CAPÍTULO 6

O CANALHA E A BRUXA

O escritório do FBI em Nova York ocupava os andares 20, 21 e 22 de uma torre de concreto e vidro de 42 andares em Lower Manhattan. A área, que era conhecida como Tribeca, era a parte da cidade que incluía Wall Street, os tribunais federais, o World Trade Center e a menos respeitada de todas as instituições governamentais: o Serviço de Imigração e Naturalização.

Caminhei por um longo corredor estreito no subsolo do edifício, com Coleman e McCrogan me escoltando, cada um de um lado. Coleman tinha acabado de explicar que estávamos na parte do edifício que normalmente era utilizada para as inquirições.

Assenti com a cabeça respeitosamente e continuei andando, resistindo à vontade de perguntar a ele se o FBI considerava a palavra inquirição como sinônimo de interrogatório. De qualquer maneira, eu não tinha dúvida de que muitas coisas que tinham acontecido ali embaixo não se coadunavam necessariamente com os direitos civis (provavelmente tinha rolado algum tipo de tortura leve, alguma privação de sono e muitas violações de habeas corpus). Mas achei melhor manter esses pensamentos errantes só para mim e continuei assentindo e caminhando, mantendo uma expressão neutra no rosto, enquanto ambos me escoltavam até uma pequena sala de interrogatório que ficava no final do corredor.

Dentro da sala, três pessoas já se encontravam sentadas em poltronas pretas baratas posicionadas ao redor de uma mesa de reuniões de madeira barata. Essa sala não tinha janelas, apenas lâmpadas fluorescentes emitindo um brilho azul tuberculoso. As paredes eram completamente nuas, pintadas com um perturbador branco cinzento de hospital. De um lado da mesa, estava sentado meu confiável advogado, Gregory J. O’Connell, também conhecido como Magnum, sorrindo, parecendo mais imponente e garboso que nunca. Ele estava usando um terno cinza risca de giz, com camisa branca e gravata vermelha listrada. Parecia sentir-se em casa, ele mesmo um antigo promotor que agora desfrutava do prazer de defender um culpado.

Do lado oposto ao de Magnum estavam sentados um homem e uma mulher. O homem já me era familiar desde o dia de minha acusação, quando ele disse todas aquelas coisas boas a meu respeito durante minha audiência da fiança. Seu nome era Joel Cohen, e pouco mais de dois anos antes ele havia se unido a TOC para me trazer à Justiça, sucedendo com êxito a meia dúzia de promotores anteriores que haviam fracassado.

Na essência, por mais dedicado e aguçado que TOC fosse, ele precisava de alguém com esse mesmo espírito para ser sua contrapartida dentro da Procuradoria-Geral, a fim de lidar com o lado legal das coisas. TOC só podia mesmo investigar; ele precisava de um canalha como Joel Cohen para me processar.

Naquele exato momento, o Canalha estava inclinado para a frente em sua poltrona, com os cotovelos ossudos apoiados nos braços da cadeira. Ele estava me encarando com os olhos apertados, lambendo os beiços interiormente, não havia dúvidas. Ele usava um terno cinza barato, uma camisa branca barata, uma gravata vermelha barata e mantinha uma expressão sinistra. Tinha uma maçaroca de cabelos castanhos curtos, testa grande, nariz carnudo e um rosto pálido. Ele não era de todo feio, porém estava despenteado, malcuidado, como se tivesse acabado de sair da cama e vindo imediatamente para o escritório. Mas aquilo tinha sido planejado, imaginei. Ah, sim, o Canalha estava tentando fazer uma declaração, a de que agora que estávamos em seu mundo, o preço de meu terno, a reputação de minha alfaiataria e o bom gosto de meu cabeleireiro não importavam. Era o Canalha quem detinha o poder, e eu era seu prisioneiro, independentemente da aparência de cada um. Ele tinha estatura e peso médios também, embora demonstrasse aquele desleixo degenerado mencionado acima, o que o fazia parecer ainda mais baixo. Eu não tinha dúvida de que ele me desprezava tanto quanto eu o desprezava. Ele tinha um olhar em seu rosto que dizia algo do tipo: “Bem-vindo ao meu covil subterrâneo, prisioneiro! E que a tortura comece!”.

A terceira ocupante da sala era uma pequena e tímida criatura chamada Michele Adelman. Ela estava sentada à esquerda do Canalha. Eu nunca tivera a oportunidade de encontrá-la antes, mas já conhecia sua reputação. Seu apelido era Bruxa Má do Leste, e obviamente ela o tinha ganhado devido a sua estranha semelhança, tanto fisicamente quanto na personalidade, com a velha bruxa de O mágico de Oz. E uma vez que Michele (e Joel) trabalhava como promotora assistente no Distrito Leste de Nova York, aquele apelido fazia total sentido.

A Bruxa parecia agachada, com cerca de um 1,50 metro, pouco mais que isso, uma grande juba de cabelos crespos e escuros, olhos escuros e redondos, lábios finos e um queixo curto. Eu fiquei imaginando como ela ficaria com cara de rato se estivesse com um pedaço de queijo suíço entre as patinhas e começasse a mordiscá-lo. E só conseguia imaginar a cara de bruxa que ela teria se montasse num cabo de vassoura e desse uma volta pela sala de interrogatório. Estava vestindo um terninho azul-escuro e mantinha uma expressão severa no rosto.

– Bom dia! Gostaria de apresentá-lo às duas pessoas com quem você deverá passar bastante tempo durante os próximos meses – disse Magnum, e fez um sinal com a mão, apontando a Bruxa e o Canalha, que obedientemente assentiram com a cabeça. Então continuou: – Jordan, este é Joel Cohen, que acho que você já teve o prazer de conhecer – inclinei-me e apertei a mão do Canalha, me perguntando se ele não tentaria passar uma algema em torno de meus pulsos –, e esta é Michele Adelman, que acredito que você não tenha tido o prazer de conhecer.

Apertei a mão da Bruxa, com medo de que ela pudesse me transformar em uma salamandra. Magnum continuou, assentindo com a cabeça:

– Bem, eu gostaria que todos aqui soubessem que Jordan está totalmente comprometido nesse processo de colaboração. Ele tem a intenção de ser honesto e franco em todas as oportunidades, e posso garantir que as informações que ele possui são extremamente valiosas para sua luta contra o crime e a injustiça em Wall Street.

Mas que monte de merda! E dos grandes!

– Isso é ótimo – replicou o Canalha, apontando uma cadeira ao lado de Magnum. – Estamos todos ansiosos por sua cooperação, Jordan, e sei que posso falar por todos os presentes aqui que não guardamos nenhum tipo de rancor em relação a sua pessoa – com o canto dos olhos eu pude notar que TOC estava revirando os olhos, enquanto ele e Mórmon se sentavam um de cada lado do Canalha e da Bruxa. – E afirmo que, se você agir de modo correto conosco, será tratado de forma justa.

Assenti com a cabeça, sem acreditar em uma só palavra do que ele acabara de dizer. TOC seria alguém que me trataria de forma justa, ele era um homem honrado. Mas não o Canalha; ele tinha um sentimento hostil por mim e me faria mal sempre que pudesse. Sobre a Bruxa, no entanto, eu não tinha certeza. De acordo com Magnum, ela detestava todos os homens, incluindo os agentes TOC e Mórmon, de forma que eu não teria nenhum interesse especial da parte dela. Meu problema era mesmo o Canalha. Esperávamos que ele saísse do escritório da Promotoria antes que eu fosse sentenciado. Aí tudo ficaria bem.

Com grande humildade, respondi:

– Eu acredito em você, Joel, e, como Greg já disse, estou totalmente comprometido com essa minha atitude colaborativa. Pergunte o que quiser, e eu responderei da melhor maneira que puder.

– Você afundou seu iate para conseguir o dinheiro da seguradora? – perguntou de repente a Bruxa. – Vamos ouvir a verdade aqui.

Eu olhei para ela e lhe ofereci um sorriso morto. Notei que, em cima da mesa, havia um jarro grande de água com seis copos ao lado, um dos quais estava cheio pela metade. O que aconteceria se eu atirasse esse copo de água na Bruxa? Ela provavelmente começaria a gritar: “Socorro! Estou derretendo! Estou derretendo!”. Mas achei melhor manter esse pensamento só para mim mesmo, e tudo o que disse foi:

– Não, Michele. Se eu quisesse afundar o barco e pegar o dinheiro do seguro, não teria feito isso com minha esposa e eu a bordo.

– E por que não? – rebateu a Bruxa. – Esse seria o álibi perfeito.

– E também seria uma maneira perfeita de se matar – rosnou TOC. – Ele foi pego em uma tempestade, Michele. Vá ler a revista Yachting. Está tudo lá.

Com grande confiança, Magnum disse:

– Eu posso garantir a todos aqui presentes que Jordan não afundou seu iate pelo dinheiro do seguro. Certo, Jordan?

