CAPÍTULO 1
Origens austríacas
O ANO EM QUE NASCI FOI marcado pela fome: era 1947, e a Áustria estava ocupada pelos Exércitos Aliados que haviam derrotado o Terceiro Reich de Hitler. Em maio, dois meses antes de eu nascer, a falta de comida provocou motins em Viena. Na Estíria, região do sudeste austríaco em que minha família morava, a situação também era dramática. Anos depois, sempre que minha mãe queria me lembrar de quanto ela e meu pai tinham se sacrificado para me criar, ela me contava como costumava percorrer nossa zona rural, indo de fazenda em fazenda para conseguir um pouco de manteiga, um punhado de açúcar, alguns cereais. Às vezes chegava a passar três dias fora de casa. Hamstern era o termo usado para designar essa prática – como um hamster coletando nozes. Tentar achar comida assim era muito comum.
Vivíamos em Thal, um povoado agrícola bem típico onde moravam poucas centenas de famílias cujas casas e fazendas se aglomeravam em pequenos núcleos interligados por trilhas e ruas. A rua principal, sem calçamento, estendia-se por uns 2 ou 3 quilômetros, subindo e descendo morros alpinos cobertos por campinas e florestas de pinheiros.
Quase nunca víamos as forças de ocupação britânicas – um caminhão com soldados passava de vez em quando, mas era só. Mais a leste, porém, eram os russos que dominavam o território, e deles nós tínhamos plena consciência. A Guerra Fria já havia começado e vivíamos com medo de os tanques russos chegarem e sermos engolidos pelo império soviético. Na igreja, os padres assustavam os fiéis com histórias de terror sobre russos que matavam bebês a tiros no colo das mães.
Nossa casa ficava no alto de uma colina junto à estrada e, quando eu era pequeno, era raro ver passar por ali mais de um ou dois carros por dia. Bem na frente, a 100 metros da porta de casa, ficavam as ruínas de um castelo feudal.
No alto da colina seguinte ficavam a prefeitura, a igreja católica onde minha mãe obrigava todos nós a assistir à missa de domingo, a Gasthaus ou hospedaria da região – que era o centro de convivência do povoado – e a pré-escola na qual estudávamos eu e meu irmão, Meinhard, um ano mais velho.
As primeiras lembranças que tenho são de minha mãe lavando roupa e meu pai recolhendo carvão com uma pá. Eu não devia ter mais de 3 anos, mas a imagem que guardo dele é especialmente vívida na minha memória. Era um sujeito grande, atlético, e fazia muitas coisas sozinho. Todos os anos, no outono, recebíamos nosso estoque de carvão para o inverno, um carregamento trazido de caminhão e despejado em uma pilha em frente à casa, e nesse dia específico do qual me lembro meu pai deixou que Meinhard e eu ajudássemos a levar o carvão para o porão de casa. Nós sempre ficávamos muito orgulhosos de ser seus assistentes.
Tanto meu pai quanto minha mãe vinham de famílias da classe trabalhadora mais ao norte do país, em sua maioria operários de fábricas da indústria siderúrgica. No caos que sucedeu a Segunda Guerra Mundial, os dois haviam se conhecido na cidade de Mürzzuschlag, onde Aurelia Jadrny, minha mãe, trabalhava no escritório de um centro de distribuição de alimentos da prefeitura. Aos 20 e poucos anos, a guerra a tornara viúva – perdera o marido apenas oito meses depois do casamento. Certo dia de manhã, quando estava em sua mesa trabalhando, ela reparou no meu pai passando na rua – um homem mais velho, de quase 40 anos, mas alto, bonito e com o uniforme da Gendarmerie, a polícia rural. Minha mãe tinha loucura por homens de uniforme e depois desse dia passou a ficar de olho nele. Descobriu o horário do turno de meu pai para ter certeza de que ela estaria em sua mesa trabalhando. Os dois conversavam pela janela aberta e ela lhe dava um pouco da comida que estivesse disponível no dia.
Meu pai chamava-se Gustav Schwarzenegger. Os dois se casaram em 1945, ele com 38 anos, ela com 23. Ele foi transferido para Thal e encarregado de liderar um grupo de quatro agentes responsáveis pelo povoado e seus arredores. O salário mal dava para viver, mas o emprego lhe oferecia uma casa para morar: o antigo refúgio do guarda florestal, ou Forsthaus. O guarda florestal, Forstmeister, morava no térreo, enquanto o Inspektor e sua família ocupavam o primeiro andar.
A casa em que passei minha infância era uma construção muito simples e simétrica, feita de pedra e tijolo, com paredes grossas e janelas pequeninas para proteger o interior do rigor dos invernos alpinos. Tínhamos dois quartos de dormir, cada qual com um braseiro para aquecer o ambiente, e uma cozinha, que era onde comíamos, fazíamos os deveres de casa, tomávamos banho e brincávamos. A fonte de calefação da cozinha era o fogão de minha mãe.
