CAPÍTULO 28
A verdadeira vida
de um Governator
ALÉM DE DOURADA E PRÓSPERA, A CALIFÓRNIA também é propensa a desastres. Nosso clima e nossa geografia nos tornam particularmente vulneráveis a incêndios, enchentes, deslizamentos, secas e, claro, terremotos.
Dada a frequência desses fenômenos, eu tinha que partir do princípio de que algum tipo de desastre natural poderia ocorrer durante o meu governo. Nossos bombeiros, policiais e outros funcionários responsáveis por emergências estavam entre os melhores do mundo, mas para mim não bastava apenas me reunir com seus comandantes ou ler os planos de ação para o caso de uma tragédia. Minhas perguntas eram tantas que levei à loucura Kim Belshé, nossa excelente secretária de Saúde e Serviços Humanos.
E se houvesse uma pandemia em Los Angeles e 10 mil pessoas precisassem ser hospitalizadas? Como os hospitais lidariam com isso? Qual era a capacidade deles de montar tendas com leitos, cilindros de oxigênio e ambiente esterilizado? Onde estavam as tendas? E os leitos? De onde viriam os médicos e enfermeiros? Havia registros de profissionais dessas classes que já estivessem aposentados e pudessem ser convocados? Já tínhamos testado acioná-los?
Após o desastre do furacão Katrina, em 2005, todos tinham plena consciência da reação fracassada do governo federal, e eu estava decidido a não deixar algo daquele tipo acontecer na Califórnia. Sabia que um governador que era também um herói de ação não conseguiria se safar de um fracasso nesse quesito. Precisávamos, portanto, melhorar nossas simulações e nossos exercícios. Mesmo atuando, eu nunca filmava uma cena que não houvesse ensaiado no mínimo 10 vezes. Como poderia esperar então uma ação de emergência bem-sucedida se não simulássemos incêndios, enchentes e terremotos? E se um terremoto provocasse um incêndio generalizado? Nesse caso, teríamos uma situação em que as pessoas não poderiam circular, e seria preciso também combater os incêndios em si, e o corpo de bombeiros também seria afetado, e as portas também estariam emperradas impedindo os carros dos bombeiros de ir prestar socorro. Os sistemas de comunicação ficariam interrompidos. E aí?
Esse temor estava tão entranhado em mim que mesmo antes do Katrina, já em 2004, eu havia iniciado em toda a Califórnia um exercício que chamávamos de Guardião de Ouro. Era um grande teste de preparação para todo e qualquer tipo de desastre natural e ataque terrorista. Nós testávamos tudo: planejamento, procedimentos, comunicação, rotas de evacuação, prontidão dos hospitais e cooperação entre as instâncias federal, estadual e locais. A cada ano nos preparávamos para uma espécie diferente de emergência. No primeiro foi uma ação terrorista com bombas sujas projetadas para contaminar com radioatividade vários portos e aeroportos espalhados pelo estado. Nos anos seguintes, simulamos terremotos, enchentes e outros ataques em grande escala. Foram os exercícios de emergência mais importantes e extensos do país, dos quais participaram milhares de pessoas. Cada um deles exigia anos de planejamento. Matt Bettenhausen, nosso chefe de serviços de emergência, gostava dessa minha obsessão. “É incrível ter um governador que nos manda treinar tudo o tempo todo”, dizia ele.
Certo ano, eu estava ouvindo as instruções da edição seguinte do Guardião de Ouro, na qual seria simulado um terremoto de magnitude 7,8 no sul da Califórnia. O responsável pela reunião me explicou que um helicóptero da Patrulha Rodoviária do estado iria me pegar e me conduzir a uma sala de crise no condado de Orange, para onde seriam levadas as autoridades mais importantes.
– O terremoto vai acontecer às 5h45, e vamos buscá-los às seis – disse ele.
Estranhei os horários.
– Como é que vocês sabem que ele vai ocorrer às 5h45? – perguntei.
– É esse o cronograma. Querem todo mundo lá no sul do estado.
Não falei mais nada. Pensei: “Isso é uma farsa. Como é que posso saber se estamos realmente preparados quando ‘nos preparamos’ para uma simulação?” No dia seguinte acordei às quatro da manhã e liguei para a Patrulha Rodoviária. “O terremoto acabou de acontecer”, falei. “O exercício começa agora.”
Não dá para imaginar o tumulto que isso causou. A Patrulha Rodoviária e o Departamento de Segurança Doméstica federal perderam o controle. Foi um Deus nos acuda. Todos acabaram fazendo um ótimo trabalho, e o exercício apontou algumas fragilidades no sistema, mas o responsável pela Segurança Doméstica ficou bem irritado.
– Não acredito que você não me avisou com antecedência – disse ele mais tarde, quando pudemos conversar.
– A intenção não é constranger ninguém – afirmei. – Mas precisamos saber quais são nossas deficiências quando não temos aviso prévio.
Combinamos que, daquele dia em diante, iríamos diminuir aos poucos a margem de aviso para as simulações e dizer aos participantes: “No teste passado vocês tiveram 12 horas de antecedência. Desta vez vamos lhes dar seis.”
NO FIM DE 2007, TODOS ESSES preparativos compensaram quando incêndios florestais particularmente graves surgiram por todo o estado. Os piores foram no sul, perto de San Diego, onde, apesar dos melhores esforços dos bombeiros, as chamas continuavam a se alastrar e havia previsões de ventos com força de furacão. No terceiro dia dos incêndios, segunda-feira, 22 de outubro, liguei para meu gabinete a fim de obter informações atualizadas, como em geral fazia diariamente às seis da manhã. Fui informado de que grandes áreas de San Diego estavam em risco e de que fora dada a ordem para evacuar meio milhão de pessoas. Meio milhão de pessoas! Essa era a população de Nova Orleans antes de o Katrina arrasar a cidade e decerto a maior da história da Califórnia a ser forçada a sair de casa. Milhares de pessoas já estavam indo para o estádio Qualcomm, que havíamos escolhido como principal ponto de encontro para desabrigados.
“Então vamos para lá”, falei. Nessa manhã, em vez de ir para Sacramento, usei meu escritório em Santa Monica como base e comecei a dar telefonemas enquanto minha equipe de gabinete se reunia ali. Liguei para o prefeito de San Diego, o ex-delegado de polícia Jerry Sanders, e combinei encontrá-lo no estádio mais tarde nesse dia. Bettenhausen falou com os comandantes que se encontravam no local e informou que os habitantes estavam reagindo à nossa mensagem de evacuação conforme nossa expectativa. A ordem fora formulada para transmitir os dois fatos mais importantes que você precisa saber se a sua casa estiver na rota de um incêndio: primeiro, quando a polícia lhe disser para sair, pegue suas coisas e saia, pois um incêndio florestal pode se espalhar mais depressa que uma pessoa é capaz de correr; segundo, nós não apenas lutaríamos para proteger sua casa das chamas, mas a polícia também patrulharia os bairros para evitar saques.
Esperávamos pelo menos 10 mil pessoas no Qualcomm. Imaginei que, dadas as circunstâncias, ninguém iria pensar em levar coisas como fraldas, leite em pó para bebês e ração de cachorro. Então fiz uma lista e liguei para o presidente da Associação de Merceeiros da Califórnia para perguntar se lojas da região poderiam entregar essas mercadorias no estádio assim que possível. Ele se mostrou muito disposto a ajudar.
Em seguida, telefonei para a Casa Branca e informei o presidente sobre a situação. Até então vínhamos mantendo um relacionamento profissional mas distante. Bush estava sempre disponível para conversar e, embora nem sempre concordássemos em relação ao que o governo federal podia fazer pela Califórnia, logo aprendi que, se abordasse apenas uma questão de cada vez, conseguia que ele me escutasse. Não era de surpreender que meu relacionamento com seu pai fosse mais caloroso. Para George Bush pai, eu era mais um protegido seu, alguém que o admirava, sempre atento a tudo o que pudesse aprender. Já Bush filho tinha quase a mesma idade que eu e ambos éramos obrigados a representar interesses que às vezes conflitavam entre si.