– Absolutamente – respondi. – Mas não vou negar que eu odiava aquela coisa. Era uma dor de cabeça flutuante de 170 pés. Estava sempre quebrando e queimava dinheiro mais depressa que o Haiti – dei de ombros inocentemente. – Seja como for, fiquei contente quando aquela banheira afundou.

Será que eles queriam mesmo que eu contasse como o iate tinha afundado? Aquilo tinha sido um acidente… A única coisa da qual eu poderia ser acusado era a de fazer um mau julgamento, comportamento que na ocasião andava meio prejudicado. Eu estava sob a influência de uma tal quantidade de drogas que poderia sedar a Guatemala inteira, então tinha forçado o capitão a meter o barco no meio de um vendaval de grau 8, para acabar com meu tédio induzido por drogas.

– De qualquer forma – disse Magnum –, você tem sua resposta, Michele. Aquilo foi um acidente.

Assenti em concordância, sentindo-me mais confiante depois de nosso primeiro embate. Tinha sido completamente inócuo, e Magnum e eu tínhamos tratado daquilo maravilhosamente, neutralizando o feitiço da Bruxa. Ou era isso o que eu pensava, até que o Canalha disse:

– Quando o iate estava afundando, não é verdade que você telefonou para Danny Porush e disse a ele que tinha 10 milhões de dólares em dinheiro enterrados em seu quintal e que, se você e sua mulher morressem, ele deveria desenterrar o dinheiro e garantir que fosse entregue a seus filhos?

Olhei em volta da sala de interrogatório e todos os olhos estavam em cima de mim, incluindo os de Magnum. TOC tinha um sorriso irônico no rosto, que dizia algo do tipo: “Veja só, Jordan, eu sei de coisas sobre você que você nem imaginava que eu soubesse!”. O Mórmon, no entanto, mostrava um sorriso mais travesso, como se dissesse: “Eu divido esses 10 milhões com você se me entregar um mapa do tesouro e deixar os outros fora dessa parada”. Mas a Bruxa e o Canalha mantinham expressões sombrias, passando a mensagem: “Vamos lá, conte uma mentira e você vai ver o que lhe acontece!”.

Ironicamente, eu não tinha a mínima ideia sobre o que eles estavam falando. Na verdade, eu estava atônito por três motivos: primeiro, porque eu não tinha enterrado nem 10 dólares no fundo de meu quintal, quanto mais 10 milhões; em segundo lugar, não havia como provar isso, a não ser levando TOC ao meu quintal com uma pá e uma picareta para escavar 20 mil metros quadrados da grama supercara importada das Bermudas; e em terceiro lugar, por causa da maneira como havia sido formulada a pergunta, insinuando que a informação teria vindo da parte de Danny Porush, o que demonstrava que ele estava cooperando também.

E isso era tanto uma coisa boa quanto uma coisa ruim. Pelo lado bom, significava que eu não teria de delatar Danny, o que tinha sido algo que Magnum havia previsto. Pelo lado não tão bom, Danny tinha sido meu braço direito, o que significava que qualquer coisa que eu dissesse seria checada com ele para garantir sua exatidão. Eu teria que ser extremamente cauteloso com essa situação; as mentiras teriam de ser evitadas. Seria simplesmente muito fácil ser pego. A omissão dos fatos, na verdade, seria minha única esperança. Afinal, reter informações poderia ser classificado apenas como um lapso da memória.

Com um toque de desdém, respondi:

– Essa é a coisa mais ridícula que já escutei, Joel – sacudi a cabeça e deixei escapar uma risadinha cínica. – Olhe, não sei de onde você tem recebido suas informações, mas juro que isso é completamente falso.

Olhei para o TOC. Sua expressão era neutra, seus olhos de falcão estavam ligeiramente cerrados, como se ele estivesse me avaliando. Olhei para ele diretamente nos olhos e continuei:

– Acredite em mim, Greg, quem quer que tenha lhe dito isso está gozando com sua cara. Pense nisso por um segundo: quem em sã consciência iria enterrar 10 milhões de dólares em seu quintal? Eu teria de ter escavado o buraco no meio da noite e, em seguida, reposto o gramado antes de o sol nascer. E eu não sou exatamente o sujeito mais inclinado a fazer esse tipo de esforço manual. De fato, na última vez que a lâmpada de um de meus abajures queimou, eu joguei fora o abajur… – e olhei diretamente nos olhos do Canalha.

– Você tem um advogado muito competente – bufou Joel –, por isso tenho certeza de que ele lhe explicou que, se você for pego mentindo ou tentando nos enganar da maneira que for, nós teremos o direito de rasgar seu acordo de cooperação e atirá-lo no cesto de lixo – ele me dirigiu um sorriso irônico. – Isso quer dizer que você será condenado sem o benefício da carta da Promotoria, o que se traduz em mais ou menos 30 anos em uma…

Magnum o cortou:

– Ei, ei, ei, Joel! Acalme-se! Jordan está plenamente ciente de suas obrigações, e ele tem toda a intenção de seguir de acordo com elas.

O Canalha deu de ombros.

– Eu não estou dizendo que ele não sabe disso – devolveu. – Mas é minha obrigação legal informá-lo sobre o terrível destino que pode se abater sobre sua pessoa – e sobre como isso me deixaria feliz, era o que seu tom de voz implicava – se ele for condenado sem o benefício da carta.

O Canalha se virou para me olhar diretamente nos olhos e acrescentou:

– E lembre-se ainda de que todas as informações que nos fornecer podem ser usadas contra você caso mude de ideia e decida enfrentar o tribunal.

– Estou bem informado sobre tudo isso – respondi calmamente. – Greg me explicou ontem à tarde. Mas você não precisa se preocupar, eu não vou colocá-lo em uma posição em que possa arruinar minha vida, Joel – por mais que eu tentasse, minhas últimas palavras escorregaram de minha boca com uma dose substancial de ironia.

– Sabem de uma coisa? Eu acho que este pode ser um bom momento para conversar com meu cliente – disse Magnum. – Vocês poderiam nos dar alguns minutos?

– Sem problema – disse o Canalha, levantando-se de sua cadeira.

Ele sorriu para a Bruxa Má do Leste, que se ergueu de sua cadeira, seguida pelo TOC e pelo Mórmon. Então, numa fila única, todos saíram da sala e fecharam a porta atrás deles. No momento em que saíram, pulei de minha cadeira, me levantei e grunhi:

– Isso tudo é uma grande merda, Greg, uma grande merda! Você tinha razão sobre esse filho da puta, ele é um completo imbecil! E aquela outra, a Michele Adelman, puta merda! É uma vadia! Alguém devia dar a ela uma vassoura e mandá-la de volta para a Terra de Oz!

Magnum concordou com a cabeça, levantando-se lentamente de sua cadeira até ficar a minha frente, cerca de duas cabeças acima da minha. Com um sorriso amigável, ele disse:

– Antes de qualquer coisa, eu quero que você se acalme. Respire fundo e conte até dez; então, quando você estiver mais calmo, aí nós poderemos conversar sobre esses 10 milhões enterrados no fundo do seu quintal.

Olhei para cima, para Magnum, cuja cabeça agora parecia encostar nas lâmpadas fluorescentes do teto.

– Você quer, por favor, se sentar? – exigi. – Você é alto pra caralho! Eu acabo perdendo a perspectiva das coisas quando nós dois estamos de pé – e fiz sinal para que ele se sentasse.

– Você não é tão baixinho assim – respondeu ele, olhando para o topo de minha cabeça como se eu fosse um anão. – Você tem é complexo, isso sim – ele estendeu a mão enorme e a pousou em meu ombro. – Tem mais, eu acho que, quando isso tudo acabar, você deveria buscar ajuda para tratar disso.

Soltei um suspiro.

– Tá, claro, eu vou procurar o psiquiatra da prisão quando não estiver ocupado sendo enrabado por Bubba, o Touro Viado… – balancei a cabeça, frustrado. – Olhe, Greg, eu não enterrei nem um centavo no quintal nem em nenhum outro lugar.

– Isso é ótimo – disse Magnum, sentando-se de novo. – Então não há nada com que se preocupar. Joel terá de escrever a carta para você, mesmo que ele não acredite em uma só palavra do que você disser. Ele só poderá reter a carta se você for pego numa mentira de maneira indiscutível. Mas você terá que lhe fornecer uma declaração financeira – parou por alguns instantes. – E isso inclui qualquer quantia em dinheiro vivo que você tiver. Se alguma coisa vier à tona durante o processo – ele me olhou diretamente –, poderá ser muito ruim para você. Muito ruim mesmo. Quanto é o valor em dinheiro que você tem no momento?

– Não muito – respondi. – Acho que 1 milhão, um pouco menos.

– Isso é tudo?

– Sim, é… Talvez você esteja se esquecendo de todo o dinheiro que contrabandeei para o exterior. Por que porra você acha que estou sentado aqui agora, por causa de uma multa de trânsito?

– Eu entendo que você mandou dinheiro para o exterior, mas não todo ele – disse Magnum, que então fez uma pausa e girou seu longo e esguio pescoço, provocando uma dúzia de cracs nas vértebras. – Ouça, Jordan, só estou fazendo o papel do advogado do diabo, tentando antecipar o que o Joel poderia pensar, pois acho que ele vai ficar muito cético.