Não havia água encanada, nem chuveiro ou privada com descarga, apenas uma espécie de penico. O poço mais próximo ficava a quase 500 metros de distância, e, mesmo quando chovia forte ou nevava, um de nós tinha que ir até lá. Por causa disso, usávamos a menor quantidade de água possível. Nós a esquentávamos para encher a tina onde nos lavávamos com uma esponja ou luva de banho – minha mãe tomava banho primeiro, com a água limpa, em seguida meu pai, e por último Meinhard e eu. Não tinha importância que a água ficasse um pouco mais escura, contanto que pudéssemos evitar uma ida ao poço.
Nossos móveis eram de madeira, muito simples, e tínhamos poucas lâmpadas elétricas. Apesar de meu pai gostar de quadros e antiguidades, não tinha dinheiro para esse tipo de luxo quando éramos pequenos. Eram a música e os gatos de estimação que animavam nossa casa. Minha mãe tocava cítara e entoava canções e cantigas de ninar, mas o verdadeiro músico era meu pai. Ele sabia tocar qualquer instrumento de sopro: trompete, corneta, saxofone, clarineta. Também compunha melodias e era maestro da banda da Gendarmerie da região – sempre que um agente de polícia morria no nosso estado, a banda dele ia tocar no enterro. Durante o verão, aos domingos, muitas vezes íamos assistir a concertos no parque, e meu pai regia e tocava de vez em quando. A maioria de nossos parentes do lado paterno tinha aptidão para a música, mas nem eu nem Meinhard herdamos esse talento.
Não sei muito bem por que tínhamos gatos em vez de cachorros. Talvez porque minha mãe os adorasse, e também pelo fato de esses animais não darem despesa alguma, já que caçavam a própria comida. Seja como for, sempre tivemos muitos gatos. Eles viviam entrando e saindo, enroscando-se para dormir em algum canto ou trazendo camundongos agonizantes do sótão para mostrar como eram bons caçadores. Cada um de nós tinha seu próprio gato para se aconchegar à noite na cama – esse era o nosso costume. Houve uma época em que tínhamos sete gatos. Gostávamos deles, mas nunca além da conta, pois ir ao veterinário era um conceito que não existia. Se algum dos gatos começasse a perder o prumo por estar doente ou velho, nós esperávamos para ouvir o som no quintal dos fundos – o tiro da pistola do meu pai. Minha mãe, Meinhard e eu então saíamos e fazíamos um pequeno túmulo com uma cruzinha por cima.
Minha mãe tinha uma gata preta chamada Mooki que ela sempre dizia ser especial, embora nenhum de nós entendesse por quê. Certo dia – eu devia ter uns 10 anos –, estava discutindo com minha mãe porque não queria fazer o dever de casa. Mooki, como sempre, estava na sala, aninhada no sofá. Eu devo ter dito alguma coisa bem malcriada, porque minha mãe avançou para me dar um tapa na cara. Eu vi que ela ia me bater e tentei me esquivar, mas acabei acertando-a com a parte de trás do braço. Em um segundo, a gata se levantou do sofá, pulou entre nós dois e começou a arranhar meu rosto. Arranquei-a de cima de mim e gritei: “Ai! O que é isso?” Minha mãe e eu nos entreolhamos e começamos a rir, enquanto o sangue escorria da minha bochecha. Ela finalmente pôde comprovar que Mooki era especial.
Depois do turbilhão da guerra, o que meus pais mais desejavam era ter estabilidade e segurança. Minha mãe era uma mulher grandona, de corpo quadrado, sólida e ativa, e era também uma Hausfrau tradicional, que mantinha a casa sempre um brinco. Enrolava os tapetes, ficava agachada no chão para esfregar as tábuas do piso com escova e sabão, depois as secava com um pano. Tinha obsessão por manter as roupas sempre bem penduradas e os lençóis e toalhas dobrados com precisão, com os cantos perfeitos. Atrás da casa, ela plantava beterrabas, tomates e frutas silvestres para nos alimentar, e no outono preparava conservas e chucrute e os colocava em grossos frascos de vidro para o inverno. Sempre que meu pai chegava da delegacia, ao meio-dia e meia, o almoço já estava pronto, e o mesmo acontecia com o jantar quando ele voltava para casa às seis em ponto.
Mamãe também cuidava das finanças. Como tinha trabalhado em tarefas administrativas na prefeitura, era muito organizada e boa em redação e matemática. Todo mês, quando meu pai recebia o salário, ela dava a ele 500 schillings de mesada e guardava o restante para sustentar a casa. Cuidava de toda a correspondência da família e pagava as contas mensais. Uma vez por ano, sempre em dezembro, ela nos levava para comprar roupas. Pegávamos um ônibus e atravessávamos um cume de morro até Graz, onde ficava a loja de departamentos Kastner & Öhler. O velho prédio tinha apenas dois ou três andares, mas para nós era tão grande quanto o gigantesco shopping Mall of America. Tinha escadas rolantes e um elevador transparente de metal e vidro do qual podíamos ver tudo ao subir e descer. Para mim, mamãe comprava apenas os itens de necessidade básica: roupa de baixo, meias e assim por diante. Tudo era entregue em nossa casa no dia seguinte, em caprichados embrulhos de papel pardo. Nessa época, as compras parceladas eram novidade, e ela gostava muito de poder pagar uma parte do total a cada mês até quitar a dívida. Liberar pessoas como mamãe para fazer compras era uma boa forma de estimular a economia.
