CAPÍTULO 10


A viagem da baía para Osaka foi rotineira. Os portulanos de Rodrigues eram explícitos e muito precisos. Durante a primeira noite, Rodrigues recuperara a consciência. No começo achou que estivesse morto, mas a dor logo o fez pensar diferente.

- Eles endireitaram a sua perna e enfaixaram-na - disse Blackthorne. - E enfaixaram o ombro também. Estava deslocado. Não vão lhe fazer uma sangria, por mais que eu tenha tentado convencê-los.

- Quando chegar a Osaka os jesuítas podem fazer isso. - Os atormentados olhos de Rodrigues cravaram-se nele. - Como vim parar aqui, Inglês? Lembro-me de ser atirado ao mar, e nada mais.

Blackthorne contou-lhe.

- Então agora lhe devo a vida. Deus o amaldiçoe.

- Do tombadilho parecia que podíamos atingir a baía. Da proa, o seu ângulo de visão era alguns graus diferente. A onda foi má sorte.

- Isso não me preocupa, Inglês. Você estava no tombadilho e tinha o timão. Ambos sabíamos disso. Não, amaldiçôo você com o inferno porque agora lhe devo uma vida. Nossa Senhora, minha perna! - Lágrimas brotaram-lhe por causa da dor e Blackthorne deu-lhe uma caneca de grogue. Velou-o a noite toda. A tempestade arrefeceu. O médico japonês veio várias vezes: forçou Rodrigues a tomar um remédio quente, colocou-lhe toalhas quentes sobre a testa e abriu as vigias. Cada vez que o médico ia embora Blackthorne as fechava, pois todo mundo sabia que a doença era conduzida pelo ar, que quanto mais firmemente fechada estivesse a cabina, mais segura e saudável seria para um homem tão mal quanto Rodrigues.

Finalmente o médico gritou com ele e postou um samurai junto às vigias, que permaneceram abertas.

Ao amanhecer Blackthorne foi para o convés. Hiromatsu e Yabu estavam ambos lá. Fez-lhes uma mesura como um cortesão.

- Konnichi Wa. Osaka?

Retribuíram-lhe a saudação. –

- Osaka. Hai, Anjin-san - disse Hiromatsu.

- Hai! Isogi, Hiromatsu-sama. Capitão-san! Levantar ferros!

- Hai, Anjin-san.

Sorriu involuntariamente para Yabu. Yabu correspondeu ao sorriso, depois afastou-se coxeando. É um homem fantástico, pensou Blackthorne, embora seja um demônio e um assassino. Você também não é assassino? Sim, mas não desse jeito, disse a si mesmo.

Blackthorne pilotou o navio até Osaka com facilidade. A viagem durou aquele dia e aquela noite, e pouco antes do amanhecer do dia seguinte encontravam-se próximos das entradas de Osaka.

Um piloto japonês subiu a bordo para levar o navio ao ancoradouro e Blackthorne, aliviado da responsabilidade, desceu, satisfeito, para dormir. Mais tarde o capitão acordou-o com uma sacudidela, curvou-se e gesticulou que Blackthorne devia se preparar para ir com Hiromatsu assim que atracassem.

- Wakarimasu ka, Anjin-san?

- Hai.

O marujo foi embora. Blackthorne estirou os músculos das costas, doloridos, então viu Rodrigues a observá-lo.

- Como se sente?

- Bem, Inglês. Considerando que a minha perna está em chamas, minha cabeça estourando, quero mijar, e minha língua está com o gosto que deve ter um barril de bosta de porco!

Blackthorne deu-lhe o urinol, depois esvaziou-o pela vigia. Tornou a encher a caneca com grogue.

- Você é uma enfermeira abominável, Inglês. É por causa do seu coração preto. - Rodrigues riu e foi bom ouvi-lo rir novamente. Seus olhos se dirigiram para o portulano que estava aberto sobre a mesa, e para a sua arca. Viu que fora destrancada. - Eu lhe dei a chave?

- Não. Eu revistei você. Precisava do portulano verdadeiro. Disse-lhe isso quando acordou na primeira noite.

- É justo. Não me lembro, mas é justo. Ouça, Inglês, pergunte a qualquer jesuíta por Vasco Rodrigues em Osaka e eles o guiarão até mim. Venha me ver... e poderá tirar uma cópia do meu portulano, se quiser.

- Obrigado. Já tirei uma cópia. Pelo menos copiei o que pude, e li o resto com todo o cuidado.

