CAPÍTULO 4
Mister Universo
“EU SEMPRE POSSO ARRUMAR UM EMPREGO de salva-vidas no Thalersee para você, então lembre-se: se algo sair errado, não precisa se preocupar.” Foi isso que Fredi Gerstl me disse quando fui visitá-lo em Graz para me despedir. Ele sempre se mostrava generoso para ajudar os jovens e eu sabia que sua intenção era boa, mas não estava interessado em um emprego de salva-vidas nem em qualquer outra segunda opção. Embora Munique ficasse a 320 quilômetros de Graz, para mim aquele era o primeiro passo no caminho da Áustria para os Estados Unidos.
Eu já tinha ouvido falar em Munique e em como milhares de trens chegavam à sua estação toda semana. Ouvira falar na vida noturna, na loucura das cervejarias, histórias e mais histórias. Quando o trem se aproximou da cidade, comecei a ver um número cada vez maior de casas, depois prédios maiores, e então, logo à frente, o centro da cidade. Eu pensava: “Como é que vou conseguir me orientar aqui? Como vou sobreviver?” Mas eu tinha um mantra: “Esta vai ser minha nova casa.” Eu estava deixando Graz para trás, tinha ido embora de lá, e Munique seria minha cidade custasse o que custasse.
Mesmo pelos padrões do milagre econômico da Alemanha Ocidental, que em 1966 estava no auge, Munique era uma cidade próspera. Com 1,2 milhão de habitantes, era uma metrópole internacional. Acabara de conquistar o direito de sediar os Jogos Olímpicos de 1972 e as finais da Copa do Mundo de Futebol em 1974. Foi escolhida como sede da Olimpíada para simbolizar a transformação da Alemanha Ocidental e seu ressurgimento na comunidade das nações como potência moderna e democrática. Viam-se guindastes por toda parte. O Estádio Olímpico já estava sendo erguido, e havia novos hotéis, prédios comerciais e residenciais. A cidade estava tomada por imensas escavações para o novo sistema de metrô, anunciado como o mais moderno e eficiente do mundo.
O centro de tudo isso era a Hauptbahnhof, ou estação central de trem, onde eu estava prestes a desembarcar. Os canteiros de obras precisavam de operários, e estes vinham de todo o Mediterrâneo e do Leste Europeu. Nas salas de espera e nas plataformas escutavam-se espanhol, italiano, línguas eslavas e turco com mais frequência que o alemão. O bairro em volta da estação era um misto de hotéis, boates, lojas, casas de cômodos e prédios comerciais. A Universum Sport Studio, academia pela qual eu fora contratado, ficava na Schillerstrasse, a apenas cinco minutos da Hauptbahnhof. As duas calçadas da rua eram uma sucessão de boates e bares de striptease que ficavam abertos até as quatro da manhã. Então, às cinco, os primeiros estabelecimentos que serviam café da manhã abriam as portas, oferecendo linguiça, cerveja ou desjejum mesmo. Era sempre possível se divertir em algum lugar. Munique era o tipo de cidade em que um garoto de 19 anos do interior precisava aprender a se virar bem depressa.
Albert Busek prometera mandar alguém me receber na estação e, quando subi a plataforma, vi o rosto sorridente de um fisiculturista chamado Franz Dischinger. Ele era o favorito da divisão juvenil na disputa de Jovem Atleta Mais Desenvolvido da Europa em Stuttgart, título que eu conquistara no ano anterior. Era um alemão bonito, mais alto que eu, mas seu corpo ainda não tinha se desenvolvido plenamente, e acho que foi por isso que os juízes me deram o título. Franz era um cara alegre. Nós nos demos muito bem e ríamos bastante juntos. Tínhamos combinado que, se eu fosse mesmo para Munique, seríamos parceiros de treino. Depois de comermos algo na estação, ele e o amigo que fora com ele, que tinha carro, me deixaram em um apartamento nos arredores da cidade, onde Rolf Putziger morava.
Ainda não conhecia meu novo chefe, mas ficara feliz quando ele se oferecera para me hospedar, pois eu não tinha dinheiro para alugar um quarto. Putziger se revelou um velho pesado e de aspecto pouco saudável, sempre de terno. Era quase careca e, quando sorria, exibia dentes malcuidados. Ele me recebeu com simpatia e me mostrou o apartamento. Havia um quartinho que, como ele explicou, seria meu assim que a cama que havia encomendado para mim fosse entregue. Enquanto isso, será que eu me importaria em dormir no sofá da sala? De forma alguma, respondi.
Não vi nenhum problema nesse arranjo até algumas noites depois, quando Putziger chegou tarde e, em vez de ir para o quarto, veio se deitar ao meu lado. “Você não ficaria mais à vontade lá no quarto?”, perguntou. Senti o pé dele encostar no meu. Então me levantei do sofá feito uma flecha, recolhi minhas coisas e tomei o rumo da porta. Minha cabeça era um verdadeiro turbilhão: aonde é que eu tinha ido me meter? Entre os fisiculturistas, havia sempre alguns gays. Em Graz, conheci um cara que tinha uma academia incrível em casa, onde meus amigos e eu íamos malhar de vez em quando. Ele era bem aberto em relação à sua atração por homens e tinha nos mostrado a parte do parque municipal que os rapazes e seus parceiros costumavam frequentar. Mas ele era um verdadeiro cavalheiro e nunca impôs sua orientação sexual a nenhum de nós. Portanto, eu achava que sabia como os gays se comportavam. Putziger com certeza não parecia ser gay – ele tinha a aparência de um homem de negócios!
Ele me alcançou na rua, onde eu estava parado tentando processar o que acabara de acontecer e pensar em para onde poderia ir. Desculpou-se e prometeu não me incomodar se eu voltasse para o apartamento. “Você é meu convidado”, falou. Lá dentro, é claro, tentou outra vez conseguir o que queria, dizendo-me que entendia se eu preferisse mulheres, mas que, se eu fosse seu amigo, ele poderia me arrumar um carro, me ajudar na carreira e assim por diante. Eu certamente precisava de um verdadeiro guia naquele momento, mas não pagando aquele preço. Fiquei aliviado ao ir embora de vez daquele apartamento na manhã seguinte.
O único motivo pelo qual Putziger não me mandou embora foi porque precisava de alguém famoso para trabalhar na sua academia mais do que precisava de um amante. O fisiculturismo era um esporte tão pouco conhecido que Munique tinha apenas duas academias, e a maior delas pertencia a Reinhard Smolana, primeiro Mister Alemanha em 1960 e vencedor do título de Mister Europa em 1963. Smolana também ficara em terceiro lugar na disputa do Mister Universo, o que o tornava sem sombra de dúvida o mais bem colocado fisiculturista alemão e fazia dele a autoridade máxima em musculação. Sua academia era mais bem equipada e mais moderna que a de Putziger. Os clientes eram naturalmente atraídos para Smolana, portanto meu trabalho como jovem sensação era ajudar a Universum Sport Studio a competir. Albert Busek, o jornalista responsável pela Sport Revue que dera o pontapé inicial naquilo tudo sugerindo meu nome, revelou-se um homem tão honrado quanto Rolf Putziger era asqueroso. Quando lhe contei o que havia acontecido, ele ficou enojado. Como eu não tinha onde ficar, me ajudou a transformar um depósito da academia em quarto de dormir. Rapidamente nos tornamos bons amigos.
Se algum dia tivessem lhe dito para cursar a universidade, Albert teria se tornado médico, cientista ou intelectual. Em vez disso, estudou engenharia. Descobriu a malhação e então percebeu que tinha talento para a escrita e a fotografia. Perguntou a Putziger se podia fazer uns trabalhos para a revista. “Claro, escreva uma matéria para mim, escreva alguma coisa”, ouviu em resposta. Quando Albert e a mulher tiveram gêmeos e ele parou de receber a bolsa de estudos, foi trabalhar para Putziger em tempo integral. Em pouco tempo, virou editor responsável pela revista e se firmou como um especialista na cena do fisiculturismo. Ele tinha certeza de que eu iria me tornar a próxima sensação do esporte e, como queria que eu alcançasse o sucesso, prontificou-se a servir de interlocutor entre mim e Putziger.
Tirando meus problemas com o chefe, o emprego era ideal. O negócio de Putziger compreendia a academia, a revista e uma pequena empresa de venda de suplementos alimentares por correspondência. A academia em si tinha várias salas, em vez de uma única sala grande. Contava também com janelas e luz natural, em vez das úmidas paredes de concreto do estádio de Graz com as quais eu estava acostumado. O equipamento era o mais sofisticado que eu já tinha usado. Além dos pesos, havia um conjunto completo de aparelhos para ombros, costas e pernas. Assim, pude acrescentar ao meu treino exercícios que isolavam músculos, aumentavam a definição e desenvolviam meu corpo de uma forma impossível de conseguir apenas com halteres.
No exército, eu havia aprendido que adorava ajudar as pessoas a treinar, de modo que essa parte do trabalho foi natural. Ao longo do dia, dava aulas para pequenos grupos e tinha sessões individuais com todo tipo de gente: policiais, operários da construção civil, executivos, intelectuais, atletas, artistas, alemães e estrangeiros, jovens e velhos, gays e heterossexuais. Incentivava os soldados da base americana próxima a treinar na academia. A Universum Sport Studio foi o primeiro lugar em que conheci um negro. Muitos de nossos clientes só queriam melhorar a forma física e a saúde, mas tínhamos também um grupo de halterofilistas e fisiculturistas profissionais que eu podia imaginar como parceiros de treino sérios. Percebi também que eu sabia unir e desafiar homens assim. “É, você até que pode ser meu parceiro de treino. Está mesmo precisando de ajuda”, eu brincava. Como treinador, eu gostava de ser o líder do grupo e, embora tivesse bem pouco dinheiro, sempre levava todos para almoçar ou jantar e pagava a conta.
