LII
O comboio partiu perto das onze da noite da estação de Sants com destino a Roma e com paragens consecutivas ao longo do caminho, incluindo Florença. O itinerário seguia a linha de costa do Mediterrâneo até Itália, mas, e como era noite cerrada, não havia qualquer possibilidade de apreciarem a paisagem.
"Esta viagem vai ser uma estucha", queixou-se Raquel, ajeitando-se no assento e preparando-se para muitas horas de monotonia. "Se era para viajar durante toda a noite não podias ao menos ter comprado bilhetes nos beliches? Sempre conseguíamos dormir e...", piscou o olho verde, "...fazer mais alguma coisinha."
Tomás riu-se.
"Sua marota, pensas que não pensei nisso?", perguntou com uma 340
expressão cúmplice. "O problema é que estava tudo cheio." Esboçou com os braços um gesto de resignação. "Lá em Atocha disseram-me que, ou ficava com estes lugares, ou nem sequer entrávamos no comboio.
Não tive outro remédio."
A espanhola correu o interior da composição com o olhar; de facto o comboio ia apinhado de gente. A maior parte eram jovens com mochilas e sacos-cama, provavelmente a fazerem o InterRail, mas viam-se também algumas famílias e adultos solitários ou em pares. Havia até duas freiras nos bancos ao lado, com toda a probabilidade a caminho de Roma; tinham guardado nas prateleiras sobre os assentos um saco mal fechado com hábitos brancos a espreitarem do interior.
O tédio arrancou a Raquel um suspiro enfadado. Aborrecida, virou-se para a janela; lá fora estava tudo negro, não havia hipótese de ver fosse o que fosse a não ser alguns pontos luminosos, decerto barcos a cruzarem o mar.
"Convinha preparares-me para o que se vai passar em Florença", acabou ela por dizer. "Seria útil estar dentro de todo o dossiê, não achas?"
"O que queres tu saber?"
Era o que Raquel pretendia ouvir. Sem perder tempo, endireitou-se no lugar e olhou-o com intensidade.
"O euro vai ou não acabar?", perguntou de chofre. "Vamos ou não sair da moeda única? Afinal o que irá acontecer? Esta tarde falaste que te desunhaste, mas não respondeste a estas perguntas..."
Foi a vez de Tomás se ajeitar no assento; o que ela desejava saber não eram coisas de somenos.
"Estás a levantar questões diferentes", constatou. "Com-plementares, é verdade, embora diferentes."
"Sim, mas qual é a resposta?"
O historiador cruzou a perna e pôs-se à vontade.
"O euro irá acabar?", perguntou em tom retórico. "A crer na 341
história, sim. Todas as uniões monetárias criadas no passado sem estarem assentes num estado centralizado fracassaram." Fez com a mão um gesto peremptório. "Todas."
Não era a resposta que Raquel queria ouvir. A espanhola cerrou os dentes e cravou os olhos no companheiro de viagem.
"Esquece o passado", disse. "O euro é diferente de tudo o que foi criado até agora, não é verdade? Se a sua arquitectura for sólida, o que impede a moeda única de ser bem-sucedida?"
"O problema é que a arquitectura não é sólida. Todos os estudos mostram que as áreas monetárias de sucesso têm em comum vários factores determinantes: a mobilidade da força laborai, a flexibilidade de preços e salários, taxas semelhantes de inflação, abertura e diversificação das economias individuais, integração financeira, integração orçamental e integração política. Quando um ou mais destes elementos falha, a estrutura do edifício começa a ceder."
"Bueno... realmente falta-nos um ou outro desses elementos..."
Tomás soltou uma gargalhada.
