CAPÍTULO 22
Um cara família
DURANTE A GESTAÇÃO DE CHRISTOPHER, em 1997, Maria sofreu muito com os enjoos matinais. A coisa ficou tão grave que ela não conseguia comer nada e precisou ser internada no hospital perto de nossa casa. Apesar dos cuidados médicos que recebeu, fiquei preocupado, e as crianças ficaram chateadas porque a mãe não estava em casa conosco. Katherine tinha apenas 7 anos, Christina, 5, e Patrick, 3. Para ajudá-los a atravessar esse período difícil, adiei vários compromissos e passei várias horas a mais em casa, tentando ser ao mesmo tempo pai e mãe.
Pensei que a maneira de deixá-los mais tranquilos seria garantir que vissem Maria todos os dias e, fora isso, manter sua rotina diária. Todo dia de manhã, a caminho da escola das meninas, nós passávamos no hospital, e à tarde fazíamos uma segunda visita. Expliquei a eles que a mamãe gostaria de ter consigo um pedacinho de casa, então diariamente, antes de sair, íamos até o jardim e colhíamos a flor mais bonita para lhe dar de presente.
Maria e eu tínhamos sido criados de maneiras totalmente opostas, o que significava que podíamos usar o melhor de cada estilo para definir o nosso próprio. As refeições, por exemplo, seguiam definitivamente a tradição dos Shriver. Tanto os pais dela quanto os meus faziam questão de que todos se sentassem juntos para jantar, mas a semelhança terminava aí. Na casa dos meus pais, quando eu era pequeno, ninguém conversava à mesa. A regra era clara: hora de comer era hora de comer e pronto. Todos nós éramos muito reservados e, quando alguém tinha um problema, resolvia sozinho. Na família de Maria, ao contrário, todos diziam como tinha sido seu dia. Cada um contava uma história. Eu sei me expressar bem, mas Maria tinha muito mais talento para fazer do jantar um momento descontraído, falando com as crianças de forma divertida. Ela levava para nossa mesa a atmosfera da sua família. Isso foi algo que tentei aprender, para fazer igual. É ótimo que pelo menos um dos pais tenha essa habilidade.
Quando nossos filhos tinham dever de casa, cada um de nós dois contribuía com o que mais sabia fazer. Maria ajudava com qualquer coisa relacionada à língua e eu ficava com tudo o que tivesse a ver com números. Ela escreve muito bem, tem um vocabulário impressionante e um estilo elegante. Na verdade, ser mãe lhe serviu de inspiração para escrever livros destinados aos jovens. O primeiro, As dez lições indispensáveis para começar sua vida, acaba com o mito do superpai ou da supermãe capaz de manter a vida profissional intacta ao mesmo tempo que cria os filhos. Um dos capítulos se chamava “Os filhos mudam a sua carreira (e toda a sua vida também)”, e a conclusão era: “No trabalho, você é substituível... Já como pai ou mãe, não.” Ambos acreditávamos piamente nisso.
Sempre gostei de números. Quando era menino e estudava matemática, tudo logo fazia sentido. Entendi os números decimais na hora. As frações também. Conhecia todos os algarismos romanos. Se alguém me apresentasse um problema, eu resolvia. Se me mostrassem alguma estatística, em vez do ar de incompreensão que muita gente fazia, eu depreendia fatos e tendências para os quais os números apontavam e conseguia interpretá-los como se fossem uma história.
Eu fazia com nossos filhos os exercícios de matemática que meu pai costumava fazer comigo e com Meinhard. Ele sempre os começava um mês antes de voltarmos às aulas, e tínhamos que praticar todos os dias, porque ele achava que o cérebro precisava ser aquecido e treinado como o corpo de um atleta. Não éramos só meu irmão e eu que tínhamos que praticar matemática, mas qualquer amigo que fosse brincar conosco. Não demorou muito para todas as outras crianças começarem a evitar nossa casa. Eu, é claro, detestava tudo aquilo. Mas agora estava ali, aos 35 anos, ensinando os meus próprios filhos. Nos restaurantes, sempre dava a conta a eles, para que calculassem a gorjeta de 20% – eles faziam os cálculos e assinavam por mim. Eu sempre verificava para ver se eles tinham feito certo. Era um ritual que tínhamos, e eles adoravam.