Estar ocupado ajudando os clientes significava que eu não tinha tempo de treinar como antes, ou seja, fazer uma sessão diária intensa de quatro ou cinco horas. Então optei por treinar duas vezes por dia, duas horas antes do trabalho e duas das sete às nove da noite, quando o movimento diminuía e só ficavam os praticantes mais sérios. No início, achei esses treinos divididos uma chatice, mas percebi que havia descoberto uma coisa interessante quando vi os resultados: estava me concentrando melhor e me recuperando mais depressa, ao mesmo tempo que fazia séries mais longas e mais puxadas. Em muitos dias, acrescentava um terceiro treino na hora do almoço. Isolava uma parte do corpo que considerava fraca e lhe dedicava atenção total por 30 ou 40 minutos: 20 séries de flexões plantares em pé, por exemplo, ou 100 extensões de tríceps. Fazia a mesma coisa algumas noites, depois do jantar, quando voltava às 11 da noite para mais uma hora de treino. Ao ir dormir no meu quartinho, muitas vezes sentia algum músculo que havia trabalhado nesse dia se contrair e latejar – mas isso era apenas o efeito colateral de uma boa malhação, e muito agradável, pois eu sabia que essas fibras agora iriam se recuperar e se desenvolver.
Estava treinando duro porque, dali a menos de dois meses, sabia que teria que enfrentar um dos melhores fisiculturistas do mundo. Eu tinha me inscrito no maior evento de fisiculturismo da Europa: a disputa de Mister Universo, em Londres. Era uma atitude precipitada. Em condições normais, alguém relativamente novato como eu nem sonharia em participar daquela competição. Eu teria tentado vencer primeiro a disputa de Mister Áustria e, caso ganhasse, aí, sim, teria cogitado concorrer ao Mister Europa. No entanto, nesse ritmo, estar “pronto” para Londres teria levado muitos anos, e eu estava impaciente demais para isso. Queria a competição mais difícil que pudesse conseguir, e essa seria a guinada mais agressiva que eu poderia dar na minha carreira. No entanto, eu não era nenhum idiota, claro, e conhecia os riscos. Não esperava ganhar em Londres – não dessa vez. Porém estava decidido a descobrir qual era minha posição na carreira. Albert adorou a ideia e, como falava inglês, me ajudou a preencher o formulário de inscrição.
Para uma rotina tão fanática quanto a minha, era preciso mais de um parceiro de treino. Por sorte, havia um número suficiente de fisiculturistas sérios em Munique que gostaram do meu sonho de ser Mister Universo, ainda que me achassem meio maluco. Franz Dischinger treinava comigo regularmente, assim como Fritz Kroher, rapaz do interior como eu, originário de uma cidadezinha nas florestas da Bavária. Até mesmo Reinhard Smolana, dono da academia rival, entrou na dança. Às vezes ele me convidava para treinar na sua academia, ou ia à Universum malhar depois do expediente. Em apenas poucas semanas, vi que tinha encontrado minha verdadeira turma e comecei a me sentir em casa em Munique.
Meu parceiro de treino favorito chamava-se Franco Columbu, e ele logo se tornou meu melhor amigo. Eu o conhecera em Stuttgart no ano anterior, quando ele vencera o campeonato europeu de levantamento de peso no mesmo dia em que eu ganhara o Mister Europa juvenil. Franco era italiano, natural da Sardenha. Fora criado em uma fazenda em um minúsculo vilarejo de montanha que soou ainda mais primitivo do que Thal quando ele o descreveu para mim. Passara a maior parte da infância pastoreando ovelhas e, aos 10 ou 11 anos, ficava vários dias sozinho no mato, tendo que se virar para achar o que comer e se defender sem a ajuda de ninguém.
Franco tivera que abandonar a escola aos 13 anos para ajudar a família na fazenda, mas era muito trabalhador e inteligente. Começara como pedreiro e lutador de boxe amador e depois fora para a Alemanha ganhar a vida no ramo da construção. Em Munique, aprendera o idioma e passara a conhecer a cidade tão bem que se qualificou para ser taxista. A prova para ser motorista de táxi lá era difícil até para os locais, e o fato de um italiano ser aprovado deixou todo mundo impressionado.
Franco praticava levantamento de peso, eu, fisiculturismo, e ambos concordávamos que os dois esportes se complementavam. Eu queria aumentar minha massa corporal, o que significava trabalhar com pesos pesados, e isso Franco sabia fazer. Em contrapartida, eu entendia de fisiculturismo, algo que ele queria aprender. “Eu quero ser Mister Universo”, disse ele. Os outros riam da sua cara, pois Franco tinha apenas 1,65 metro, mas, no fisiculturismo, a perfeição e a simetria podem derrotar a simples estatura. Gostei da ideia de treinarmos juntos.
Talvez por ter passado tanto tempo ao ar livre, no mato, Franco estava sempre disposto a abraçar novas ideias. Por exemplo, ele adorou minha teoria de “choque muscular”. O maior obstáculo para um treino bem-sucedido sempre me pareceu ser o fato de que o corpo se ajusta muito depressa. Se você fizer a mesma série de levantamentos todos os dias, mesmo que aumente a carga progressivamente, verá o ganho muscular diminuir e depois parar, porque os músculos se tornam muito eficientes executando a sequência à qual já estão acostumados. A única forma de estimular o músculo e fazê-lo voltar a crescer é surpreendê-lo com a mensagem: “Você nunca vai saber o que está por vir. Será sempre diferente do que você espera. Hoje é assim, amanhã será outra coisa.” Um dia são pesos superpesados; no outro, séries com muitas repetições.
Um dos métodos que elaboramos para alcançar o choque muscular eram as séries regressivas. Em uma sequência de treino normal, a primeira série é feita com pesos mais leves e se vai aumentando a carga. Na série regressiva, porém, faz-se o contrário. Por exemplo, na preparação para Londres, eu precisava desenvolver meus deltoides. Então fazia extensões com pesos: você segura um peso em cada mão, na altura dos ombros, e estica os braços para erguê-los até acima da cabeça. Na série regressiva, eu começava com a carga máxima que conseguia levantar: seis repetições com pesos de 45 quilos. Em seguida eu os trocava pelos de 40 quilos e fazia mais seis repetições. E assim por diante, diminuindo cada vez mais. Quando chegava aos pesos de 20 quilos, meus ombros já estavam pegando fogo, e a cada repetição parecia que cada braço estava levantando 50 quilos, em vez de 20. Antes de largar os pesos, porém, eu aumentava ainda mais o choque nos deltoides fazendo levantamentos laterais, ou seja, erguendo os 20 quilos da altura do quadril até o ombro. Depois disso, meus músculos dos ombros ficavam tão doloridos que eu não sabia onde pôr as mãos. Deixá-las pender junto ao corpo causava uma dor excruciante e erguê-las era impossível. Tudo o que eu conseguia fazer era repousar os braços sobre uma mesa ou um aparelho, para aliviar a dor. A sequência inesperada de séries deixava os deltoides gritando. Eu mostrava a eles quem mandava. Então sua única opção era se recuperar e hipertrofiar.
DEPOIS DE TREINAR PESADO O DIA INTEIRO, à noite eu só queria me divertir. Em 1966, em Munique, diversão significava cervejaria, e cervejaria significava briga. Eu e meus amigos íamos a esses lugares, que todas as noites se enchiam de gente sentada em volta de mesas compridas, rindo, discutindo e brandindo suas canecas. E ficando bêbada, é claro. Todo mundo puxava briga o tempo todo, mas nunca era nada do tipo “Vou matar esse cara”. Assim que a briga terminava, um dos adversários dizia:
– Ah, vamos comer uns pretzels. Posso pagar uma cerveja para você?
E o outro respondia:
– É, eu perdi, então o mínimo que você pode fazer é me pagar uma cerveja. Até porque estou sem um tostão.
E logo os dois estavam bebendo juntos, como se nada tivesse acontecido.
A cerveja em si não me agradava tanto assim, porque interferia no treinamento, então eu raramente bebia mais de uma por noite. Quanto às brigas, no entanto, eu não perdia uma. Tinha a sensação de estar descobrindo um poder novo a cada dia: eu era imenso, forte, imbatível. Pensar praticamente não fazia parte da equação. Se um cara me olhasse de um jeito estranho ou me desafiasse por qualquer motivo que fosse, eu partia para cima dele. Dava-lhe o tratamento de choque: rasgava minha camisa para exibir a camiseta sem manga que usava por baixo, depois o nocauteava com um soco. Ou às vezes acontecia de um desses caras, quando me via, dizer apenas: “Ah, deixe isso para lá. Por que não tomamos uma cerveja e pronto?”