Na ocasião dos incêndios, porém, o presidente Bush teve uma atitude impressionante. Com o Katrina, ele foi obrigado a aprender na marra lições sobre resposta a emergências; dessa vez, fez o tipo de pergunta que só alguém que houvesse passado por um desastre daquela proporção seria capaz de fazer. Ele entendia que, por causa da necessidade de poupar agentes de emergência para outras ocorrências país afora, o governo federal talvez não reagisse com a rapidez necessária no início. O presidente me disse que seu chefe de gabinete nos conseguiria tudo de que precisássemos e que eu deveria lhe telefonar pessoalmente caso quisesse informá-lo de alguma coisa. Fiquei cético em relação a isso, de modo que lhe fiz uma ligação 45 minutos depois para perguntar algo, e ele tornou a atender.
Três dias depois, Bush compareceu ao local. Cumprimentou bombeiros, visitou residências, deu coletivas de imprensa e crivou a mim e os chefes de bombeiros de perguntas. Ele demonstrou um verdadeiro espírito de liderança.
Susan, minha chefe de gabinete, por sua vez, informou que a Guarda Nacional estava a caminho de San Diego. Susan ficaria em Sacramento junto com o secretário executivo Dan Dunmoyer para coordenar as providências do meu gabinete. Eu a instruíra a deslocar mil soldados da Guarda Nacional de uma operação de segurança nas fronteiras e despachá-los para o estádio Qualcomm. Ela ligou para o oficial comandante dizendo que precisávamos dos soldados. O cara obviamente nunca tinha visto Susan no comando e cometeu o erro de insistir na documentação.
– Certo – disse ele. – Precisamos de uma ordem de missão.
– A ordem de missão é retirar mil soldados da fronteira e mandá-los para o Qualcomm – repetiu ela.
– Mas eu preciso de uma ordem de missão. O documento que informa...
– A porra da ordem de missão é essa! – explodiu ela. – Mande mil homens para o Qualcomm. Quero que em menos de uma hora eles estejam a caminho.
O general enviou os soldados.
Susan então começou a providenciar as camas de campanha de que as pessoas obviamente iriam precisar naquela noite. Milhares de camas, travesseiros e cobertores haviam sido estocados na região para o caso de alguma emergência. “Está tudo a caminho”, os agentes não paravam de repetir. No entanto, ela e Dan continuaram a telefonar e descobriram que nada tinha chegado.
“Isso não basta”, disse ela. “Precisamos saber que as coisas estão nos caminhões. Quero saber exatamente em que local os veículos estão agora. Me dê o celular dos motoristas.” As horas foram passando e ninguém conseguia encontrar as camas. Em vez de esperar, ligamos para o Walmart e outros gigantes do varejo no estado. Mais tarde nesse mesmo dia, um avião cargueiro C-130 da Guarda Nacional da Califórnia abarrotado com milhares de camas doadas decolou do aeródromo de Moffett Field, em Sunnyvale, com destino a San Diego.
Ações desse tipo não constam de nenhum manual de resposta a emergências. Vi o que aconteceu durante o Katrina quando funcionários de todos os níveis ficaram esperando alguma outra pessoa tomar as providências – porque é isso que os manuais dizem que se deve fazer. “Todo desastre é local”, disseram-me os especialistas. Teoricamente, os funcionários estaduais devem esperar as autoridades locais pedirem ajuda; e as autoridades federais devem aguardar o pedido de ajuda das autoridades estaduais. “Porra nenhuma”, retruquei. “Foi assim que milhares de pessoas ficaram ilhadas nos telhados de Nova Orleans. Isso não vai acontecer aqui.” Minha regra era simples: “Eu quero ação. Se precisarem fazer algo que não está previsto no manual, joguem-no no lixo. Façam o que for preciso. O importante é agir.”
Assim que minha equipe foi reunida, partimos para San Diego. Logo após a decolagem, pudemos ver a névoa cinza dos incêndios a quase 200 quilômetros de distância. Nessa tarde, eu pegaria um helicóptero para visitar os focos de incêndio e observar as chamas de perto. Agora, porém, o mais importante era conversar com a população. Eu me encontrei com o prefeito Sanders e outros líderes locais em frente ao estádio e juntos percorremos o local: passamos primeiro pelos corredores e pelo estacionamento para cumprimentar os desabrigados, agentes de emergência e voluntários que chegavam, depois falamos com a imprensa.
Felizmente, graças a meu predecessor, Gray Davis, eu estava preparado para me comunicar durante uma emergência de incêndio. No período de transição, Davis tivera a elegância de entrar em contato comigo no meio de um incêndio grave, embora muito menor. Ele me perguntara se eu gostaria de acompanhá-lo para encontrar bombeiros, visitar casas, conversar com as famílias atingidas e falar com a imprensa. Vi como ele escutou os informes e o modo como agradeceu aos bombeiros por seus serviços, ao mesmo tempo que tentava não desviar sua atenção da missão em curso. O então governador chegou a servir café da manhã para os bombeiros que voltavam do turno da noite. Foi de casa em casa, reconfortando as vítimas e lhes perguntando se havia algo que o estado pudesse fazer. Davis foi uma fonte de força.
Esse tempo que passamos juntos facilitou a transição e provou que, embora tivéssemos nos enfrentado durante a campanha, podíamos trabalhar em parceria. Mais importante ainda, Gray Davis me mostrou como um governador deve agir, em vez de apenas telefonar de Sacramento para saber o que está acontecendo.
Em San Diego, começamos a dar coletivas de imprensa periódicas, para a população entender que não havia segredos. Explicávamos tudo tim-tim por tim-tim, dizendo coisas como: “Os ventos chegam a 96 quilômetros por hora, e as chamas podem se deslocar a 2,4 quilômetros por hora. Mas nós vamos controlar esse incêndio.” Mandamos uma mensagem clara de que agentes federais, estaduais e locais estavam trabalhando juntos, mas também fomos rápidos em admitir os erros. Nossa regra era: “Não façam rodeios.” Quando as camas se perderam, reconhecemos que isso ocorreu. Era ótimo ter por perto um cara com a experiência e o senso de humor de Bettenhausen. Ele não saiu do meu lado e nos manteve em contato com os comandantes dos bombeiros que trabalhavam nos focos do incêndio. Embora as notícias muitas vezes não fossem boas, suas vozes se mantinham disciplinadas e firmes, sem nunca perder o controle: “Governador, temos um problema grave. Mais 50 casas acabaram de ser atingidas. Três bombeiros se feriram e estamos reposicionando nossos homens. Vamos evacuar determinada área, e a Patrulha Rodoviária e o xerife vão colaborar para fechar as ruas e proteger as casas...”
Nós nos comunicávamos o tempo todo com os comandantes, perguntando do que mais eles precisavam, e usamos suas informações para manter o público sempre a par do que estava acontecendo.
Fomos avisados de que a direção do vento havia mudado e de que os residentes de uma casa de repouso para idosos situada na rota das chamas teriam que ser evacuados para um abrigo improvisado no hipódromo Del Mar. O local tinha estrutura para abrigar cavalos, mas não pessoas. Já era quase noite, mas meus instintos me disseram que eu deveria ir lá verificar pessoalmente, pois aquela poderia ser uma situação particularmente perigosa para os pacientes idosos.
Quando chegamos, o sol estava se pondo. Uns 300 pacientes já tinham sido evacuados. Detestei o que vimos ali: homens e mulheres de idade avançada sentados em cadeiras de rodas, com bolsas de soro intravenoso no braço, encostados em paredes, deitados em esteiras sobre o cimento frio. Alguns choravam, mas a maioria estava calada e imóvel. Tive a sensação de estar visitando um necrotério. Cobri um senhor com um cobertor e dobrei um casaco para servir de travesseiro a uma senhora. Nenhuma daquelas pessoas tinha os remédios de que precisava. Algumas necessitavam fazer diálise. Um enfermeiro de hospital e capitão de fragata da reserva da marinha chamado Paul Russo assumira corajosamente o comando do local e, com a ajuda de outros voluntários, esforçava-se para encontrar camas de hospital. Uma coisa ficou clara: precisávamos de ajuda, ou algumas daquelas pessoas não iriam resistir. Na mesma hora, Daniel Zingale, eu e alguns outros começamos a ligar para empresas de ambulância e hospitais a fim de providenciar a remoção dos mais doentes. Passamos algumas horas lá até nos certificarmos de que a situação estava sob controle, e à noite voltamos para ver como iam Paul, os voluntários e os pacientes restantes. No dia seguinte, conseguimos fazer com que a Guarda Nacional montasse um hospital de campanha perto do hipódromo.
