LVI
Havia já algum tempo que a costa mediterrânica ficara para trás, substituída pelos belos campos verdes e ondulados da Toscana, aqui florestas e ali vinhedos e olivais. De vez em quando cruzavam uma ponte medieval ou uma povoação pitoresca, mas a maior parte do tempo corriam entre o vale que se abria para abraçar a manhã soalheira.
Acomodada no seu assento, Raquel ignorava a paisagem deliciosa.
Tudo o que lhe interessava nesse momento era perceber o futuro, saber o que poderia esperar da crise, como preparar-se para ela, conhecer o destino do euro.
"Vamos imaginar que, após vários meses ou anos de agonia dentro do euro, um dia se chega à conclusão de que o teu país tem de abandonar a moeda única", sugeriu. "O que acontecerá então?"
Tomás ansiava por dedicar a sua atenção a outros assuntos que lhe 372
pareciam mais prementes. Sentiu que as pessoas na carruagem começavam a despertar, um burburinho crescente fervilhava no ar, mas constatou que as duas freiras ao lado ainda dormiam a sono solto.
Sabia, porém, que a sua interlocutora não o largaria enquanto não satisfizesse a sua curiosidade. Respirou fundo, resignado, e concentrou-se na resposta à pergunta que ela formulara.
"Mantenhamo-nos no exemplo de Portugal, embora tudo o que vou dizer seja válido para qualquer outro país", propôs. "A decisão de sair do euro é de tal modo sensível que não me parece possível mantê-la em segredo. Por isso, no dia em que for tomada terá de se proibir de imediato o levantamento de dinheiro nos bancos e as transacções financeiras, exceptuando pequenos valores para garantir a vida no dia-
-a-dia. Isto porque toda a gente perceberá que o escudo será desvalorizado e por isso as pessoas tentarão levantar os euros ou transferi-los para o estrangeiro, o que provocaria a fuga de capitais e a consequente falência em cadeia dos bancos. Isso não pode ser permitido.
Daí que, durante o tempo que levar a impressão de escudos, as transacções tenham de ser reduzidas ao mínimo."
"Será uma confusão."
"Com certeza, mas o pior não é isso", disse o historiador. "O
novo escudo sofrerá uma desvalorização de pelo menos cinquenta por cento, o que significa que as pessoas passam, de um dia para o outro, a ter metade do dinheiro que tinham. Os seus salários, as suas pensões, as suas poupanças... tudo isso passa a valer metade. Isto implica um colapso súbito do nível de vida. Em apenas vinte e quatro horas, tudo o que é importado duplica de preço: comida, roupa, medicamentos, combustíveis... tudo. Haverá por isso uma corrida aos supermercados, às lojas, às farmácias e às bombas de gasolina. É
possível até que ocorram tumultos e saques e que o exército tenha de intervir para proteger estabelecimentos comerciais e bancos."
"Dios mio!", exclamou Raquel, levando a mão à boca. "Não sei se 373
quero que a Espanha saia do euro..."
"As consequências imediatas serão duras", insistiu Tomás.
"Ninguém deve ter ilusões quanto a isso. E de um ponto de vista macroeconómico há ainda a considerar o problema das dívidas.
Mantenhamos Portugal como exemplo. O meu país contraiu a sua dívida em euros, pelo que terá de a pagar em euros. Acontece que, saindo do euro, o estado passa a cobrar os impostos em escudos, o que implica um colapso das receitas fiscais. Os efeitos são igualmente devastadores na dívida privada. A desvalorização do escudo implica que a dívida das famílias duplica de um dia para o outro. No dia 1 uma família deve duzentos mil euros ao banco, no dia 2 já deve oitenta mil contos, o equivalente hoje a quatrocentos mil euros. Isto é uma catástrofe! As pessoas, que já pagam com dificuldade as suas dívidas aos bancos, entrarão imediatamente em default, isto é, deixam de pagar o que devem. Como toda a gente entra em default ao mesmo tempo, os bancos ficam sem dinheiro e abrem falência. O país paralisa."