É claro que, quando a briga se generalizava, meus amigos e eu protegíamos uns aos outros. No dia seguinte, trocávamos histórias na academia e dávamos risadas. “Ah, vocês deveriam ter visto o Arnold: ele bateu as cabeças de dois caras uma na outra, aí um amigo partiu para cima dele com uma caneca de cerveja, mas eu peguei o desgraçado por trás com uma cadeira...” Tínhamos sorte porque, mesmo quando a polícia aparecia, o que aconteceu várias vezes, ela simplesmente nos liberava. A única vez que me lembro de ter sido levado para a delegacia foi quando um cara disse que consertar seus dentes iria custar uma nota. Começamos a discutir tanto por causa do custo do dentista que a polícia achou que a briga fosse recomeçar. Então fomos levados para a delegacia e deixados lá até acertarmos um valor.
Melhor ainda do que as brigas eram as garotas. Do outro lado da Schillerstrasse, bem em frente à academia, ficava o hotel Diplomat, onde as comissárias de bordo das empresas aéreas costumavam se hospedar. Quando nos viam da rua, Franco e eu nos debruçávamos nas janelas da academia com nossas camisetas sem manga para paquerá-las.
– O que estão fazendo aí em cima? – perguntavam elas.
– É uma academia. Querem treinar? Podem subir.
Eu também atravessava a rua até o saguão do hotel para me apresentar aos grupinhos de comissárias que entravam e saíam. Para deixá-las interessadas, combinava minhas melhores táticas do Thalersee com as dos anos que passei vendendo material de construção. “Temos uma academia do outro lado da rua”, dizia, e então elogiava a garota e comentava que ela poderia gostar de malhar. Na verdade, achava uma bobagem e uma estupidez as academias quase nunca incentivarem mulheres a treinar. Então nós as deixávamos malhar de graça. E pouco importava se estivessem ali por se interessarem pelos homens ou só para se exercitar: eu ficava feliz do mesmo jeito.
As garotas apareciam sobretudo à noite. Às oito horas, em geral, nossos clientes regulares já tinham ido embora, mas era possível usar os aparelhos até as nove. Era nesse horário que eu fazia o segundo treino com meus parceiros. Se as garotas quisessem apenas treinar, podiam tomar uma chuveirada e ir embora às oito e meia. Senão, podiam ficar por ali mesmo, e saíamos juntos ou dávamos uma festa. Às vezes, Smolana aparecia com algumas garotas, e nesses dias a noite podia virar uma loucura.
Nos primeiros meses em Munique, eu me deixei levar pela vida noturna e pela diversão. Porém, logo percebi que estava perdendo o foco e comecei a ter mais disciplina. O objetivo não era me divertir, e sim me tornar campeão do mundo de fisiculturismo. Se eu quisesse dormir sete horas por dia, precisava estar na cama às onze. Sempre havia tempo para me divertir, e nós sempre arrumávamos um jeito de nos distrair.
Meu chefe se revelou uma ameaça maior a meus anseios de Mister Universo do que qualquer bêbado de cervejaria com uma caneca na mão. Faltando apenas poucas semanas para o concurso, eu ainda não recebera a confirmação da minha inscrição. Finalmente, Albert acabou ligando para Londres e os organizadores disseram nunca ter recebido inscrição nenhuma. Ele então pressionou Putziger, que confessou ter achado meu formulário de inscrição na correspondência a ser postada e jogado fora. Ele estava enciumado com o fato de eu poder ser descoberto e me mudar para a Inglaterra ou os Estados Unidos antes de ele conseguir ganhar dinheiro comigo. Tudo teria ido por água abaixo não fosse o domínio de inglês de Albert e sua disposição para me defender. Ele tornou a ligar para Londres e convenceu os organizadores a avaliarem minha inscrição apesar de o prazo já ter expirado. Eles aceitaram. Poucos dias antes do concurso, a confirmação chegou e meu nome foi incluído na lista.
Os outros fisiculturistas de Munique também se uniram para me defender. Putziger devia ter pago minha passagem para Londres, claro, porque todo o sucesso que eu conseguisse lá chamaria atenção para a sua academia. No entanto, quando a notícia da sua rasteira se espalhou, foi seu rival Smolana quem passou o chapéu e juntou os 300 marcos necessários para a passagem. No dia 23 de setembro de 1966, embarquei em um voo com destino a Londres. Tinha 19 anos e era a primeira vez que voava de avião. Imaginava que fosse pegar um trem, então fiquei empolgadíssimo. Tinha certeza de que todos os meus antigos colegas de escola já tinham viajado de avião. Eu estava sentado dentro de uma aeronave junto com vários homens de negócios, e tudo isso graças ao fisiculturismo.
A primeira disputa de Mister Universo aconteceu um ano depois que eu nasci, em 1948. A competição se realizava em Londres, sempre em setembro. A maioria dos competidores, assim como em todo o universo do fisiculturismo, era de língua inglesa – principalmente americanos, que venciam uma média de oito a cada 10 competições. Todos os grandes fisiculturistas que eu idolatrava quando mais jovem haviam conquistado o título de Mister Universo: Steve Reeves, Reg Park, Bill Pearl, Jack Delinger, Tommy Sansone, Paul Winter. Eu me lembrava de ter visto uma fotografia do concurso quando criança. O vencedor estava em pé sobre um pódio, segurando o troféu, enquanto os outros posavam abaixo dele no palco. Eu sempre me vi em cima daquele pódio. Era uma visão muito clara: eu sabia que sensação aquilo me daria e que imagem teria. Tornar esse objetivo uma realidade seria um sonho, mas eu não imaginava que fosse ganhar naquele ano. Recebera a lista dos fisiculturistas com os quais iria competir na categoria amadora, vira as fotografias e pensara: “Meu Deus!” Seus corpos eram mais definidos que o meu. Eu queria terminar entre os seis primeiros, pois achava que não conseguiria derrotar o segundo, o terceiro e o quarto lugares do ano anterior. Considerava-os definidos demais, e eu não estava à altura. Ainda me encontrava no meio do lento processo de atingir minha massa muscular ideal. Eu pretendia chegar ao tamanho desejado, depois diminuir a intensidade dos treinos para então esculpir e aperfeiçoar os músculos.
A competição foi realizada no teatro Victoria Palace, antiga casa de espetáculos decorada com muito mármore e estátuas a alguns quarteirões da estação ferroviária de Victoria. As grandes competições sempre seguiam o mesmo protocolo. Pela manhã havia as prévias, ou rodadas técnicas. Os fisiculturistas e os jurados se reuniam no auditório – os jornalistas podiam assistir, mas a entrada do público não era permitida. O objetivo era dar aos jurados uma oportunidade de avaliar o desenvolvimento muscular dos competidores, cada parte do corpo separada, e compará-los de forma sistemática. Formava-se uma fila nos fundos do palco com todos os integrantes de uma classe – a minha era “amador alto”. Cada um tinha um número na sunga. Um jurado dizia: “Números 14 e 8, por favor, deem um passo à frente e mostrem o quadríceps.” Os dois então avançavam até o meio do palco e faziam a pose clássica para exibir os quatro músculos dianteiros da coxa, enquanto os jurados tomavam notas. O resultado dessas rodadas técnicas era levado em consideração nas decisões que seriam tomadas mais tarde no mesmo dia. A maior atração de todas, é claro, eram as finais, que aconteciam à tarde: uma competição de poses para cada uma das classes, concluída por uma pose com os vencedores de cada classe para escolher os campeões gerais nas categorias amadora e profissional.
Em comparação com as outras competições que eu já presenciara, a de Mister Universo era coisa séria. Os ingressos se esgotaram completamente: mais de 1.500 lugares foram ocupados por fãs do fisiculturismo que aplaudiam e gritavam, enquanto dezenas de outros aguardavam do lado de fora, torcendo por uma chance de poder entrar. O espetáculo em si tinha tanto de competição quanto de circo. O palco recebia iluminação profissional, com canhões de luz e refletores, e eles contratavam uma orquestra completa para ajudar a animar o show. A programação de duas horas incluía distrações entre as diferentes rodadas: concurso de biquínis, acrobatas, contorcionistas e dois grupos de mulheres de maiô e botas que desfilavam pelo palco e faziam poses segurando pequenos pesos e halteres.
Para meu assombro, durante a rodada técnica daquela manhã descobri que havia superestimado meus adversários. Os melhores fisiculturistas “amadores altos” eram de fato mais definidos, porém, quando estávamos todos juntos no palco, eu ainda me destacava. A verdade é que nem todos os fisiculturistas são fortes, sobretudo os que fazem a maior parte do treinamento em aparelhos. No meu caso, porém, anos de levantamento de peso e de trabalho com pesos livres tinham deixado meus bíceps, ombros, costas e coxas descomunais. Por isso, eu simplesmente parecia maior e mais forte que os outros.
Quando o espetáculo estava para começar, já se espalhara a notícia de que um adolescente gigantesco, com um nome impossível de pronunciar, surgira do nada e que ele era um verdadeiro fenômeno. Assim, a plateia se mostrou especialmente barulhenta e animada quando nosso grupo entrou no palco. Não ganhei, mas cheguei muito mais perto do que eu próprio ou qualquer outra pessoa poderia ter imaginado. Na última pose, eu e um americano chamado Chester Yorton disputamos o primeiro lugar e os jurados o escolheram. Tive que reconhecer que foi a escolha certa: embora Chet tivesse no mínimo 8 quilos a menos que eu, era realmente mais bem definido e muito bem-proporcionado, além de suas poses serem mais naturais e bem ensaiadas que as minhas. Para completar, ele exibia um belo bronzeado que me fazia parecer um pão cru.