Felizmente, erros como o do Del Mar foram raros. Os incêndios florestais ainda castigaram San Diego por mais três semanas, mas aqueles primeiros dias deram o tom de nossa resposta ao desastre. Conseguimos remover mais de meio milhão de pessoas de áreas de risco, a maior evacuação da história do estado. Nove morreram e 85, na maioria bombeiros, ficaram feridas. Mais de 200 mil hectares pegaram fogo e houve graves danos a imóveis, entre eles 1.500 residências e centenas de empresas, com um prejuízo estimado em 2,5 bilhões de dólares. Depois de um desastre natural os números são sempre trágicos, mas conseguimos evitar que uma calamidade como a do Katrina se repetisse, e fiquei satisfeito por nossa ênfase na preparação ter dado resultado.
UM DESASTRE DIFERENTE, DE PROPORÇÕES bem maiores e ainda por vir, iria afetar infinitamente mais residências e mudar consideravelmente mais vidas que os incêndios florestais de San Diego. Os Estados Unidos estavam à beira do pior colapso econômico desde a Grande Depressão. Em Sacramento, percebemos os primeiros sinais de problemas quando começamos a montar o orçamento para 2008-2009. Na primavera, constatamos os efeitos de uma forte desaceleração no mercado imobiliário do estado, apesar de previsões econômicas mais otimistas nos âmbitos nacional e internacional.
Os consultores econômicos da Califórnia diziam: “Estamos entrando num período de turbulência no setor da habitação, mas a economia vai se recuperar nos próximos dois anos. As bases são sólidas, e é possível esperar um crescimento saudável para 2009-2010.” No entanto, apenas dois meses depois, nossa receita mensal proveniente de impostos começou a despencar de forma alarmante: 300 milhões de dólares abaixo do esperado em agosto, 400 milhões em novembro, 600 milhões em dezembro. Com isso, a previsão era de que nosso orçamento disporia de 6 bilhões de dólares a menos em julho de 2008, início do ano fiscal seguinte. “O que está acontecendo?”, pensei.
Embora a quebra do mercado financeiro em setembro de 2008 muitas vezes seja considerada o marco inicial da Grande Recessão, a crise chegou mais cedo e atingiu a Califórnia com mais força do que o restante do país. Isso se deveu à escala de nosso mercado habitacional e ao impacto do desastre das hipotecas. Os preços imobiliários já lendários da Califórnia aumentaram de forma estratosférica durante os anos 1980 e 1990, e os proprietários começaram a usar o valor cada vez maior de seus imóveis para financiar planos de aposentadoria e estudos universitários ou comprar casas de praia ou de campo. Agora, porém, essas pessoas não estavam mais conseguindo honrar as hipotecas e começaram a perder seus imóveis a um ritmo duas vezes superior à média nacional. Segundo algumas estimativas, mais de 630 bilhões de dólares já estavam perdidos e não poderiam ser recuperados, e com eles dezenas de bilhões em impostos devidos.
Parte da culpa era do governo federal, que havia autorizado hipotecas rápidas e sem o devido controle no segmento de crédito de risco, o subprime. No passado, era preciso dar uma entrada equivalente a 25% do valor do imóvel. Além disso, as instituições paraestatais Fannie Mae (como é conhecida a Federal National Mortgage Association) e Freddie Mac (como é chamada a Federal Home Loan Mortgage Corporation) foram incentivadas a expandir o crédito para mutuários de baixa renda, a fim de aquecer a economia e expandir a cultura da casa própria. Isso ajudou a inchar a bolha imobiliária. Exatamente como me ensinara Milton Friedman, quando o governo federal mete a mão no mercado, quem paga são os estados. Os californianos sofreram em parte por causa de uma cagada federal, e eu, como governador, fui pego desprevenido.
Apesar de não ter muito dinheiro com que trabalhar, usei toda a liquidez que consegui encontrar para reagir à crise. Tentamos desesperadamente acelerar os gastos de infraestrutura obtidos graças a títulos públicos para construir rodovias e ferrovias, abrir novas ruas e consertar velhas pontes. Encontramos verbas para programas de reciclagem de trabalhadores da construção civil que estavam perdendo o emprego. Convencemos grandes credores a congelar a taxa de juros para mais de 100 mil mutuários em situação de maior risco. Contratamos mais de mil pessoas para trabalhar nos call centers estaduais e orientar mutuários em dificuldades ou ajudar pessoas que deveriam receber seguro-desemprego e outros benefícios.
Logo antes do Natal, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Hank Paulson, foi me visitar para conversar sobre a crise das hipotecas subprime. Ele e eu fizemos uma reunião em Stockton e o escutei falar sobre “minimizar o estrago” da crise imobiliária na economia de forma geral. Nesse ponto, eu ainda estava disposto a descrever o problema como um “percalço” em meus comentários para a plateia. No entanto, meu pressentimento em relação àquilo não era nada bom. Pouco depois, peguei um avião até Washington para uma conferência de governadores na qual Alphonso Jackson, secretário de Habitação do presidente Bush, fez um discurso sobre como o sonho americano de ter casa própria continuava vivo e pulsante. Eu conhecia Alphonso um pouco e o encurralei durante o intervalo para lhe perguntar o que estava acontecendo de verdade. “Não parece nada bom”, foi tudo o que ele quis dizer. A expressão em seu rosto me deixou alarmado. Ele parecia mais preocupado que pouco antes, no pódio.
Decidi que o melhor era ignorar as previsões econômicas para o ano fiscal de 2008 e prever crescimento zero para a receita proveniente de impostos. Em nosso estado viciado em ciclos de progresso, um crescimento zero no orçamento do governo estadual seria muito mais doloroso do que pode parecer. Teríamos que arcar com um aumento automático de 10 bilhões de dólares em aposentadorias, educação, saúde e outros programas protegidos por lei ou por exigências de financiamento federal. Portanto, se a renda do estado não aumentasse, a única maneira possível de obter recursos seria cortando outros programas que não estivessem previstos em lei. Era uma escolha dificílima. Se reduzíssemos os gastos com prisões, teríamos que libertar prisioneiros e talvez tornar os bairros menos seguros. Se cortássemos na educação, o que isso diria sobre nossa preocupação com as crianças, nossos cidadãos mais vulneráveis? Se cortássemos na saúde, estaríamos dizendo que na verdade não ligávamos para os idosos, os enfermos e os deficientes?
No fim das contas, decidi cortar 10% de todos os programas indiscriminadamente. É difícil quando você acaba de dar seu apoio a iniciativas que logo em seguida não tem mais dinheiro para bancar. Por exemplo, eu havia apoiado uma lei para fortalecer a tutela do estado e impedir que crianças fossem parar na rua. Na minha opinião, leis como essa acabariam, a longo prazo, reduzindo as despesas do estado com saúde e segurança pública, porque o fim da tutela de crianças pode ser problemático. Depois de defender esse plano com vigor, porém, tive que desistir dele por causa da crise financeira. Fiquei arrasado e passei por bobo ao ter que descumprir um compromisso que queria honrar, mas para o qual já não tinha mais recursos.
Os últimos dias úteis de dezembro de 2007 foram dedicados a uma procissão de defensores de grupos de interesse e líderes comunitários que convoquei à sala do gabinete, próxima ao meu escritório. Senti que precisava encará-los nos olhos e expor eu próprio a situação financeira que teríamos que enfrentar. As consequências de um corte não trazem apenas a economia de alguns dólares, mas também têm efeito sobre as pessoas. Falar sobre responsabilidade fiscal parece muito frio quando quem está sentado na sua frente é um representante de pacientes portadores de HIV, crianças carentes ou idosos. “Os democratas estão se ferrando, os republicanos estão se ferrando, e nós estamos nos ferrando”, eu disse a eles. Quando pedi que fizessem seus comentários, eles me agradeceram pela sinceridade, e isso me surpreendeu. Muitos deram conselhos úteis.