Balancei a cabeça, consternado.

– Deixe-me explicar uma coisa a você, Greg. Durante os últimos quatro anos, eu não fui realmente dono de um escritório de corretagem. Eu só estava controlando a empresa por trás das cortinas, entendeu?

Ele assentiu.

– Certo, então siga meu raciocínio: uma vez que eu não possuía de fato uma corretora, era eu quem estava recebendo participações nos novos lançamentos mais quentes e era eu quem estava chutando o dinheiro de volta para os proprietários sob a forma de propina – fiz uma pausa, tentando encontrar uma forma simples de explicar a Magnum (que não era um pilantra) como as coisas acontecem no mundo da malandragem. – Em outras palavras, lá atrás, no começo dos anos 1990, quando eu era dono da Stratton, era eu quem recebia os subornos em dinheiro. Mas assim que fui chutado para fora do negócio de corretagem e passei a operar nos bastidores, todo o processo se inverteu e eu passei a ser o cara que pagava as propinas, eu que pagava suborno para os proprietários das corretoras. Entendeu?

Ele concordou de novo.

– Sim, entendi – disse ele, confiante. – Isso faz todo o sentido para mim.

Assenti.

– Ótimo, porque isso tudo é a pura verdade – dei de ombros. – Seja como for, acho que não tenho nem esse milhão de dólares. Minha sogra está guardando isso para mim.

– Como é que é? – perguntou Magnum, surpreso.

Como ele era ingênuo! Magnum era um advogado muito bom, mas não pensava como um verdadeiro criminoso. Eu teria de ensiná-lo.

– O que acontece é que, na noite em que fui preso, achei que Coleman voltaria depois com um mandado de busca. Então, pedi a Nadine que desse o dinheiro para que a mãe dela tomasse conta. Mas eu posso pegar isso de volta a qualquer hora. Você acha que devo fazer isso?

– Sim, acho que deve. E se o assunto do dinheiro vivo aparecer de novo, você deveria oferecer essa informação de modo proativo. Lembre-se de uma coisa: enquanto você se comportar de forma honesta, não poderá se ver em apuros.

Ele alcançou o bolso interno do paletó e puxou uma folha de papel amarelo que tinha sido dobrada em três. Então sorriu e ergueu as sobrancelhas por três vezes em rápida sucessão, colocando depois o papel na mesa da sala de reuniões. Tirou do bolso um par de óculos de leitura e desdobrou o precioso documento, dizendo:

– Esta é a lista das pessoas sobre as quais você disse ter informações. São 97 nomes, e alguns deles são bastante suculentos – ele balançou a cabeça. – Você realmente cometeu crimes com todas essas pessoas? – perguntou, com alguma incredulidade. – Parece quase impossível…

Apertei os lábios e assenti com a cabeça lentamente. Então sentei-me ao lado dele e levei um tempo estudando aquela lista, que parecia ser um “Quem é Quem” dos vilões de Wall Street. Acompanhando os vilões estava o nome de políticos corruptos, alguns policiais corruptos, um ou dois juízes corruptos, um punhado de mafiosos e alguns contadores, advogados, CEOs e CFOs de empresas, e então pouco mais de uma dúzia de civis, pessoas que não estavam no ramo de corretagem de valores, mas que agiam como meus prepostos, o que na linguagem de Wall Street significava meus homens de frente.

Com o coração apertado, eu disse:

– Mas isso é uma vergonha, que porra! – disse, examinei a lista, balançando a cabeça em desespero. – Isso é uma merda, Greg, uma grande merda. Pensei que você iria deixar alguns desses nomes de fora, alguns dos meus amigos, como Lipsky… E Elliot Lavigne… E… Andy Greene?

Ele balançou a cabeça lentamente.

– Não, não posso – disse, com seriedade. – Isso só iria piorar as coisas. Se eu deixasse um de seus amigos de fora da lista, só iria despertar ainda mais o interesse do governo.

Eu balancei a cabeça resignado, sabendo que Magnum estava certo. No dia anterior, quando tinha feito a lista, não tinha parecido grande coisa. Nós até tínhamos dado algumas risadas com ela, achando graça de como as pessoas de todas as esferas da vida poderiam ser corrompidas pelo fascínio do dinheiro fácil em Wall Street. Parecia que a avidez, em forma de lucros instantâneos, não conhecia limites. Ela atravessava todas as fronteiras da ética, infectando todos os grupos etários. Na lista, havia negros, brancos, asiáticos, hispânicos, indianos e indígenas americanos, jovens, velhos, saudáveis, enfermos, machos, fêmeas, homossexuais, bissexuais, estavam todos lá. Parecia que ninguém podia resistir à tentação de ganhar centenas de milhares de dólares sem risco. Que triste comentário, pensei, sobre a situação do capitalismo no século XX.



CINCO MINUTOS DEPOIS, os nomes continuavam sobre a mesa da sala de interrogatório, embora agora tivesse uma plateia muito maior. O Canalha, a Bruxa, o TOC e o Mórmon estavam de volta, todos eles curvados em suas cadeiras e olhando para a lista, como se ela fosse o Santo Graal.

– Esta é uma lista bastante abrangente – maravilhou-se o Canalha. Então ele olhou para cima, com um sorriso razoavelmente amigável para mim, e disse: – Se este é um sinal das coisas que estão por vir, Jordan, então tudo vai funcionar perfeitamente bem para você.

Ele olhou para a lista novamente e continuou murmurando:

– Muito bem, de fato… Isso é excelente…

Sorri respeitosamente e me desliguei por alguns momentos. Enquanto o Canalha continuava babando sobre minha lista, me peguei pensando sobre o que ele acharia se eu tivesse deixado todas as putas na lista. Deviam ter sido umas mil prostitutas, no mínimo 500. O que a Bruxa teria pensado disso? Será que ela tentaria lançar um feitiço de impotência sobre mim? Ela certamente devia ter ouvido histórias sobre como os strattonistas classificavam nossas prostitutas como ações – as melhores eram Blue Chips e as mais vagabundas eram classificadas como Pink Sheeters (as folhas rosa, ou Pink Sheets, eram onde as ações de pouco ou de nenhum valor eram listadas). E, em algum lugar, ocupando um espaço não muito claro, havia as NASDAQs, que ou eram Blue Chips que tinham caído ou que nunca tinham sido quentes o suficiente para se beneficiar do status de verdadeiras Blue Chips.

– … e o melhor lugar para começarmos é do início – disse o Canalha, que finalmente tinha parado com seus resmungos. Ele apanhou uma caneta Bic barata e disse, em um tom de voz muito sério: – Onde foi que você fez a escola primária?

– Na escola pública 169 – respondi.

Ele assentiu com a cabeça uma vez e anotou minha resposta em um bloco de notas amarelo.

– Isso fica em Bayside?

– Sim, Bayside, no Queens.

Ele rabiscou isso também e então olhou para mim, como se estivesse aguardando que eu dissesse mais alguma coisa. Mas eu fiquei quieto, esperando que ele fizesse a próxima pergunta.

– Pode ficar à vontade para expandir mais suas respostas – disse o Canalha. – Esta não é uma daquelas situações em que menos é mais – e sorriu ligeiramente.

Assenti em compreensão.

– Claro – e não disse mais nada.

Não é que eu estivesse tentando dificultar as coisas para o Canalha. É que, ao longo dos anos, eu tinha sido treinado para dar respostas curtas durante as inquirições legais. Na verdade, eu tinha sido chamado a depor não menos que 50 vezes, na maior parte pela NASD (em arbitragens de clientes), mas também pela Comissão de Valores Mobiliários e pelo Comitê de Ética do Senado, este último na época em que estavam conduzindo uma investigação de suborno a um de seus menos conceituados senadores.

Que seja. Eu havia sido condicionado a dar como respostas apenas “sim” e “não” e a não oferecer nenhuma informação extemporânea baseada naquilo que eu pensava que meu interrogador queria ouvir. E, embora estivesse bem consciente de que as regras ali eram muito diferentes, os velhos hábitos custam a desaparecer.

Mais alguns momentos de silêncio se passaram, até que o Canalha finalmente disse:

– Você foi um aluno com notas A?

– Sim – respondi com orgulho. – Eu tirava A o tempo todo.

– Teve problemas disciplinares?

– Nenhum, embora uma vez eu tenha ficado em apuros por ter arrancado o chapéu de uma menina quando estávamos voltando para casa depois da aula – encolhi os ombros. – Acho que eu estava na terceira série, então isso nem foi anotado em meus registros – pensei nisso por um momento. – Engraçado, mas eu posso relembrar praticamente todos os problemas que tive em minha vida em relação às mulheres – ou mais acuradamente, pensei, durante minha busca por uma xana…

Houve mais um momento de silêncio. Por fim, respirei fundo e disse:

– Você quer que eu lhe conte minha história de vida? É isso que você está procurando?