Embora quem tivesse treinamento para lidar com emergências fosse meu pai, também era minha mãe quem cuidava dos problemas médicos. Meu irmão e eu tivemos todas as doenças infantis imagináveis, de caxumba a escarlatina, de modo que ela pôde treinar bastante. Nada conseguia detê-la: em uma noite de inverno, quando éramos bem pequenos, Meinhard teve pneumonia e ninguém conseguiu encontrar nenhum médico ou ambulância disponível. Minha mãe enrolou o filho em uma trouxa, colocou-o nas costas e, deixando-me em casa com meu pai, percorreu quase 3,5 quilômetros a pé na neve até o hospital de Graz.
Meu pai era outra história. Podia ser um homem generoso e afetuoso, principalmente com a mulher. Os dois se amavam muito. Era possível constatar isso vendo a forma como ela lhe servia café e no jeito como ele vivia encontrando presentinhos para dar a ela, como a abraçava e lhe dava tapinhas no bumbum. Os dois compartilhavam conosco esse afeto: volta e meia, eu e meu irmão íamos para a cama deles, sobretudo se estivéssemos com medo de raios e trovões.
No entanto, mais ou menos uma vez por semana, em geral às sextas-feiras, meu pai chegava em casa bêbado. Ficava fora até as duas ou três da manhã, bebendo em sua mesa habitual da Gasthaus junto com os frequentadores assíduos, que em geral incluíam o padre, o diretor da escola e o prefeito da cidade. Nós acordávamos com ele batendo nos móveis, enfurecido, e gritando com minha mãe. A raiva nunca durava muito: no dia seguinte ele se mostrava carinhoso e gentil e nos levava para almoçar ou então nos dava algum presente para compensar seu comportamento. Se fizéssemos alguma bobagem, porém, ele nos batia com a mão ou com o cinto.
Para mim e meu irmão, tudo isso parecia perfeitamente normal: todos os pais batiam nos filhos e chegavam bêbados em casa. Um deles, nosso vizinho, puxava as orelhas do filho e o perseguia com uma vara fina e flexível que deixava de molho na água para fazer as pancadas doerem mais. A bebida parecia ser apenas um elemento da camaradagem, que na maioria das vezes era bem mais delicada. De vez em quando, esposas e filhos eram convidados a ir se juntar aos maridos e pais na Gasthaus. Para nós, crianças, era sempre uma honra sentar com os adultos e poder comer sobremesa. Ou então nos deixavam entrar na sala ao lado, beber um pouco de Coca-Cola, nos divertir com os jogos de tabuleiro e folhear revistas ou ver TV. O relógio marcava meia-noite e nós, sentados ali, pensávamos: “Nossa, que incrível!”
Levei anos para entender que por trás dessa Gemütlichkeit, ou aconchego, escondiam-se amargura e medo. Nós estávamos crescendo no meio de homens que se sentiam um bando de perdedores. Sua geração havia começado a Segunda Guerra Mundial e perdera. Durante o conflito, meu pai deixara a Gendarmerie para se tornar policial do exército alemão. Serviu na Bélgica, na França e no norte da África, onde pegou malária. Em 1942, por pouco não foi capturado na Batalha de Leningrado, a mais sangrenta da guerra. O prédio em que ele estava foi bombardeado pelos russos. Ele passou três dias soterrado pelos escombros, fraturou a coluna e foi atingido por estilhaços nas duas pernas. Teve que passar meses em um hospital da Polônia antes de se recuperar e poder voltar à Áustria e tornar a integrar a polícia civil. Além do mais, levando em conta o que ele havia presenciado, quem poderia dizer quanto tempo suas feridas psíquicas levaram para cicatrizar? Eu ouvia os homens falarem sobre isso quando estavam embriagados e posso imaginar quanta dor as lembranças lhes causavam. Sentiam-se todos derrotados e também temerosos de que, a qualquer momento, os russos fossem aparecer e levá-los embora para reconstruir Moscou e Leningrado. Esses homens sentiam raiva. Tentavam reprimir essa fúria e a humilhação, mas a decepção estava entranhada bem fundo em seus ossos. Pense bem: você ouve a promessa de que vai se tornar cidadão de um novo e grandioso império. Todas as famílias poderão gozar dos mais modernos confortos. Em vez disso, você volta para casa e encontra uma terra arrasada, com pouquíssimo dinheiro, quase nenhuma comida, onde tudo precisa ser refeito do zero. O território está tomado pelas forças de ocupação, ou seja, você nem tem controle sobre o próprio país. Pior ainda: você não tem como assimilar as experiências pelas quais passou. Como lidar com um trauma inacreditável desses quando ninguém sequer tinha permissão para tocar no assunto?