Eu ficava angustiado ao pensar que parte desse sofrimento poderia ter sido evitado. Mesmo antes de ser eleito, em 2003, eu já insistia que o ciclo bolha-crise da dinâmica economia da Califórnia geraria um forte risco negativo em caso de crise – e que o estado precisava desesperadamente de um amortecedor. Tentei implementar um fundo emergencial, que àquela altura já teria chegado a 10 bilhões de dólares, mas não consegui convencer o legislativo nem os eleitores a aprovar um fundo com regras rígidas o bastante para manter o dinheiro bloqueado até a ocorrência de uma emergência grave. Bem, a emergência estava chegando, e fui forçado a tomar decisões impopulares que não agradavam a ninguém, muito menos a mim.
Na primavera de 2008, a receita do estado despencou vertiginosamente. Só entre janeiro e abril daquele ano, o déficit orçamentário aumentou em 6 bilhões de dólares. E isso meses antes de a crise financeira atingir o mundo inteiro.
Em janeiro, apoiei a candidatura presidencial de John McCain antes mesmo da conclusão das primárias. Havia muitos anos que aquele senador do Arizona, nosso estado vizinho, vinha me ajudando, sobretudo nos tempos árduos de 2005, quando passara um dia inteiro percorrendo o sul da Califórnia comigo, de ônibus, fazendo campanha para minhas propostas de reforma fadadas ao fracasso.
Ao mesmo tempo, conforme as campanhas presidenciais avançavam, não critiquei Hillary Clinton nem Barack Obama. A verdade era que para mim, nas questões que de fato importavam, em especial o meio ambiente e uma economia baseada em novas formas de energia, qualquer um dos candidatos seria melhor que George Bush filho. Em Yale, diante de uma plateia, declarei: “O presidente McCain, o presidente Obama ou a presidente Clinton vão levar este país a um outro patamar em matéria de mudanças climáticas. Todos os três serão excelentes para o meio ambiente. Imediatamente depois do dia da posse as coisas vão entrar em ritmo acelerado.”
Em agosto de 2008, pela primeira vez em duas décadas, faltei à Convenção Nacional Republicana. Fiquei preso na Califórnia, lutando nas reuniões de orçamento, mas minha ausência era, indiretamente, o reflexo de uma preocupação muito maior. O crescente conservadorismo do partido não agradava mais nem a mim nem à grande maioria dos eleitores do estado. Essa inclinação para a extrema direita ficou evidente quando McCain escolheu Sarah Palin como sua candidata a vice. Na época, eu a elogiei como uma líder e reformadora inteligente e corajosa. Com o passar do tempo, no entanto, concluí que não gostava do efeito polarizador que ela exercia sobre o país.
NESSE OUTONO, SE VOCÊ TIVESSE visitado a residência dos Schwarzenegger, teria presenciado uma verdadeira explosão de diversidade política. Na porta da frente, eu havia pendurado um imenso cartaz de John McCain. Na sala de estar, por sua vez, havia uma imagem de Obama de corpo inteiro, em tamanho real. Pela primeira vez, as crianças pareciam engajadas politicamente. O caráter dramático da eleição presidencial lhes interessava bem mais que o meu cargo. Eu sempre implicara com Maria por vir de uma família de clones políticos, mas na nossa casa isso não acontecia. Um de nossos filhos era democrata, outro, republicano, e os dois restantes eram independentes ou não tinham preferência declarada.
A Grande Recessão que nos atingiu no final de 2008 anulou completamente o avanço que tínhamos conseguido graças a anos de disciplina e cortes. Nas previsões para o ano fiscal seguinte, 2009-2010, que começava em julho, o rombo do ano corrente somado ao do ano seguinte projetava 45 bilhões de dólares. Em termos de porcentagem e de quantia de dólares, era o maior déficit da história da Califórnia – na verdade, o maior que qualquer estado já tivera que enfrentar. Um déficit tão imenso que, mesmo fechando todas as escolas, todas as prisões e demitindo todos os funcionários públicos, continuaríamos no vermelho.
Mesmo após eu adotar medidas para poupar dinheiro, a situação orçamentária piorou. Com o colapso dos mercados financeiros, tivemos que contribuir com bilhões de dólares para compensar falhas no sistema de aposentadorias do funcionalismo público. Fiz uma pressão enorme para implementar mudanças que eliminassem os piores abusos no campo das aposentadorias, mas não foi suficiente. Enquanto isso, os gastos com as prisões disparavam, em razão de contratos vantajosos assinados anos antes por outros governos e aumentos ordenados por juízes federais, que na verdade passaram a assumir o controle de partes do sistema. Eu me esforçara para poupar mais de 1 bilhão de dólares por meio de mudanças controversas, entre elas o corte dos aumentos automáticos de salário para policiais e a reforma de nossas políticas de concessão de liberdade condicional. Tive que enfrentar o mais feroz sindicato trabalhista do estado – o dos agentes penitenciários – e ao mesmo tempo pressionar bastante meus mais fortes defensores na segurança pública, como xerifes e delegados de polícia. Nossa proposta foi tratar os crimes menos violentos como simples contravenções, despachar mais prisioneiros para outros estados e criar alternativas à prisão para contraventores de baixo risco, como o monitoramento por GPS ou a prisão domiciliar. Ganhamos batalhas importantes nessas duas frentes, mas mesmo assim os gastos com as prisões aumentaram. Na verdade, tínhamos passado a gastar mais com as penitenciárias que com as universidades.
As batalhas orçamentárias passaram a se assemelhar ao filme Feitiço do tempo. Assim que terminávamos as negociações e os cortes para uma versão do orçamento, os números da arrecadação fiscal diminuíam ainda mais que o previsto, e precisávamos começar tudo outra vez.
O início de 2009 foi o pior período. Os orçamentos costumam ser negociados em junho – e as negociações muitas vezes se prolongam de forma interminável durante o verão do hemisfério norte. No entanto, a conjuntura financeira da Califórnia se deteriorou tão depressa com a crise mundial que convoquei a Assembleia Legislativa para uma sessão especial e organizei debates sobre o orçamento durante o recesso de Natal. Não era só o déficit orçamentário que nos afligia: também tínhamos um problema de caixa. O estado estava com pouco dinheiro e corria o risco de ter que emitir notas promissórias para pagar as contas.
Sempre fui um defensor de cortes rápidos. Isso se devia em parte à minha filosofia de vida: se você estiver gastando mais do que ganha, corte os gastos. É simples assim. A outra parte se devia à matemática. Quando se faz um orçamento, quanto mais cedo os cortes são feitos, menos drásticos precisam ser. Para os legisladores, porém, os números assustadores surtiram o efeito contrário: eles ficaram paralisados. O debate se arrastou por janeiro e adentrou fevereiro. Fiz pressão para que o legislativo agisse. Pendurei em frente à minha sala um cartaz com os dizeres “Inação do legislativo”, no qual exibia o número de dias e as dívidas que se acumulavam a cada 24 horas que os membros da Assembleia deixavam de tomar providências em relação ao orçamento.
Em meados de fevereiro, quando as negociações começaram a varar noites, eu às vezes lembrava a mim mesmo que aquilo não era nada em comparação com estar imerso até o pescoço em lama gelada nas filmagens de Predador, ou descer escadas ao volante de um Cadillac em O sexto dia. Pensava também em como as negociações orçamentárias não são muito diferentes de cinco horas excruciantes levantando pesos na academia. A alegria da malhação é que, a cada repetição dolorida, você fica mais perto de alcançar seu objetivo.
Ainda assim, até mesmo o meu otimismo foi posto à prova pela dimensão da crise. Para mim o momento mais difícil foi depois de uma conversa com Warren Buffett. Ele era um observador econômico muito melhor que eu, então, periodicamente, eu lhe telefonava para perguntar o que ele estava vendo no resto do mundo, fora da Califórnia. O governo Obama estava incrementando as medidas emergenciais de estabilização iniciadas pelo presidente Bush, e eu queria um conselho de Buffett em relação a quando tudo isso começaria a surtir efeito.