"Um ou outro? Falta-nos metade, Raquel! Metade! Sabes qual é a mobilidade da força laborai na zona euro? Zero vírgula um por cento! Ou seja, nada. Enquanto nos Estados Unidos um choque económico regional é absorvido pela transferência de trabalhadores para outras regiões do país onde a situação é melhor, na zona euro um choque num país não provoca mobilidade laborai para outro, mas desemprego. E ai do governante que se atreva a sugerir mobilidade da força laborai, é logo acusado de querer desertificar o país! Por outro lado, a flexibilidade de preços e de salários é inexistente na zona euro e o mesmo se pode dizer da integração orçamental e da integração política. Enquanto a América tem uma moeda que coincide com um único estado nacional e a sua população fala uma língua comum e goza de uma cultura partilhada, a zona euro não dispõe de nada disso. Os Americanos usam transferências orçamentais para corrigir desequilíbrios, de tal maneira que Nova Iorque paga para ajudar o Oregon, 342
por exemplo. As transferências internas americanas eliminam quarenta por cento do declínio nos rendimentos regionais. Na zona do escudo português, Lisboa pagava para ajudar o Alentejo c, na zona da peseta espanhola, Madrid pagava para auxiliar a Andaluzia. Na zona euro, contudo, nada disso é possível. Se Berlim aceitar pagar para ajudar a Grécia, terá de enfrentar uma rebelião do Bild Zeitung e da população alemã. As pessoas não são solidárias na zona euro porque não têm um sentimento nacional, alimentado por uma língua e uma cultura comuns. Os Alemães estiveram dispostos a ajudar Dresden na reunificação alemã, mas não aceitam ajudar Atenas na unificação europeia."
Raquel baixou a cabeça, esmagada pela evidência. "Pois, tudo isso é verdade."
"Por isso, e a crer em todos os estudos sobre áreas monetárias, o destino do euro está traçado. A moeda única como a conhecemos vai acabar."
A espanhola lançou-lhe um olhar de súplica, quase como se fosse ele o detentor do poder de resolver as insanáveis contradições do euro.
"Mas, Tomás, não haverá uma única hipótese de o euro se aguentar?
Nem uma única?"
O historiador respirou fundo. A responsabilidade que Raquel lhe atribuía, de salvar o euro, era muito maior do que os seus ombros podiam suportar.
"Está a ser feito uni esforço nesse sentido", acabou por dizer. "O
caminho é estreito, e, se tudo for bem executado, o euro sobreviverá. Mas não sei se há estômago para fazer o que tem de ser feito."
O rosto da espanhola contraiu-se numa careta. "O que é preciso fazer?"
"A crise da dívida apanhou a zona euro numa terra-de-ninguém onde ela não pode continuar. Os países têm uma moeda comum mas não partilham um orçamento comum, não respeitam as regras financeiras que eles próprios acordaram nem têm uma governação 343
política centralizada. É uma receita para o fracasso. Os Alemães já perceberam isto e estão a tentar dar um passo em frente: estabelecer penalizações para quem viole as regras financeiras e impor que os orçamentos nacionais requeiram luz verde de Bruxelas para ser aprovados, de modo a criar assim um esboço de orçamento comum.
O curioso é que os países do Club Med, que se afirmam empenhados na sobrevivência do euro, estão a resistir a estas medidas destinadas justamente a salvar o euro. Um contra-senso total."
"E com razão", contrapôs a espanhola. "O orçamento de Espanha tem de receber autorização de Bruxelas? Mas afinal quem manda no meu país? Os Alemães?"
Tomás riu-se.
"Esse é justamente o problema", observou. "Os países do euro querem o euro mas não querem as medidas que viabilizam o euro!
Todos os estudos mostram que uma moeda só funciona num estado com poder centralizado em que haja unidade financeira, orçamental e política. Se os países não estão dispostos a ceder soberania nesses três pontos, o euro não é possível! Ponto final. Entendes isso?"
"Não é possível como? O euro tem sido possível até agora!..."
"Porque até agora os tempos eram bons, já te disse! O teste a uma moeda faz-se nos tempos maus, não quando tudo corre de feição. Acontece que estamos justamente a viver tempos maus e, surpresa! surpresa!, as contradições emergiram e o euro não está a resistir. Temos de fazer uma escolha. Ou damos um passo em frente ou voltamos para onde estávamos antes do euro. Nesta terra-de-ninguém é que não podemos continuar!"
Raquel suspirou, resignada.
"Muy bien, suponhamos que damos mesmo o passo em frente e perdemos mais soberania. O euro salva-se?" O português torceu os lábios.
"Mesmo assim, não sei. Abriu-se uma fenda na zona euro entre 344
países credores e países devedores. Há sobretudo dois problemas suplementares que será necessário resolver. Em qualquer espaço monetário a periferia perde poder para o centro, mas tem de obter algo em troca: transferências orçamentais. É isso que acontece na América e em qualquer país que tenha uma moeda. Nova Iorque transfere dinheiro para o Oregon, Londres para o Sussex. Para que a zona euro seja viável, os Alemães terão de dar um salto mental e aceitar retomar transferências para a periferia de modo a compensá-la pela perda de poder. Será que darão esse salto?"