– Sim – respondeu o Canalha, assentindo com a cabeça lentamente. – Isso é exatamente o que estou querendo. – Ele depositou sua caneta na mesa, recostou-se na cadeira e disse: – Tenho certeza de que as últimas perguntas devem ter lhe parecido ridículas, mas eu lhe asseguro que não são. Quando você se coloca no banco das testemunhas, a defesa vai tentar pintá-lo como sendo um criminoso de carreira, um mentiroso nato que diz qualquer coisa para salvar seu pescoço da forca. E onde quer que eles achem que exista sujeira, mesmo que isso tenha sido durante a infância, será aí que começarão a cavoucar. Eles usarão tudo o que puderem encontrar para tentar desacreditá-lo.

– Joel tem razão – acrescentou Magnum. – Eles irão desenterrar tudo o que encontrarem. E a forma como a Promotoria age é divulgando ao júri todas as coisas erradas que você fez antes mesmo que a defesa tenha uma oportunidade. Em outras palavras, nós vamos lavar sua roupa suja de forma proativa, como se não houvesse nenhum grande segredo, como coisas inteiramente irrelevantes aos procedimentos legais.

– Isso mesmo – soltou o Canalha. – Nós deixamos a defesa sem saber se estão indo ou se estão voltando.

Nesse momento, o TOC entrou na conversa:

– O que não podemos suportar são as surpresas. Elas não servem a nenhum de nossos propósitos. Nós precisamos conhecer os detalhes mais íntimos de sua vida, tudo, qualquer coisa que você tenha feito e da qual consiga relembrar.

Agora quem falava era a Bruxa:

– E isso inclui não apenas o uso de drogas, mas também seu apreço pelas prostitutas, sendo que ambos foram devidamente notados pela imprensa.

A isso, o Canalha acrescentou:

– E ambos certamente serão explorados pelos bons advogados de defesa.

Depois de alguns momentos de silêncio constrangedor, eu disse:

– Tudo bem, mas eu tinha a impressão – e resisti ao impulso de olhar diretamente para os olhos de Magnum e disparar um raio da morte em cima dele – de que as pessoas raramente vão a julgamento nesses casos, de que geralmente fazem um acordo ou passam a cooperar.

O Canalha encolheu os ombros.

– Isso é verdade na maioria dos casos, mas eu não contaria com isso. No final, há sempre um indivíduo que demora em consentir, alguém que prefere assumir suas chances em um tribunal…

Todo mundo assentiu em uníssono, incluindo Magnum, que estava agora no processo de revisar a história. Bem, foda-se então! Já era hora de as fichas caírem onde deviam cair…

– Vocês sabem – disse eu, num tom casual –, eu tenho apenas 36 anos, mas tive uma vida muito intensa. Isso pode levar bastante tempo.

O TOC sorriu ironicamente.

– Venho tentando compreender sua vida durante os últimos cinco anos – disse ele. – Portanto, pessoalmente, tenho todo o tempo que for necessário.

– Isso mesmo, vamos ouvir – acrescentou o Canalha.

– É sua única chance de conseguir uma redução da pena – retrucou a Bruxa.

Ignorei a Bruxa e olhei diretamente para o Canalha, dizendo:

– Certo. Como você levantou o assunto de Bayside, então vamos começar por lá. É um lugar tão bom para começar como qualquer outro, considerando que foi de lá que veio a maioria dos strattonitas que começaram na empresa – fiz uma pausa, refletindo sobre o tempo passado. – Mesmo aqueles que realmente não vieram de Bayside acabaram se mudando para lá depois que a empresa começou.

– Todo mundo se mudou para Bayside? – perguntou ceticamente o Canalha.

– Nem todos – retruquei. – Mas a grande maioria, sim. Veja, mudar-se para Bayside era uma forma de provar sua lealdade à firma, uma forma de mostrar que você era um verdadeiro strattonita. Eu sei que isso parece um pouco absurdo, pensar que se mudar para determinado bairro possa representar uma declaração de princípios desse gênero, mas era assim que as coisas funcionavam naquele tempo. Nós éramos como a máfia, sempre procurando novas maneiras de manter os estranhos longe – dei de ombros. – Quando você trabalhava na Stratton, você socializava apenas com outros funcionários da firma, e era disso que se tratava morar em Bayside. Você estaria bloqueando os estranhos, provando, então, que fazia parte do culto.

– Você está afirmando que a Stratton era um culto? – balbuciou a Bruxa.

– Sim – respondi com calma. – É exatamente o que estou dizendo, Michele. Por que você acha que era tão difícil entrar na Stratton? – Olhei para TOC. – Em quantas portas você acha que teve de bater ao longo dos anos… Apenas uma estimativa?

– Pelo menos 50 – respondeu ele. – Talvez mais.

– E cada uma delas foi batida na sua cara, não foi?

– Exatamente – disse ele, cansado. – Ninguém queria falar comigo.

– Um dos grandes motivos para isso, se não o maior, é que todo mundo estava ganhando tanto dinheiro que ninguém queria causar problemas – fiz uma pausa, deixando que eles absorvessem essas palavras. – Mas era mais do que isso: o que estava bem no âmago desse comportamento era proteger o modo de vida Stratton. Era isso que todo mundo estava fazendo, protegendo aquela vida.

– Defina “aquela vida” – disse o Canalha com uma pitada de sarcasmo na voz.

Dei de ombros.

– Bem, entre outras coisas, significava ter o carro mais badalado, comer nos restaurantes da moda, dar as maiores gorjetas, usar as melhores roupas – balancei a cabeça, assombrado. – Quero dizer que nós fazíamos todas as coisas juntos. Passávamos todo o tempo possível juntos. E isso não significa apenas no trabalho, mas em casa também – olhei para a Bruxa, fixamente dentro de seus olhos escuros, negros como a noite. – É por esse motivo que a Stratton era um culto, Michele. Era tipo um por todos e todos por um, e um monte para si mesmo, é claro. E não havia estranhos por perto, nunca – olhei ao redor da sala. – Entenderam?

Todos, incluindo a Bruxa, assentiram.

O Canalha disse:

– Isso que você está nos contando faz sentido, mas eu pensava que a maioria de seus recrutas iniciais tivesse vindo de Long Island, de Jericho e Syosset.

– Mais ou menos a metade deles – respondi rapidamente. – E existe uma razão para isso, mas nós estamos nos adiantando aqui. Seria melhor se a gente seguisse uma ordem.

– Por favor – disse o Canalha. – Está sendo muito produtivo.

Assenti, reunindo meus pensamentos.

– Então, de volta a Bayside. É um bocado irônico, considerando que quando eu era adolescente jurei que deixaria Bayside assim que ficasse rico. Eu devia ter uns 15 anos quando me dei conta de que havia um tipo diferente de vida lá fora, uma vida melhor, pensei na ocasião, uma vida de riqueza e fartura. Lembrem-se de que eu não nasci numa família com dinheiro, então extravagâncias como mansões, iates, jatinhos particulares, essas coisas que as pessoas agora associam a mim, me eram completamente estranhas até então. Bayside era um lugar estritamente de classe média, sobretudo a parte do bairro onde cresci – sorri nostalgicamente. – Acontece que era um lugar maravilhoso onde crescer. Não havia crimes, e todos se conheciam. Todo mundo tinha se mudado para lá vindo do Bronx ou de outras partes do Queens, de vizinhanças e bairros que… Vocês sabem… Tinham se modificado. Meus pais se mudaram para lá vindos do sul do Bronx, que agora é uma verdadeira merda… Você não está anotando nada disso, Joel.

O Canalha sorriu conspiratório.

– Tudo aquilo que eu escrever terei de passar para os advogados de defesa, quem quer sejam eles. Então, no meu caso, menos é mais. De qualquer forma, basta continuar falando, eu tenho uma excelente memória.

Assenti.

– Tudo bem. Então, meus pais se mudaram para Bayside para me poupar da dor de cabeça de ter que crescer em um lugar como o Bronx. Morávamos em um apartamento em um edifício de seis andares que ficava em uma daquelas comunidades planejadas que estavam pipocando na época. E era lindo: tinha campos para jogar bola, parques infantis, vias concretadas para os pedestres, casas de árvores, arbustos para brincar de esconde-esconde e, o mais importante, tinha centenas de crianças. O que significava que havia dezenas de futuros strattonitas para ser recrutados. E todos eles estavam recebendo boa instrução – fiz uma pausa, reconsiderando minhas palavras. – Embora essa parte da educação tenha sido uma faca de dois gumes.

– Por que você está dizendo isso? – perguntou TOC, que parecia se divertir com a história.

– Bem – respondi –, quando nós chegamos à adolescência, estávamos instruídos o suficiente para saber que tínhamos recebido muito pouca educação. Em outras palavras, nós sabíamos que, sim, a gente podia não morrer de fome como as crianças na África, mas havia definitivamente algo mais fora de Bayside – fiz uma pausa para conseguir mais efeito. – Era desse jeito que todo mundo no bairro pensava. Havia uma sensação de esperança ilimitada ou uma intuição, pode-se dizer assim, de que um dia nós iríamos ficar ricos e nos mudar para Long Island, onde estava o dinheiro de verdade, onde as pessoas moravam em casas e guiavam Mercedes e Cadillacs.