Em vez da glória prometida, o Terceiro Reich estava sendo oficialmente apagado da história. Todos os funcionários públicos – na administração local, nas escolas, na polícia – tiveram que passar pelo que os americanos chamavam de desnazificação. Você era interrogado e todo o seu histórico era vasculhado para determinar se tinha sido um nazista convicto ou se estivera em posição de cometer crimes de guerra. Tudo o que fosse relacionado ao período nazista era confiscado: livros, filmes, cartazes – até mesmo diários e fotografias pessoais. Você tinha que entregar tudo: o objetivo era riscar a guerra da sua memória.
Meinhard e eu tínhamos apenas uma vaga noção disso tudo. Na nossa casa havia um lindo livro de ilustrações que costumávamos pegar emprestado para “brincar de padre” e fingir que aquilo era a Bíblia, porque na verdade ele era bem maior do que a Bíblia da nossa família. Um de nós ficava em pé, segurando o livro aberto, enquanto o outro recitava a missa. Na verdade, o livro era um álbum a ser completado para promover os feitos grandiosos do Terceiro Reich. Havia seções para diferentes categorias: obras públicas, túneis e represas em construção, comícios e discursos de Hitler, imensos navios novos, novos monumentos, grandes batalhas travadas na Polônia. Cada categoria tinha páginas em branco numeradas e, sempre que a pessoa ia a uma loja comprar alguma coisa ou investia em um bônus de guerra, tirava um retrato também numerado que colava no livro. Ao completar o álbum, a pessoa ganhava um prêmio. Eu adorava as páginas que retratavam magníficas estações de trem e potentes locomotivas cuspindo vapor e ficava fascinado com a imagem de dois homens andando por uma estrada de terra em um pequeno carrinho aberto, bombeando uma alavanca para cima e para baixo e fazendo o carrinho avançar – aquilo para mim era um retrato da aventura e da liberdade.
Meinhard e eu não tínhamos a menor ideia do que estávamos vendo, mas certo dia, quando fomos brincar de padre, o álbum tinha desaparecido. Viramos a casa do avesso. Por fim, fui perguntar a minha mãe aonde aquele lindo livro tinha ido parar. Afinal de contas, aquilo era a nossa Bíblia! Tudo o que ela respondeu foi: “Tivemos que entregar o livro.” Eu costumava pedir ao meu pai que me contasse algo sobre a guerra, ou então lhe fazia perguntas sobre o que ele tinha visto ou as experiências pelas quais tinha passado. Sua resposta era sempre a mesma: “Não há nada para contar.”
A resposta dele para a vida era a disciplina. Tínhamos uma rotina rígida e nada nela podia mudar: acordávamos às seis da manhã, e eu ou Meinhard tínhamos que ir buscar leite na fazenda vizinha. Quando ficamos um pouco mais velhos e começamos a praticar esportes, o exercício físico entrou para o rol das tarefas obrigatórias, e tínhamos que fazer jus ao café da manhã com abdominais. À tarde, depois de terminados os deveres escolares e as tarefas domésticas, meu pai nos fazia jogar futebol, independentemente do tempo que estivesse fazendo. Quando errávamos alguma jogada, sabíamos que ele gritaria com a gente.
Meu pai acreditava com essa mesma convicção em treinar nossos cérebros. Aos domingos, depois da missa, ele nos levava para um passeio em família: podia ser uma visita a outro povoado, uma peça de teatro, ou vê-lo se apresentar com a banda da polícia. Então, à noite, tínhamos que escrever um relatório de pelo menos 10 páginas sobre nossas atividades. Ele nos devolvia os relatórios cheios de comentários escritos em vermelho e, se tivéssemos errado a grafia de alguma palavra, éramos obrigados a copiá-la 50 vezes.
Eu amava meu pai e queria muito ser igual a ele. Lembro-me de uma vez, quando era pequeno, em que vesti seu uniforme de policial e subi em uma cadeira em frente ao espelho. O paletó descia quase até meus pés, mais parecendo uma túnica, e o quepe caía por cima do meu nariz. Mas ele não tinha paciência para os nossos problemas. Se quiséssemos uma bicicleta, dizia-nos para ganhar nosso próprio dinheiro e comprá-la. Nunca soube o que era ser bom o suficiente, forte o suficiente, inteligente o suficiente. Meu pai sempre me dizia que havia como melhorar. Muitos meninos teriam ficado traumatizados com essa exigência toda, mas no meu caso a disciplina surtiu efeito. Eu a transformei em determinação.
Meinhard e eu éramos muito chegados. Dormimos no mesmo quarto até eu completar 18 anos e sair de casa para me alistar no exército, mas eu nunca quis que fosse diferente. Até hoje me sinto mais confortável quando tenho alguém para conversar até pegar no sono.
Éramos ultracompetitivos, como os irmãos muitas vezes são – vivíamos tentando superar um ao outro e conquistar a aprovação de nosso pai, que, naturalmente, também era um atleta competitivo. Ele organizava corridas para nós e dizia: “Agora vamos ver quem é o melhor de verdade.” Éramos maiores do que a maioria dos outros meninos, mas, como eu era um ano mais novo, em geral quem ganhava essas competições era Meinhard.