"Tenho dúvidas..."
"Se não derem, é um problema sério. O segundo problema não é económico, mas político. Relaciona-se com a legitimidade democrática dos decisores. O euro é sobretudo um projecto político. Foi criado para atar a Alemanha e assegurar a paz na Europa, certo?"
"Claro, já explicaste isso. O euro garante a paz."
"Se assim é, por que razão andam a queimar bandeiras alemãs em Atenas? A troca de insultos entre Alemães e Gregos é uma coisa muito grave e mostra, para quem tivesse dúvidas, que o euro não está a ser o garante da paz, mas uma vulnerabilidade que provoca ameaça de guerra. Este problema é muito sério e tem de ser resolvido para que a moeda única não fracasse. O nó górdio encontra-se na legitimidade dos decisores. Como é possível numa democracia que um poder governe pessoas sem que elas tenham oportunidade de votar nele? Ou seja, com a transferência de poderes para o centro, o que se passa é que os governantes alemães começam a governar de facto os Portugueses sem que os Portugueses tenham tido uma palavra a dizer na eleição desses governantes alemães. Isso não pode ser. Será preciso que toda a população da zona euro tenha oportunidade de votar em quem de facto a governará. Isto significa que a zona euro terá de se tornar uma federação e qualquer político europeu se poderá candidatar a seu líder executivo, fazendo 345
campanha na Alemanha, em França, Portugal e na Itália da mesma maneira que os candidatos a presidente dos Estados Unidos fazem campanha na Florida, no Connecticut, no Ohio e no Texas."
Raquel mergulhou os dedos no cabelo e massajou o couro cabeludo.
"Tudo isso é muito complexo", desabafou. "Achas que só nessas condições o euro será viável?"
"Não vejo outra maneira. Se não se lidar com estes problemas todos, o euro entrará em colapso de um momento para o outro.
Pode levar anos ou pode ser já amanhã, mas acabará por cair ou por se fracturar. As contradições têm de ser resolvidas."
"Imaginemos que as debilidades são desfeitas e o euro sobrevive", sugeriu a agente da Interpol. "Os problemas de Espanha e de Portugal e de toda a periferia são superados?"
O historiador cruzou os braços e, inclinando a cabeça para o lado, fitou um longo momento a sua interlocutora.
"A primeira coisa que tens de interiorizar é que não há milagres", disse. "Uma análise a mais de duzentas crises bancárias seguidas de crises da dívida permite-nos tirar algumas conclusões claras. Quando as taxas de juro de uma dívida gigantesca ficam maiores que a taxa de crescimento da economia, como está a acontecer no Club Med e noutros países, os empréstimos já não conseguem ser pagos. Nesses casos, as crises da dívida terminam com uma desvalorização da moeda ou dos custos de trabalho, ou com uni default. Independentemente do que os demagogos digam, qualquer destas soluções é dolorosa e envolve muita austeridade.
Não se conhece um único caso na história em que um desendividamento seja feito sem austeridade. Nem um."
"Portanto, a austeridade é inevitável."
"Infelizmente, sim. Repara, desde o aparecimento do euro e até à crise das dívidas soberanas, a Alemanha tornou-se trinta por cento mais produtiva que a Grécia. Quer isto dizer, e por incrível que 346
pareça, que produzir um bem na Grécia custa trinta por cento mais do que produzi-lo na Alemanha. O que é válido para a Grécia é válido para a generalidade do Club Med, embora com percentagens diferentes consoante os países. Para neutralizar a diferença em relação à Alemanha, e não podendo desvalorizar a moeda nem querendo avançar para o default, o Club Med terá de baixar significativamente os custos do trabalho, o que, receio bem, significa redução de salários. Como os salários descem, o consumo desce e as receitas fiscais também, o que provoca recessão e mais défice, obrigando a baixar ainda mais os salários, o que provoca nova queda do consumo e das receitas fiscais e assim sucessivamente."
"Mas desse modo entra-se num ciclo vicioso..."