– Alan Lipsky cresceu no mesmo prédio que você, não é? – perguntou TOC.

– Sim – respondi –, no mesmo andar. Andy Greene, que você provavelmente deve conhecer como Cabana, morava a apenas algumas quadras de distância. Embora ninguém o chamasse por esse apelido naquela época, ele só foi perder os cabelos quando estava no colegial – dei de ombros. – Ele só foi arrumar sua primeira peruca quando estava no primeiro ano da faculdade. Foi lá que ele se tornou o Cabana, apesar de usar a pior peruca vista do lado de cá da antiga Cortina de Ferro.

Encolhi os ombros de novo, me perguntando se Andy Greene estaria sentado naquela mesma cadeira, naquela mesma sala, em um futuro não muito distante. Afinal, ele tinha sido o chefe do Departamento Financeiro da Stratton, responsável por descobrir negócios que podiam ser lançados a público e fazer com que fossem liberados pela Comissão de Valores Mobiliários. Ele era um bom homem, e era bem possível que ficasse arrasado se tivesse de ir para a cadeia e fosse forçado a se livrar de sua peruca.

– De qualquer forma – disse –, Alan morava no apartamento 5-K e eu no apartamento 5-F, e nós nos tornamos melhores amigos desde que usávamos fraldas. Tenho certeza de que todos vocês estão cientes do fato de que fui eu quem deu a Alan o treinamento e o financiamento e que lhe mostrei como o jogo funcionava – todos concordaram. – E, em contrapartida, ele e Brian me pagavam adiantado 5 milhões por ano em royalties, numa espécie de reciprocidade. Mas estou me adiantando, outra vez. Isso aconteceu muitos anos depois.

O Canalha assentiu.

– Você afirmou antes que nunca teve problemas disciplinares durante seu crescimento. Você não nunca foi para a prisão? Nada relacionado à delinquência juvenil?

Balancei a cabeça, dizendo que não e desejando dar uma porrada no Canalha por insinuar que eu tinha sido uma semente ruim desde criança. Mas tudo o que disse foi:

– Eu era um bom garoto, um aluno que só tirava A, exatamente como contei – pensei por um momento. – Assim como o restante de minha família. Meus dois primos mais velhos entraram em Harvard e se formaram entre os melhores da classe. Os dois são médicos agora. E meu irmão mais velho, acho que Joel o conhece, é um dos mais respeitados advogados do país. Ele costumava jogar pôquer com alguns de seus amigos do gabinete do Procurador do Estado, embora tenha abandonado esses jogos no momento em que minha investigação começou a esquentar. Acho que a situação ficou bastante desconfortável para ele.

O Canalha assentiu respeitosamente.

– Nunca me encontrei com seu irmão, mas só ouvi coisas boas sobre ele. É incrível que vocês dois sejam parentes…

– É… – murmurei. – É uma porra de um milagre. Mas nós somos parentes, e eu era exatamente igual a ele quando mais novo. Talvez nossas personalidades fossem diferentes, quer dizer, eu era o cara extrovertido, e ele, o introvertido, mas eu sempre fui tão bom aluno quanto ele. Provavelmente até melhor… A escola era ridiculamente fácil para mim. Mesmo depois de eu ter começado a fumar maconha, acho que por volta da 6a série, eu ainda continuava tirando A direto em todas as matérias. Só por volta do colegial que as drogas começaram a pegar para mim.

TOC recuou visivelmente.

– Quer dizer que você começou a fumar maconha na 6a série?

Assenti, com um senso de orgulho distorcido.

– Exatamente, Greg, quando eu estava com 11 anos. O irmão mais velho de um amigo era traficante de drogas, e uma noite Alan e eu dormimos na casa desse amigo, e foi lá que o irmão do cara nos deixou doidões – fiz uma pausa, sorrindo para aquela absoluta loucura de fumar maconha aos 11 anos. – De qualquer forma, a maconha não era tão forte naquela época, e então a gente só teve um pequeno barato. Eu não comecei a saltar pelas paredes, como fiz mais tarde quando adulto – dei um minúsculo sorriso. – Continuei brincando com maconha por mais alguns poucos anos, mas ela nunca me causou nenhum problema. Meus pais ainda pensavam que tudo estava bem.

Fiz mais uma pausa e gastei alguns segundos estudando a expressão no rosto dos demais ocupantes da sala, que variavam em diferentes graus de incredulidade.

– Acho que a primeira vez que eles notaram que alguma coisa estava errada foi quando eu estava na 8a série e recebi uma nota 92 em uma prova de matemática. Minha mãe ficou arrasada. Antes disso, eu nunca tinha tirado uma nota inferior a 98, e mesmo isso fazia com que ela levantasse uma sobrancelha. Eu me lembro de ela dizer alguma coisa como: “Está tudo bem com você, querido? Você estava doente? Alguma coisa aborreceu você?” – balancei a cabeça quando recordei essa passagem. – Claro que eu não lhe contei que tinha fumado dois baseados rechonchudos de Colombian Gold antes da prova e que, por isso, estava tendo dificuldades em somar dois mais dois naquela tarde – dei de ombros inocentemente. – Mas eu me lembro de ela ter ficado de fato muito preocupada com aquela nota, como se eu ter tirado 92 em matemática fosse reduzir minhas chances de entrar na faculdade de medicina de Harvard. Mas essa era minha mãe. Ela era uma pessoa que sempre buscava exceder às expectativas e que nos mantinha em um nível muito elevado. De fato, não faz muito tempo, ela se tornou a mulher mais velha no Estado de Nova York a passar no exame da Ordem dos Advogados. Ela hoje exerce a advocacia em Long Island, fazendo tudo pro bono – disse, e pensei numa forma de me redimir perante a Bruxa. – Ela defende mulheres vítimas de violência, aquelas que não podem pagar um advogado – e olhei nos olhos redondos da Bruxa, esperando conquistá-la com as fabulosas ações de minha mãe.

Infelizmente, ela permaneceu impassível, totalmente imóvel. Era uma durona filha da puta. Decidi redobrar os esforços.

– Naqueles dias, minha mãe era uma contadora certificada muito bem-sucedida, numa época em que havia poucas mulheres no mercado de trabalho – arqueei as sobrancelhas e assenti com a cabeça rapidamente, como que dizendo “Impressionante, não acha?”. E depois olhei diretamente para ela, esperando que sua expressão se suavizasse um pouco.

Nada. A Bruxa continuava me encarando, atirando dardos. Depois de alguns momentos, desviei o olhar. Ela era tão venenosa que me peguei olhando para o Canalha em busca de salvação, esperando que ele aprovasse minha mãe, apesar da insolência da Bruxa. E disse a ele:

– Ela é um gênio, minha mãe. Uma senhora verdadeiramente maravilhosa.

O Canalha concordou com a cabeça, aparentemente admirado com a retidão de minha mãe, embora eu também notasse em sua expressão corporal uma sugestão de “E quem liga pra essa merda?”. Mas então, e com grande sinceridade, ele disse:

– Bem, parece mesmo que ela é uma mulher notável – e concordou com a cabeça uma vez mais.

– Ela é, de fato – repliquei. – E tem meu pai, que tenho certeza de que você também conhece – sorri tristemente. – Ele também é contador, e um gênio a seu modo, maaaas… – fiz uma pausa, tentando encontrar a palavra exata para definir meu pai, Max, cujo apelido na Stratton era Mad Max, por causa de seu temperamento descontroladamente feroz.

Mad Max era um fumante compulsivo inveterado, um grande defensor das melhores vodcas russas, uma bomba-relógio humana e um surpreendente dândi no modo de se vestir. Mad Max não era de escolher seus favoritos, ele odiava a todos igualmente.

– Bem – disse, com um sorriso maroto –, vamos dizer apenas que ele não é uma criatura tão benevolente quanto minha mãe.

Com um começo de sorriso, TOC perguntou:

– É verdade que ele costumava estourar o vidro do carro dos corretores que paravam na vaga dele?

Concordei vagarosamente com a cabeça.

– É verdade; se ele estivesse de mau humor, amassava a lataria e os paralamas também. E depois chamava o guincho e mandava rebocar o carro – dei de ombros. – Mas o pessoal continuava parando na vaga dele de qualquer maneira. Isso se tornou apenas mais uma forma de provar a lealdade para com a empresa: levando uma surra de Mad Max, você se tornava um verdadeiro strattonita.

Houve alguns momentos de silêncio, e então o Canalha falou:

– Quando você começou a desobedecer à lei? Quantos anos você tinha?

Encolhi os ombros:

– Isso depende de como você define o ato de desobedecer às leis. Se você considerar que o consumo de drogas perigosas é uma violação da lei, então eu já era um criminoso aos 11 anos. Se infringir a lei é faltar às aulas, então eu era um arquicriminoso, porque faltei à maior parte das aulas no 1º colegial. Mas, se você quer saber se eu fiz alguma coisa que eu mesmo considerei ilegal, algo que eu fazia dia sim e dia não, diria que foi quando comecei a vender sorvetes na Jones Beach.