- Puta que o pariu! - disse Rodrigues em espanhol.

- A sua.

Rodrigues voltou a falar português.

- Falar espanhol me dá ânsia de vômito, embora se possa praguejar melhor nessa língua do que em qualquer outra. Há um pacote na minha arca. Dê-me, por favor.

- O que tem os lacres jesuítas?

- Sim.

Ele lhe deu o pacote. Rodrigues examinou-o, apalpou os selos intactos, depois pareceu mudar de idéia, pôs o pacote sobre o áspero cobertor sob o qual estava deitado, e recostou a cabeça de novo.

- Ah, Inglês, a vida é tão estranha!

- Por quê?

- Se eu viver, será por causa da graça de Deus, ajudado por um herege e por um japonês. Mande o comedor de grama descer, de modo que eu possa agradecer-lhe, hem?

- Agora?

- Mais tarde.

- Está bem.

- Essa sua esquadra, essa que você diz que está atacando Manila, a de que você falou com o padre... qual é a verdade, Inglês?

- Uma esquadra de navios nossos vai destroçar o seu império na Ásia.

- Existe uma esquadra?

- Claro.

- Quantos navios estavam na sua esquadra?

- Cinco. O resto está ao largo, a uma semana mais ou menos. Vim na frente para sondar terreno e fui apanhado pela tempestade.

- Mais mentiras, Inglês. Mas não me importo... contei meus captores. Não há tantas mentiras quanto você aos algum nem esquadra.

- Espere e verá.

- Esperarei. - Rodrigues bebeu lentamente.

Blackthorne espreguiçou-se e foi até a vigia, querendo parar com aquela conversa, e olhou para a praia e a cidade lá fora.

- Pensei que Londres fosse a maior cidade do mundo, mas comparada a Osaka é uma cidadezinha.

- Eles têm dúzias de cidades como esta - disse Rodrigues, contente também por parar o jogo de gato e rato, que, sem tortura, nunca levaria a nada. - Miyako, a capital, ou Kyoto, como é chamada às vezes, é a maior cidade do império, mais de duas vezes o tamanho de Osaka, assim dizem. Depois vem Yedo, capital de Toranaga. Nunca estive lá, assim como nenhum padre e nenhum português. Toranaga mantém a cidade dele trancada, uma cidade proibida. No entanto - acrescentou Rodrigues, deitando-se no beliche e fechando os olhos, o rosto tenso de dor -, no entanto isso não é diferente do resto. O Japão todo está oficialmente proibido para nós, com exceção dos portos de Nagasaki e Hirado. Nossos padres não prestam muita atenção às ordens, no que agem acertadamente, e vão aonde lhes agrada ir. Mas nós, marujos, não podemos, nem os mercadores, a menos que seja com um passe especial dos regentes, ou de um grande daimio, como Toranaga. Qualquer daimio pode apreender um dos nossos navios - como Toranaga fez com o seu - fora de Nagasaki ou Hirado. É a lei deles.

- Quer descansar agora?

- Não, Inglês. Conversar é melhor. Ajuda a afastar a dor. Minha Nossa Senhora, que dor de cabeça! Não posso pensar claramente. Vamos conversar até você desembarcar. Venha aqui e me olhe - há muita coisa que quero lhe perguntar. Dê-me mais um pouco de grogue. Obrigado, obrigado, Inglês.

- Por que vocês são proibidos de ir aonde quiserem?

- O quê? Oh, aqui no Japão? Foi o taicum, foi ele que começou o problema todo. Desde que viemos pela primeira vez, em 1542, para dar início à obra de Deus e para trazer-lhes a civilização, nós e nossos padres podíamos nos mover livremente, mas, quando o taicum conseguiu o poder todo, começou com as proibições. Muitos acreditam... você poderia mudar minha perna de posição? Tire o cobertor de cima do meu pé, está queimando... sim... oh, minha Nossa Senhora, tenha cuidado.., aí, obrigado, Inglês. Sim, onde é que eu estava? Oh, sim... muitos acreditam que o taicum era o pênis de Satã. Há dez anos emitiu editos contra os santos padres, Inglês, e contra todos os que quisessem difundir a palavra de Deus. E baniu a todos, menos os mercadores, há uns dez, doze anos atrás. Foi antes de eu vir para estas águas. .. estou aqui há sete anos, para lá e para cá. Os santos padres dizem que foi por causa dos sacerdotes pagãos, os budistas, os fedorentos e invejosos adoradores de ídolos. Esses pagãos viraram o taicum contra os nossos santos padres, encheram-no de mentiras, quando já o haviam quase convertido. Sim, o grande assassino em pessoa quase teve a alma salva. Mas perdeu a oportunidade de salvação. Sim.. Em todo caso, ordenou que todos os nossos padres deixassem o Japão... Eu lhe disse que isso foi há uns dez anos e pouco?