Fiquei em êxtase por ter surpreendido a todos com o segundo lugar. Minha sensação era de ter ganhado. Aquilo me lançou na ribalta e as pessoas começaram a dizer: “Ele vai ganhar no ano que vem.” Revistas de fisiculturismo em inglês começaram a citar meu nome, o que era fundamental, já que para alcançar meu objetivo eu precisava me tornar conhecido na Inglaterra e nos Estados Unidos.
O encantamento durou apenas o tempo que levei para raciocinar. Então me dei conta: quem tinha subido no alto daquele pódio fora Chet Yorton, não eu. Ele merecera ganhar, mas pensei que eu havia cometido um grave erro. E se tivesse ido a Londres pretendendo ganhar? Será que teria me preparado melhor? Será que meu desempenho teria sido melhor? Será que eu teria vencido e agora seria Mister Universo? Em vez de agir assim, eu subestimara minhas chances. Não gostei do que senti e fiquei realmente muito abalado. Mas de fato aprendi uma lição.
Depois disso, nunca mais participei de nenhuma competição só por competir. Eu me inscrevia para ganhar. Mesmo que nem sempre vencesse, era esse o meu estado de espírito. Eu me tornei um verdadeiro animal. Se você conseguisse ler meus pensamentos antes de um concurso, ouviria mais ou menos o seguinte: “Eu mereço esse pódio, esse pódio é meu, e o mar vai ter que se abrir para mim. Saia da minha frente, porra, estou decidido. Pode ir descendo daí e me dar o troféu.”
Eu me imaginava no alto do pódio, com o troféu na mão. Todos os outros estariam lá embaixo. E eu teria que olhar para baixo para vê-los.
TRÊS MESES DEPOIS, EU ESTAVA DE VOLTA A Londres, rindo e fazendo bagunça no tapete de uma sala com um bando de crianças. Eram os filhos de Wag e Dianne Bennett, donos de duas academias que ocupavam o centro da cena do fisiculturismo no Reino Unido. Wag tinha sido jurado no concurso de Mister Universo e me convidara para ficar hospedado em sua casa de Forest Gate, em Londres, para algumas semanas de treinos. Embora já tivessem seis filhos, eles me acolheram e se tornaram praticamente meus pais.
Wag havia deixado bem clara a sua opinião: eu ainda precisava trabalhar muito. No primeiro lugar da sua lista estava minha sequência de poses. Eu sabia que havia uma grande diferença entre fazer poses bonitas e ter uma boa sequência. Poses são como fotografias, e a sequência é o filme. Para hipnotizar o público e deixá-lo vidrado, as poses precisam fluir. O que você faz entre uma pose e outra? Como suas mãos se movem? Qual é a expressão do seu rosto? Eu nunca tivera oportunidade de responder a muitas dessas perguntas. Wag me mostrou como diminuir o ritmo e transformar minha sequência em um balé: era tudo uma questão de postura, de manter as costas eretas e a cabeça virada para cima, não para baixo.
Essa parte eu conseguia entender, mas a ideia de posar enquanto tocava uma música ao fundo foi mais difícil de engolir. Wag colocava para tocar a dramática música-tema do filme Exodus e me mandava começar a sequência. No início, eu não conseguia imaginar algo que me distraísse mais ou que fosse menos legal. Depois de algum tempo, no entanto, comecei a ver como podia coreografar as poses e surfar a melodia como se fosse uma onda – uma bela e concentrada pose três quartos de costas nos momentos mais tranquilos, seguida por uma pose de peito lateral conforme a música ia aumentando de volume e então, tcharã!, uma pose incrível, a mais musculosa de todas, durante o crescendo.
Dianne se concentrava em me encher de proteínas e aprimorar minhas boas maneiras. Às vezes ela devia ter a impressão de que eu fora criado por lobos. Não sabia como segurar os talheres direito, nem que era preciso ajudar a tirar a mesa depois do jantar. Dianne assumiu o lugar que tanto meus pais quanto Fredi Gerstl e Frau Matscher tinham deixado vazio. Uma das poucas vezes que ela ficou brava comigo foi quando me viu abrir caminho aos empurrões por uma multidão de fãs após uma competição. Na minha cabeça, eu só pensava: “Eu ganhei! Agora vou comemorar.” Mas Dianne me segurou e disse: “Arnold, isso não se faz. Essas pessoas vieram aqui ver você. Elas gastaram dinheiro e algumas viajaram longas distâncias para estar aqui. Você pode parar por alguns minutos e lhes dar um autógrafo.” Essa bronca mudou minha vida. Eu nunca havia pensado nos fãs, só nos concorrentes. A partir desse dia, porém, passei a encontrar sempre um tempo para eles.
Até as crianças ajudaram no projeto “A educação de Arnold”. Não deve haver nenhum jeito melhor de aprender inglês do que conviver com uma família londrina animada e feliz na qual ninguém entende alemão, você dorme no sofá e tem seis irmãos e irmãs mais novos. Eles me tratavam como um gigantesco filhote de cachorro que houvessem acabado de ganhar e adoravam me ensinar palavras novas.
Em uma foto minha tirada nessa viagem, estou encontrando pela primeira vez meu ídolo de infância, Reg Park. Ele veste calça esportiva e suéter, tem a aparência relaxada e está bronzeado. Eu, ao contrário, com minha sunga de competição, estou pálido e tenho um ar surpreso, de admiração. Estava diante de Hércules, do detentor de três títulos de Mister Universo, do astro de cinema cuja foto eu pregara na parede do meu quarto, do homem que servira de modelo para o meu projeto de vida. Mal consegui articular qualquer palavra. Todo o inglês que havia aprendido se evaporou da minha cabeça.
Reg vivia então em Johanesburgo, onde era dono de uma rede de academias, mas voltava à Inglaterra a trabalho várias vezes por ano. Era amigo dos Bennett e generosamente concordara em me ensinar os truques da profissão. Para Wag e Dianne, a melhor maneira de eu ter uma boa chance de ganhar o título de Mister Universo era me tornar mais conhecido no Reino Unido. Na época, os fisiculturistas faziam isso entrando no circuito de exibição – promotores das Ilhas Britânicas organizavam eventos regionais e, se você aceitasse participar, podia ganhar um dinheirinho e divulgar o próprio nome. Por acaso, Reg estava a caminho de um evento desses em Belfast, na Irlanda do Norte, e sugeriu que eu o acompanhasse. Construir um nome no fisiculturismo é bem parecido com fazer política. Você vai de cidade em cidade e torce para a informação se espalhar. Esse contato com o público funcionou, e o entusiasmo gerado por essa iniciativa acabaria me ajudando a ganhar o título de Mister Universo.
Certa noite eu estava nos bastidores de uma exibição vendo Reg posar no palco diante de uma plateia de várias centenas de fãs animados. Então ele foi até o microfone e me chamou para subir ao palco. Ficou narrando enquanto eu demonstrava minha força: roscas com os dois braços e um peso de 125 quilos, e cinco levantamentos terra com 227 quilos. Terminei com uma pose e as pessoas aplaudiram de pé. Estava pronto para descer do palco quando ouvi Reg dizer:
– Arnold, venha cá. – Quando cheguei ao microfone, ele tornou a falar: – Diga alguma coisa para o pessoal.
– Não, não, não – respondi.
– Por que não?
– Eu não falo inglês muito bem – expliquei.
– Vejam só! – exclamou ele. – Muito bom! Vamos aplaudir, pessoal. Para um cara que não fala inglês, é preciso muita coragem para dizer uma frase dessas.
Ele começou a aplaudir e logo todos o imitaram.
De repente, pensei: “Caramba, que fantástico. Eles gostaram do que eu disse!”
– Diga a eles: “Eu gosto da Irlanda” – continuou Reg.
– Eu gosto da Irlanda.
Mais aplausos.
– Lembro que você me disse mais cedo que é a sua primeira vez em Belfast, e que você mal podia esperar para chegar aqui. Não é verdade?
– É.
– Então diga a eles! “Eu mal podia esperar...”
– Eu mal podia esperar...
– “...para chegar aqui.”
– ...para chegar aqui.
Mais aplausos. Minha nossa! A cada frase que ele dizia e eu repetia, a plateia me aplaudia.
Se Reg tivesse me dito na véspera que iria me chamar para subir ao palco e pedir que eu dissesse algumas palavras, eu teria ficado apavorado. Agora, porém, ali estava eu, conseguindo falar em público sem pressão. Não precisava me preocupar com o fato de os espectadores me aceitarem ou darem importância ao que eu dissesse. Eu não tinha medo, porque estava focado no meu corpo. Eu estava levantando pesos, posando. Sabia que eles me aceitavam. Falar era só uma atração extra.
Depois desse dia, passei a estudar o comportamento de Reg em várias exibições. Ele tinha um jeito inacreditável de falar. Sabia divertir as pessoas, era espontâneo, contava histórias. E ele era Hércules! Era Mister Universo! Conhecia vinhos e gastronomia, falava francês e italiano. Era um daqueles caras que realmente sabem se comportar. Eu via o jeito como ele segurava o microfone e dizia a mim mesmo: “É isso que você tem que fazer. Não pode simplesmente posar no palco feito um robô e depois ir embora. Assim as pessoas nunca vão conhecer sua personalidade. Reg Park fala com as pessoas. É o único fisiculturista que conheço que interage com a plateia. É por isso que elas o amam. É por isso que ele é Reg Park.”