No entanto, eu estava sempre atento para encontrar jeitos de tomar a dianteira. O ponto fraco de Meinhard era o medo do escuro. Aos 10 anos, ele terminou a primeira etapa do ensino fundamental, de quatro anos, em nosso povoado e ingressou na Hauptschule, que ficava em Graz, do outro lado do morro, para cursar a segunda etapa. Para chegar lá era preciso pegar o transporte público, e o ponto de ônibus ficava a uns 20 minutos de caminhada da nossa casa. O problema era que as atividades escolares em geral duravam até bem depois de o sol se pôr nos curtos dias de inverno, então Meinhard precisava voltar para casa após escurecer. Tinha muito medo de voltar sozinho, então passou a caber a mim a tarefa de buscá-lo no ponto de ônibus.
Na verdade, aos 9 anos eu também tinha medo de sair sozinho no escuro. Não havia iluminação nas ruas, e Thal à noite era um breu. As ruas e as trilhas eram margeadas por florestas de pinheiros como nos contos dos irmãos Grimm, tão densas que eram escuras até de dia. É claro que nós dois tínhamos crescido escutando aquelas histórias horríveis que eu jamais leria para meus filhos, mas que faziam parte da nossa cultura. Havia sempre alguma bruxa, um lobo ou monstro à espreita para fazer mal à criança. Ter um pai policial também alimentava nossos temores. Às vezes ele nos levava para acompanhá-lo em sua ronda e dizia estar procurando esse ou aquele criminoso ou assassino. Chegávamos a algum celeiro isolado no meio de um campo e ele nos mandava esperar enquanto, de arma em punho, examinava o local. Ou então circulava a notícia de que ele e seus homens tinham capturado algum bandido, e meu irmão e eu corríamos até a delegacia para ver o sujeito lá, sentado, algemado a uma cadeira.
Para chegar ao ponto de ônibus, não bastava apenas caminhar por uma rua. A trilha de terra batida serpenteava pelas ruínas do castelo e descia o morro pela extremidade da floresta. Certa noite, eu estava andando por esse caminho, de olho nas árvores para o caso de algum perigo surgir, quando de repente, do nada, um homem apareceu na minha frente. A luz da lua permitia distinguir apenas seu contorno e dois olhos brilhantes. Dei um grito e fiquei paralisado – na verdade, era apenas um dos agricultores da região andando na direção contrária, mas, se fosse um duende, com certeza teria me pegado.
A necessidade de provar que eu era mais forte foi o principal motivo para eu superar o medo. Era extremamente importante mostrar a meus pais que eu era corajoso e Meinhard não, mesmo ele sendo um ano e 14 dias mais velho.
Essa determinação rendeu frutos. Pelo trabalho de ir buscar Meinhard, meu pai me dava cinco schillings por semana. Minha mãe aproveitava meu destemor para me mandar ao mercado de produtores toda semana comprar legumes e verduras, o que me obrigava a atravessar outra floresta escura. Essa tarefa me rendia mais cinco schillings, dinheiro que eu gastava alegremente em sorvetes ou em selos para minha coleção.
O lado ruim, porém, foi que meus pais passaram a proteger Meinhard ainda mais e a me dar menos atenção. No verão daquele ano, durante as férias escolares, eles me mandaram trabalhar na fazenda da minha avó, mas deixaram meu irmão ficar em casa. Eu gostava do trabalho físico, mas me senti preterido quando voltei para casa e descobri que eles tinham levado Meinhard para visitar Viena sem mim.
Aos poucos, fomos seguindo caminhos diferentes. Enquanto eu lia o caderno de esportes do jornal e decorava o nome dos atletas, Meinhard desenvolveu uma paixão pela leitura da Der Spiegel, equivalente alemã da revista Time – isso era inédito na nossa família. Meu irmão se dedicou a aprender o nome e a população de todas as capitais do mundo, e o nome e a extensão de todos os rios importantes. Decorou a tabela periódica e fórmulas químicas. Era fanático por fatos e desafiava nosso pai o tempo inteiro para testar o que ele sabia.
Ao mesmo tempo, Meinhard adquiriu verdadeira aversão ao trabalho físico. Ele não gostava de sujar as mãos e começou a usar camisas brancas todo dia para ir à escola. Minha mãe aceitou, mas reclamou comigo: “Pensei que já tivesse trabalho suficiente lavando as camisas brancas do seu pai. E agora lá me vem ele com mais camisas brancas.” A família não demorou muito para começar a prever que Meinhard seria um trabalhador de colarinho branco, quem sabe um engenheiro, enquanto eu seria um trabalhador braçal, pois não me importava nem um pouco em sujar as mãos. “Você quer ser mecânico?”, perguntavam meus pais. “Ou que tal marceneiro?” Ou então achavam que eu poderia me tornar policial, como meu pai.
Meus planos, porém, eram outros. Não sei muito bem como, mas um pensamento havia tomado forma na minha mente: meu lugar era nos Estados Unidos. Não havia nada mais concreto que isso. Apenas os Estados Unidos. Não tenho certeza do que provocou isso. Talvez fosse para fugir das dificuldades de Thal e da mão de ferro do meu pai, ou talvez fosse a animação da ida diária a Graz, onde, no outono de 1957, segui Meinhard rumo à Hauptschule e comecei a quinta série. Em comparação com Thal, Graz era uma gigantesca metrópole, com tudo a que se tinha direito: carros, lojas, calçadas. Não havia nenhum americano lá, mas os Estados Unidos começavam a influenciar nossa cultura. Todas as crianças sabiam brincar de caubói e índio. Víamos imagens de cidades, subúrbios, marcos arquitetônicos e autoestradas americanos em nossos livros escolares e nos documentários granulados em preto e branco exibidos no antigo projetor de nossa sala de aula.