– Qual era sua idade então? – perguntou o Canalha.

– Quase 17 – pensei por um momento, lembrando meus dias na praia. – O que eu fazia era andar pela praia com minha geladeira de isopor, vendendo sorvetes de barraca em barraca. Eu andava por lá anunciando “Sorvetes italianos, Chipwiches, Fudgsicles, picolés de fruta, Milky Ways e Snickers”, e andava, andava, o dia inteiro. Foi o melhor trabalho de todos, absolutamente o melhor! Todos os dias pela manhã, às 6 da matina, eu ia até o distribuidor grego aonde iam todos os caminhões das sorveterias, em Howard Beach, no Queens, e enchia meu isopor de sorvetes. Então enchia as geladeiras de gelo seco e ia direto para a praia – fiz outra pausa, saboreando a lembrança. – Fiz uma fortuna vendendo sorvetes na praia. Num dia bom, rentável, ganhava mais de 500 dólares limpos. Mesmo num dia devagar, dava para fazer 250, que era dez vezes mais o que meus amigos recebiam.

E continuei:

– Foi lá que conheci Elliot Loewenstern; nós vendíamos sorvetes juntos – fiz um gesto para minha lista de vilões, ladrões e pilantras. – Tenho certeza de que vocês todos estão familiarizados com Elliot. Ele está aí em algum lugar, muito perto do topo – dei de ombros, nem um pouco preocupado em dizer algo que implicasse Elliot Loewenstern.

Afinal, eu sabia que Elliot, cujo apelido era Pinguim, devido ao nariz longo e fino, à barriguinha compacta e às pernas ligeiramente arqueadas que o faziam andar desengonçadamente como um pinguim, iria cooperar rapidamente se precisasse enfrentar a possibilidade de passar mais que algumas horas na cadeia. Na verdade, eu já o tinha visto se abrindo durante um interrogatório da polícia, quando o que estava em jogo era pouca coisa. Durante nossa operação de venda de sorvetes, ele foi multado em 50 dólares por fazer vendas sem licença. Em vez de pagar a multa e ficar de bico calado, ele dedurou todos os outros vendedores na praia, inclusive eu. Então, sim: se o TOC e o Canalha garantissem uma acusação contra o Pinguim, ele cantaria na Court Street com prazer digno de uma Celine Dion.

Eu estava pronto para continuar minhas histórias, quando o Canalha disse:

– Acho um pouco estranho que, depois de tudo o que você fez, ainda pense que vender sorvetes é infringir a lei – ele encolheu os ombros. – Muitas pessoas achariam que isso é uma forma honesta de um garoto ganhar um dinheirinho.

Que interessante, pensei. O Canalha tinha levantado uma questão muito profunda: o que constitui de fato uma violação da lei? Voltando àqueles dias, praticamente todo mundo que eu conhecia (tanto meus colegas quanto os adultos) tinham considerado que minha venda ilegal de sorvetes era uma coisa totalmente justa. Para falar a verdade, eu tinha até recebido muitos elogios. Ainda assim, o fato é que era uma atividade ilegal, porque eu estava vendendo sem licença.

Mas aquilo era de fato ilegal? Será que algumas dessas leis não eram feitas para não serem cumpridas? No fim das contas, o que nós estávamos tentando fazer era conseguir algum dinheiro de forma honesta, não é verdade? Por outro lado, estávamos também ajudando a melhorar a experiência de ir à praia para milhares de nova-iorquinos, que de outra forma teriam que andar muito até o calçadão (que estava cheio de lascas e farpas) e ficar esperando na fila da barraca de sorvete, que era tocada por um jovem de cara amarrada que provavelmente cuspia no lanche no momento em que as pessoas viravam as costas. Portanto, qualquer um poderia argumentar que Elliot e eu estávamos praticando uma “boa ação”, apesar do fato de que, tecnicamente falando, estávamos infringindo a lei.

– Bem, a resposta mais curta aqui é que – disse eu ao Canalha – nós estávamos realmente infringindo a lei. Era uma venda sem licença, o que, para melhor ou pior, era uma contravenção classe B no Estado de Nova York. Para ir mais adiante, também éramos culpados de evasão de imposto de renda, porque estávamos faturando 20 mil pratas no verão sem declarar um centavo disso. Avançando ainda mais um pouco, quando fiz 18 anos comecei a vender também colares de conchinhas. Pensei o seguinte: já que eu estava andando pela praia toda oferecendo sorvetes, por que não tirar vantagem do mercado mal servido das bijuterias? – disse e dei de ombros de um modo bem capitalista. – Então fui até o distrito das joalherias em Chelsea, comprei mais de mil colares de conchinhas e contratei alguns garotos do ginásio para andar pela praia comigo. Eu tinha três moleques como meus empregados, e eles cobravam 4 dólares em cada colar. Meu custo era de apenas 50 centavos cada peça, de forma que, mesmo depois de pagar 50 pratas por dia para cada um dos meninos, eu ainda tinha um lucro de 200 dólares. Era muito mais dinheiro que eu ganhava com meus sorvetes!

Continuei:

– Mas é claro que os moleques não eram registrados, e eu não estava pagando impostos por aquilo que eles vendiam. Sem mencionar o fato de que eu os tinha vendido pela praia também sem licença. Então não era mais só eu que estava infringindo a lei, eu estava corrompendo um monte de jovens inocentes também. A certa altura, coloquei minha mãe no negócio. Fazia com ela acordasse às 5 da manhã para fazer bagels na manteiga, os quais eu vendia entre 9 e 11 horas da manhã, antes que o sol estivesse alto o suficiente para estimular a venda dos sorvetes. Havia todas as leis da Vigilância Sanitária que eu estava violando, por preparar alimentos em um local que não tinha sido inspecionado, apesar de minha mãe manter uma cozinha de fato impecável, pois ela era kosher. Por isso, acho que ninguém nunca ficou doente. Mas, ei, tudo aquilo foi em nome do capitalismo à moda antiga, então eu realmente não estava infringindo a lei, estava? Foi tudo muito inofensivo, tudo muito louvável. – Olhei para o Canalha e sorri. – Como você disse, Joel, aquela era uma forma muito honesta para um garoto ganhar seu dinheiro – fiz uma pausa, para deixar minhas palavras ecoarem nas pessoas. – De qualquer forma, eu poderia continuar por muito tempo nisso, mas acredito que vocês tenham compreendido meu ponto de vista: todo mundo, incluindo meus pais, cumpridores das leis, achou que vender sorvetes era a melhor coisa na face da Terra. Era a iniciativa de um empreendedor! Mas a questão é, existe mesmo essa coisa de crime justo? Quando foi que eu cruzei a linha com os sorvetes? Bem no comecinho, quando decidi vender sem obter a licença apropriada? Ou quando recrutei aqueles garotos do ginásio? Ou quando envolvi minha mãe? Ou quando escolhi não pagar os impostos…

Respirei fundo e disse:

– Quero que vocês entendam uma coisa: você não começa no lado negro da força, a menos, evidentemente, que seja um sociopata, e espero que todos saibam que eu não sou um – todos assentiram em concordância. Em um tom mais sério, acrescentei: – O problema é que você se torna insensível com as coisas, você cruza a linha um pouquinho e nada de ruim lhe acontece, então você acha que tudo bem dar um passo além, só que então é um passo maior. É da natureza humana fazer isso, seja um cara viciado em adrenalina, seja um drogado ou mesmo se não for viciado em coisa nenhuma; você está simplesmente mergulhando o pé em uma banheira de água fervente. No começo você nem consegue manter o dedão lá dentro, porque a água está quente demais. Mas depois de um ou dois minutos todo o corpo está mergulhado lá dentro e a água está gostosa.

Continuei:

– Quando fui para a Universidade Americana, todas essas coisas acabaram sendo reforçadas. Comecei a namorar uma garota de família muito rica, cujo pai estava no ramo de encadernação. Seu nome era David Russell e ele valia milhões. Não surpreendentemente, ele achou que aquilo que eu andava fazendo na praia era a melhor coisa de todos os tempos. Na verdade, um dia ele deu uma grande festa na casa dele e me fez desfilar por todos os lados dizendo: “Este é o rapaz de quem eu estava falando!”. E me fez contar a todo mundo a história de como eu acordava de madrugada, ia às 6 da manhã no tal distribuidor grego para encher minhas geladeiras de isopor com sorvetes italianos e depois ficava caminhando pela praia de barraca em barraca oferecendo meus produtos, fugindo dos guardas que corriam atrás de mim por vender sem licença. E, é claro, até o último de seus convidados achou que aquilo era a melhor coisa que eles já tinham ouvido. E faziam brindes para mim. “Para o milionário de amanhã!”, diziam eles.

Sorri com essa lembrança.