DE VOLTA A MUNIQUE, PASSEI A ME CONCENTRAR em conseguir clientes para a academia. O velho Putziger quase nunca aparecia, fato que Albert e eu achávamos ótimo. Nós dois formávamos uma bela equipe. Albert administrava tudo – o negócio de venda de suplementos pelo correio, a revista e a academia – e fazia o trabalho de várias pessoas. A mim, além de conduzir os treinos, cabia recrutar novos clientes. Nosso objetivo, naturalmente, era ultrapassar Smolana e nos tornarmos a principal academia da cidade. A publicidade era um primeiro passo evidente, mas não tínhamos dinheiro para anunciar tanto assim, então mandamos imprimir alguns cartazes. Esperávamos a noite cair e então percorríamos a cidade para pregá-los em canteiros de obras, onde imaginávamos que os operários fossem se interessar pelo fisiculturismo.
Mas essa estratégia não deu tão certo quanto esperávamos. Ficamos quebrando a cabeça, tentando encontrar uma solução, até que Albert passou por um dos canteiros de obras durante o dia e viu um cartaz de Smolana pregado no muro, bem em cima de um dos nossos. Descobrimos que ele vinha mandando seu pessoal percorrer a cidade para cobrir nossos cartazes com os dele antes de a cola secar. Assim, mudamos de tática. Colávamos os cartazes uma primeira vez à meia-noite, depois dávamos uma segunda passada às quatro da manhã para ter certeza de que quando os operários das obras chegassem para trabalhar os cartazes da nossa academia estariam por cima. Todo mundo se divertiu bastante com essa guerra de cartazes, e aos poucos nosso número de clientes começou a aumentar.
Nosso argumento era que, embora Smolana tivesse mais espaço, nós tínhamos mais energia e mais diversão. Outra vantagem nossa eram os lutadores. Hoje em dia a luta livre é um fenômeno esportivo da TV, mas naquela época os lutadores iam de cidade em cidade promovendo combates. Quando estavam em Munique, eles se apresentavam em um lugar chamado Circus Krone, um prédio construído para servir de sede a um circo e que tinha uma imensa arena permanente no centro. Sempre que havia uma luta, o lugar ficava abarrotado.
Os lutadores viviam procurando um lugar para malhar e, quando ouviram falar de mim, começaram a escolher a nossa academia. Treinei com pessoas como o havaiano Harold Sakata, que fez o papel do vilão Oddjob no filme 007 contra Goldfinger em 1964. Assim como muitos outros lutadores profissionais, Harold começou como levantador de peso. Ele ganhou uma medalha de prata para os Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de 1956 em Sydney, Austrália. Tínhamos também lutadores húngaros, franceses, do mundo inteiro. Eu abria a academia em horários fora do expediente só para recebê-los e à noite ia assistir às suas lutas. Eles estavam doidos para me fazer virar lutador, mas é claro que isso não fazia parte dos meus planos.
Mesmo assim, estava orgulhoso com o fato de a nossa academia estar começando a ficar meio parecida com a ONU, porque meu plano era alcançar uma escala global em tudo o que eu fizesse. Fisiculturistas americanos e britânicos de passagem pela cidade apareciam por lá, e os soldados americanos estacionados ali perto ficaram sabendo que a Universum Sport Studio era um bom lugar para se treinar.
Ter uma grande variedade de clientes era a ferramenta de vendas perfeita. Se alguém me dissesse “Estive na academia Smolana e eles têm mais aparelhos que vocês”, eu respondia: “Bom, eles têm mais espaço que nós, nisso você tem razão. Mas pense no que faz todo mundo querer vir aqui. Quando qualquer fisiculturista americano chega à cidade, é aqui que ele vem treinar. Quando os membros das Forças Armadas procuram uma academia, é aqui que vêm treinar. Quando lutadores profissionais vêm a Munique, é aqui que eles vêm treinar. Temos até mulheres tentando entrar!” Eu tinha preparado todo um discurso.
Meu sucesso inicial em Londres mostrou que eu estava no caminho certo e que meus objetivos não eram malucos. A cada vitória que obtinha, minha certeza aumentava. Depois do Mister Universo de 1966, conquistei vários outros títulos, incluindo o de Mister Europa. Mais importante ainda para minha reputação local foi que consegui erguer, mais alto que qualquer outro competidor, um bloco de pedra de 254 quilos da antiga cervejaria Löwenbräukeller durante o Festival da Cerveja, em março, e assim venci uma rodada da competição de levantamento de pedra.
Eu sabia que já era o favorito para ganhar o título de Mister Universo de 1967. Mas isso não me parecia suficiente – eu queria domínio total. Se já os havia impressionado com meu tamanho e força no ano anterior, meu plano agora era aparecer inacreditavelmente maior e mais forte e deixá-los realmente de queixo caído.
Assim, dediquei toda a minha energia e atenção a um regime de treinamento que havia bolado junto com Wag Bennett. Passei meses gastando a maior parte do meu salário em comida, vitaminas e tabletes de proteína destinados a aumentar a massa muscular. A principal bebida dessa dieta parecia um oposto intragável da cerveja: levedo de cerveja com leite e ovo cru. O cheiro e o sabor eram tão horríveis que Albert certa vez provou e vomitou. Mas eu estava convencido de que funcionava, e talvez desse certo mesmo.
Eu lia tudo o que conseguia encontrar sobre os métodos de treinamento dos alemães orientais e soviéticos. Havia boatos cada vez mais fortes de que eles estavam usando remédios para aumentar o desempenho e melhorar os resultados de seus halterofilistas, lançadores de peso e nadadores. Assim que entendi que os remédios em questão eram os anabolizantes, fui ao médico experimentar. Na época, não havia nenhuma regra que proibisse o uso de esteroides anabolizantes e era possível obtê-los com receita médica, mas as pessoas já pareciam ter reservas em relação ao seu uso. Os fisiculturistas não falavam sobre anabolizantes com a mesma liberdade com que se referiam a séries com pesos ou suplementos alimentares, e havia uma controvérsia sobre se as revistas especializadas deveriam informar as pessoas a respeito dos remédios ou simplesmente ignorar essa tendência.
Tudo o que eu precisava saber era que os principais campeões internacionais estavam tomando anabolizantes, e confirmei esse fato perguntando ao pessoal de Londres. Eu não podia entrar na competição em desvantagem. “Não deixe de tentar nada”, era esse o meu lema. Não havia nenhuma prova quanto aos riscos – as pesquisas relacionadas aos efeitos colaterais dos anabolizantes estavam apenas começando –, mas, mesmo que fosse o caso, não sei se eu teria ligado. Campeões de esqui alpino e pilotos de Fórmula 1 sabem que podem morrer, mas mesmo assim competem. Eles competem porque, se você não morre, você ganha. Além disso, eu tinha 20 anos e me achava imortal.
Para obter os remédios, só precisei me consultar com um clínico geral.
– Ouvi dizer que esses remédios auxiliam no crescimento muscular – falei.
– Teoricamente, sim, mas eu não exageraria na propaganda – respondeu o médico. – Esses remédios são para pessoas em reabilitação após passarem por intervenções cirúrgicas.
– Acha que eu posso experimentar? – perguntei, e ele respondeu que sim, claro.
Receitou uma injeção a cada 15 dias e também comprimidos para tomar entre as aplicações.
– Tome isto por três meses e pare no dia em que a competição terminar – falou.
Os anabolizantes me deixaram com mais fome e sede e me ajudaram a ganhar peso, mas esse peso era composto principalmente por água, o que não era ideal, pois afetava a definição. Aprendi a usar os remédios durante as seis ou oito últimas semanas antes de uma competição importante. Eles podiam ajudar a vencer, mas a vantagem que proporcionavam era mais ou menos a mesma de ter um belo bronzeado.
Mais tarde, na época que me aposentei do fisiculturismo, o uso de drogas se tornou um problema grave nesse esporte. Alguns caras chegavam a tomar doses de anabolizantes 20 vezes maiores do que as que qualquer um de nós tomava. Quando o hormônio do crescimento humano foi descoberto, a situação realmente fugiu ao controle. Alguns fisiculturistas morreram. Desde então venho trabalhando duro junto à Federação Internacional de Fisiculturismo e a outras organizações para banir as drogas do esporte.
O efeito global de todos esses ajustes no meu regime de treinos foi que, em setembro, quando tornei a embarcar num avião para Londres, havia conseguido ganhar quase 5 quilos só de músculos.
Essa segunda disputa de Mister Universo foi tão boa quanto eu imaginava. Enfrentei fisiculturistas de África do Sul, Índia, Inglaterra, Jamaica, Escócia, Trinidad, México, Estados Unidos e dezenas de outros países. Pela primeira vez, ouvi o público entoar meu nome: “Arnold! Arnold!” Nunca tinha vivido nada parecido. Quando subi ao pódio com meu troféu na mão, exatamente como havia sonhado, consegui dizer as palavras certas em inglês para mostrar que tinha alguma classe e participar da diversão. Peguei o microfone e falei: “Minha ambição de vida acabou de se realizar. Estou muito feliz em ser Mister Universo. Que frase mais linda! Vou repetir: estou muito feliz em ser Mister Universo. Obrigado a todos na Inglaterra que me ajudaram. Vocês foram muito bons comigo. Obrigado a todos.”