Nas tarefas domésticas, seguíamos a tradição Schwarzenegger. Na Europa, toda criança cresce ajudando a manter a casa limpa. Se você não tira os sapatos ao chegar da rua, é um Deus nos acuda. Você deve sempre apagar a luz ao sair de um cômodo, porque a energia elétrica é limitada. Deve economizar água, pois alguém tem que ir buscá-la no poço. Todos se envolvem bastante com o funcionamento básico da casa. Lembro que fiquei perplexo quando comecei a frequentar a casa de Maria, que crescera com vários empregados para arrumar sua bagunça. Ela entrava em casa, tirava o suéter – de caxemira – e, se ele caísse no chão, era lá que ficava. Até hoje não consigo tratar um suéter de caxemira desse jeito. Se o vir no chão, preciso pegá-lo e pendurá-lo em uma cadeira. Além disso, ainda que tenha dinheiro para tal, jamais usaria uma roupa cara para esquiar ou praticar esportes. Para me sentir à vontade molhando uma roupa de suor, ela tem que ser de algodão, lã ou algo ainda mais barato, como um casaco de moletom de 10 dólares.
Embora Maria tenha acabado se tornando maníaca por arrumação como eu, continuei a ser aquele que impunha uma disciplina europeia à casa – com certa dose de tolerância, claro, porque sabia que não podia enlouquecer. É preciso saber ser mais suave, ao contrário do que fazem alguns dos meus amigos na Áustria. O modo como eles educam os filhos pode até funcionar lá, mas nos Estados Unidos isso não dá certo. Se você fizer isso, seus filhos vão conversar com os colegas na escola e chegar à conclusão de que o pai é maluco. Além do mais, eu havia prometido a mim mesmo que aquela seria a geração em que os castigos físicos seriam extintos. Essa era uma tradição do Velho Mundo que eu não iria perpetuar.
Maria e eu acabamos criando nossa própria fórmula: paparicávamos um pouco as crianças, mas também tínhamos regras. Desde que elas eram pequenas, por exemplo, tinham que colocar a própria roupa para lavar – aprender a usar a máquina, a pôr o sabão em pó, a colocar as peças lá dentro e a escolher o tipo de lavagem. Depois tinham que aprender a pôr as roupas na secadora, dobrá-las e guardá-las, assim como a programar seu tempo para que os irmãos também pudessem lavar as próprias roupas.
Todos os dias, antes de levar as crianças à escola, eu checava se as luzes estavam apagadas, se as camas tinham sido arrumadas, se as gavetas e os armários estavam fechados. Algumas coisas fora do lugar não faziam mal – eu era bem mais tolerante que meu pai. Mesmo assim, as camas deviam estar feitas. Meu objetivo não era a perfeição, não era transformar a casa em um quartel. Mas eu não queria que meus filhos pensassem que alguém iria arrumar a sua bagunça. A maior luta de todas, no entanto, era para que eles aprendessem a apagar as luzes ao sair de algum cômodo ou ir dormir. Nessa guerra, era eu contra todo o clã de Maria, porque foi dela que as crianças herdaram a mania de deixar as luzes acesas. No começo de nossa relação, ela nunca dormia sem pelo menos uma luz acesa – isso lhe dava uma sensação de segurança. Então, quando íamos a Washington ou Hyannis Port, eu chegava tarde em casa, quando todos já estavam dormindo, e encontrava a porta destrancada e todas as luzes acesas. Nunca entendi isso. Era uma loucura. No dia seguinte, a desculpa era: “Ah, nós sabíamos que você ia chegar, então deixamos a luz acesa de propósito.” No entanto, mesmo que eu já estivesse em casa, quando descia ao primeiro andar no meio da noite encontrava as luzes todas acesas. Os cômodos pareciam a Times Square. Eu explicava para meus filhos: “Nossa energia elétrica é limitada, e só temos uma quantidade limitada de água no estado. Vocês não podem passar 15 minutos debaixo do chuveiro. Cinco minutos, no máximo. Vou cronometrar daqui em diante. E não se esqueçam de apagar as luzes quando saírem do quarto.”