"Pois é, mas qual a alternativa? O ajustamento, receio bem, é sempre doloroso e não há soluções boas." Ergueu a mão para sublinhar o ponto. "Vou repetir: não há soluções boas. Digam os demagogos o que disserem, lembra-te de que se chegou a um ponto em que não há soluções boas. A opção diante do Club Med e de todos os países excessivamente endividados são soluções muito más e soluções péssimas. Não existem milagres nem varinhas mágicas, todos os caminhos estão pejados de espinhos. O estudo de mais de duzentas crises bancárias seguidas de crises de dívida mostra que o ajustamento, qualquer que seja o caminho seguido, é sempre doloroso e o desendividamento nunca é feliz. Nunca. São sempre precisos vários anos para desendividar uma economia e o desemprego cresce em média durante quatro anos seguidos, enquanto o crescimento económico permanece anémico em média durante uns seis ou sete anos. Ao longo desse período há menos crédito disponível e o investimento privado é muito baixo."
"Portanto, os problemas de Portugal e de Espanha não desaparecerão em breve..."
"Com certeza que não."
"Nem se o Club Med sair da moeda única?"
A pergunta era importante, crucial mesmo, e Tomás levou um momento 347
a equacionar a melhor forma de lhe responder.
"Para determinar uma coisa dessas, temos de ler correctamente a situação", acabou ele por dizer. "Por exemplo, a economia portuguesa está muito desequilibrada porque andou sempre a importar muito mais do que a exportar. Para a reequilibrar é melhor estar no euro ou fora dele?"
Raquel estreitou as pálpebras, ponderando a resposta correcta.
"Estar no euro parece-me melhor", acabou por responder. "A moeda única funciona como uma fortaleza e protege-nos das tempestades."
"Ai sim? Então porque não protegeu?"
A espanhola hesitou.
"Quer dizer... de certo modo protegeu, não protegeu? Olha para o que aconteceu à Islândia. Os Islandeses foram imediatamente arrasados pela crise financeira e nós não. O mesmo sucedeu com os países bálticos."
"É verdade", assentiu o historiador. "Mas onde estão os Islandeses agora? A recuperar. Onde estão os bálticos agora? A recuperar. E onde estamos nós?"
A pergunta ficou a flutuar no ar, perversa e insinuante, fazendo o seu caminho na mente de Raquel.
"Achas que é melhor estar fora do euro?"
Tomás enlaçou as mãos, ganhando balanço para atacar o problema.
"Como sabes, os desequilíbrios que estamos a sofrer sempre existiram nas nossas economias", lembrou ele. "É frequente importarmos mais do que exportamos e volta e meia temos de corrigir essa situação. Se assim é, por que razão está esse processo agora a ser mais difícil? Qual a diferença em relação ao passado?"
"O euro?"
"A diferença, minha linda, é que já não controlamos a nossa moeda", disse Tomás, respondendo à sua própria pergunta. "Repara, tal como as pessoas, os países não produzem tudo o que consomem.
Produzem umas coisas que vendem ao exterior e, com o dinheiro que ganham, compram o que não produzem. Sempre que as importações 348
excedem as exportações, qual é a solução? Baixar os custos dos nossos produtos para os tornar mais apetecíveis e assim venderem-se melhor. Mas como se baixam esses custos?"
"Baixando os salários, já o explicaste."
Tomás abriu as mãos, num gesto resignado.
"Infelizmente, assim é!", concedeu. "Há uma subtileza, no entanto, que tens de entender. Antigamente, quando tínhamos as nossas moedas, os salários baixavam-se através de mecanismos monetários: imprimíamos dinheiro e isso gerava inflação. Vamos imaginar que tínhamos uma inflação de trinta por cento. Os governos chegavam junto dos trabalhadores e diziam: eh pá, vocês estão cheios de sorte, vamos dar-vos quinze por cento de aumento!
Quinze por cento? Toda a gente ficava contente. Ena, que grande aumento! O que as pessoas se esqueciam é que a inflação era de trinta por cento, o que significava que os seus salários tinham na verdade diminuído quinze por cento. Com essa redução invisível dos salários, os nossos produtos ficavam mais baratos e vendiam-se melhor no estrangeiro. Por outro lado, ao imprimir dinheiro estávamos a desvalorizar a moeda, o que tornava os produtos estrangeiros mais caros e menos acessíveis. Diminuíam assim as importações."
"Pois, estou a ver", murmurou Raquel. "Mas já não temos uma moeda só nossa, pois não?"
O historiador esboçou uma expressão apreciativa.