"Há uma maneira de dar a volta a isso", considerou a espanhola. "Se os euros passam a escudos, a dívida passa a escudos e ela própria acompanha a desvalorização dos escudos. Assim as pessoas mantêm o mesmo valor da dívida, só que em escudos."
"A escudização das dívidas é uma hipótese. O problema é que as dívidas dos bancos portugueses ao exterior continuam em euros, mas as receitas e os depósitos entram em escudos desvalorizados. Nestas condições, os bancos não conseguem pagar o que devem ao exterior e abrem falência. O país também paralisa."
Raquel pestanejou, desconcertada com os dois cenários. "Sendo assim, o resultado é sempre o mesmo!..."
"É por isso que se chama uma catástrofe."
A espanhola abriu os braços num gesto impotente e, desconcertada, sacudiu a cabeça.
"Quer dizer, isto é o cúmulo! Não podemos permanecer no euro nem 374
podemos sair! Estamos enfiados num verdadeiro colete-de-forças! Como fazemos então?"
Tomás passou as mãos pela franja.
"É simples", sorriu. "Cortamos o cabelo."
O despropósito da observação extraiu de Raquel um esgar de estranheza.
"Não digas tonterías, repreendeu-o. "A sério, como saímos desta embrulhada?"
"Já te disse, cortamos o cabelo", insistiu o historiador com o mesmo sorriso. "Chama-se haircut e significa um default parcial. Em 2012 a Grécia impôs aos credores privados que lhe perdoassem mais de metade da dívida, não foi? Isso foi um haircut. Em geral os default não são totais, mas parciais. A Grécia chamou os credores e disselhes: meus amigos, chegámos ao fim da linha, nós temos culpa porque contraímos dívida que agora não conseguimos pagar, vocês têm culpa porque nos emprestaram dinheiro sem avaliarem devidamente se tínhamos condições de vos pagar. Portanto temos de resolver isto de forma que todos sejam penalizados pelos seus erros. Ou seja, a Grécia paga a dívida, mas só paga uma parte. Os credores recebem o dinheiro, mas só recebem uma parte." Abriu as mãos, como se tivesse acabado a demonstração. "É isso um haircut."
"Ou seja, as duas partes ficam tosquiadas..."
"Nem mais. E assim se pode sair do euro de uma forma que, sendo péssima, não é totalmente catastrófica. Todos os que cometeram erros, países e bancos, pagam a sua quota-parte."
"Mas esse haircut não é uma forma de default?"
"Com certeza", confirmou Tomás. "O incumprimento parcial de Portugal, contudo, é inevitável. O mesmo é verdadeiro para a Irlanda, a Espanha e, se as coisas correrem mal, a Itália. Sabes, a crise não se resolve sem austeridade, mas também não se resolve só com austeridade. Em Portugal foram aumentados os impostos e feitos cortes na saúde, na educação, na 375
segurança social, nos subsídios e nos salários. Quanto é que se arrecadou com estas medidas de austeridade? Nove mil milhões de euros. Quanto é que Portugal pagou em juros da dívida, por exemplo ao longo de 2012?
Mais de oito mil milhões de euros. Ou seja, toda a austeridade serviu apenas praticamente para pagar os juros da dívida, não para pagar a dívida propriamente dita. E como as medidas de austeridade provocaram recessão, as receitas dos impostos baixaram, agravando assim o problema. Esta trajectória é insustentável. Lá diz o velho princípio de economia: o que é insustentável não se sustentará. Por culpa de Portugal, que se endividou para além das suas possibilidades, e por culpa dos bancos internacionais, que na sua ganância lhe emprestaram dinheiro sem cuidarem de verificar se o país tinha condições para o devolver na íntegra, chegámos a um beco sem saída e todos, incluindo os bancos imprevidentes, vão ter de pagar a factura. Mais cedo ou mais tarde terá de haver um acordo e terá de se proceder a um haircut da dívida portuguesa."
"Há aí um problema", observou Raquel. "Li no jornal que, quando há um incumprimento, durante muitos anos nenhum banco internacional volta a emprestar dinheiro ao país incumpridor."