Até hoje, minhas filhas não conseguem dormir se a luz do corredor não estiver acesa. Acabei tendo que me acostumar com o fato de que elas se sentem mais seguras assim. Quanto a apagar a luz ao sair do cômodo, meu pai teria resolvido a questão com uma palmada, mas nós não batemos nos nossos filhos. Quando a comunicação não funciona, nosso método é cortar privilégios: cancelar uma saída ou uma noite na casa de amigos, deixar de castigo, não permitir que usem o carro. No entanto, punições desse tipo pareciam exageradas para a questão da luz acesa. O maior reincidente era um dos meninos, então acabei resolvendo desenroscar uma lâmpada de seu quarto sempre que encontrasse a luz acesa. Vi que havia 12 lâmpadas no quarto e que, caso ele não se emendasse, em pouco tempo estaria no escuro. Foi exatamente o que aconteceu. Demorou algum tempo, mas minha cruzada acabou surtindo efeito. Agora, quando estamos em casa, só tenho que apagar as luzes que as crianças deixaram acesas umas duas vezes por semana.
Uma das alegrias que os filhos proporcionam é a comemoração dos feriados. As datas festivas se tornam muito mais importantes quando você é pai, porque passa a conhecê-las de dois pontos de vista. Tenho lembranças nítidas dos Natais da minha infância: minha mãe e meu pai de mãos dadas acendendo a árvore cheia de brinquedos embaixo, cantando “Heil’ge Nacht”, e meu pai tocando trompete. Depois que tive filhos, também passei a ver o Natal pelos olhos de um pai.
Eu me considerava um especialista em decoração de árvores de Natal. Isso estava no meu sangue. Na Áustria, meu pai e os outros homens da aldeia saíam para a floresta três dias antes da data para buscar as árvores. Em teoria as crianças não deveriam saber disso, pois oficialmente quem trazia as árvores era Christkindl, uma anjinha igual a Jesus menino, versão austríaca do Papai Noel. Certa vez, meu irmão deixou escapar sem querer: “Vi papai saindo de casa com um machado”, e meu pai ficou doido por minha mãe não ter nos mantido longe da janela. Em geral, porém, era um momento bem divertido. Eles decoravam nossa árvore com todo tipo de bala, papel de embrulho e enfeite, fazendo os galhos penderem por cima dos presentes lá embaixo. A árvore era sempre tão alta que o enfeite do topo encostava no teto. Havia velas de verdade presas com suportes aos galhos externos, de modo que só era possível acender a árvore por alguns minutos de cada vez.
Na véspera de Natal, às seis da tarde, meu pai desligava o rádio e a casa era tomada por um silêncio total. Minha mãe dizia: “Vamos ficar atentos: lembrem-se de que Christkindl sempre aparece por volta das seis.” Logo ouvíamos tocar uma sineta – um dos enfeites que decoravam a árvore. A menina que morava em uma das casas vizinhas à nossa subia de fininho a escada dos fundos e entrava pela porta de trás do nosso quarto, mas é claro que nós só descobrimos isso mais tarde. Durante muitos anos, Meinhard e eu subíamos correndo até o quarto, escorregando no tapete que cobria o piso de madeira e caindo no chão antes mesmo de chegar à porta, e então, aos trancos e barrancos, irrompíamos quarto adentro. Era uma alegria só.
As tradições natalinas austríacas e americanas são muito diferentes. Nos Estados Unidos, ao contrário da Áustria, a tradição é montar a árvore três ou quatro semanas antes do Natal, então era isso que fazíamos com nossos filhos. Nós convidávamos nossos amigos e, ao estilo americano, pedíamos que cada um pendurasse um enfeite. À medida que as crianças cresceram, foram assumindo cada vez mais tarefas até ficarem responsáveis por colocar o anjo, a estrela, Jesus, Maria ou qualquer que fosse o enfeite mais alto, e por decidir qual seria o visual da árvore.
