei", disse o condutor. "Então porquê o teu pessimismo?"

Com os olhos postos nas casas espalhadas pelos montes ao lado da auto-estrada, Filipe passou a língua pelos lábios para os molhar.

"O meu pessimismo refere-se à pensão da tua mãe."

Tomás respirou fundo, consciente do problema.

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"Eu sei, é uma chatice", bufou. "Isto não vai para melhor. Ela trabalhou durante muitos anos, coitada. Descontou para a reforma a vida inteira, tem direito à pensão e... e... agora que precisa dela cortaram-na."

De novo sentado no banco traseiro, Alexandre inclinou-se para a frente.

"É uma injustiça o que estão a fazer aos idosos", protestou. "É

totalmente indecente!"

"Pois é", concordou Tomás. "Uma situação terrível. Há pessoas a passar muito mal."

"Temos de sair à rua e protestar", insistiu o passageiro que vinha atrás. "Temos de os obrigar a inverter esta política criminosa! O estado tem de assumir as suas responsabilidades e proteger as pessoas.

Temos de obrigar os políticos a aumentar os salários, a subir as pensões, a investir na saúde, na educação e na Segurança Social e a elevar as condições de vida de toda a gente."

"Isso era o ideal, sem dúvida", concordou Tomás. "O problema é que não é assim tão simples, não é verdade?"

"Só não é simples porque não queremos que o seja", afirmou Alexandre num assomo de indignação. "Basta tomar a decisão e assinar a lei, mais nada."

Apesar de abatido, o historiador não conseguiu reprimir um sorriso ténue.

"Ah, quem dera que fosse tão fácil..."

Por momentos calado, Filipe desviou a atenção do que se passava para além da berma da auto-estrada para se virar para trás e fitar Alexandre.

"Infelizmente a vida não é como queremos", sentenciou. "Ela é como é. Também eu gostava de viver para sempre e acho que a morte é uma injustiça. Mas por mais que proteste e esperneie, o facto é que vou morrer. A realidade é o que é, não o que gostaríamos que fosse."

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"Recuso-me a alinhar nesse discurso de resignação. Se a vida é como é, está ao nosso alcance mudá-la. O estado tem o dever de nos proteger a todos e não pode fugir a esse dever!"

Filipe riu-se.

"Já vi que você pertence ao Partido do Estado", ironizou. "Tem as quotas em dia?"

O rapaz fez um esgar de incompreensão.

"Perdão?"

"O Partido do Estado." Voltou-se para Tomás. "Sabes quantos militantes tem, não sabes?"

"Então não sei?", devolveu o condutor com uma expressão conhecedora. "Ora deixa cá fazer as contas." De sobrolho erguido pôs-se a reflectir em voz alta: "O Partido do Estado é constituído por todas as pessoas que dependem do estado, não é verdade? São setecentos mil funcionários das administrações central, regionais e municipais, três milhões e meio de pensionistas, mais de um milhão de desempregados e outro milhão de pessoas que auferem diversas prestações sociais e regalias, coisas que pesam no erário público." Endireitou as sobrancelhas. "Dá seis milhões de pessoas. É o maior partido de Portugal."

Filipe voltou a encarar Alexandre.

"Você já viu?", perguntou. "Isto significa que sessenta por cento dos Portugueses vivem graças ao dinheiro dos contribuintes.

Funcionários públicos, pensionistas, desempregados, pessoas que ganham o rendimento social de inserção, doentes, os muitos membros das clientelas partidárias e todos os que recebem os mais diferentes subsídios e prestações sociais."

"E então?"

"E então? Sabe qual é a percentagem das receitas fiscais gastas pelo estado em pessoal e prestações sociais?" Fez uma pausa para preparar a revelação do valor. "Em 2010 eram noventa e seis por cento."

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"Noventa e...?" Alexandre ficou de boca aberta. "Mas isso é... é quase todo o dinheiro!"

"Pois é! Praticamente todo o dinheiro que os impostos arrecadam em Portugal é derretido em salários, pensões e subsídios das pessoas que vivem à custa do estado."

"E as obras financiadas pelo estado? As auto-estradas, os hospitais, as escolas... as outras despesas todas? De onde vem o dinheiro para pagar isso?"