"Balelas!", devolveu o historiador. "Os bancos querem é fazer dinheiro e investem onde vêem oportunidades. Os estudos mostram que, depois de um incumprimento, em geral os países voltam aos mercados entre um e cinco anos depois do default."
Os esclarecimentos pareceram satisfazer Raquel, que acenou afirmativamente. De repente imobilizou-se, assaltada por uma dúvida.
"Depois de um país sair do euro, de quanto tempo precisa a economia para recuperar?"
"Depende do que o país fez à dívida", sublinhou Tomás. "A simples saída do euro não resolve o problema, uma vez que se trata de uma crise da dívida, que tem na raiz a perda de competitividade perante mercados emergentes como a China, pelo que são estes dois problemas, dívida e falta de competitividade, que têm de ser 376
resolvidos. Caso aproveite a saída do euro para limpar a dívida e recuperar a competitividade, o país passa um ano muito mau, mas a recuperação começa logo a seguir. O abandono de zonas monetárias por parte de alguns países não é, aliás, nenhuma novidade na história do mundo. O caso da Argentina, por exemplo, é muito semelhante ao do Club Med e dá-nos algumas orientações úteis. Tal como nós vivemos colados ao euro, a Argentina vivia nos anos 90 colada ao dólar americano e estava a enfrentar enormes dificuldades, com recessão, dívida descontrolada, desemprego altíssimo e perturbação social, exactamente a nossa situação. Os Argentinos separaram-se do dólar em 2001, desvalorizaram o peso e, em 2002, a sua economia desatou a crescer, tendo o PIB disparado até aos sete por cento, e o desemprego caiu. Não se pode chamar a esta solução uma catástrofe, pois não?"
O olhar verde-esmeralda de Raquel incendiou-se. "Coo! Então temos mesmo de sair do euro!"
O seu companheiro de viagem soltou uma gargalhada perante este súbito entusiasmo.
"Sabes, a grande dificuldade para já é determinar exactamente qual a parte da crise que é responsabilidade da entrada da China no mercado mundial e da consequente desindustrialização do Ocidente e qual a parte que é a dificuldade das nossas economias em funcionarem dentro de uma moeda forte. Se chegarmos à conclusão que a culpa é do euro, o grande desafio será dar o salto mental." Colou a ponta do indicador às têmporas.
"Numa tal situação os nossos políticos irão resistir, vão dizer que o euro é que é bom, uma saída será uma catástrofe e coisa e tal, e andaremos a perder tempo precioso." Mostrou os dentes. "É um pouco como quando temos uma dor de dentes, estás a ver? A dor significa que existe um dente estragado. Como temos medo de ir ao dentista, vamos suportando a dor dia após dia, até ao momento em que ela se torna insuportável e acabamos por nos decidir a enfrentar o horror do 377
dentista e a resolver a coisa de vez. Claro que teria sido melhor ter ido ao dentista mais cedo, não é verdade? Isso ter-nos-ia poupado muito sofrimento posterior, mas os seres humanos comportam-se mesmo dessa maneira, fogem a um acto muito doloroso e adiam-no enquanto podem.
A crise também é assim. Um dia, após crise atrás de crise, e sem vermos as coisas melhorarem significativamente, atingiremos um ponto de dor insuportável que levará alguém a cair em si e a tornar enfim a decisão que se impunha há muito tempo."
"Achas então que vamos deixar arrastar a decisão?"
"A não ser que os acontecimentos obriguem a uma resolução imediata, será isso o que acontecerá", rematou. "Começaremos por escolher um horror sem fim, até ao momento em que percebermos que é preferível um fim horrível."
"Saindo do euro, passamos pois a imprimir moeda e, através da inflação assim gerada, baixamos os salários de uma forma invisível.
Ficaremos então muito melhor, não é?"
Tomás fez uma careta, desconfortável com a conclusão.