Conquistar o título de Mister Universo me proporcionou um estilo de vida que superava os sonhos mais extravagantes de qualquer rapaz. Quando o tempo estava bom, nós nos empilhávamos dentro de nossos carros velhos e íamos para o campo brincar de gladiadores – fazíamos churrasco, bebíamos vinho e namorávamos. À noite, eu saía com uma turma internacional de donos de bar, músicos, garçonetes – uma de minhas namoradas era stripper, outra era cigana. Mas eu tinha hora certa para esses excessos. Quando precisava treinar, nunca perdia uma sessão sequer.
Reg Park havia prometido que, se eu ganhasse o Mister Universo, ele me convidaria a ir à África do Sul para fazer exibições e promover meu nome. Assim, na manhã seguinte ao concurso, eu lhe mandei um telegrama que dizia: “Ganhei. Quando é que vou para aí?” Reg cumpriu sua palavra. Mandou uma passagem para mim e em 1967, durante as férias de verão do hemisfério norte, passei três semanas em Johanesburgo com ele, sua mulher, Mareon, e os dois filhos do casal, Jon Jon e Jeunesse. Reg e eu percorremos toda a África do Sul fazendo exibições, inclusive em Pretória e na Cidade do Cabo.
Até então, eu só tinha uma vaga ideia do que realmente significava o sucesso no fisiculturismo, no cinema e nos negócios. Ver a família feliz de Reg e sua vida próspera foi uma inspiração tão grande para mim quanto assisti-lo nas telas interpretando Hércules. Ele vinha de uma família da classe trabalhadora de Leeds. Já era um astro do fisiculturismo nos Estados Unidos na década de 1950, quando se apaixonou por Mareon. Ele a levou para a Inglaterra, onde os dois se casaram, mas Leeds a deixou deprimida e o casal se mudou de volta para a África do Sul, onde Reg fundou sua rede de academias. Os negócios deram muito certo. A casa da família, que ele chamava de Monte Olimpo, tinha vista para a cidade, piscina e jardins. O interior era amplo, lindo, confortável, cheio de obras de arte. Por mais que eu estivesse gostando da vida que levava em Munique – treinos pesados, diversão, brigas e garotas –, ficar hospedado com a família de Reg foi uma experiência que não me deixou perder de vista os meus objetivos.
Reg me acordava diariamente às cinco da manhã. Às cinco e meia, já estávamos malhando na academia dele, no número 42 da Kirk Street. Eu não tinha o costume de acordar a essa hora, mas durante a estadia na casa dele aprendi as vantagens de treinar cedo, antes de o dia começar, quando não se tem nenhuma outra responsabilidade e ninguém o incomoda. Reg também me ensinou uma valiosa lição sobre limites psicológicos. Eu tinha conseguido levantar 136 quilos em flexões plantares em pé com barra, mais do que qualquer outro fisiculturista que conhecesse. Para mim, isso estava próximo do limite humano. Portanto, fiquei pasmo ao vê-lo fazer o mesmo exercício com 453 quilos.
“O limite está na sua mente”, disse Reg. “Pense só: 136 quilos é menos do que você levanta quando anda. Você pesa 113, então a cada passo que dá está levantando esse peso com cada panturrilha. Para treinar de verdade, tem que superar essa marca.”
E ele estava certo. O limite que eu pensava existir era puramente psicológico. Depois que o vi levantar quase 500 quilos, comecei a dar grandes saltos no meu treinamento.
Isso me mostrou o poder que a mente tem sobre o corpo. No levantamento de peso, durante muitos anos houve um limite de 226,8 quilos na prova de arremesso – mais ou menos como a barreira dos quatro minutos para correr uma milha, que só foi quebrada por Roger Bannister em 1954. No entanto, assim que o grande levantador de peso russo Vasily Alekseyev estabeleceu um novo recorde mundial de 227,2 quilos em 1970, três outros atletas levantaram mais de 226,8 em menos de um ano.
Vi a mesma coisa acontecer com Franco Columbu, meu parceiro de treino. Certa vez, anos depois, estávamos nos revezando para fazer agachamentos na academia Gold’s Gym, na Califórnia. Fiz seis repetições com 226,8 quilos. Embora ele fosse mais forte que eu nesse exercício, fez apenas quatro repetições e recolocou a barra no lugar.
– Estou exausto – falou.
Nesse momento, duas garotas que tínhamos visto na praia entraram na academia e vieram nos cumprimentar. Então tornei a me virar para Franco.
– Elas não acreditam que você consegue agachar com 226,8 quilos.
Eu sabia como ele gostava de se exibir, principalmente quando havia mulheres por perto. Dito e feito.
– Vou mostrar a elas – disse Franco. – Vejam só.
Ele pegou a barra e fez 10 repetições. Daquele jeito, ele fez o exercício parecer fácil. Aquele era o mesmo corpo que 10 minutos antes estava exausto. Suas coxas deviam estar gritando “Que porra é essa?”. O que havia mudado, então? A mente. O esporte é algo tão físico que é fácil subestimar o poder da mente, mas eu já o vi ser demonstrado vezes sem conta.
De volta a Munique, meu desafio imediato era como usar o título de Mister Universo para atrair mais clientes para a academia. O fisiculturismo ainda era tão desconhecido e considerado tão estranho que ganhar o campeonato não teve qualquer repercussão fora das academias. Eu havia conquistado mais fama levantando a pedra na cervejaria.
Foi então que Albert teve uma ideia. Se tivéssemos pedido aos jornais que escrevessem sobre minha vitória no Mister Universo, eles teriam nos considerado malucos. Em vez disso, ele me mandou andar pela cidade em um dia gelado usando apenas a sunga de exibição. Então chamou alguns amigos jornalistas e disse: “Lembram-se do Schwarzenegger, que ganhou o concurso de levantamento de pedra? Bom, ele agora é o Mister Universo e está na Stachusplatz só de sunga.”
Alguns editores consideraram isso curioso o bastante para mandar fotógrafos. Eu os fiz percorrer a cidade inteira: do mercado até a estação central de trem, onde fiz questão de puxar papo com algumas senhorinhas para mostrar que era simpático e educado, e não uma espécie de monstro. Políticos fazem isso o tempo inteiro. Para um fisiculturista, no entanto, era incomum. Apesar do frio, eu me diverti. Na manhã seguinte, um dos jornais publicou uma foto minha de sunga em um canteiro de obras, onde um dos operários, todo agasalhado por causa da baixa temperatura, olhava para mim com o queixo caído.
Depois de mais de um ano de labuta e ações desse tipo, conseguimos dobrar o número de clientes da academia, que passou de 300 – só que em uma cidade com mais de 1 milhão de habitantes. Segundo Albert, o fisiculturismo era o subculto de um subculto. Costumávamos ter longas conversas sobre o motivo de o esporte não ser mais conhecido. Achávamos que a resposta devia estar na mentalidade da maioria dos praticantes: os fisiculturistas são como eremitas tentando se esconder sob uma armadura de músculos. Por isso, fazem tudo em segredo e ficam treinando em porões para só sair quando os músculos lhes proporcionam segurança. Já houvera alguns fortões famosos na história, como o prussiano Eugen Sandow, muitas vezes chamado de pai do fisiculturismo moderno, ou Alois Swoboda. Mas isso fora no começo do século XX, e desde então não surgira ninguém como eles. Nenhum fisiculturista moderno era showman o bastante para realmente popularizar o esporte.
As competições promovidas em Munique eram um exemplo deprimente disso. Em vez de se realizarem em cervejarias, como as antigas competições de força, eram organizadas em academias onde as paredes e o piso eram desprovidos de ornamentação, ou então em auditórios cujos palcos não tinham qualquer item decorativo. E isso em Munique, uma cidade cheia de gente, diversão e vida. A única exceção era o concurso de Mister Alemanha, organizado anualmente na Bürgerbräukeller, cervejaria frequentada pela classe trabalhadora.
Albert e eu tivemos a ideia de melhorar o nível das competições de fisiculturismo. Juntamos um dinheirinho e compramos os direitos de organizar a disputa de Mister Europa de 1968. Então fomos procurar os donos da Schwabinger Bräu, uma cervejaria antiga e elegante localizada em um bairro classudo, e perguntamos: “Que tal fazer o concurso de fisiculturistas aqui?”
O fato de termos escolhido um local incomum nos ajudou a promover o evento e conseguimos atrair mais de mil espectadores, em comparação com algumas centenas no ano anterior. Naturalmente, convidamos a imprensa e nos certificamos de que os jornalistas entendessem o que estavam vendo, para poderem escrever boas matérias.
Tudo poderia ter dado errado. Poderíamos ter vendido muito poucos ingressos, ou então alguém poderia ter começado uma confusão pulando no palco e dando na cabeça do Mister Europa com um canecão de cerveja. Em vez disso, porém, a cervejaria ficou lotada com uma plateia eufórica e animada, que bebia e brindava cheia de vida. A energia do nosso evento estabeleceu um novo padrão para o fisiculturismo na Alemanha.
O concurso de Mister Europa daquele ano teve um impacto especialmente forte nos fisiculturistas do Leste Europeu, pois coincidiu com a invasão soviética à Tchecoslováquia. No dia 21 de agosto, menos de um mês antes do evento, tanques adentraram o país para reprimir as reformas democráticas instauradas durante a chamada Primavera de Praga, no início de 1968. Conforme a notícia se espalhou, entramos em contato com os fisiculturistas que conhecíamos no país e fomos buscar muitos deles na fronteira com nossos carros. Os tchecos estavam particularmente bem representados no Mister Europa de 1968, pois puderam usar o concurso como pretexto para sair do país. Depois da competição, foram embora de Munique com destino ao Canadá ou aos Estados Unidos.