"Estás a ver como chegas lá?", atirou. "É isso mesmo. Já não temos uma moeda só nossa. Temos o euro. E é justamente aí que radica o problema. Como já te expliquei, a análise de centenas de outras situações semelhantes no passado mostra que uma crise de dívida descontrolada se resolve de três formas: ou gerando inflação através da impressão de dinheiro, ou desvalorizando directamente os custos do trabalho ou fazendo default. Acontece que os Alemães querem estabilidade de preços e têm horror à inflação. Eles avisaram-nos 349
vezes sem conta que o euro seria uma moeda forte e não se poderia desvalorizar. Os nossos inteligentes governantes fizeram que sim com a cabeça, mas ignoraram os avisos e, como de costume, foram caçar votos com políticas despesistas." Esboçou com as mãos um gesto teatral.
"Agora que a coisa deu para o torto, levam as mãos à cabeça e dizem: ó tio, ó tio, acudam que não há dinheiro, a culpa é dos mercados e dos especuladores, a culpa é das agências de rating e do Goldman Sachs, a culpa é da troika, a culpa é da Alemanha e da gorda, a culpa é de todos excepto de mim, eu que sou muito competente e patriota, dei o meu melhor, dei cabo da sustentação do estado social e das finanças do meu país, fiz obras faraónicas e gastei o que não tinha para ajudar os construtores meus amigos, estourei milhões em auto-estradas para a Peidaleja e Ranholas de Cima e Alguidares de Baixo, fiz um aeroporto internacional em Beja que só recebe uni avião por semana, deixei os bancos emprestarem rios de dinheiro a pessoas que já não conseguem pagar o que devem, mas... oiçam, fiz tudo bem, hã?, a culpa é toda dos outros, eu não tenho nada a ver com isto!"
Raquel riu-se da interpretação do seu companheiro de viagem; já tinham ouvido aquele discurso em Espanha e suspeitava que em Portugal tinha decorrido a mesma conversa.
"Davas para actor", observou, zombeteira. "Qualquer dia ainda és contratado pelo Almodóvar."
"Almodóvar? No mínimo pelo Spielberg!" Fez um gesto no ar, como se visualizasse o letreiro de um cinema. "As Aventuras de Indiana Noronha na Terra da Bancarrota, estás a ver o género?"
Juntaram-se numa gargalhada ruidosa, atraindo os olhares reprovadores dos passageiros em redor. Reprimindo a galhofa, a espanhola respirou fundo e por fim recuperou a compostura.
"Agora a sério", disse. "Disseste que antigamente se enfrentava este problema com a desvalorização da moeda..."
"Exacto. Foi o que fez a Islândia, por exemplo. Tendo embarcado 350
na idiotice da desregulação financeira, os lslandeses foram brutalmente atingidos pela crise, desvalorizaram a sua moeda e já estão a recuperar. O mesmo aconteceu com os países bálticos."
"Então e nós? Se estamos no euro e não temos moeda nossa, o que podemos fazer? Entramos em default?"
"O default unilateral está a ser para já posto de lado para não hostilizar e alienar os Franceses e os Alemães, cujos bancos são os grandes credores do Club Med. Não podendo também desvalorizar a moeda, o que permitiria baixar os salários de uma forma invisível, mas querendo obter o mesmo efeito de desvalorização dos custos de produção, receio que tenhamos de cortar directamente os salários. Não há outra opção. Por outro lado, sem poder imprimir moeda nem erguer barreiras alfandegárias às importações, a única maneira de diminuir as compras ao exterior é retirar poder de compra aos nossos cidadãos. Sem dinheiro para gastar, eles não compram produtos importados e as importações caem."
Raquel fez um ar escandalizado.
"Retirar o poder de compra aos nossos cidadãos?", quase se indignou. "Mas isso também dá cabo da economia interna! As nossas empresas vão à falência! As pessoas passam a viver miseravelmente!"
"Tens toda a razão, é uma solução horrível, mas qual é a alternativa? Manter o poder de compra e continuar a aumentar as importações? Preservar os salários relativamente altos e manter assim o preço elevado dos nossos produtos, tornando-os pouco apelativos no mercado externo?"
A espanhola manteve a expressão escandalizada.
"Salários relativamente altos?", questionou. "Os nossos salários são uma miséria!"
"É verdade. O problema é que, mesmo sendo baixos, são três vezes mais altos que os salários dos Chineses, o que faz com que os nossos produtos sejam muito mais caros do que os produtos chineses.