Também comemorávamos bastante as outras datas. A Páscoa sempre caía durante a visita anual de minha mãe. Todo ano, ela chegava em meados de fevereiro e passava dois ou três meses em nossa casa, dependendo do frio e da neve na Áustria. Além de querer nos ver, parte de sua motivação era fugir do período mais rigoroso do inverno. Na Páscoa, ela era a avó perfeita para se ter por perto, pois todas as grandes tradições dessa data provêm da região em que fica a Áustria: o coelhinho, as cestas, os ovos e os chocolates. Minha mãe sempre pintava ovos com as crianças – era uma especialista, e todos os meus filhos punham aventaizinhos especiais para a ocasião. Ela tomava conta da cozinha e preparava massa, cobrindo todas as bancadas com uma camada tão fina que ninguém entendia como ela conseguia aquilo. Então arrumava as fatias de maçã por cima, dobrava a massa e assava o Apfelstrudel mais delicioso dos Estados Unidos. Na Páscoa, a festa durava o dia inteiro: primeiro vinham as grandes cestas e a troca de pequenos presentes, depois a missa e então a caça aos ovos e uma lauta refeição, seguida pela visita de parentes e amigos.
MARIA SE ESFORÇAVA BASTANTE PARA agradar à minha mãe, e as duas se davam muito bem. Da mesma forma, eu ficava radiante quando Eunice e Sarge se hospedavam conosco. Nunca tivemos problemas com a família um do outro. Nossos filhos chamavam minha mãe de Omi – ela vivia mimando-os, e eles a adoravam. Ao longo dos anos, ela aprendera inglês e chegara até a fazer algumas aulas do idioma, então passou a ter fluência suficiente para conversar com os netos, ainda que falar com crianças em uma segunda língua nunca seja muito fácil. Ela e Christina, sobretudo, davam-se muito bem – o segundo nome de Christina é Aurelia, em homenagem à avó.
Minha mãe mimava também nossos cachorros. Conan e Strudel não tinham permissão para subir ao segundo andar, mas, depois que íamos dormir, ela os levava escondidos até seu quarto, e pela manhã encontrávamos os cães enroscados no tapete ao pé de sua cama. Ela passava tempo suficiente em Los Angeles para ter a própria vida e o próprio círculo de amigas – outras austríacas e jornalistas europeias –, com as quais saía para fazer compras, almoçar e se divertir. Nunca me esquecerei de tê-la visto certa vez, no jantar de uma premiação, muito entretida com as mães de Sophia Loren e Sylvester Stallone. As três certamente estavam tentando levar o crédito por nosso sucesso.
Mamãe tinha 76 anos quando morreu, em 1998. Foi no dia do aniversário de meu pai, 2 de agosto. Como sempre fazia, ela foi a pé até o cemitério no alto de um morro, nos arredores de Graz, para passar algum tempo junto ao túmulo do marido. Era capaz de passar uma hora absorta em uma conversa imaginária com ele, contando-lhe tudo o que vinha fazendo e lhe perguntando coisas como se ele estivesse bem ali a seu lado.
Nesse dia, o clima estava úmido e fazia um calor sufocante. Para chegar ao cemitério, era preciso subir uma encosta íngreme. As pessoas que a viram disseram que, quando chegou ao túmulo, ela se sentou de repente, como se estivesse a ponto de desmaiar, e depois desabou no chão. Os paramédicos tentaram ressuscitá-la, mas, quando conseguiram chegar com ela ao hospital, minha mãe já havia sofrido morte cerebral em consequência da privação de oxigênio. Ela nunca chegara a fazer a cirurgia para corrigir o defeito no coração, e ele acabara deixando-a na mão.
Maria e eu pegamos um avião até Graz para assistir ao enterro. Meu sobrinho Patrick, Timmy, irmão de Maria, e Franco nos acompanharam. Eu faltara ao enterro de meu pai e de meu irmão, mas no da minha mãe chegamos com um dia de antecedência e ajudamos a organizar tudo. Ela estava no caixão usando um Dirndl, vestido típico austríaco.
Em sua última visita aos Estados Unidos, ela se mostrara disposta e alegre como sempre e prolongara a estada até o mês de maio, então sua morte foi um choque terrível. Mais tarde, porém, pensando na vida que ela tivera, senti que na ocasião de seu falecimento eu não tinha qualquer arrependimento, graças à relação que mantivera com ela depois que fui morar nos Estados Unidos, quando aprendi a pensar um pouco mais na família e não só em mim mesmo. Agora que era pai, entendia quanto minha partida deve ter sido difícil para ela. Na infância, eu a valorizava como mãe dedicada, mas nunca havia pensado na dor causada pela minha emigração. Compreendi isso tarde demais para conseguir me reaproximar de meu irmão ou de meu pai, mas, no caso de minha mãe, eu soubera construir um bom relacionamento com ela, no qual nós dois de fato nos comunicávamos.