– Eu só estava no primeiro ano da faculdade, era um calouro naquela época, mas eu tinha certeza de que eles tinham razão. Eu sabia que seria rico um dia, e assim também pensavam meus amigos. Mesmo quando eu trabalhava na praia, sempre ganhei o dobro de qualquer outro vendedor. E nem estou computando aqui os pães com manteiga ou os colares de conchinhas. O que acontecia era apenas que eu trabalhava mais duro e por mais tempo que qualquer outra pessoa, até mesmo que Elliot, que também era um trabalhador incansável. Mas no final do dia, quando ele e eu nos sentávamos para fazer as contas, eu sempre o superava em pelo menos 50%.

Fiz uma pausa para recuperar o fôlego e dediquei alguns momentos para avaliar a temperatura de meus captores. O que eles estariam pensando? Eu me perguntei: será que eles poderiam ter algum tipo de conexão com uma pessoa como eu? Eu era de uma raça à parte. No caso da Bruxa, éramos de uma espécie diferente. De qualquer maneira, todos pareciam perplexos. Estavam apenas lá, sentados, olhando para mim, como se eu tivesse um parafuso solto ou coisa parecida.

Pulei para meus primeiros anos de vida adulta.

– Então, depois que terminei a faculdade, decidi estudar odontologia, porque queria ganhar muito dinheiro. É engraçado como isso parece ridículo agora, o fato de eu achar que a odontologia seria um caminho para fazer fortuna, mas acho que toda a falação de minha mãe em meus ouvidos enquanto eu estava crescendo acabou exercendo grande impacto sobre mim – dei de ombros. – Na verdade, eu achava que minha única alternativa era fazer medicina, mas me tornar um médico me pareceu uma insanidade a longo prazo. Somando-se o estágio, a residência, o mestrado, tudo me parecia muito fora de alcance. Então eu perdi o MCAT* por dormir demais, o que praticamente acabou com tal possibilidade. Como eu poderia dizer à minha mãe que tinha perdido os exames que ela vinha esperando que eu fizesse praticamente desde o dia em que saí do ventre dela? Ela ficaria de coração partido! Então concluí que, sendo o bom filho que eu era, o melhor seria mentir para minha mãe; disse a ela que tinha decidido não fazer a prova porque achava que ser médico não era o melhor para mim. Afirmei e garanti que ser dentista era meu futuro – balancei a cabeça lentamente, impressionado pela maneira como tinha selado meu destino tantos anos antes. – Agora chegamos à parte da história em que toda a verdadeira loucura começa: meu primeiro dia na faculdade de odontologia – sorri cinicamente. – Vocês já ouviram a velha expressão de que todas as estradas levam a Roma?

Todos assentiram, concordando.

– Certo… Bem, em meu caso, todas as estradas levavam à Stratton, e eu pisei nessa estrada logo no primeiro dia, que era o de orientação. Estávamos todos sentadinhos no auditório da faculdade, 110 estudantes, esperando para ouvir as primeiras palavras de sabedoria do reitor. Eu me lembro desse dia como se fosse ontem. Estava correndo os olhos em volta do auditório, tentando avaliar meus competidores, tentando descobrir se todos eles também eram esfomeados por dinheiro como eu ou se alguns deles estavam lá apenas pelo amor à odontologia. Tipo servir à humanidade e coisas assim – balancei a cabeça, como se minhas últimas palavras desafiassem a lógica.

– A sala estava lotada, metade de homens e metade de mulheres. O reitor estava de pé na frente, atrás de um pódio barato de madeira. Ele parecia um cara bem decente, na faixa de seus 50 anos, e razoavelmente bem-vestido. Tinha cabelos grisalhos, que o faziam parecer um homem bem-sucedido, respeitável e muito odontológico, pelo menos na minha maneira de pensar. Mas ele tinha um tipo de expressão sombria no rosto, como se fizesse hora extra à noite, como um diretor de penitenciária estadual… – Como você, Joel, seu sarnento! – Mas, apesar disso, ele ainda parecia um cara basicamente legal. Então, quando ele pegou o microfone que estava no pódio, me inclinei para a frente na cadeira para ouvir. Em uma voz surpreendentemente profunda, ele disse: “Quero acolher todos vocês aqui na Faculdade de Cirurgia Dentária de Baltimore. Vocês todos merecem ficar muito orgulhosos hoje, porque foram aceitos em uma das melhores escolas de odontologia do país”. E ele fez uma pausa, deixando suas palavras pairando no ar. Até agora, tudo bem, pensei. Então, o reitor voltou a falar: “O que vocês vão aprender ao longo dos próximos quatro anos vai lhes garantir um lugar de destaque na sociedade, assim como uma vida de razoável conforto. Então, por favor, deem a si mesmos uma calorosa salva de palmas, porque com certeza merecem. Bem-vindos! Bem-vindos!”. Ele levantou seu microfone e todo mundo começou a aplaudir, na hora certa. Todos, exceto eu, porque me senti arrasado, sabendo exatamente naquela hora que tinha cometido um erro terrível – girei o pescoço para um lado e para o outro, tentando fazer com que aquela lembrança não me chateasse demais. – Foi a maneira como ele tinha usado a palavra razoável. Era uma palavra forte para caralho, pelo amor de Deus! Aquele cretino sabia, ele sabia, porra, que a idade de ouro da odontologia já tinha acabado, por isso ele não conseguiu dizer que a gente iria ter conforto total. Aquele puto se esquivou e disse “razoável conforto”, o que é uma coisa completamente diferente. No entanto, para minha surpresa total, quando olhei ao redor da sala, ninguém mais parecia preocupado com isso. Todo mundo estava muito bem e feliz, batendo palmas alegremente, lá lá lá, e todos com uma expressão de expectativa no rosto. Os dentistas de amanhã! Eu nunca vou me esquecer disso, pelo menos nunca vou esquecer a ironia disso, porque, enquanto eles estavam ocupados batendo palmas, eu estava a ponto de cortar meus pulsos.

Fiz uma pausa e soltei um suspiro profundo. Com uma pitada de tristeza em meu tom de voz, disse:

– A verdade é que eu sabia que tinha cometido um erro bem antes disso, eu sabia desde que era criança. O que eu quero dizer é: quem eu achava que estava enganando? Eu não tinha paciência para ficar tanto tempo estudando – balancei a cabeça em resignação. – Tinha nascido com apenas a metade da equação: era esperto como um chicote e tinha o dom da palavra, mas não tinha paciência. Eu queria ficar rico rapidamente, queria tudo na hora. Essa foi minha ruína. E depois de ganhar tanto dinheiro na praia durante todas aquelas férias de verão, estava com gosto de sangue na boca. Eu era como um acidente esperando para acontecer. Como um carro de corrida de alto desempenho zunindo pela estrada a 200 quilômetros por hora: ou eu ganhava a corrida ou queimava como o ônibus espacial. Aquilo poderia acontecer de um jeito ou de outro.

Apertei os lábios e balancei a cabeça gravemente.

– Bem, infelizmente, meus instintos tinham acertado bem no alvo. Assim que os aplausos terminaram, o reitor levou o microfone à boca e disse: “Eu quero que todos vocês ouçam um pequeno segredo: a idade de ouro da odontologia já terminou”. Ele assentiu com a cabeça uma única vez. “Se você está aqui simplesmente porque quer ganhar um monte de dinheiro, está no lugar errado. Então, siga meu conselho, saia agora e nunca mais volte. Há maneiras melhores no mundo para ficar rico; evite essa dor de cabeça”. Então, ele disse algumas coisas mais, que entraram e saíram por meus ouvidos, porque eu estava muito ocupado procurando uma saída de incêndio. Então, ele enfiou a faca mais profundamente. “Lembre-se, seu objetivo é praticar a odontologia preventiva. Então, se você praticar sua profissão direito, verá seus pacientes cada vez menos.” E começou a assentir com a cabeça várias vezes, como se tivesse acabado de soltar uma grande pérola de sabedoria. O reitor começou a falar de novo, embora eu não estivesse mais ouvindo. Na verdade, o que eu fazia era pedir passagem nesse momento. “Com licença, desculpe, licença…”, enquanto caminhava para fora do auditório, bem no meio do discurso. Lembro-me de receber alguns olhares curiosos no meio do caminho e também me lembro de não dar a mínima para eles – fiz uma pausa na minha história para causar mais efeito. – Foi assim que desisti da faculdade de odontologia em meu primeiro dia, e foi tudo culpa do reitor. A única questão era como dar a notícia à minha mãe.

– Isso é terrível – exclamou a Bruxa. – Ela deve ter ficado arrasada!

A Bruxa comprimiu os lábios finos e me encarou ameaçadoramente.

Ora, ora, ora, pensei. A Bruxa sentia pena de minha mãe, afinal! Aparentemente, a bondade da minha mãe era irresistível.

Eu disse:

– Sim, Michele, minha mãe teria ficado muito chateada se eu tivesse contado a ela, o que, é claro, não fiz – e dei de ombros, como o bom filho que era. – Eu a amava demais para ser honesto com ela. Além disso, ela era minha mãe, e eu estava mentindo para ela desde que tinha cinco anos – olhei para a Bruxa com um sorriso travesso. – Então, por que diria a verdade a ela naquele momento, certo, Michele?