"Do futuro", respondeu Filipe. "Através das PPP, remetendo o pagamento das obras para um futuro que aliás já chegou, ou pedindo dinheiro emprestado ao estrangeiro, outro futuro que também já chegou, uma vez que estamos neste momento a pagar esses empréstimos a juros incomportáveis. A dívida externa líquida do país passou de cerca de quarenta por cento do PIB em 2001 para cento e dez por cento do PIB quando o FMI cá chegou, dez anos depois, um crescimento médio de doze mil milhões de euros por ano. Ou seja, Portugal passou a sustentar-se com dinheiro que não produzia. É por isso que se diz que vivemos acima das nossas possibilidades. A massa que o estado recebe dos impostos vai toda para as despesas com pessoal e prestações sociais. Não sobra nada."

Sempre de olhos postos na estrada, Tomás abanou a cabeça com tristeza.

"Estão a ver o filme, não estão?", perguntou com sarcasmo.

"Não cortaram as despesas para não perder votos..."

"É evidente. O Partido do Estado tem muita força, meus caros.

Esta situação insustentável era do perfeito conhecimento dos governantes e dos partidos da oposição, não tenham dúvida disso. O

problema é que todos querem ser eleitos e, como sabem, cortar na despesa não dá votos a ninguém. Uma vez que o Partido do Estado soma seis milhões de eleitores, quem der mais dinheiro a quem vive à custa do estado acaba por ganhar mais votos. Entrámos assim numa 150


espiral despesista sem retorno."

Estas palavras foram acolhidas com um gesto de impaciência de Alexandre.

"Isso é tudo conversa neoliberal", considerou. "Essas profecias da desgraça não alimentam ninguém e apenas reflectem uma visão economicista das coisas."

A observação arrancou uma gargalhada a Filipe.

"Ora aí está um discurso típico de quem vive à custa do Partido do Estado", observou. "Sempre que alguém se atreve a fazer contas e a mostrar que algo é economicamente insustentável é de imediato apelidado ńeoliberal´, 'pessimista' e 'profeta da desgraça', um 'economicista' que 'não alimenta a esperança'." Fez um aparte.

"Por 'economicista' entenda-se alguém que sabe somar números e percebe que a realidade não se sustenta em fantasias, claro, e por 'alimentar a esperança' entenda-se 'alimentar a ilusão'." Retomou o tom normal. "Confrontados com a dura e desagradável realidade dos números, o que fizeram os nossos distintos líderes? Disseram: 'Há vida para além do Orçamento!' E assim desvalorizaram o problema e tiraram o tapete de debaixo de quem tentava lidar com ele. Esta lógica atingiu o cúmulo em 2009, já depois do colapso financeiro na América, quando o governo, pouco antes das eleições, baixou o IVA e aumentou os salários da função pública quase três por cento."

"Pois foi", lembrou-se Tomás. "Ganharam as eleições."

"Então não haviam de ter ganho? Quem satisfaz o Partido do Estado ganha." Afinou a voz. "O problema é que a economia não aguenta todo esse despesismo populista. Nos dez anos até 2011, quando o FMI chegou a Portugal para pôr fim ao regabofe, as despesas sociais cresceram mais de dois por cento, enquanto o PIB apenas cresceu..."

"Zero vírgula três por cento", completou o historiador. "Sim, já 151


tinhas dito."

"Essa disparidade entre o forte crescimento da despesa social e o débil crescimento da economia não é despiciendo, meus caros."

"Com certeza que não", admitiu Tomás. "Só se pode distribuir a riqueza que se tem. Se não se cria riqueza, não se pode distribuí-la. Isso é evidente."

"É evidente para ti e para qualquer pessoa que pare dez segundos para pensar no assunto, mas pelos vistos não foi evidente para os génios que nos governaram durante anos e anos. Eu sei que muitas pessoas vivem com dificuldades tremendas e precisam mesmo de ajuda, mas o estado social não se decreta à revelia da economia.