Eu tinha proposto várias vezes comprar uma casa para ela em Los Angeles, mas ela não quis deixar a Áustria. Além de ter comparecido todos os anos à Páscoa e ao Dia das Mães, minha mãe foi ao batizado de todos os nossos filhos. Ela via todos os filmes que eu fazia e esteve presente em vários lançamentos. Desde Conan, o bárbaro, levei-a ao set de todos os meus filmes. Ela ficava por lá, descansava no meu trailer, via-me trabalhar. Quando eu estava filmando em alguma locação em outro país – México, Itália ou Espanha –, ela às vezes ia passar uma ou duas semanas comigo no hotel. Nenhuma outra pessoa levava a mãe para o set, mas a minha era uma turista nata e adorava aquilo. Isso se devia, em parte, à grande atenção que recebia de todos. Tomávamos o café da manhã juntos e então meu motorista a levava a qualquer lugar que ela quisesse explorar, de modo que ela sempre voltava para casa com fotos para mostrar aos amigos: um mercado de rua no México, o Vaticano durante uma visita a Roma, museus em Madri. Na década de 1980, levei-a à Casa Branca para conhecer Ronald Reagan, e ela participou do Great American Workout com George Bush no Gramado Sul. O presidente a tratou muito, muito bem. Estava muito falante e animado e a elogiou por minha ótima criação.
Eu adorava fazer coisas para minha mãe, não só para que ela achasse que tinha me criado bem, mas também como uma espécie de retribuição pelas dificuldades de sua juventude. Quando vejo fotos suas aos 23, 24 anos, quando meu irmão e eu nascemos, ela está abatida e magra. Foi logo depois da guerra, e minha mãe teve que mendigar para sobreviver. Era casada com um homem que às vezes enlouquecia e se embriagava. Morava em uma aldeia pequenina. O clima era muitas vezes uma porcaria, com chuva, neve e escuridão, exceto durante o verão. Ela nunca tinha dinheiro suficiente para nada. Era tudo uma grande luta.
Então, pensei que, nos anos que lhe restavam, ela deveria ter a vida mais agradável possível. Seria minha retribuição por ela ter nos carregado à meia-noite até o outro lado da montanha para nos levar ao hospital quando adoecíamos e por estar presente sempre que precisei dela. Além disso, minha mãe tinha que ser recompensada pela dor que eu lhe causara ao sair do país. Ela merecia ser tratada como uma rainha.
Nós a enterramos no mesmo lugar do cemitério em que ela morreu, ao lado de meu pai – um fim triste, mas também romântico. Os dois eram muito ligados.
SE A PÁSCOA PERTENCIA À MINHA MÃE, o Dia de Ação de Graças era um feriado especial para Sarge e Eunice desde muito antes de Maria e eu nos casarmos. Os filhos, noras, genros e netos dos Shriver sempre se reuniam na linda mansão branca em estilo georgiano dos dois, perto de Washington. Era praticamente um festival que durava três dias. Muitos casais precisam negociar para decidir com que família vão passar esse feriado, mas no nosso caso tudo se encaixou perfeitamente. “Vamos manter tudo como está, pois nos divertimos bastante com seus pais no Dia de Ação de Graças. Depois podemos passar o Natal em casa”, falei para Maria. “Não que seus pais não possam participar, mas o Natal vai ser em nosso território.” Ela também gostava das coisas dessa forma. Sempre me mostrei sensível ao fato de o nosso casamento tê-la afastado da família, e de ela muitas vezes sentir falta deles e querer matar as saudades, apesar de prezar a própria independência. Então eu sempre lhe dizia: “Lembre-se de que qualquer parente que você queira convidar é automaticamente meu convidado também.” Receber meus sogros era fácil, porque eu gostava muito dos dois, e eles sempre traziam risos e diversão para nossa casa.