– Neste momento, a economia está como uma bola murcha – disse ele. – Essa bola não quica. Quando é jogada no chão, ela simplesmente faz “plof” e fica ali parada, até você a pegar e injetar um pouco de ar nela.
Era essa a conjuntura geral, e ela não era nada boa. Buffett me explicou o que estava querendo dizer. Não eram só os Estados Unidos que tinham sido afetados; o mesmo acontecera com a Alemanha, a Inglaterra, a França, a Índia e até mesmo com a China. Aquela não era apenas mais uma recessão exclusivamente americana.
– Se os bens perderem 20% do valor, a renda decorrente desses bens também será menor – disse ele. – Para começar a crescer de verdade outra vez, o mundo inteiro vai ter que se acostumar com esse fato. Inflar os valores artificialmente não vai funcionar. Todo mundo terá que se acostumar a viver com menos e a partir de um patamar mais baixo.
– Quanto tempo isso vai levar? – perguntei.
– Anos. Talvez continue assim até 2013 ou 2015.
Como assim, 2013? Fiz uma conta rápida de cabeça: de 2009 a 2013 seriam cinco anos. Meu mandato terminaria em 31 de dezembro de 2010, e, se Warren estivesse certo, eu voltaria a ler roteiros de cinema na varanda da minha casa muito antes da retomada de qualquer crescimento significativo.
Tanto Maria quanto Susan perceberam meu desânimo. O que Buffett tinha me dito prenunciava tempos magros e expectativas mais baixas para bilhões de pessoas, e não só na Califórnia. Espalhei a notícia. Susan me ouviu relatar a conversa com o investidor várias vezes para membros de nosso gabinete e os principais integrantes do legislativo. Isso foi um valioso choque de realidade, que nos ajudou a tomar decisões difíceis e impopulares no período subsequente.
Na verdade, a crise financeira tornou necessário o maior e mais difícil acordo da minha carreira política. Após meses de negociações exaustivas, em uma noite de fevereiro de 2009 finalmente conseguimos fechar o orçamento, que previa 42 bilhões de dólares em ajustes e custosos compromissos por parte de todos os envolvidos. Os democratas tiveram que fazer grandes concessões em questões que consideravam importantes, como a reforma do sistema de benefícios sociais e previdenciários e as licenças não remuneradas dos sindicatos. Agora eu estava solicitando aos republicanos que cometessem uma heresia – o mesmo que pedir a um democrata a favor do direito de aborto que mudasse de posição. Quando me candidatara a governador, eu prometera jamais aumentar os impostos, exceto nas circunstâncias mais desesperadoras. No entanto, também havia prestado um juramento para fazer o que fosse melhor para o estado, não para mim nem para qualquer ideologia que fosse. Assim, muito contrariado, assinei um orçamento que aumentava o imposto de renda, o imposto sobre as vendas e até mesmo o imposto recolhido sobre os automóveis pelos dois anos seguintes. Tratava-se exatamente do mesmo imposto de emplacamento que fizera Gray Davis perder o cargo e que eu cortara em meu primeiro ato como governador.
Como sabia que iria acontecer, despenquei nas pesquisas de opinião como a bola murcha de Warren Buffett. E não fui o único a sofrer as consequências. Convenci os líderes dos dois partidos no legislativo a me apoiarem, e eles acabaram pagando um preço por isso. Os democratas – o líder no Senado estadual, Darrell Steinberg, e a presidente da Assembleia, Karen Bass – tornaram-se muito impopulares junto aos liberais ao concordarem em apoiar eleições primárias abertas, bem como novas reformas dos benefícios sociais – para extinguir coisas como os aumentos automáticos atrelados ao custo de vida. Enfureceram os sindicatos de funcionários públicos ao concordar tanto com a reforma das aposentadorias quanto com outra de minhas condições indispensáveis: a criação (enfim!) de um fundo previsto estritamente para tempos de crise, a ser usado apenas em caso de emergência. Para os líderes republicanos, o preço foi ainda mais alto. Na noite da votação, o partido fez o senador estadual Dave Cogdill perder sua posição de liderança. Algumas semanas depois, forçou o líder republicano na Assembleia, Mike Villines, a renunciar ao cargo – tudo porque eles haviam aceitado um meio-termo que incluía o aumento de impostos.
O acordo alcançado para o orçamento em fevereiro não foi o fim da história. A Califórnia tem tantas fórmulas orçamentárias inseridas na Constituição ou ditadas por votações populares passadas que não é possível aplicar praticamente nenhuma medida fiscal sem pedir a aprovação dos eleitores. Para concluir o acordo, tive que convocar um pleito especial para maio daquele ano.
A votação se transformou em um embate de extremos – esquerda e direita – contra o centro, ou seja, os que estavam inclinados a apoiar o acordo. Democratas lutaram contra democratas para impedir os cortes de gastos, e republicanos lutaram contra republicanos para impedir o aumento de impostos. O acordo em si era confuso – ninguém gostava dele de fato, nem mesmo eu –, o que o tornava vulnerável ao jogo político. Fiquei profundamente frustrado com os líderes dos partidos e com a imprensa por não explicarem o histórico orçamentário e as realidades incontornáveis que haviam nos levado àquele ponto. Os sindicatos fizeram uma campanha particularmente feroz contra o fundo emergencial por causa dos limites de gasto que ele imporia.
Fiquei decepcionado com a falta de apoio a representantes eleitos que tanto haviam se arriscado, entre os quais eu próprio. Havia muitos anos que democratas e sindicatos vinham pedindo arrecadações maiores. Agora eu, um republicano, lhes dera um aumento de impostos e o que eles faziam? Opunham-se a ele!
MEUS TALENTOS DE VENDEDOR DE nada adiantaram. Constatei que, depois de seis anos tentando fazer com que os cidadãos encarassem o problema orçamentário do estado, eles não estavam do meu lado. Quando parecia que iríamos perder, cheguei a tentar a tática de assustá-los. Apresentei uma “alternativa orçamentária” apocalíptica para mostrar aos eleitores todas as coisas horríveis que poderiam acontecer caso não aprovassem nosso acordo. A proposta alertava sobre a libertação de 50 mil presidiários, a demissão de milhares de professores e outros funcionários públicos e a venda forçada de marcos históricos importantes como a Prisão Estadual de San Quentin e o Coliseu Memorial de Los Angeles.
Mesmo assim, nós perdemos. Os eleitores rejeitaram todas as medidas essenciais e, nos meses seguintes, o legislativo teve que começar tudo outra vez e tornar a se digladiar com o orçamento para 2008-2009. Infelizmente, meu cenário apocalíptico não estava muito longe da realidade. Em junho, tive que anunciar um corte de 24 bilhões de dólares nos gastos. Milhares de professores e funcionários públicos foram demitidos. O estado precisou emitir 2,6 bilhões de dólares em promissórias para pagar as contas, já que estávamos mais uma vez prestes a zerar o caixa. Mas não vendemos nem o Coliseu nem San Quentin.
Em nossa família, o verão desse ano foi uma fase de perda terrível. Embora já muito idosos e frágeis, Eunice e Sarge foram passar as férias em Hyannis Port, como sempre faziam. Ele estava com 93 anos e ela, com 87. Sarge tinha Alzheimer em estágio tão avançado que já não reconhecia mais ninguém, nem mesmo a própria esposa. Os dois tinham chegado a Hyannis havia apenas 15 dias quando, em 9 de agosto, Eunice foi levada de emergência para o hospital de Cape Cod. Dois dias depois, ela morreu.
Minha sogra havia influenciado tantas vidas que o mundo inteiro lamentou sua morte. Os Kennedy mandaram rezar uma missa de réquiem em sua homenagem na mesma igreja em que Maria e eu tínhamos nos casado mais de 20 anos antes. Sarge pôde comparecer, mas Teddy não assistiu à missa da irmã, pois estava na fase terminal de um câncer no cérebro. Duas semanas depois, em Boston, ele também faleceu.
