LVIII

O ombro de Raquel funcionava quase como uma bengala; era o ponto de apoio que permitia a Tomás progredir. Caminhar curvado e com passos hesitantes constituía uma tarefa muito mais difícil do que se poderia à primeira vista supor, mas o historiador sentia-se satisfeito por ter conseguido atravessar desse modo toda a plataforma sem que nenhum dos dois tivesse sido reconhecido.

"Viste os tipos?", sussurrou a espanhola sem se atrever a virar-se para trás. "Joder, nem se deram ao trabalho de disfarçar!..."

"Vinham com tudo", retorquiu o historiador. "Walkie-talkies e fotografias. Reparaste que uni deles até tinha a coronha de uma pistola a espreitar do casaco?"

"Então não reparei? Madre mia, safámo-nos de boa..." "A quem o dizes!"

Por fim saíram da estação. Já na rua, sentiram o calor do sol banhar-lhes as faces. Foi como se se tivessem libertado nesse instante e só então a agente da Interpol se atreveu a virar-se para o companheiro de viagem.

"E pensar que desconfiei que era tudo um estratagema teu para não carregares as malas!", desabafou. "Como é que adivinhaste que estavam à nossa espera?"

Tomás fez um gesto com a cabeça a indicar-lhe um restaurante de toldos em riscas vermelhas e brancas do outro lado da praça da estação, como se lhe dissesse que deveria prosseguir até lá.

"Chiu, vamos até àquela trattoria", recomendou-lhe. "Os tipos podem ainda estar a observar-nos."

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Consciente de que era de facto cedo para se acharem totalmente fora de perigo, a espanhola obedeceu e dirigiu-se à passagem de peões para atravessar a praça. O sinal estava vermelho, pelo que aguardaram que mudasse.

"Sim, mas como adivinhaste?"

"Não adivinhei", respondeu ele sem mexer os lábios, sempre a disfarçar. "Suspeitei."

"Como? Com base em quê?"

Tomás esboçou um sorriso discreto.

"Chama-lhe intuição, se quiseres." Tocou com o dedo na ponta do nariz.

"Cheirou-me que eles podiam estar-nos no encalço."

Raquel atirou-lhe o esgar de quem não estava a comprar a resposta e fez um gesto a indicar o saco onde guardava o computador portátil.

"Qual intuição qual carapuça!", devolveu de pronto. "Foi o computador, não foi? Percebeste que os tipos o localizaram pelo GPS!"

Olhou-o com admiração. "Que espertalhão me saíste!"

O historiador sorriu, ainda a ocultar o jogo.

"Caraças, não se te pode esconder nada..."

O sinal dos peões mudou para verde e os dois atravessaram a passadeira, sempre a caminharem com enorme dificuldade.

Uma vez no outro lado da praça, dirigiram-se à trattoria do toldo vermelho e branco e entraram no estabelecimento. Ao vê-los cruzarem

a

porta,

um

empregado

de

bigodes

revirados,

evidentemente um católico fervoroso, esboçou uma vénia respeitosa na sua direcção.

"Buon giorno, irmãs", cumprimentou-os com grande cerimónia. "É

um piacere receber as consortes do Senhor no meu humilde estabelecimento." Fez um gesto floreado a indicar uma mesa livre. "Prego, sentem-se, sentem-se! O que vão desejar?"

Tomás, que até aí caminhava curvado e apoiado em Raquel, endireitou-388


se de repente, como se tivesse ficado subitamente curado do seu mal de costas, e fitou-o.

"Precisamos de ir ao quarto de banho", disse ele com uma inesperada voz de homem que assustou o empregado. "Depois traga-nos duas pizas." Hesitou, pensando no tipo de piza que queria. "A la puttanesca, per favore."

O empregado ficou especado a olhá-lo, atónito com o que ouvia e o que via. Indiferente à reacção do italiano, o historiador apressou o passo entre as mesas do restaurante e dirigiu-se ao quarto de banho. A espanhola foi no seu encalço e fecharam-se ambos nos lavabos.

"Viste a cara do tipo?", riu-se Raquel depois de trancar a porta.

"Nunca imaginou ver uma freira a falar com voz de homem, hem?"

Tomás já despia o hábito que lhe tolhia os movimentos. Ficou em cuecas e tirou de um dos sacos a roupa que ali guardara no comboio e começou a vestir-se.

"O mais chato são as freiras, coitadas", disse enquanto enfiava as pernas nas calças. "Quando acordarem vão perceber que lhes gamaram o saco onde guardavam os hábitos. Arriscam-se a levar uma valente reprimenda da madre superior, hem?"

A agente da Interpol encolheu os ombros.