EU ME PERGUNTAVA QUANDO CHEGARIA a minha vez de ir para os Estados Unidos. Um cantinho do meu cérebro estava permanentemente focado nessa questão. Quando servi o exército austríaco, por exemplo, descobri que condutores de tanque estavam sendo mandados para um treinamento avançado lá, então fiquei sonhando em seguir a carreira militar por causa disso. O problema, claro, era que quando o período de treino terminasse eu teria que voltar para o meu país e continuar no exército.
Assim, mantive meu plano original: eu iria receber uma carta ou um telegrama me convidando para ir aos Estados Unidos. Cabia a mim ter um bom desempenho e fazer algo extraordinário. Afinal, se Reg Park conseguira ir para lá fazendo algo fora do comum, eu também poderia. Na avaliação de meu progresso, eu usava Reg e Steve Reeves como referências. Assim como Reg, eu havia começado cedo na carreira – mais cedo ainda, já que ele começou aos 17 anos, pouco antes de entrar para o exército, e eu aos 15. Ganhar o Mister Universo aos 20 anos me valera uma boa dose inicial de publicidade no mundo do fisiculturismo, pois eu batera a duradoura marca de Reg, vencedor aos 23 anos, em 1951.
Quando minha obsessão pelo fisiculturismo começou, eu sonhava que vencer o Mister Universo em Londres fosse me garantir fama e imortalidade. Na verdade, porém, as competições tinham se tornado bem mais complexas. Como no boxe hoje em dia, o fisiculturismo tinha várias federações, que viviam competindo pelo controle da modalidade. Elas administravam os campeonatos que atraíam a elite do esporte: a disputa de Mister Universo na Grã-Bretanha; a de Mister Mundo, que a cada ano se realizava em um país diferente; a de Mister Universo nos Estados Unidos; e o Mister Olympia, um concurso novo destinado a escolher o melhor fisiculturista profissional do mundo. Os fãs precisavam ter tudo anotado para se lembrarem de tantos eventos. Para mim, o importante era que nem todos os melhores fisiculturistas competiam em todas as disputas. Alguns dos melhores americanos, por exemplo, pulavam o Mister Universo em Londres e só participavam da versão americana. Sendo assim, a única forma de um fisiculturista se tornar campeão mundial inconteste era ganhar os títulos de todas as federações. Somente depois de ter desafiado e vencido todos os rivais era possível ser reconhecido mundialmente como o melhor. No auge da carreira, Reg Park havia dominado a cena mundial ao vencer o Mister Universo de Londres três vezes em 14 anos. Bill Pearl, um excelente fisiculturista californiano, dominara conquistando três títulos de Mister Universo mais o Mister América e o Mister Estados Unidos. Steve Reeves fora Mister América, Mister Universo e Mister Mundo. Eu estava ansioso não apenas para bater os recordes de todos eles, mas também para ser muito superior a eles: se alguém podia ganhar o Mister Universo três vezes, eu queria vencer seis. Era jovem o suficiente para isso e sentia que era capaz.
Eram esses os meus sonhos durante a preparação para a disputa de Mister Universo marcada para acontecer em Londres em 1968. Para chegar aos Estados Unidos, eu primeiro precisava dominar inteiramente a cena do fisiculturismo na Europa. Ter vencido o Mister Universo na categoria amadora no ano anterior era um ótimo começo. No entanto, isso me alçava automaticamente ao status profissional, o que trazia toda uma nova gama de adversários, ou seja, eu precisava vencer o título profissional de forma ainda mais decisiva do que vencera como amador. Isso me tornaria duas vezes campeão do Mister Universo, e então eu realmente iria deslanchar.
Eu me certifiquei de que nada pudesse interferir nos treinos. Nem a diversão, nem o meu emprego, nem as viagens, nem as garotas, nem a organização da disputa de Mister Europa. É claro que eu reservava tempo para todas essas coisas, mas minha prioridade era treinar duro umas quatro ou cinco horas por dia, seis dias por semana.
Embora eu usasse as dicas aprendidas com Wag Bennett e Reg Park, o foco do meu treino permanecia o mesmo. Meu físico continuava a se desenvolver e eu queria tirar vantagem de um dom natural: uma estrutura óssea capaz de suportar mais massa que a de qualquer outro adversário que teria que enfrentar. Meu objetivo era aparecer no Victoria Palace ainda maior e mais forte que no ano anterior e realmente pulverizar a concorrência. Com 1,88 metro e 113 quilos, eu estava mais impressionante do que nunca.
A véspera do concurso não começou bem. A caminho do aeroporto, fui à academia esperando que Rolf Putziger fosse pagar meu salário normal, com o qual eu estava contando para as despesas diárias em Londres. Mas não: tudo o que ele me deu foi um papel e uma caneta.
“Assine aqui para receber seu dinheiro”, falou. Era um contrato que o tornava meu agente e lhe garantia uma porcentagem de toda a minha renda futura! Superei suficientemente o choque para dizer não, mas fui embora da academia bufando. Todo o dinheiro que tinha era o que levava no bolso e nem sequer sabia se o emprego ainda era meu. Albert teve que me emprestar 500 marcos para eu poder viajar. É claro que a viagem terminou muito melhor do que começou: no dia seguinte, ganhei a disputa de Mister Universo pela segunda vez, uma vitória decisiva. Várias revistas de fisiculturismo publicaram uma foto minha segurando uma garota de biquíni no braço esquerdo enquanto exibia o bíceps do direito. Melhor ainda, porém, foi o telegrama que encontrei à minha espera no hotel. Era de Joe Weider.
“Parabéns pela vitória”, dizia ele. “Você é a jovem sensação do momento. Vai se tornar o maior fisiculturista de todos os tempos.” Ele também me convidava para ir aos Estados Unidos na semana seguinte a fim de competir no concurso de Mister Universo da sua federação, em Miami. “Nós pagamos as despesas”, prosseguia o telegrama. “O coronel Schuster lhe dará mais detalhes.”
Receber um telegrama do maior promotor de campeões do fisiculturismo me deixou muito empolgado. Ser o maior empresário da modalidade nos Estados Unidos tornava Joe Weider o maior empresário de fisiculturismo do mundo. Ele havia construído um império internacional de exibições, revistas, equipamentos e suplementos alimentares para fisiculturistas. Meu sonho agora estava mais próximo: não apenas o de ser um campeão, mas também o de ir para aquele país. Mal pude esperar para ligar para meus pais e contar que estava a caminho. Não achava que fosse acontecer, mas talvez conseguisse acumular um terceiro título de Mister Universo! Aos 21 anos, seria um feito incrível. Eu estava em plena forma física para a competição – e estava embalado. Iria impressioná-los lá em Miami.
O coronel Schuster era um cara de estatura mediana, de terno, que foi me visitar no hotel de Londres mais tarde nesse dia. Na verdade, ele era coronel da Guarda Nacional dos Estados Unidos e ganhava a vida fazendo o marketing da empresa de Weider na Europa. Ele me entregou a passagem de avião, mas mal começara a falar sobre os planos de viagem quando se deu conta de que eu não tinha visto para entrar no país.
Fiquei na casa do coronel esperando, sem nada para fazer, enquanto ele ia à embaixada americana mexer uns pauzinhos. A papelada acabou levando uma semana. Ocupei meu tempo da melhor forma que pude, embora na verdade não tivesse uma dieta adequada nem uma academia onde pudesse treinar cinco horas por dia. Fiz o possível: passei a frequentar o depósito de Weider, onde haviam conseguido alguns pesos e halteres, e treinei lá. Estava distraído, porém, e não era a mesma coisa.
No minuto em que pisei no avião, toda a frustração desapareceu. Tive que fazer conexão em Nova York e, ao sobrevoar a cidade, minha primeira visão dos arranha-céus, do porto e da Estátua da Liberdade foi fantástica. Não sabia ao certo o que esperar de Miami, e chovia quando cheguei lá. Mas a cidade também me deixou impressionado, não só por causa dos prédios e das palmeiras, mas também em razão do calor que fazia naquele mês de outubro e da felicidade que isso parecia provocar nas pessoas. Adorei as casas de espetáculos com música latina para turistas. E a mistura de latinos, negros e brancos era fascinante: eu já tinha visto isso no circuito do fisiculturismo, mas nunca na Áustria quando era mais jovem.
Joe Weider havia criado a versão americana do Mister Universo 10 anos antes, para aumentar a popularidade do fisiculturismo nos Estados Unidos, mas aquela era a primeira vez que o concurso era realizado na Flórida. Eles alugaram o Miami Beach Auditorium, um salão grande e moderno, com 2.700 lugares. Eu já perdera a prévia do evento – entrevistas, festas, filmagens para cinema e TV e ações promocionais –, mas mesmo assim a produção me pareceu grande, bem de acordo com os padrões americanos. Lendas do fisiculturismo como Dave Draper e Chuck Sipes, respectivamente Mister América e Mister Universo, podiam ser encontradas por toda parte.