Mais importante ainda: sabíamos que nossa segurança dependia dos Estados Unidos. Na Áustria, a Guerra Fria não demorou a começar. Sempre que havia alguma crise, meu pai tinha que arrumar a mochila e partir para a fronteira com a Hungria, quase 90 quilômetros a leste, para ajudar a guarnecer as defesas do país. Um ano antes, em 1956, quando os soviéticos haviam esmagado a revolução húngara, ele ficara encarregado de cuidar das centenas de refugiados que acorriam à nossa região. Participou da montagem dos campos de reassentamento e ajudou os refugiados a chegarem aonde quisessem ir. Alguns optaram pelo Canadá, outros preferiram ficar na Áustria e, naturalmente, muitos escolheram ir para os Estados Unidos. Meu pai e seus homens trabalhavam diretamente com as famílias, e ele levava a mim e Meinhard para ajudar na distribuição da sopa, o que me causou forte impressão.
NOSSA EDUCAÇÃO EM RELAÇÃO AO MUNDO CONTINUAVA no NonStop Kino, um cinejornal perto da praça central de Graz. Primeiro havia um noticiário com imagens do mundo inteiro dublado em alemão, depois um desenho do Mickey ou de algum outro personagem e em seguida comerciais com imagens estáticas de lojas variadas em Graz. No final havia uma música e a transmissão recomeçava. O NonStop não era muito caro – uns poucos schillings – e cada noticiário parecia trazer novas maravilhas: Elvis Presley cantando “Hound Dog”, o presidente Dwight Eisenhower pronunciando um discurso. Clipes de empresas aéreas, carros americanos com design aerodinâmico, estrelas de cinema. São essas as imagens de que me lembro. Havia também coisas chatas, é claro, e coisas das quais eu nem sequer me dava conta, como a crise do canal de Suez em 1956.
Os filmes americanos causavam uma impressão ainda mais profunda. O primeiro que Meinhard e eu vimos foi um do Tarzã, estrelado por Johnny Weissmuller. Eu achava que ele fosse largar o cipó e saltar da tela para cima da plateia. Pensar que um ser humano pudesse se balançar de galho em galho e conversar com leões e chimpanzés era fascinante, assim como a história de Tarzã com Jane. Para mim, aquilo era uma vida boa. Meinhard e eu voltamos várias vezes para rever o filme.
Sempre frequentávamos dois cinemas que ficavam um de frente para o outro na rua comercial mais movimentada de Graz. Em geral exibiam filmes de faroeste, mas também comédias e dramas. O único problema era a rígida aplicação do sistema de classificação etária. Um policial ficava postado no cinema para verificar a idade das pessoas que entravam. Era bem fácil entrar para ver o filme do Elvis, equivalente a um filme atual com censura 14 anos, mas todos os filmes que eu queria ver – faroestes, histórias de gladiadores e de guerra – estavam mais para censura 16 anos, e portanto era muito mais difícil conseguir entrar na sala de exibição. Às vezes um bilheteiro camarada me deixava esperar o filme começar e então meneava a cabeça em direção ao corredor em que o policial estava. Outras vezes eu ficava esperando perto da saída lateral e entrava na sala andando de costas.
Minha diversão era bancada pelo dinheiro ganho graças a meu primeiro empreendimento: vender sorvete no Thalersee no verão anterior. O Thalersee era um parque público onde havia um lindo lago aninhado nas montanhas no extremo leste de Thal, uns cinco minutos a pé de nossa casa. Era fácil ir de Graz até o lago e, no verão, milhares de pessoas iam passar o dia lá para relaxar, nadar ou remar e praticar outros esportes. Quando a tarde caía, estavam todos com calor e sede, e ao ver pessoas fazendo fila na barraquinha de sorvete do terraço, percebi que ali havia uma oportunidade a ser explorada. O parque era bem grande e, dependendo de onde estivesse a sua toalha, para ir ao terraço você precisaria caminhar 10 minutos. Quando você voltasse, seu sorvete já teria derretido. Descobri que eu podia comprar dezenas de sorvetes de casquinha por 1 schilling cada um, depois sair andando pelo lago e revendê-los por 3 schillings. O dono da sorveteria gostou dessa renda extra e chegou a me emprestar um isopor para conservar os sorvetes por mais tempo. Com a venda, eu podia ganhar 150 schillings – quase 6 dólares – em uma única tarde, além de um belo bronzeado de tanto andar para lá e para cá só de short.