Para se distribuir riqueza é preciso criá-la primeiro. Os estudos mostram até que o crescimento da dívida pública é inversamente proporcional ao crescimento da economia. Ou seja, quanto mais dívida pública menos crescimento económico, e vice-versa. Acontece que as despesas sociais aumentaram a taxas médias sete vezes superiores às do crescimento económico entre 2001 e 2011, assim descontrolando a dívida pública, e esses cérebros ímpares foram incapazes de fazer uma simples conta de aritmética e perceber que nos estavam a conduzir ao caos. Não só a economia portuguesa não consegue suportar este nível de despesa como foi aniquilada por ele. Como era preciso ganhar votos a todo o custo, o Partido do Estado foi sendo alimentado com mais e mais dinheiro. Para isso revelou-se necessário aumentar os impostos a ponto de o seu peso se tornar proporcionalmente o maior da Europa, considerando o rendimento médio da população. Assim foram estranguladas e atiradas para a falência as empresas que criavam riqueza, o que fez aumentar o número de desempregados e os encargos do Partido do Estado, obrigando a subir impostos, o que asfixiou ainda mais a economia e levou mais empresas à falência, lançando mais trabalhadores para o desemprego, num ciclo vicioso sem fim."

"O curioso é que o discurso ao longo deste tempo todo foi o da 152


defesa do estado social..."

"Pois, mas com esta política os governantes tornaram-no insustentável. Os mesmos que falavam em defender o estado social eram aqueles que mais faziam para o destruir. Portugal tem a maior dívida externa desde 1892, a maior dívida pública dos últimos cento e sessenta anos, o maior número de desempregados na sua história e o pior crescimento económico desde a Primeira Guerra Mundial. Com números deste gabarito, como raio é possível sustentar o estado social que criámos?"

O olhar de Tomás desceu para o contador do combustível no tablier do Volkswagen. Já não tinha muita gasolina e em breve teria de entrar numa estação de serviço para reabastecer o carro.

Aproveitando a pausa, Alexandre quebrou o silêncio a que se havia remetido.

"O problema do défice das contas públicas resolve-se com crescimento económico", sentenciou. "Se crescermos, abatemos o défice."

Filipe virou dois dedos na direcção do passageiro do banco traseiro.

"Há duas maneiras de resolver o problema do défice", indicou.

"Ou se corta a despesa ou se aumenta a receita. O aumento da receita vem, claro, dos impostos. O problema é que o aumento dos impostos reduz o investimento e provoca falências, pelo que só resulta a curto prazo. A única maneira de aumentar as receitas dos impostos de uma forma sustentável é de facto produzir crescimento económico." Suspirou. "O que se passa, meu caro, é que não estamos a ter crescimento económico, pois não?"

"Zero vírgula três por cento de crescimento médio anual nos dez anos até à chegada do FMI", repetiu Tomás. "É bom nunca esquecer esse número. É muito revelador."

"Ou seja", insistiu Filipe, "quando um político que gasta muito diz 153


que a solução é o crescimento económico, o que está de facto a dizer é que não vai fazer nada para resolver o problema. Lembrem-se que os estudos mostram que o crescimento da dívida pública é inversamente proporcional ao crescimento da economia. Se o governante desequilibra as contas públicas, como pode querer que haja crescimento económico? Isso é mesmo para enganar papalvos."

Alexandre não se deixou vencer.

"Pode incrementar o crescimento económico..."

"Como?"

"Injectando dinheiro na economia."

"Qual dinheiro? Não há dinheiro! Além do mais, insisto que nas últimas décadas têm sido injectados milhares de milhões de euros na economia portuguesa e quase não houve crescimento económico." Fez um esgar, pensativo. "Talvez se pudesse baixar o IRC, como fez a Irlanda nos anos noventa, mas isso só seria eficiente com outras reformas impopulares, como tornar mais fáceis os despedimentos, de modo que quem tenha dinheiro queira abrir empresas em Portugal e assim criar riqueza."

"A lei laborai já foi flexibilizada em 2012."

"É verdade. Mas é ainda preciso fazer outras coisas que o poder não tem conseguido ou querido mudar, como tornar a justiça célere e eficiente, desburocratizar o país a sério, combater a corrupção com legislação eficiente, manter as leis fiscais simples e estáveis durante muito tempo... enfim, um rol de reformas susceptíveis de tornar o investimento interessante e seguro. Qual é o investidor estrangeiro que quer investir em Portugal e assim criar emprego se vê que os impostos lhe comem os lucros, que são precisos quatro anos para obter uma licença, que tem de contratar os arquitectos e os construtores amigos dos governantes ou dos autarcas para conseguir que lhe aprovem os projectos, que se tiver de processar alguém o assunto se arrastará quinze anos nos tribunais? Ninguém mete dinheiro num país assim!

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Existe, porém, um grande medo de mudar e uma ideologia contra os empresários em Portugal que dificulta a alteração deste estado de coisas.