Foi difícil, para mim, aceitar a morte de Eunice. Ela havia sido minha mentora e incentivadora, além de a melhor sogra do mundo. Meu luto, porém, não foi nada em comparação com o de minha mulher. Maria sofreu mais do que eu jamais a vira sofrer. Tivemos longas conversas sobre sua mãe, mas ela se recusou a falar em público sobre a perda até dois meses depois, quando fez um discurso em sua conferência de mulheres. Diante de milhares de pessoas reunidas no centro de convenções Long Beach Arena, ela declarou: “Quando as pessoas perguntam, respondo que estou bem, que estou aguentando firme. Mas a verdade é que não estou nada bem. O fato é que a morte de minha mãe me derrubou. Ela era minha heroína, minha modelo, minha melhor amiga. Falei com ela todos os dias da minha vida. Quando virei adulta, dei duro para fazê-la sentir orgulho de mim.”
Mais tarde naquele outono, fui à Dinamarca em uma missão da qual sabia que minha sogra teria se orgulhado. Eunice e Sarge nunca hesitavam em ultrapassar fronteiras ou romper barreiras burocráticas quando havia algum trabalho importante a fazer por outras pessoas. Fora assim que minha sogra criara a Special Olympics, e meu sogro, o Peace Corps.
O secretário-geral da ONU Ban Ki-moon e eu vínhamos trabalhando em uma ambiciosa resposta ao aquecimento global. Dois anos antes, em 2007, ele ficara tão bem impressionado com a iniciativa sobre mudanças climáticas da Califórnia que me convidara a discursar na sessão inaugural da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. No outono daquele ano, ao subir ao pódio, quase não acreditei quando me dei conta de que estava pisando no mesmo lugar pelo qual Kennedy, Mandela e Gorbachev haviam se dirigido à ONU antes de mim. O evento pôs a Califórnia diante do mundo inteiro e deu ao estado uma chance de contribuir para uma discussão internacional fundamental.
Dois anos depois, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de Copenhague pretendia ser o evento mais importante sobre aquecimento global desde a conclusão do Protocolo de Kyoto, em 1997. Após anos de conferências, programas e debates sobre meio ambiente, líderes de mais de 110 nações iriam à capital dinamarquesa tentar definir um plano de ação. O secretário-geral, porém, estava preocupado, pois achava que eram pequenas as chances de acordo entre países industrializados e aqueles em desenvolvimento. Os Estados Unidos não haviam ratificado os acordos de Kyoto. A China e a Índia, por outro lado, tinham deixado bem claro que não queriam nem a Europa nem os Estados Unidos ditando suas políticas climáticas. Com isso, os problemas se arrastavam.
Desde uma visita a São Francisco em 2007, Ban Ki-moon vinha observando com grande interesse a Califórnia estabelecer coalizões cada vez maiores com outros estados americanos e governos “subnacionais” no exterior. A Iniciativa Ocidental sobre o Clima, nosso programa regional de limites e comercialização para conter emissões de carbono, fora expandida para incluir sete estados americanos e cinco províncias canadenses. Apesar da recessão mundial, nossa segunda Cúpula Governamental Global sobre o Clima, no final de 2009, atraiu governadores e líderes de províncias de seis continentes.
Esse movimento subnacional para enfrentar as mudanças climáticas havia estabelecido pontes com os países em desenvolvimento. No âmbito nacional, perdurava o impasse entre Washington e Pequim em relação às questões climáticas, mas tanto os Estados Unidos quanto a China permitiram a criação de conexões entre regiões. A Califórnia já fizera acordos com a cidade de Xangai, e várias das províncias chinesas mais industrializadas tinham metas para reduzir a emissão de gases de efeito estufa e cooperar em projetos de energia solar e eólica, ônibus elétricos e trens de alta velocidade.
Quando a notícia desses avanços se espalhou, os membros da comunidade ambientalista começaram a sentir que havia ali uma oportunidade gigantesca. Ban Ki-moon recebeu bem minha sugestão de transformar o método aplicado na Califórnia num plano B em Copenhague, a fim de complementar o esforço principal da ONU de lidar com as mudanças climáticas. “Mesmo que haja um impasse nas negociações, a conferência não precisa parecer um fracasso”, argumentei. “O senhor poderá dizer que, embora os governos nacionais estejam empacados, temos grandes sucessos aqui, na frente subnacional, e vamos continuar a luta.”
TODOS OS GRANDES MOVIMENTOS DA história – pelos direitos civis, pelo direito de voto das mulheres, contra o apartheid, pela segurança no trabalho – começam no nível mais básico, não em lugares como Washington, Paris, Moscou ou Pequim. Essa foi a minha inspiração ao tentar lidar com a questão das mudanças climáticas. Por exemplo, quando reduzimos a poluição em 70% no porto de Long Beach – o segundo porto marítimo de maior movimento no país –, a ordem não veio de Washington. Fizemos isso sozinhos. Aprovamos leis que proibiam caminhões de permanecer com o motor ligado e demos incentivos fiscais aos caminhoneiros para que eles passassem a usar motores elétricos, movidos a diesel limpo ou híbridos. Além disso, a Califórnia construiu a Rodovia do Hidrogênio (uma cadeia de postos de abastecimento para veículos movidos a hidrogênio), lançou o programa Um Milhão de Telhados Solares e se comprometeu a reduzir drasticamente suas emissões de gás de efeito estufa, tudo sem esperar por ordens de Washington. Assim, se pudéssemos promover a criação de projetos desse tipo mundo afora e envolver a população, empresas, cidades e estados, então os governos nacionais poderiam reagir.
Foi essa a ideia que levei para os líderes reunidos em Copenhague. Depois do discurso, demos uma entrevista coletiva para a imprensa, só que em um hotel diferente da conferência, para enfatizar a mensagem “Enquanto os governos nacionais estão reunidos ali, nós estamos aqui. Vocês deveriam prestar bastante atenção em nós, tanto quanto neles. Não em nós em vez de neles, pois somos atores coadjuvantes e eles são os astros. Sem os coadjuvantes, porém, eles não vão conseguir resultados”.
Como os pessimistas haviam previsto, nenhum acordo obrigatório foi assinado na cúpula de Copenhague. O presidente Obama dominou as manchetes com sua intervenção pessoal veemente e seu esforço para obter um acordo de última hora com China, Índia, África do Sul e Brasil. Nossa iniciativa não bastou para mudar o curso dos acontecimentos, mas acrescentou ao debate uma dimensão nova e crucial. Ban Ki-moon e eu nos tornamos bons amigos e, no ano seguinte, nos unimos para buscar novas maneiras de possibilitar que governos subnacionais levassem adiante políticas relacionadas às mudanças climáticas.
O presidente Obama e eu também ficamos amigos. Pouco depois de sua vitória na eleição, em 2008, eu o parabenizei em um discurso diante de uma plateia republicana, dizendo que torcia por seu sucesso como presidente, pois uma liderança nacional eficiente seria algo bom para os californianos. Sabendo que eu queria trabalhar com ele, o presidente me convidou a ir à Casa Branca e juntos desenvolvemos um sólido relacionamento profissional. Ele conhecia meu histórico de bipartidarismo e os objetivos que tínhamos em comum nas áreas de meio ambiente, imigração, reforma do sistema de saúde e infraestrutura, e sabia que eu não iria criticá-lo pelas costas. Obama me recebia com um abraço. Nossas conversas eram descontraídas e cheias de humor, embora nós dois estivéssemos enfrentando desafios econômicos terríveis: recessão, altos índices de desemprego, déficits descomunais.
NAS PESQUISAS DE OPINIÃO PÚBLICA, meu índice de aprovação caíra para 28%, um reflexo da infelicidade e do desânimo generalizados em relação à economia. Pelo menos não estava tão baixo quanto a taxa de aprovação do legislativo, que era de 17%. Eu tinha uma escolha a fazer: podia adotar uma postura conciliatória e tentar melhorar esses números, ou podia continuar lutando bravamente para consertar o que estava errado na esfera estadual e ver meus índices de aprovação irem parar no chão. Decidi lutar. Ao contrário dos políticos leais a um partido, eu não tinha nada a perder. Restava-me apenas um ano de governo, e tanto as leis sobre limitação de mandatos públicos quanto a Constituição federal me impediam de tentar outra reeleição ou de concorrer à presidência do país.