O Dia de Ação de Graças na casa dos Shriver começava na igreja – Sarge e Eunice iam à missa diariamente –, depois vinha o café da manhã e em seguida a prática de esportes variados. Em Georgetown havia ótimas lojas de roupas e presentes, com mercadorias diferentes das vendidas na Califórnia, então eu aproveitava para dar o pontapé inicial nas compras de Natal. À noite tornávamos a nos reunir, e muitas vezes Teddy aparecia com a mulher para jantar ou tomar um drinque, ou então o ambientalista Robert Kennedy Jr. dava uma passada com seu filho ou com sua irmã Courtney e a filhinha dela, Saoirse (nome que se pronuncia sir-sha e significa “liberdade” em gaélico). Nessa época, Hyannis Port ficava sempre lotada de parentes: além dos Shriver, os Kennedy e os Lawford também apareciam. Eram 30 primos nadando, velejando e praticando esqui aquático, ou indo à lanchonete comer camarão frito e mariscos. Da manhã até a noite o lugar virava um grande acampamento esportivo.
Sempre pensei que Eunice e Sarge fossem influenciar muito nossos filhos – certamente influenciaram a mim. Eu trabalhava com os dois na Special Olympics como representante da organização, para ajudar em sua expansão. No verão em que Katherine estava com 12 anos e Christopher, com 4, Maria e eu levamos a família toda a uma missão na África do Sul.
Era minha primeira visita ao país em 26 anos, desde que vencera o Mister Olympia em Pretória, ainda na época do apartheid. Foi espetacular ver como o lugar estava mudado. Na época, o Mister Olympia fora a primeira competição atlética racialmente integrada do país. Durante minhas primeiras visitas à África do Sul, eu fizera amizade com Piet Koornhof, ministro do Esporte e Lazer, progressista e forte opositor do regime. Foi ele quem abriu caminho para as exibições de fisiculturismo nas favelas e falou: “Toda vez que você fizer algo pelos brancos, gostaria que fizesse algo pelos negros.” Ele também assumira a dianteira da candidatura sul-africana para sediar o Mister Olympia, e eu integrava a delegação da Federação Internacional de Fisiculturismo que trabalhava com ele. Agora o apartheid era uma lembrança distante, e Nelson Mandela era o distinto ex-presidente da nação.
Desde que deixara o cargo, Mandela estava comprometido em aumentar a importância da Special Olympics em todo o continente africano, onde milhões de pessoas com deficiências intelectuais eram estigmatizadas, ignoradas ou coisa pior. Sarge e Eunice haviam planejado viajar conosco, mas minha sogra, que acabara de completar 80 anos, quebrara a perna em um acidente de carro na véspera do embarque. Assim, quando chegamos à Cidade do Cabo, foi a geração mais nova que teve que assumir o controle da situação: Maria, eu e o irmão dela, Tim, que substituíra Sarge como presidente da Special Olympics. Tim levou sua mulher, Linda, e também os cinco filhos do casal.
Mandela, é claro, era um verdadeiro herói para mim. Eu ficava todo arrepiado a cada vez que o ouvia discursar sobre inclusão, tolerância e perdão – o contrário do que se poderia esperar de um negro em um país branco racista que havia apodrecido na prisão por 27 anos. Uma virtude assim é algo raríssimo, principalmente na prisão, então para mim era como se Deus o houvesse colocado entre nós.
Estávamos lá para iniciar uma corrida com a tocha da Special Olympics da qual participariam atletas de toda a África do Sul. Eram dois objetivos: aumentar o prestígio da organização e apoiar a causa da segurança pública no país. Mandela acendeu a tocha no lugar mais lúgubre que se poderia imaginar: sua antiga cela na prisão de Robben Island. Quando estávamos lá, tivemos a oportunidade de conversar antes do início da cerimônia, e perguntei como ele conseguira entender tantas coisas em um lugar como aquele. Tenho certeza de que ele já ouvira essa pergunta mil vezes, mas sua resposta foi notável. Mandela disse que era bom ter estado na prisão. Isso lhe dera tempo para pensar e entender que sua atitude violenta na juventude estava equivocada, então ele saiu de lá como o homem que era agora. Eu o admirava, mas não soube o que pensar sobre o que ele disse. Seria verdade, ou apenas algo de que ele havia se convencido? Será que Mandela acreditava mesmo que 27 anos na cadeia eram necessários? Ou será que estava analisando a situação como um todo e se referindo ao que aquele tempo perdido significou para a África do Sul, e não para ele pessoalmente? Ele era apenas uma pessoa, e o país, muito maior, é que iria viver para sempre. Era um pensamento poderoso. Quando fomos embora, comentei com Maria: “Não sei se acredito ou não, mas foi incrível ele dizer isso... que estava totalmente satisfeito com o que viveu e com o fato de ter perdido tantas décadas.”