Além do mais, os próprios empresários portugueses são em geral fracos e pouco ambiciosos, fruto do nosso débil sistema de educação."

"Não tenha dúvida de que os empresários têm grandes culpas no cartório."

Filipe fez uma careta.

"Sem dúvida", reconheceu. "Mas não são só eles. Além do mais, e para lá da enorme dívida pública, existe uma dificuldade muito mais séria a travar o nosso crescimento."

Meteu a mão ao bolso e extraiu uma caneta. Virou o envelope que não largara desde que havia chegado a Portugal e, na face limpa, rabiscou uma equação.


Δ PIB = Δ População + Δ Produtividade


"Isso é um delta", constatou Tomás, reconhecendo o triângulo do alfabeto grego. "Significa variação, não é?"

"Isso mesmo", confirmou o amigo. "A variação do PIB depende da variação da população e da variação da produtividade." Pousou a ponta do dedo na última palavra da equação. "Comecemos pela produtividade."

Voltou-se para Alexandre. "O que é uma pessoa pouco produtiva?"

O passageiro do banco traseiro riu-se; a resposta parecia-lhe óbvia.

"É alguém que trabalha pouco, claro."

Voltando a meter-se na conversa, Tomás abanou negativamente a cabeça.

"Errado", disse o historiador. "Uma pessoa pode trabalhar com uma dedicação intensa durante quinze horas por dia e ser pouco produtiva, enquanto outra pessoa pode trabalhar apenas duas horas e ser muito produtiva."

A correcção surpreendeu Alexandre.

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"O quê?!", contestou. "Que disparate!"

"Pode acreditar", insistiu Tomás. "A produtividade refere-se ao valor do produto criado pelo trabalho, não à quantidade de trabalho. Os Portugueses, por exemplo, trabalham mais do que os Alemães, mas são menos produtivos. Porquê? Porque enquanto um português gasta trinta dias de trabalho para produzir cem garrafas de vinho de dez euros cada, um alemão gasta vinte dias para produzir um Mercedes. Só que o Mercedes vale cem mil euros, enquanto as cem garrafas de vinho valem mil. Ou seja, e apesar de ter trabalhado menos dez dias, o alemão é mais produtivo porque o produto que ele fabricou vale mais do que o produto do português."

"Nem mais", concordou Filipe. "Acontece que, para termos crescimento económico, precisamos de aumentar a produtividade, isto é, temos de fazer coisas de maior valor para o mercado internacional. O

problema é que o nosso sistema de educação é fraco, com índices baixíssimos de aproveitamento em Matemática, e as pessoas não estão a aparecer convenientemente qualificadas nas áreas científicas e tecnológicas."

"Sim, e o estado apenas ajuda o sector de bens não-

-transaccionáveis, enquanto o sector de bens transaccionáveis, que é o que produz a riqueza, ficou ao abandono", apressou-se Tomás a acrescentar. "Além do mais, os estudos mostram que o investimento privado cria mais riqueza do que o investimento público, mas em Portugal o estado faz crowding out do dinheiro da banca, deixando pouco para os privados. Sem dinheiro os privados não investem. Sem investimento... adeus crescimento!" Acenou como se se despedisse. "Temos de aumentar a produtividade se quisermos ter crescimento económico."

Filipe apontou para a equação que redigira no envelope que segurava com os dedos.


Δ PIB = Δ População + Δ Produtividade


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"Atenção que a produtividade é apenas um dos elementos da equação", lembrou. "O outro é a população. Se queremos ter crescimento económico, precisamos de crescimento populacional."

O historiador fez com a mão um gesto vago no ar.

"Qual crescimento populacional?", perguntou. "A população portuguesa está a diminuir! À entrada da década de 2010, por exemplo, cada casal em Portugal tinha em média um vírgula três filhos, muito abaixo dos dois vírgula um necessários para garantir a substituição das gerações. Pior ainda, nessa mesma altura as populosas gerações do pós-guerra entraram em idade de reforma, engrossando drasticamente o número de pensionistas no país. Não estamos a ter crescimento populacional, mas decréscimo."

"O que quer dizer que há menos população activa a produzir riqueza para distribuir pela crescente legião de velhos, com as suas reformas e cuidados de saúde caros", atalhou Filipe. "E, como muito bem observaste, o índice de natalidade baixou dramaticamente.