"Repito que não há soluções milagrosas e que estamos perante opções muito más e opções péssimas", insistiu. "A impressão de dinheiro para pagar as dívidas é a solução mais fácil e mais atraente para os políticos, mas também muito perigosa e, atenção, só funciona a curto prazo. É
preciso lembrar que a inflação quase só existe devido à excessiva impressão de dinheiro. Quando há demasiado dinheiro a circular, o dinheiro perde valor e os produtos tornam-se mais caros. Isso obriga a que se imprima mais dinheiro, encarecendo os produtos ainda mais, e entra-se assim numa espiral inflacionista. Um estudo de doze episódios de hiper-inflação mostra que todos eles têm em comum a impressão excessiva de dinheiro para pagar défices monstruosos."
"É um preço que teremos de pagar para nos vermos livres da dívida..."
"Pois é, mas a prazo surgem dois efeitos que dificultam o pagamento da dívida através desta solução. O primeiro é que os sindicatos exigem 378
que se indexem os aumentos salariais à inflação e as próprias empresas passam a fazer negócios contratualmente ligados à inflação, de modo que uma subida na inflação corresponda a uma igual subida nas prestações. O
segundo efeito é que os estados só recebem os impostos dos cidadãos uma vez por ano, o que faz com que, na altura em que o fisco arrecada determinada quantia e algum tempo depois, quando a começa a gastar, esse dinheiro já valerá muito menos. O objectivo do exercício acaba assim derrotado. Daí também que os Alemães rejeitem tal solução. Eles sabem que a prazo a inflação é exclusivamente destruidora de riqueza."
"Mas não foram os Americanos e os Britânicos que andaram a imprimir dólares e libras à doida?"
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"É verdade", assentiu Tomás. "O próprio Banco Central Europeu começou a fazer isso de uma maneira camuflada, para consternação dos Alemães."
"A inflação não disparou..."
"É um facto. Sabes, o que faz a inflação, na verdade, não é estritamente a impressão do dinheiro, mas a chegada desse dinheiro ao mercado. O que aconteceu é que os bancos centrais imprimiram o dinheiro mas os bancos comerciais, que tentavam desesperadamente equilibrar os seus balanços, não o injectavam na economia. Foi sobretudo por isso que a inflação não disparou. No caso americano aconteceu até que a grande maioria desses dólares não entrou na economia dos Estados Unidos porque foi parar à China, com os Americanos a beneficiarem assim das enormes vantagens de terem uma moeda que é usada como unidade monetária internacional, regalia de que mais nenhum país goza. Mas no instante em que o dinheiro novo começar a inundar a economia americana a inflação poderá tornar-se de repente galopante. Todos os estudos mostram que o rebentamento de uma grande bolha especulativa gera poderosas forças deflacionárias, de queda de preços, que desencadeiam crises bancárias graves e que estas provocam crises de dívida, as quais são seguidas da tentação quase irresistível de imprimir dinheiro, que conduz a grande inflação ou até a hiper-inflação."
"Em qual dessas fases estamos agora?"
"Na segunda, a crise da dívida, mas temos de estar conscientes de que a terceira fase envolve geralmente grande inflação. É essa terceira fase que os Alemães estão desesperadamente a tentar evitar. Saindo nós do euro e escolhendo a desvalorização como solução, temos de estar conscientes de que iremos viver um período de grande inflação e que ela não é nenhuma panaceia miraculosa. Além disso, a inflação é uma outra maneira de transferir para a população o pagamento da dívida. Esse é, aliás, o grande argumento que se pode invocar para defender a manutenção dos países do Club Med no euro. Muitos políticos têm uma tendência patológica para 380
recorrer à impressão de dinheiro para resolver os problemas da sua má governação. Como é criada inflação, fingem que a inflação é um fenómeno que não é provocado por eles e tentam assim safar-se da punição do eleitorado. Dentro do euro, e não podendo imprimir moeda, terão mesmo de controlar as despesas e adequá-las às receitas. Se não o fizerem, os seus erros de governação ficarão a nu."
O comboio começou nesse instante a abrandar e o som da intercomunicação irrompeu na carruagem.
"Senhores passageiros, a seguir é Santa Maria Novella", anunciou uma voz. "Próxima estação, Florença."
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