Depois de algum tempo, meu dinheiro dos sorvetes acabou e eu não gostei nem um pouco de ficar pobre. A solução que inventei naquele outono foi pedir esmolas. Eu matava aula e ficava perambulando pela rua principal de Graz em busca de um rosto bondoso. Podia ser um homem de meia-idade ou então um estudante. Ou ainda uma agricultora que estivesse passando o dia na cidade. Eu abordava a pessoa e dizia: “Desculpe, mas eu perdi meu dinheiro e meu passe de ônibus e preciso voltar para casa.” Às vezes me enxotavam, mas em geral me diziam algo do tipo: “Du bist so dumm!”, que significava: “Como você foi tão idiota a ponto de fazer isso?” Então nessa hora eu sabia que a pessoa estava no papo, pois em seguida ela suspirava e dizia: “Certo, de quanto você precisa?”
“Cinco schillings.”
E ela dizia: “Está bem. Ja.”
Eu sempre pedia às senhoras que me dessem seus endereços, de modo que eu pudesse lhes devolver o dinheiro. Em geral elas me respondiam “Não, não precisa me pagar. É só tomar cuidado da próxima vez”, embora às vezes uma ou outra anotasse o endereço. É claro que eu não tinha a menor intenção de pagar a dívida. Nos meus melhores dias, eu conseguia juntar 100 schillings – equivalentes a quase 4 dólares. Isso bastava para ir à loja de brinquedos, ao cinema, em suma, ter uma vida de rei!
Meus golpes só não eram perfeitos porque um menino em idade escolar sozinho no meio de um dia de semana atraía atenção. E várias pessoas em Graz conheciam meu pai. Então, foi inevitável: um dia, alguém disse a ele que tinha visto seu filho na cidade, pedindo dinheiro a uma mulher na rua. Isso causou grande rebuliço em casa, levei uma surra de dar dó e foi o fim da minha carreira de pedinte.
ESSAS PRIMEIRAS SAÍDAS DE THAL alimentaram meus sonhos. Fiquei absolutamente convencido de que eu era especial e de que o destino me reservava algo maior. Sabia que seria o melhor em alguma coisa – embora não soubesse ainda em quê – e que isso me tornaria famoso. Os Estados Unidos eram o país mais poderoso, então era para lá que eu iria.
Não é raro que crianças de 10 anos tenham sonhos de grandeza. Mas a ideia de ir para os Estados Unidos foi como uma revelação para mim, e eu realmente a levei a sério. Costumava falar sobre o assunto. Certo dia, enquanto esperava o ônibus no ponto, falei para uma menina alguns anos mais velha:
– Eu vou para os Estados Unidos.
Ela apenas olhou para mim e respondeu:
– Ah, sim, Arnold, claro.
As outras crianças se acostumaram a me ouvir falar nisso e me achavam esquisito, o que não me impedia de compartilhar meus planos com qualquer um: meus pais, professores, vizinhos.
A Hauptschule, ou o equivalente à segunda etapa do ensino fundamental, não tinha estofo para formar um futuro líder mundial. Ela se destinava a preparar as crianças para o trabalho. Meninos e meninas ficavam segregados em partes diferentes do prédio. Os alunos aprendiam os rudimentos de matemática, ciências, geografia, história, religião, línguas modernas, artes, música e outras matérias, mas em um ritmo mais lento que o das escolas acadêmicas, que preparam as crianças para ingressar na universidade. Concluir a Hauptschule em geral significava seguir para uma escola técnica ou virar aprendiz de algum ofício, ou então começar logo a trabalhar. Apesar disso, os professores se dedicavam com afinco a nos tornar inteligentes e enriquecer nossas vidas de todas as formas possíveis. Exibiam filmes, convidavam cantores de ópera, nos apresentavam a obras de literatura, de arte, e assim por diante.
Minha curiosidade em relação ao mundo era tamanha que a escola não era nenhum grande problema. Eu aprendia as lições, fazia os deveres de casa e sentava-me bem no meio da sala. Ler e escrever me exigiam disciplina – eram tarefas mais árduas para mim do que pareciam ser para alguns dos meus colegas. Por outro lado, eu tinha facilidade com matemática: nunca esquecia nenhum número e sabia fazer cálculos de cabeça.
A disciplina da escola não era muito diferente da de casa. Pelo menos os professores batiam com menos força que nossos pais. Se um aluno fosse pego roubando a caneta de algum colega, o padre da escola batia nele com tanta força com o livro de catecismo que o aluno passava horas com os ouvidos apitando. Certa vez o professor de matemática acertou um amigo meu atrás da cabeça tão violentamente que ele bateu de cara na mesa e quebrou dois dentes da frente. As reuniões de pais e mestres eram o contrário de hoje em dia, quando tanto a escola quanto os pais se esforçam para não constranger a criança. Os 30 alunos da turma tinham que ficar sentados em suas carteiras, e o professor dizia: “Este é seu dever de casa. Podem ficar fazendo nas próximas duas horas enquanto seus pais vêm aqui conversar comigo.” E os pais e mães iam chegando em sucessão: a mãe agricultora, o pai operário de fábrica. Era quase sempre a mesma cena. Cumprimentavam o professor com todo o respeito, depois se sentavam e ele lhes mostrava papéis que tinha sobre a mesa enquanto falavam em voz baixa sobre o desempenho da criança. Então o pai dizia: “Mas ele costuma dar trabalho?” Virando-se, lançava ao filho um olhar zangado, depois se levantava para ir dar um tabefe bem forte no garoto e voltava para a mesa do professor. Todos nós já sabíamos que aquilo iria acontecer e ficávamos rindo entre dentes.