Pela primeira vez pude ver o campeão mundial de fisiculturismo, Sergio Oliva, um imigrante cubano que fora o primeiro integrante de uma minoria a vencer as disputas de Mister América, Mister Mundo, Mister Internacional, Mister Universo e Mister Olympia. Na semana anterior, ele tinha acabado de conquistar o segundo título consecutivo de Mister Olympia. Embora eu ainda não estivesse no seu nível, Oliva sabia que nós dois logo iríamos competir. “Ele é muito, muito bom”, comentou o cubano com um repórter, falando de mim. “O ano que vem vai ser difícil. Mas, por mim, tudo bem. Não gosto de competir com bebês.” Quando ouvi isso, pensei: “A pressão psicológica já começou.”
Eram uns 20 competidores divididos em dois grupos: altos e baixos. Nas rodadas prévias de avaliação, durante o dia, derrotei com facilidade os dois outros altos. Mas o melhor competidor na categoria dos baixos era o Mister América, Frank Zane, que estava na melhor forma física de toda a sua carreira. Na semana anterior, ganhara a disputa de Mister América em Nova York. Estava tão grande, definido e forte quanto eu em Londres, com a mesma massa muscular impressionante. No entanto, uma semana sem fazer nada enquanto esperava o visto tinha me deixado um pouco mais pesado que o ideal. Quando posei, portanto, meu corpo pareceu liso e com menos definição. Pior ainda: além de ter proporções perfeitas e de ser musculoso e definido, Zane exibia um belo bronzeado, enquanto eu era branco feito leite. À noite, quando a etapa final começou, ele estava alguns pontos na minha frente.
Nessa noite, diante do público, tive a sensação de estar 100% melhor. Um dia inteiro flexionando os músculos e posando sob as luzes do palco tinha derretido os quilos a mais. Isso ajudou a tornar a disputa entre nós dois tão acirrada que acabamos empatados na votação dos jurados. No entanto, a pontuação mais alta de Frank durante o dia levou-o à vitória. Fiquei parado no palco tentando não parecer atarantado enquanto um cara 13 centímetros mais baixo e 23 quilos mais leve que eu ganhava o prêmio.
Foi um golpe. Eu conseguira enfim chegar aos Estados Unidos, exatamente como sonhara. Mas perdi o título de Mister Universo em Miami. Para um cara mais leve e mais baixo. Fiquei pensando que a disputa tinha sido marmelada, porque ele simplesmente não era grande o suficiente para ganhar de mim. Me faltava definição, mas ele não passava de um baixinho magrelo.
Nessa noite, o desespero bateu forte. A animação quase nunca me abandona, mas foi o que aconteceu nesse dia. Estava em um país estrangeiro, longe da família e dos amigos, cercado por pessoas desconhecidas e sem falar o idioma. Como conseguira chegar até ali? Tinha dado um passo muito maior do que as pernas. Todos os meus pertences estavam dentro de uma pequena bolsa de ginástica – todo o resto ficara para trás. Provavelmente não tinha mais emprego. Nem dinheiro. E não sabia como iria voltar para casa.
Pior de tudo, eu havia perdido. O grande Joe Weider me fizera atravessar o Atlântico para me dar aquela oportunidade, mas, em vez de me mostrar à altura, eu passara vexame e não conseguira dar o melhor de mim. Estava dividindo o quarto com Roy Callander, um fisiculturista negro que vivia na Inglaterra e também havia participado da competição em Londres. Ele foi um doce de pessoa e conversou comigo sobre a derrota. Era bem mais maduro que eu e falou sobre coisas que eu não entendia muito bem. Estava falando sobre sentimentos.
“É difícil perder depois de uma grande vitória como a de Londres”, disse ele. “Mas lembre que no ano que vem você vai ganhar outra vez, e todo mundo vai esquecer essa derrota.”
Era a primeira vez que um homem se mostrava tão atencioso comigo. Eu sabia que mulheres eram atenciosas: minha mãe era e outras mulheres também. Mas ser tratado com empatia genuína por outro homem foi algo avassalador. Até então, eu achava que só meninas chorassem, mas nessa noite acabei deixando as lágrimas correrem em silêncio por muitas horas. Foi um baita alívio.
No dia seguinte, quando acordei, estava me sentindo bem melhor. A luz do sol entrava no quarto e o telefone ao lado da cama estava tocando.
“Arnold!”, disse uma voz rascante. “Aqui é Joe Weider. Estou na beira da piscina. Quer descer e pedir o café da manhã? Queria entrevistar você para a revista. Pretendemos fazer uma matéria de capa com você, contando exatamente como é o seu treinamento...”
Desci até a piscina e lá deparei com Joe à minha espera, usando um roupão de banho listrado, sentado em frente a uma mesa com uma máquina de escrever. Mal pude acreditar. Eu havia crescido lendo suas revistas, e ele sempre retratava a si mesmo como o Treinador dos Campeões, o homem que inventara todos os métodos de treinamento, que pusera o fisiculturismo no mapa e criara todos os grandes nomes do esporte. Eu idolatrava aquele homem e agora estava ali, sentado ao lado dele à beira de uma piscina em Miami. De repente, as lágrimas da véspera foram esquecidas e me senti importante outra vez.
Joe tinha 40 e poucos anos, um rosto bem barbeado, costeletas e cabelos escuros. Não era muito alto – tinha uma estatura mais para mediana –, mas era robusto. Graças às revistas, eu sabia que ele malhava diariamente. Tinha uma voz inconfundível: forte, penetrante, com vogais estranhas que, até mesmo aos meus ouvidos, soavam diferentes do sotaque de outras pessoas que falavam inglês. Mais tarde, descobri que ele era canadense.
Ele me perguntou tudo sobre meus treinos. Passamos horas conversando. Ainda que meu inglês tornasse a conversa um pouco lenta, senti que tinha mais histórias a contar do que os demais fisiculturistas. Contei a Joe sobre como treinava na floresta, ao estilo dos gladiadores. Ele gostou de ouvir. Quis saber cada detalhe das técnicas que eu havia desenvolvido: o método do “treino dividido”, com duas ou três sessões por dia, os truques que Franco e eu tínhamos inventado para estimular os músculos. Enquanto isso, eu não parava de me beliscar. Ficava pensando: “Queria que os meus amigos de Munique e Graz vissem isto: eu aqui, sentado com Joe Weider, e ele me perguntando como treino.”
Ao meio-dia, ele pareceu tomar uma decisão. “Não volte para a Europa”, disse ele por fim. “Você tem que ficar aqui.” Ele se ofereceu para me pagar uma passagem para a Califórnia, me arrumar um apartamento, um carro e pagar minhas despesas para que eu pudesse passar um ano inteiro só concentrado em treinar. No outono do ano seguinte, na época da mesma competição, eu poderia tentar outra vez. Enquanto isso, suas revistas publicariam reportagens sobre meus treinos e Weider arrumaria tradutores para eu poder escrever sobre minhas séries e expressar minhas ideias.
Joe tinha várias opiniões sobre o que eu precisava fazer para chegar ao topo. Ele me disse que eu estava me concentrando nas coisas erradas e que, mesmo para um homem alto, potência e tamanho por si sós não bastavam. Eu precisava treinar mais pesado para que meus músculos também ficassem mais definidos. Embora algumas partes do meu corpo fossem fantásticas, as costas, o abdômen e as pernas ainda podiam melhorar. E eu ainda precisava aprimorar as poses. Montar séries de treino, é claro, era a especialidade de Joe Weider, e ele mal podia esperar para começar a me treinar. “Você vai ser o melhor de todos”, afirmou. “Espere e verá.”
Nessa tarde, na academia, pensei mais um pouco sobre a derrota para Frank Zane. Agora que não estava mais com pena de mim mesmo, cheguei a conclusões mais duras que as da noite anterior. Continuava achando que os jurados tinham sido injustos, mas descobri que o verdadeiro motivo da minha tristeza não era esse: era o fato de eu ter fracassado – não meu corpo, mas minha visão e minha determinação. Perder para Chet Yorton em Londres em 1966 não me fizera sofrer, porque eu tinha feito tudo o que pudera para me preparar. Simplesmente não era o meu ano e pronto. No entanto, aquele caso fora diferente. Eu não estava tão bem preparado quanto poderia estar. Poderia ter feito regime na semana anterior, em vez de me empanturrar de peixe frito com batatas fritas. Mesmo sem ter acesso a equipamentos, poderia ter dado um jeito de treinar mais: por exemplo, fazendo mil repetições de abdominais, ou alguma outra coisa que tivesse contribuído para eu me sentir pronto. Poderia ter treinado minhas poses, porque nada me impedira de fazer isso. Os jurados não tinham importância – quem não fizera tudo o que podia para se preparar fora eu. Em vez disso, eu contara com a energia da vitória em Londres para me impulsionar. Dissera a mim mesmo que havia acabado de ganhar o Mister Universo e que podia relaxar. Fora um erro.
Pensar isso me deixou uma fera. “Mesmo tendo vencido a disputa profissional de Mister Universo em Londres, você ainda é um amador”, falei para mim mesmo. “O que ocorreu aqui em Miami nunca deveria ter acontecido. Só os amadores passam por isso. Você é um amador, Arnold.”
Decidi que ficar nos Estados Unidos tinha que significar que eu nunca mais seria um amador na vida. Naquele momento a brincadeira começaria para valer. Havia muito trabalho pela frente. E eu tinha que começar como um profissional. Não queria nunca mais sair de uma competição de fisiculturismo como saíra da de Miami. Se quisesse derrotar atletas como Sergio Oliva, aquilo nunca mais poderia acontecer. Dali em diante, se eu perdesse, poderia sair com um sorriso estampado no rosto, pois saberia que fizera todo o possível para me preparar.