As crianças passaram o dia inteiro conosco. Christopher, que tinha apenas 4 anos, naturalmente não aproveitou tanto quanto os irmãos, de 8, 10 e 12 anos. Mas eu sabia que ver aquilo tudo teria algum impacto, mesmo que eles não entendessem a situação inteira de imediato. Algum dia iriam escrever trabalhos na escola sobre o dia em que haviam conhecido Nelson Mandela, acendido a tocha olímpica e ouvido o grande líder comparar o preconceito contra a Special Olympics à injustiça do apartheid. Poderiam relembrar e perguntar a Maria e a mim sobre tudo o que tínhamos visto, para depois escrever sobre as belezas da Cidade do Cabo e seu contraste com as favelas e a pobreza das famílias que vivem lá. Levariam algum tempo para assimilar a experiência. Antes de ir embora da África, fizemos um safári de alguns dias, e todos amaram. Fiquei tão maravilhado quanto as crianças ao ver o que parecia ser o reino animal inteiro passeando em liberdade bem na nossa frente: leões, macacos, elefantes, girafas. À noite, dormíamos em barracas ouvindo os barulhos e os gritos dos animais à nossa volta. O guarda-florestal estava à procura de uma leoa específica, que tinha uma etiqueta especial na orelha. Era hora de substituir o aparelho de rastreamento do animal. Finalmente ele a encontrou e disse: “Tenho que aplicar o tranquilizante nela.” Mirou com cuidado e disparou um dardo na leoa, que de repente começou a rugir, enfurecida, e saiu correndo. “Ela vai conseguir avançar uns 200 metros”, disse o guarda. Dito e feito: de repente o felino parou de correr e começou a andar, em seguida olhou para trás na nossa direção e por fim caiu deitado de lado.
Fomos até ela, descemos do jipe e as crianças puderam tirar fotos e ver como as patas do animal eram grandes, maiores até que os próprios rostos delas. Sempre tive fascínio por grandes felinos. Quando estávamos filmando O vingador do futuro no México, havia muitos animais no set, entre os quais um filhote de pantera e outro de puma. Eu adorava brincar com eles. O treinador os levava ao meu trailer todo sábado, quando tínhamos um intervalo de duas horas. No começo, os animais deviam ter uns 5 meses de idade e estavam crescendo depressa. No último mês de filmagem, estavam com 7 meses. Um dia, o puma estava descansando nos fundos do trailer quando me levantei e fui até a parte da frente do veículo. Sem qualquer aviso, o animal correu direto na minha direção e se agarrou à minha nuca: quase 50 quilos me derrubaram para a frente, em cima do volante. Ele poderia ter me matado com uma mordida rápida no pescoço, mas queria apenas brincar.
Uma leoa adulta pode pesar, facilmente, três vezes mais que um puma. Mesmo assim, não pude resistir a encostar o queixo no topo da cabeça daquela leoa para mostrar às crianças como ela era grande: em comparação com a do animal, minha cabeça parecia um alfinete. Nós rimos e tiramos fotos, e fiquei muito feliz pelo fato de o animal estar totalmente desacordado.
SEMPRE ME SINTO GRATO PELAS oportunidades de passar mais tempo com minha família, de sair de férias e viver aventuras com ela. No entanto, também queria que minha carreira de ator voltasse a evoluir, e isso exigiu um grande esforço. Tive que bolar toda uma campanha para convencer as pessoas de que ainda estava à altura do trabalho. Dar uma entrevista a Barbara Walters em rede nacional, nove meses depois da cirurgia no coração, foi o primeiro passo.
– Você poderia ter morrido – disse ela. – Ficou com medo?
– Muito – respondi.
Era verdade, sobretudo quando a primeira válvula não funcionou e foi preciso repetir a intervenção. Pensei que a melhor estratégia seria permitir que as pessoas me vissem e expor todos os dados. Ela perguntou sobre minha família, brincou comigo por causa dos cabelos grisalhos e me deu a chance que eu precisava para dizer que estava totalmente disposto e doido para voltar a trabalhar.