Seis anos de altos e baixos fizeram de mim um governador, assim como as lutas no fosso e a Roda da Dor haviam feito de Conan um guerreiro. Eu agora compreendia a política e o governo e, apesar de todos os combates, da recessão e dos índices de aprovação ruins, eu tinha mais energia do que nunca. Sentia-me mais uma águia faminta do que um pato manco.
Em 2010, consegui alcançar alguns objetivos importantes. Convenci o legislativo a adotar mais uma vez uma medida radical de reforma orçamentária, que estabelecesse limites para despesas e criasse um fundo emergencial. Era minha última oportunidade para tentar consertar um sistema orçamentário que não funcionava. As medidas aprovadas em 2004 eram um bom começo, mas seu alcance não bastava para corrigir o sistema. Já a medida aprovada pelo legislativo em 2009, bipartidária e elaborada com mais cuidado, não havia passado pelo crivo dos eleitores por estar atrelada a um “compromisso grandioso” que previa aumentos temporários de impostos. Dessa vez – a última e melhor chance que tínhamos para eliminar de uma vez por todas a loucura de gastos responsável pelo déficit em Sacramento –, convenci um legislativo cansado a submeter a medida a votação mais uma vez (sem os execrados aumentos de impostos), muito embora ela só fosse ser votada depois que eu deixasse o cargo. Jurei arrecadar o dinheiro para aprová-la junto aos eleitores custasse o que custasse. Fiquei decepcionado ao saber que, a pedido dos democratas e dos sindicatos, meu sucessor, o governador Jerry Brown, assinou uma lei para retirar essas reformas do pleito de 2012. De acordo com as pesquisas, a medida dessa vez teria obtido uma vitória folgada: segundo o grupo reformista Think Long Committee for California, 84% dos eleitores planejavam votar sim. No final, a política de sempre gerou um aumento de impostos sem qualquer real salvaguarda para restringir futuros gastos, e agora a proposta de reforma orçamentária irá a voto popular apenas em 2014.
No outono, assinei uma reforma histórica das aposentadorias, responsável por reduzir alguns dos piores excessos que ameaçavam falir o estado. Graças à remoção de vários regulamentos excessivos, emitimos licenças para tantas usinas de energia solar na Califórnia – mais de 5 mil megawatts só em 2009 (100 vezes toda a estrutura de energia solar autorizada no país um ano antes) – que o estado passou a ser chamado de Arábia Saudita da Energia Solar. A Califórnia agora está a caminho de construir não só a maior quantidade, mas também os maiores projetos solares do mundo. Fechei um acordo com o governo federal e com o estado do Oregon para remover represas situadas no rio Klamath e em seu entorno, o que constitui a maior remoção de represas e restauração fluvial da história dos Estados Unidos. Adotamos os primeiros Padrões para Prédios Verdes do país, exigindo que todos os edifícios novos do estado respeitassem rígidos níveis de eficiência energética e desenvolvimento sustentável.
Em 2010, também me aliei à NAACP e a Arne Duncan, o secretário de Educação do presidente Obama, para obter uma imensa vitória relacionada à reforma do ensino, dando aos pais o direito de tirar seus filhos de escolas de baixa qualidade. Os sindicatos de professores e as administrações das escolas lutaram com afinco para tentar barrar as reformas, mas a força bipartidária de um governador republicano, um presidente democrata e o principal grupo de direitos civis da nação foi imbatível até mesmo para o mais poderoso sindicato do estado.
A verdadeira medida do sucesso em 2010, no entanto, veio dos eleitores. Eu estava mais consciente do que nunca de que a chave para reformas verdadeiras e permanentes era estar em sintonia com o sentimento e o pensamento da população. Em junho, apesar do meu baixo índice de popularidade, os eleitores aprovaram a segunda parte de nosso pacote de reforma política: as primárias abertas. A primeira – uma reforma histórica que rompeu uma tradição americana de dois séculos de manipular as fronteiras dos distritos eleitorais – fora aprovada em 2008. Aliado a ela, o sistema de primárias abertas acabaria de uma vez por todas com a dominação dos interesses especiais da extrema esquerda e da extrema direita em nosso sistema eleitoral. Os dois nomes mais votados em cada primária decidiriam a eleição, independentemente do partido. Candidatos independentes e moderados republicanos ou democratas poderiam votar no candidato de sua escolha, acabando com o controle total dos radicais em ambos os partidos existente em um sistema de primárias fechado. A medida foi aprovada com 54% dos votos.
O derradeiro teste foi em novembro. Com nossas reformas, havíamos cutucado tantas onças com vara curta, à esquerda e à direita do espectro político, que tivemos que enfrentar propostas de votação popular elaboradas para anular nossas vitórias. A primeira foi uma tentativa de invalidar a medida que regulamentava os limites distritais, aprovada em 2008. Os dois partidos financiaram a campanha que tornaria a medida sem efeito e devolveria os distritos eleitorais sãos e salvos às mãos dos representantes em exercício. Além disso, também tentaram derrubar uma nova medida cujo objetivo era implantar um sistema distrital mais justo nas eleições para o Congresso. A democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Deputados, fez seus membros da Califórnia arrecadarem milhões de dólares para derrotar essa medida e anular a nossa. O ringue estava armado para a luta.
A segunda votação especial foi um referendo apresentado pelos sindicatos para punir as empresas que tivessem apoiado minhas reformas orçamentárias e políticas. O referendo anularia as reformas fiscais para empresas que tanto lutáramos para aprovar em 2009 como parte do compromisso. Infelizmente, essa era uma manobra típica: conseguia-se um acordo bipartidário sobre aumento de impostos e reformas fiscais que reduzia o custo para as empresas e, em seguida, uma vez implementados os aumentos de impostos, os sindicatos tentavam anular as reformas.
A terceira medida era a mais importante. A Proposta 23 foi levada a votação popular, financiada sobretudo por grandes empresas petrolíferas do Texas, para tentar anular nosso histórico acordo sobre o aquecimento global. A campanha manipulava os medos das pessoas em relação à economia e alegava que nossos esforços para combater as mudanças climáticas iriam aumentar ainda mais os índices de desemprego. Os defensores da proposta inundaram o estado com anúncios de TV que diziam: “Empregos Primeiro – Sim à 23”. Reagimos com uma campanha surpreendentemente impactante codirigida por George Shultz, Jim Cameron e Tom Steyer, dono de um fundo de capital de risco, que arrecadou 25 milhões de dólares. Um de nossos anúncios mais eficazes mostrava um menino pegando um nebulizador e se esforçando para respirar. Não apenas derrotamos a Proposta 23 – nós a pulverizamos por uma diferença de 20 pontos. Acabamos com qualquer esperança que a indústria petrolífera texana pudesse ter de reverter a liderança da Califórnia na questão das mudanças climáticas.
Na verdade, naquele ano os eleitores apoiaram todas as nossas iniciativas, passando por cima da oposição ferrenha de partidos, sindicatos e empresas petrolíferas do Texas. Uma reforma política histórica, uma reforma tributária para as empresas e a aprovação mais firme possível de nossos esforços em relação às mudanças climáticas – era bom estar novamente no centro, em posição de poder, e contando com o apoio da população.
Vivíamos um momento de transformação. Por toda a Califórnia, era possível ver uma nova economia energética se consolidando. Uma década iniciada com apagões e desespero terminava com o estado aprovando mais projetos de energia renovável do que o país inteiro e assumindo, com determinação, a liderança nessa área. Um estado apaixonado por rodovias de alta velocidade e carros agora encabeçava o país inteiro no desenvolvimento de combustíveis alternativos. Um estado atolado em impasses políticos estava agora pondo abaixo as barreiras do radicalismo que protegiam os partidos políticos dos eleitores que supostamente deveriam representar.