A Bruxa respondeu sem palavras, apenas com dois espasmos de seu nariz.

Caramba! Balancei a cabeça rapidamente, tentando me livrar de seu feitiço.

– De qualquer forma – disse eu, com certo tremor em meu tom de voz –, contei a ela que a faculdade de odontologia estava ótima e, então, me escondi em Maryland por quatro meses, onde me exercitava o dia todo e ficava tomando sol. Baltimore é um lugar muito bonito nessa época do ano, de forma que o tempo passou rapidamente. Como ainda sobrava dinheiro de meus sorvetes na praia, vivi bastante bem nesse tempo. No final, fiz um leilão de meus equipamentos de dentista para suplementar as coisas. Todas as brocas, cinzéis, almofadas de gaze, eles nos fizeram comprar toda essa merda antes de começarmos as aulas, então eu estava com toda essa tralha.

Coçando a cabeça, o TOC perguntou:

– Você realmente fez um leilão de seus equipamentos odontológicos? Sério?

Eu balancei a cabeça, concordando.

– Pode apostar que sim! Na verdade, espalhei cartazes por todo o campus e consegui até um bom público – sorri, orgulhoso. – Veja, Greg, eu já estava bem consciente da importância da oferta e da demanda então. Eu sabia que, se quisesse ter um leilão bem-sucedido, precisaria ter muitos interessados. Então, fiz propaganda – dei de ombros, agora de forma capitalista. – Você devia ter visto o leilão, foi mesmo de arrebentar. Ele aconteceu no laboratório, em meio a bicos de Bunsen e pipetas, e uns 50 ou 60 alunos compareceram, a maioria usando avental branco. Eu usava uma daquelas viseiras de plástico azuis, parecia um agente de apostas. De início, eles ficaram um pouco tímidos, então usei um pouco de teatralidade. Comecei falando bem depressa, como um leiloeiro de verdade faria, e em seguida as coisas começaram a rolar. “O.k., o.k.”, eu disse rapidamente, “tenho aqui uma máquina realmente rápida, de alta velocidade, fabricada pelos nossos bons amigos lá da Star Dental Labs. Ela é de aço inoxidável, resfria sozinha e gira em 20 mil rpm. Ela vem na caixa, com garantia vitalícia. Basta olhar para ela, é de fato uma beleza!” E levantei a broca para inspeção pública. “Ela é uma necessidade absoluta”, disse. “Um item obrigatório para qualquer dentista que leve a sério um tratamento dentário de primeira a seus pacientes. Nova em folha, ela lhe custaria 950 dólares. Será que eu teria uma oferta inicial de 200 dólares? Tenho 200? Estou esperando 200 dólares!”

E continuei:

– Então, um garoto com cabelo vermelho e óculos de aro de tartaruga levantou a mão e disse: “Eu vou levá-la por 200!”, ao que eu disse, “Excelente! Temos uma oferta inicial de 200 dólares de um rapaz muito esperto de avental branco e óculos de aro de tartaruga. Eu teria uma oferta de 250? Alguém tem 250? Caramba! Vamos, pessoal, é uma pechincha! Lembrem-se, essa broca tem autorrefrigeração e lança jatos de água para evitar o acúmulo de calor. É a mais avançada que existe…” Aí uma garota asiática de pele impecável e corpo parecendo um hidrante ergueu a mão e disse com uma voz ansiosa: “Eu pago os 250!”, e eu respondi: “Ahhh, temos um lance de 250 daquela linda mocinha de branco, que sabe muito bem aproveitar uma pechincha! Parabéns, senhorita!”. E fui seguindo desse jeito até que toda a sala estivesse em transe.

Fiz uma pausa para retomar o fôlego de minha narrativa. E então, cheio de orgulho, continuei:

– Arrecadei mais de 3 mil dólares naquele dia. Foi o primeiro dia em toda minha vida em que me senti como um vendedor de verdade. Eu era bom naquilo. Meu rap de leiloeiro saía fácil da minha boca, como se não houvesse amanhã – sorri com a lembrança. – Perto do fim do leilão, o reitor entrou na sala, veio andando até mim e ficou ali, olhando. Depois de um minuto, ele balançou a cabeça e caminhou para longe, muito aturdido para comentar qualquer coisa. Tenho certeza de que foi o primeiro leilão feito nas dependências da faculdade de cirurgia dentária de Baltimore e também estou certo de que foi o último. E foi um grande sucesso, devo acrescentar.

Naquela altura da narrativa, todo mundo na sala estava rindo, até mesmo a Bruxa e o Canalha. Era um bom sinal, pensei, então decidi saltar direto para a insanidade do negócio de carne e frutos do mar em que me meti.

– O que eu esqueci de mencionar, porém, foi o que me inspirou a realizar o leilão naquele dia.

– Você disse que estava ficando sem fundos para se manter em Baltimore – disse o TOC.

Dei de ombros sem me comprometer.

– Isso teve a ver com a história, sim, mas não era o que realmente estava me motivando. O que aconteceu foi que, alguns dias antes, eu tinha recebido um telefonema de Elliot, o Pinguim. Eu estava em casa, no momento em que ele ligou, deitado na cama e olhando para o teto, perguntando o que diabos eu ia fazer com o resto da minha vida. Na época eu morava em um pequeno apartamento nos arredores de Baltimore e tinha duas peças de mobiliário: a cama e um sofá cujo tecido de revestimento estava meio apodrecido. O Pinguim tinha ido morar no Queens e, quando ele me telefonou, estava muito agitado, quase sem fôlego. Ele disse: “Acabo de descobrir um meio de ganhar dinheiro na praia durante o ano inteiro. Estou trabalhando como vendedor de uma empresa que distribui carne e frutos do mar e faturo 250 por dia, em dinheiro. Eles até me deram um veículo da empresa”. Acho que foi a última parte da frase que mais me chocou. “Sério?”, respondi, “eles lhe deram um carro? Nossa, mas isso é incrível.” E o Pinguim respondeu: “Pois é, posso lhe arranjar um emprego lá, se você quiser”.

Fiquei pensando naquela época e nas palavras do Pinguim.

– Refletindo sobre isso, eu deveria ter percebido que alguma coisa não estava muito correta. Lembrem-se, Elliot não chegou a me dizer que eles tinham dado um carro da empresa, ele disse “veículo da empresa”, o que é uma forma bastante esquisita de mencionar esse benefício, não acham? O que quero dizer é que, se você for trabalhar na IBM e receber um carro da empresa, você não vai se referir a ele como “veículo”, vai dizer “A IBM me deu um carro da empresa”, oras! Ainda assim, o pensamento de ganhar dinheiro na praia durante todo o ano era tão atraente que eu decidi não me angustiar com esse tipo de coisa. Antes de desligar, ainda perguntei a Elliot: “Tem certeza de que eles vão me contratar, Elliot? Eu não tenho uma experiência real em vendas!”.

E comecei a rir.

– Vocês não têm ideia de como essa pergunta era irônica – e comecei a balançar a cabeça.

– O que ela tem de tão irônico? – perguntou o Canalha, sem emoção. – Eu não entendo.

– Bem, é que empresas como a Great American Meat and Seafood, o nome da empresa onde Elliot trabalhava, estão sempre à procura de vendedores. O mesmo vale para empresas como a Stratton Oakmont ou Monroe Parker ou Aspiradores Kirby ou qualquer outra empresa que precise de vendedores falantes e que recebam na base da comissão – parei de falar e refleti sobre aquela época. – No caso da Stratton, a gente costumava testar os candidatos com a prova do espelho, ou seja, a gente punha um espelho debaixo do nariz da pessoa e esperava que ele embaçasse. Se ficasse embaçado, o cara estava contratado, se não, ele estava morto e essa seria a única razão pela qual não seria contratado; a menos que fosse um corretor licenciado, que a gente nunca iria contratar mesmo, porque seria alguém que sabia demais. Queríamos que nossos corretores fossem jovens e ingênuos, famintos e idiotas – dei de ombros. – Dê-me alguém assim e eu farei com que ele fique rico, sem nenhum problema. Mas dê-me alguém com cérebro e imaginação, bem, aí é um pouco mais difícil. Mas, voltando à história, passei mais alguns minutos ao telefone com o Pinguim, ouvindo-o piar sobre como era maravilhoso esse negócio de carne e de frutos do mar: “É tudo comida da mais alta qualidade para os restaurantes”, foi o que ele me assegurou, “Nada além do melhor entre o melhor”. Quer dizer, a coisa toda parecia boa demais para ser verdade, mas Elliot nunca foi um mentiroso. Ele era um pouco ingênuo, talvez, mas definitivamente não era um mentiroso. Então coloquei de lado meu ceticismo, fiz as malas, lotei meu Mercury Cougar 1973 e fui para Nova York soltar a bomba na casa de meus pais. Era fevereiro de 1985. Eu tinha 22 anos na ocasião. E toda a vida pela frente.

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