A etapa seguinte foi divulgar fotos: garantir que imagens minhas correndo na praia, esquiando e fazendo musculação saíssem nos jornais, para as pessoas saberem que eu estava de volta. Apesar disso tudo, os estúdios demoraram a retornar meus telefonemas. Fiquei pasmo ao descobrir que o problema era o seguro. Os porta-vozes das seguradoras diziam a meu agente não apenas que não sabiam o que o público pensava sobre mim agora, mas também que suas próprias companhias não tinham certeza de que iriam me segurar. Parecia haver uma infinidade de dúvidas e incertezas com as quais elas não queriam lidar.
Um ano inteiro se passou sem nenhum filme novo. Finalmente, recebi a visita de Army Bernstein, produtor cuja filha havia frequentado a mesma pré-escola de nossos filhos. Ele ouvira os boatos sobre os estúdios e sabia que eu estava em busca de trabalho. “Faço um filme com você quando você quiser”, afirmou. “E tenho um roteiro incrível sendo escrito agora.” Produtores independentes como Army são os salvadores da pátria em Hollywood, pois assumem riscos com os quais os grandes estúdios evitam arcar. Ele tinha sua própria empresa, uma série de sucessos anteriores e boas fontes de financiamento.
O filme a que ele estava se referindo era O fim dos dias, thriller de ação e terror previsto para chegar às telas no final de 1999 e pegar carona em toda a agitação mundial em torno do Y2K, o bug do milênio. Meu personagem, Jericho Cane, é um ex-policial que impede Satã de ir a Nova York escolher uma noiva nas últimas horas de 1999. Se Jericho fracassar, essa mulher dará à luz o Anticristo, transformando os mil anos seguintes no milênio do mal.
Peter Hyams, o diretor, fora recomendado por Jim Cameron e, tal como ele, preferia filmar à noite. Assim, quando iniciamos a produção, lá pelo final de 1998, começamos a rodar à noite em um estúdio de Los Angeles. Para meu espanto, havia funcionários de seguradoras e executivos do estúdio assistindo às filmagens no set – estes últimos eram da Universal, que fechara contrato para distribuir o filme, e estavam ali para ver se eu iria desmaiar, morrer ou se precisaria fazer muitas pausas.
Por acaso, na primeira cena a ser filmada, Jericho era atacado por 10 satanistas que o espancavam sem dó. A briga acontecia à noite, em um beco escuro, sob uma chuva torrencial. Tínhamos que brigar até que eu ficasse caído de costas no chão, vendo o temporal artificial cair sobre mim até perder os sentidos. Após cada tomada, eu saía do set e ia me sentar junto ao monitor com uma toalha em volta dos ombros, todo ensopado, pronto para começar tudo outra vez.
Por volta das três da manhã, um dos caras da seguradora perguntou:
– Caramba, não é exaustivo fazer isso tantas vezes? Levar uma surra debaixo de toda essa chuva?
– Na verdade, não – respondi. – Adoro filmar à noite, porque é o momento em que tenho mais energia. Fico muito inspirado. É ótimo.
Então voltava para o set, levava outra surra, tornava a me sentar e pedia:
– Posso ver a gravação?
E ficava estudando a cena enquanto os técnicos a exibiam no monitor.
– Não sei como você consegue – comentou o sujeito da seguradora.
– Isso não é nada. Você tinha que ter visto alguns dos outros filmes, como O exterminador do futuro... aquilo, sim, era uma loucura.
– Mas você não se cansa?
– Não, de jeito nenhum. Principalmente depois da cirurgia. Ser operado me deixou com uma energia inacreditável. Eu me sinto uma pessoa totalmente nova.
Então o executivo do estúdio aparecia e me fazia as mesmas perguntas.
Depois dessa primeira semana, os caras da seguradora e do estúdio não voltaram mais ao set. Enquanto isso, espalhou-se entre dublês, maquiadores e figurinistas um boato de que eu estava me sentindo ótimo, que minha saúde ia de vento em popa e coisas do tipo. A partir daí, as propostas recomeçaram a aparecer e não precisei mais convencer as pessoas de que ainda estava vivo.