"Deixa lá, foi por uma boa causa", considerou. "Não se diz que Deus escreve direito por linhas tortas e que os caminhos do Senhor são insondáveis e essas coisas todas? Se não fosse a tua desconfiança e os hábitos que lhes roubámos, tínhamos caído direitinhos nas mãos daqueles tipos." Estremeceu. "Nem quero pensar!"

Acabaram de se vestir e saíram do quarto de banho para se dirigirem para a mesa que lhes havia sido reservada. O empregado de bigodes revirados olhava-os ainda com um semblante estupefacto, os olhos arregalados e a boca entreaberta, sem perceber como duas gentis freiras se haviam de repente metamorfoseado em pessoas tão diferentes. Uma dava ares de actriz 389




de cinema e a outra... a outra era um homem!

"Mamma mia, está tudo doido!", murmurou por fim, abanando a cabeça num gesto resignado e afastando-se para mandar fazer as pizas a la puttanesca. "Ma che cosa..."

Os dois clientes acomodaram-se à mesa da trattoria e desataram a rir numa descarga nervosa incontrolável. A tensão dos últimos dez minutos fora enorme, sobretudo a partir do momento em que, disfarçados de freiras, tinham saído do comboio e desfilado a passo de caracol diante dos assassinos. Tomás era alto, anormalmente alto para poder passar por uma mulher, pelo que foi forçado a fingir-se uma freira velha e com dores nas costas, a única maneira que lhe ocorrera de evitar as suspeitas. O preço, claro, é que haviam sido obrigados a caminhar muito devagar e a correr o risco de se exporem mais longamente aos olhares dos homens que os tentavam identificar ao longo da plataforma. Felizmente tudo havia terminado bem.

Ansioso por novidades da mãe, Tomás pousou o portátil sobre a mesa e ligou-o. Apanhou uma rede sem fios para turistas, e por isso livre de encargos, e sem perda de tempo entrou no seu endereço electrónico.

Havia uma mensagem do lar.

Olá, professor Noronha,

Espero que esteja tudo bem consigo.

Receio que as notícias não sejam boas. Apesar dos meus esforços, os proprietários do lar não aceitam que a sua mãe permaneça na instituição sem a mensalidade totalmente paga. Insistem que os familiares têm de assumir a diferença entre a parte cortada da pensão e o valor final e lembram que existe uma enorme fila de espera para o lar, pelo que não terão dificuldade em ocupar o quarto da dona Graça.

Em conformidade, recebi ordens explícitas e escritas para a despejar amanhã de manhã, caso até à meia-noite de hoje o pagamento em falta não seja saldado.

Nem sabe como me custa ser portadora desta notícia. Tentei por 390


todos os meios evitar que se chegasse a este ponto, até porque a situação envolve também outros utentes que não a sua mãe. Disselhes que não estaria disposta a permanecer à frente do lar se começássemos a despejar idosos para a rua. Mas eles responderam que, com o desemprego que por aí anda, será fácil substituírem-me e eu terei dificuldade em encontrar novo trabalho.

Os tempos são complicados e rezo a Deus para que nos oriente neste mundo em que toda a gente perde direitos e a desgraça alastra.

Um beijo da

Maria Flor


Tomás ficou um longo momento especado diante do computador portátil, os olhos hipnotizados pelo ecrã, o espírito a revolutear numa insurreição surda. Iam despejar a mãe do lar! Como era possível ter-se chegado a um ponto destes? A mãe ia ser atirada para a rua porque tinha em falta o pagamento de uns míseros cem euros! Que país era este que tratava assim os seus velhos? E ele ali, perseguido e em fuga, impotente para desempenhar o seu papel de filho e ir a Coimbra resolver aquele problema absurdo! Que raiva, que...

"Más notícias?"

Raquel lera a sua expressão. Fechando o semblante, o português decidiu guardar o problema da mãe num canto da mente e dedicar-se à questão mais imediata. Se queria ajudar a mãe, primeiro tinha de se desenvencilhar da embrulhada em que se metera.

Procurou um motor de busca e digitou o nome do Tribunal Penal Internacional. Apareceram-lhe várias opções, incluindo a página oficial da instituição. Acedeu ao site e tentou localizar o processo relacionado com a crise internacional. Uma página materializou-se no ecrã a indicar que a sessão preliminar estava mareada para as quinze horas desse mesmo dia em Florença, no Salone dei Cinquecento do 391


Palazzo Vecchio. Era tudo o que precisava de saber para agir.

Com um movimento brusco, desligou o portátil e, percebendo que teria de precipitar os acontecimentos para se livrar o mais depressa possível do colete-de-forças que lhe tolhia a liberdade de acção, encarou a sua companheira de viagem.

"Tenho um plano", disse. "Ouve-me com atenção..."
























































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