Com a aproximação do fim do mandato, minha agenda ficou mais cheia. No último trecho de uma missão comercial à Ásia, em setembro, posso afirmar com orgulho que dei um jeito de concentrar 36 horas de trabalho em um único dia. Na quarta-feira, 15 de setembro, comecei o dia às oito da manhã, em Seul, em uma reunião com a Câmara Americana de Comércio no hotel Grand Hilton. Então passei algum tempo com atletas dos Jogos Mundiais Olímpicos Especiais, tive um encontro com os presidentes da Korean Air e da Hyundai, conversei com o prefeito de Seul, assinei um acordo de cooperação entre Coreia e Califórnia, andei no trem-bala, visitei uma loja de departamentos e animei os soldados americanos lotados na Coreia. Ao ser informado sobre a imensa explosão de um gasoduto em San Bruno, cancelei os outros compromissos e, em vez de ir para casa, peguei um avião direto para a região da baía de São Francisco, cruzando a linha internacional de mudança de data. Quando cheguei em território americano, portanto, ainda era quarta-feira. Em San Bruno, visitei o local da explosão, recebi informações atualizadas das equipes de socorro e conversei com as vítimas, que ainda se encontravam em estado de choque. Falei com famílias que tinham perdido seus lares, seus parentes, sua comunidade. De todas as coisas que fiz na vida, nada ficou gravado mais fundo na minha memória que fitar os olhos de uma pessoa que acabara de perder tudo o que amava na vida.
EM DEZEMBRO, DEPOIS DE OS eleitores escolherem Jerry Brown para me suceder e com os planos para a transferência de poder já bem adiantados, um jornalista me perguntou por que não saí tranquilamente pela porta, como teria feito a maioria dos governadores após dois mandatos tumultuados. Respondi que acredito em cruzar a linha de chegada correndo a toda a velocidade. “Ainda há muito trabalho a ser feito”, falei. “Por que parar em novembro ou dezembro? Não faria o menor sentido.”
O estado ainda estava tomado pela mais profunda crise financeira da história moderna dos Estados Unidos e, apesar de todos os nossos esforços, meu sucessor teria que encarar um déficit orçamentário persistente, provavelmente pelos dois anos seguintes. Eu poderia simplesmente ter ignorado os números durante o outono e deixado o trabalho a cargo de Jerry Brown. Com certeza era o que os líderes democratas do legislativo queriam que eu fizesse, pois estavam fartos da minha pressão por mais cortes de gastos. No entanto, deixar passar meses sem qualquer providência teria sido uma irresponsabilidade. Assim, convoquei mais uma sessão especial do legislativo. Dessa vez, já sabia de antemão que os legisladores não agiriam. Estavam todos sem energia, rezando para que o novo governador democrata chegasse montado em um cavalo branco e aumentasse os impostos para poupá-los de ter que fazer mais cortes. Não fariam mais nenhum corte, de jeito nenhum, por mais que eu os pressionasse. A imprensa escreveu o óbvio: “Ele começou com problemas de orçamento e terminou com problemas de orçamento.”
É verdade. Apesar disso, tivemos um baita progresso e também fizemos história em muitas frentes: reformas no sistema de seguros e indenizações trabalhistas, reformas nas políticas de concessão de liberdade condicional, reformas da aposentadoria, reformas do ensino, reformas do sistema de benefícios sociais e previdenciários e reformas do orçamento não uma, nem duas, mas quatro vezes. (E lá estarei, na campanha de 2014, para garantir que os eleitores aprovem as novas reformas orçamentárias.) Fizemos do nosso estado um líder internacional em matéria de mudanças climáticas e energia renovável; um líder nacional em reforma do sistema de saúde e na luta contra a obesidade; lançamos o maior esforço de investimento em infraestrutura em muitas gerações; e enfrentamos o problema da água, o mais espinhoso da política estadual. Implementamos as reformas políticas mais significativas desde o governo de Hiram Johnson – e, em junho de 2012, na primeira eleição realizada com o novo sistema de primárias abertas, o aumento da participação de candidatos moderados e pragmáticos atraiu atenção nacional. E realizamos tudo isso ao mesmo tempo que lidávamos com o maior desastre econômico desde a Grande Depressão.
Não nego que ser governador foi mais complexo e mais desafiador do que eu havia imaginado. Destaco um incidente em especial, pelo abismo que revela entre o que as pessoas pensam que você pode fazer por elas e a realidade que você tem que enfrentar como governador. Durante a terrível seca de 2009, fui conversar com agricultores em Mendota, no vale Central. Estava com Alan Autry, prefeito de Fresno e ex-quarterback profissional de futebol americano, que se esforçou mais do que ninguém para chamar minha atenção para a situação dos agricultores. Mendota era uma das comunidades mais afetadas tanto pela crise econômica quanto pela seca devastadora. A produção agrícola estava paralisada, os campos tinham virado pó e o desemprego atingira os 42%. Precisávamos de mais água do delta dos rios Sacramento-San Joaquin. Os ambientalistas, porém, diziam que desviar a água ameaçaria um peixinho chamado delta smelt, e um juiz federal ordenou que o desvio não fosse feito. O governo federal avaliou que o peixe precisava de mais proteção que os agricultores.
Os lavradores começaram a fazer demonstrações com cartazes que diziam “Liguem as Bombas” e mostravam imagens dos campos secos. Davam à imprensa declarações do tipo: “De jeito nenhum vou deixar um peixinho levar embora minha água. Vamos lutar contra o governo até o fim.”
Eu disse a eles que estávamos negociando com Ken Salazar, secretário do Interior.
– Essas coisas levam tempo, é preciso ter paciência – falei.
Um dos agricultores se levantou e perguntou:
– Como você pode dizer isso? Por que simplesmente não vai lá e gira a válvula? Vá lá e ligue a bomba.
Percebi que as pessoas achavam que eu fosse ignorar o juiz federal, ignorar quem quer que estivesse vigiando a estação da bomba, chegar até uma imensa válvula, quebrar a corrente que a prendia e girá-la, liberando assim uma enxurrada de água sobre a região para deixá-la toda verdinha e devolver o emprego aos agricultores. Só que eu não podia fazer isso na vida real! É esse o problema quando você é governador. Pode até fazer milagres, mas não do tipo em que veste uma capa e sai voando pelo céu. Foram precisos muitos meses de pressão e convencimento junto ao Departamento do Interior e algumas dedicadas negociações com o governo Obama antes de a água ser liberada.
Como governador, você não é nem um defensor solitário nem um astro. Precisa trabalhar lado a lado com o legislativo, com os tribunais, com a máquina burocrática e com o governo federal, sem falar nos próprios eleitores.
A política pode ser bem parecida com se atirar no ar em direção a uma multidão. Muitas mãos se levantam para carregá-lo e às vezes você até acaba indo parar aonde queria ir, mas outras vezes não. Em comparação com fazer um filme, porém, a satisfação de realizar algo no governo é bem maior e mais duradoura. Em um filme, você diverte o público por algumas horas dentro de uma sala escura. Já no governo você afeta vidas inteiras, gerações até.
Sempre que chegávamos a algum acordo e que alguma medida era aprovada pelo legislativo ou nas urnas, eu era tomado por uma sensação extraordinária. Pegava um charuto, acendia, sacava minha lista de coisas a realizar, pegava uma caneta e riscava aquele item da lista. Sem dúvida eu gostaria de ter riscado mais itens, mas mesmo assim me sinto bem com o que conseguimos realizar.
Até Maria concordava que o desafio tinha valido a pena. Em 2010, ao discursar em uma conferência sobre bem-estar, ela afirmou: “Gostaria de reconhecer hoje que estava errada quando tentei convencer Arnold a não se candidatar a governador, sete anos atrás, e que ele teve razão em não me dar ouvidos. A verdade é que eu não queria que ele concorresse porque eu própria não gostei de ser criada em uma família de políticos. Tinha medo de que algo ruim acontecesse. Eu temia o desconhecido. Na realidade, Arnold teve razão em correr atrás de seu sonho e se candidatar. Ele adorou ter sido governador mais do que qualquer outra coisa que já tenha feito na vida. O trabalho acabou combinando perfeitamente com seu intelecto, seu amor pelas pessoas, sua paixão por políticas públicas e sua tendência competitiva. Nunca o vi mais feliz ou mais realizado. Mesmo com todos os altos e baixos dos últimos sete anos, ele diz que, se tivesse que fazer tudo outra vez, faria sem pestanejar, e eu acredito nele. Nunca pensei que fosse dizer isso, mas agradeço ao meu marido por não ter me escutado.”
Ter uma mulher assim era mais sorte do que eu merecia.