Então eu ouvia meu pai subindo a escada. Conhecia os passos dele, com suas botas de policial. Ele aparecia de uniforme na porta e o professor então se levantava em sinal de respeito, pois ele era o Inspektor. Os dois se sentavam para conversar e chegava a minha vez: eu via meu pai olhar para mim, então ele se aproximava, me pegava pelos cabelos com a mão esquerda e pum! com a direita. Em seguida se afastava sem dizer nada.
Era uma época difícil. As agruras faziam parte do dia a dia. Dentistas, por exemplo, não usavam anestesia. Quando você cresce nesse tipo de ambiente duro, nunca se esquece de como suportar castigos físicos, mesmo bem depois de os tempos árduos ficarem para trás.
DEPOIS QUE MEINHARD COMPLETOU 14 ANOS, sempre que se aborrecia com alguma coisa em casa, ele fugia. Ele me dizia: “Acho que vou embora de novo. Mas não diga nada.” Então guardava algumas roupas na bolsa da escola para ninguém perceber e sumia.
Minha mãe ficava louca. Meu pai tinha que ligar para todos os seus amigos nas outras delegacias da Gendarmerie à procura do filho. Era uma forma incrivelmente eficaz de se rebelar quando seu pai era chefe de polícia.
Dali a um ou dois dias, Meinhard aparecia, em geral na casa de algum parente, ou às vezes apenas escondido na casa de um amigo perto da nossa. Eu sempre ficava pasmo por ele não sofrer consequências. Talvez meu pai só estivesse tentando pôr panos quentes na situação. Em sua carreira de policial ele já vira fugas suficientes para saber que punir Meinhard talvez só piorasse o problema. Mas aposto que isso exigia todo o seu autocontrole.
Meu desejo era sair de casa sem atropelos. Como ainda era criança, resolvi que a melhor forma de me tornar independente era cuidar da minha vida e ganhar meu próprio dinheiro. Eu fazia qualquer tipo de trabalho. Não via o menor problema em pegar uma pá e cavar. Houve um verão, durante as férias escolares, em que um morador de nosso povoado me conseguiu um emprego na fábrica de vidro de Graz em que ele trabalhava. Minha tarefa era transferir uma enorme pilha de cacos de vidro para um recipiente com rodinhas usando uma pá, empurrá-lo pela fábrica e despejar o vidro dentro de um tonel para que tornasse a ser derretido. Ao final de cada dia, recebia o pagamento em espécie.
No verão seguinte, ouvi dizer que talvez houvesse trabalho em uma serraria de Graz. Peguei minha mochila e preparei um pão com manteiga para matar a fome até voltar para casa. Então tomei um ônibus até a serraria, juntei coragem, entrei e pedi para falar com o dono.
Fui conduzido até o escritório e lá estava ele, sentado na cadeira.
– O que você quer? – perguntou ele.
– Estou procurando emprego.
– Quantos anos você tem?
– Catorze.
E ele respondeu:
– O que você quer fazer? Não aprendeu nada ainda!
Mesmo assim, ele me levou até a fábrica e me apresentou a alguns dos homens e mulheres que operavam uma máquina que transformava restos de toras de madeira em aparas para serem usadas em lareiras.
– Você vai trabalhar nesta seção aqui – disse ele.
Comecei naquele dia mesmo e passei o resto das férias trabalhando na serraria. Uma das minhas tarefas era transferir, com uma pá, imensas montanhas de serragem para caminhões que a levavam embora. Ganhei 1.400 schillings, o equivalente a 55 dólares. Era um bom dinheiro na época. O que me deu mais orgulho foi que, embora eu fosse criança, eles me pagaram um salário de adulto.
Eu sabia exatamente o que fazer com aquele dinheiro. Passara a vida inteira usando roupas herdadas de Meinhard, pois nunca tinha tido nenhuma roupa minha. Eu havia começado recentemente a me interessar por esportes – fazia parte do time de futebol da escola – e por acaso, nesse ano, as primeiras roupas esportivas estavam começando a entrar na moda: calça comprida preta e casaco preto com zíper na frente. Eu achava esses conjuntos o máximo e chegara a tentar mostrar a meus pais fotos de atletas vestidos assim nas revistas. Mas eles tinham dito que não, que aquilo era jogar dinheiro fora. Então a primeira coisa que comprei foi um conjunto de calça e casaco esportivos. Com o dinheiro que sobrou, adquiri uma bicicleta. Não tive o suficiente para uma nova, mas em Thal havia um senhor que montava bicicletas com peças usadas, e pude comprar uma das suas. Ninguém mais na nossa casa tinha bicicleta: meu pai trocara a dele por comida depois da guerra e nunca mais comprara outra. Mesmo que a minha bicicleta não fosse perfeita, ser dono daquelas rodas significava ser livre.