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Como não temos barreiras que protejam as nossas economias desses produtos, as nossas empresas não conseguem competir com os Chineses e estão a fechar, espalhando o desemprego. Os nossos salários estão, em termos proporcionais, acima até dos salários dos Alemães."
"Dos Alemães? Estás doido? Ganhamos mais que os Alemães?"
"Por incrível que pareça, o custo dos salários em Portugal, Espanha, Irlanda, Grécia, Itália e França, na relação com o PIB de cada um destes países, era no início da crise dez a trinta por cento superior ao custo dos salários na Alemanha. As nossas economias não aguentam isso. Temos, pois, de escolher entre salários baixos e desemprego. Os salários baixos são, receio bem, o mal menor."
Raquel fez um ar atrapalhado.
"Bem... tem de haver outra maneira."
"Não controlando nós a nossa moeda e querendo evitar o default, receio bem que não haja outra forma. A desvalorização da moeda seria o instrumento mais fácil, porque baixaria os salários de forma indirecta e camuflada, mas no euro ela não é possível.
Portanto, temos de cortar directamente salários, subsídios e pensões.
Não só reduzimos assim a nossa despesa como retiramos poder de compra às pessoas, o que faz diminuir as importações."
"E as nossas empresas?", questionou ela. "Se não vendem a ninguém, como sobreviverão?"
"É terrível, eu sei. Mas o euro não nos deixa alternativa. Temos infelizmente de cortar nos salários para que os nossos produtos tenham um preço mais competitivo e para reduzir o poder de compra dos consumidores de modo a diminuir as importações. O problema é que isso afecta negativamente a produção nacional. As nossas empresas terão de se adaptar a essa realidade e procurar clientes no mercado externo a preços competitivos. Se o fizerem, aumentamos as exportações e começa a entrar dinheiro nos nossos países."
Raquel ponderou durante alguns segundos o que acabara de 352
escutar.
"Se assim é", concluiu com uma voz arrastada, "parece-me melhor estarmos fora do euro."
"Estar fora do euro facilita o combate ao desequilíbrio, porque se pode desvalorizar a moeda, estar dentro dificulta."
A espanhola, contudo, não estava inteiramente convencida; afinal afeiçoara-se ao euro e de certo modo a moeda única fazia-a sentir-se mais segura e protegida. Porquê pô-la em causa à primeira dificuldade?
Voltou por isso à carga.
"Isto não pode ser visto só assim, não achas?", exclamou. "No fim de contas, o euro tem outras vantagens, não tem? Elas podem compensar largamente este inconveniente..."
"Com certeza", concordou Tomás. "Todas as moedas têm duas faces. Até o euro."
"Pois é, pois é", entusiasmou-se a espanhola. "O euro ajuda os nossos países a crescerem economicamente, por exemplo. Isso é muito importante, não te parece?"
"Muito importante", voltou o historiador a assentir.
"Terrivelmente importante, sem dúvida". Fez uma pausa intencional.
"Se fosse verdadeiro, claro..."
Raquel arregalou os olhos, apanhada de surpresa por esta ressalva inesperada.
"O quê?", espantou-se. "Não é verdadeiro?"
Quando ia a responder, Tomás foi interrompido por um longo e profundo bocejo que lhe subiu das entranhas e lhe pesou imediatamente nas pálpebras. Espreitou o relógio e quase se assustou quando verificou a posição dos ponteiros.
"Ena, já são duas da manhã!", constatou. "É tardíssimo! Vamos mas é dormir."
Raquel olhou-o com um esgar escandalizado.
"Dormir?", protestou com o dedo ameaçador bem levantado. "Tu 353
não te atrevas, Tomás Noronha! Ouviste? Primeiro tens de me responder à pergunta! O euro ajuda ou não as nossas economias?"
Ignorando a pergunta formulada em tom de reclamação, o português estendeu-se no seu lugar, encostou a cabeça à janela e, apesar do desconforto da posição, cerrou as pálpebras.
"Falamos amanhã", sentenciou com um novo bocejo, como se dessa forma mostrasse que não estava em condições de prosseguir a conversa.
"Agora, nhó-nhó."
A espanhola ainda abriu a boca para protestar, mas paralisou o movimento quando pousou o olhar no seu companheiro de viagem.
Tomás dormia já a sono solto com um semblante tão sereno que lhe apeteceu dar-lhe um beijo.
Parecia um bebé.
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