Vinte e seis por cento da população portuguesa no início da década de 2010 era idosa, um valor verdadeiramente astronómico.

Prevê-se que essa taxa atinja em 2050 quase os sessenta por cento."

Alexandre passou a mão pelo cabelo.

"A sério?", escandalizou-se. "Sessenta por cento da população será idosa?!"

"Pois é! Quem é que vai pagar as pensões e os cuidados de saúde cada vez mais caros dessa malta toda? Como é possível ter crescimento económico nessas condições? Repare que a economia pode crescer apesar do problema demográfico, mas para isso seria necessário que a produtividade fosse alta, da mesma maneira que é possível crescer com produtividade baixa, desde que o crescimento demográfico seja grande. Porém, não é possível crescer com baixa produtividade e recuo demográfico."

"A culpa aqui não é só dos políticos", observou Tomás. "A culpa é 157


de cada um de nós, que evita ter filhos. Estamos a cavar a nossa própria sepultura!"

"Em última instância, nós é que somos os verdadeiros culpados de tudo o que se está a passar", concordou Filipe. "Nós é que votamos em políticos que aumentam a despesa, nós é que passamos a vida de mão estendida para o estado, nós é que não estamos a garantir a substituição das gerações e andamos a construir um futuro de velhos."

"Por vezes tendemos a ignorar a história das coisas e fazemos mal", disse o historiador. "É preciso ter presente que as premissas do estado social foram estabelecidas nos anos cinquenta, numa altura em que havia poucos velhos e a esperança de vida era de sessenta e cinco anos. Estabeleceu-se essa idade de reforma na convicção de que pouca gente viveria mais do que isso. Mas com a melhoria das condições de vida e os avanços da medicina a esperança de vida aumentou. Entre 1960 e hoje ela cresceu quinze por cento em Portugal. Além do mais a natalidade caiu. Com a inversão da pirâmide etária, o sistema está à beira de se desmoronar."

"Lá diz o velho princípio de economia", insistiu Filipe, "o que é insustentável não se sustentará."

Os olhos de Tomás largaram a auto-estrada e fixaram pelo retrovisor o companheiro de viagem do banco traseiro.

"Daí que estejam a cortar a pensão à minha mãe, percebeu?"

Sentado ao seu lado, o velho amigo do liceu apontou-lhe o indicador.

"Estás preocupado com a tua mãe?", admirou-se Filipe. "Devias era estar preocupado contigo!" Pousou a mão no peito. "E comigo."

Indicou Alexandre atrás. "E com ele. A tua mãe ainda tem gente que cria alguma riqueza que lhe é entregue em forma de pensão de reforma, mesmo com um corte como o que agora ela sofreu. Os idosos queixam-se hoje destes cortes, que são realmente frios e cruéis, mas o que eles estão a passar não é nada comparado com o que 158


nós vamos passar. Em 1960 havia cem jovens para cada vinte e sete idosos, agora há cem jovens para cerca de cento e trinta idosos. Quem vai criar riqueza para nos pagar a reforma quando chegarmos a essa idade e metade da população do país for velha como nós? Quem?"

"Só se for a imigração em massa", retorquiu Tomás. "De outra maneira..."

"Só se for a imigração", assentiu Filipe, balouçando afirmativamente a cabeça. "Embora apenas os imigrantes pouco qualificados estejam interessados em vir para este país, claro. Como é bom de ver, esses criam pouca riqueza.", Fixou o olhar na vegetação que corria à berma da estrada. "O importante, meus caros, é perceber que não temos de momento condições para combater o défice pela via do crescimento económico. Assim sendo, só podemos enfrentar o problema do défice através da redução da despesa e de reformas estruturais, que são penosas mas que nos tornam competitivos a médio ou longo prazo. Os países escandinavos e a Alemanha, que produzem muito mais riqueza do que nós e apesar de tudo dispõem de maiores taxas de natalidade, em vez de se meterem na conversa fiada do crescimento económico para nada fazerem já cortaram a sério no seu estado social e nos salários.

Também é esse, receio bem, o nosso caminho."

A observação era sombria, mas Tomás não parecia perturbado. A sua preocupação, na verdade, já era outra. Apercebeu-se da saída para a estação de serviço de Pombal e de imediato virou o volante e abandonou a auto-estrada.

Tal como a economia, o depósito de combustível tocara no fundo.







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