Blackthorne assentiu com a cabeça, contente por deixá-lo divagar e contente por ouvir, desesperado por aprender.

- O taicum reuniu todos os padres em Nagasaki, pronto para embarcá-los para Macau com ordens escritas de nunca regressarem, sob pena de morte. Então, igualmente de repente, deixou-os todos em paz e não fez mais nada. Eu lhe disse que os japoneses são confusos. Sim, deixou-os em paz e logo estava tudo como antes, exceto que a maioria dos padres ficou em Kyushu, onde eram bem-vindos. Eu lhe contei que o Japão é feito de três grandes ilhas, Kyushu, Shikoku e Honshu? E milhares de ilhas pequenas. Há outra ilha bem ao norte - alguns dizem que já é continente -, chamada Hokkaido, mas só nativos peludos vivem lá.

"O Japão é um mundo de cabeça para baixo, Inglês. O Padre Alvito me contou que ficou tudo como se nada tivesse jamais acontecido. O taicum tão amigável quanto antes, embora nunca se tenha convertido. Mal e mal mandou fechar uma igreja e baniu só dois ou três dos daimios cristãos - mas isso foi só para se apoderar das terras deles - e nunca pôs em prática os editos de expulsão. Então, há três anos, ficou louco de novo e martirizou vinte e seis padres. Crucificou-os em Nagasaki. Por nenhuma razão. Era um maníaco, Inglês. Mas depois de assassinar os vinte e seis, não fez mais nada. Morreu logo depois. Foi a mão de Deus, Inglês. A maldição de Deus estava sobre ele e está sobre os seus descendentes. Tenho certeza disso."

- Vocês têm muitos convertidos aqui?

Mas Rodrigues não pareceu ouvir, perdido na sua própria semi-consciência.

- São animais, os japoneses. Contei-lhe sobre o Padre Alvito? É o intérprete, chamam-no de Tsukku-san, Sr. Intérprete. Era o intérprete do taicum, Inglês, agora é o intérprete oficial do conselho de regentes e fala japonês melhor do que muitos japoneses e sabe mais sobre eles do que qualquer homem vivo. Contou-me que há um monte de terra de cinqüenta pés de altura em Miyako, a capital, Inglês. O taicum tinha o nariz e as orelhas de todos os coreanos mortos na guerra reunidos e enterrados ali. A Coréia é parte do continente, e a oeste de Kyushu. É verdade! É verdade! Pela Virgem abençoada, nunca houve umassassino como ele, e são todos igualmente ruins. - Os olhos de Rodrigues estavam fechados e sua testa ardia.

- Vocês tem muitos convertidos? - perguntou Blackthorne de novo, com cuidado, querendo desesperadamente saber quantos inimigos havia ali. Para espanto seu, Rodrigues disse: - Centenas de milhares, e mais a cada ano. Desde a morte do taicum temos tido mais conversões do que nunca, e os que eram cristãos em segredo agora vão ã igreja abertamente. A maioria na ilha de Kyushu é católica agora. A maioria dos daimios de Kyushu são convertidos. Nagasaki é uma cidade católica, os jesuítas são os donos dela, dirigem-na e controlam o comércio. O comércio todo passa por Nagasaki. Temos uma catedral, uma dúzia de igrejas, e muitas mais espalhadas por Kyushu, mas ainda há poucas aqui na ilha principal, Honshu, e... - A dor o interrompeu novamente. Após um instante, continuou: - Há três ou quatro milhões de pessoas só em Kyushu. Serão todos católicos logo, logo. Há mais uns vinte e tantos milhões de japoneses nas ilhas e em breve...

- Isso não é possível! - Blackthorne imediatamente se amaldiçoou por interromper o fluxo de informações.

- Por que eu mentiria? Houve um recenseamento há dez anos. O Padre Alvito disse que foi ordenado pelo taicum e ele deve saber, pois estava lá. Por que mentiria? - Os olhos de Rodrigues estavam febris e ele estava perdendo o controle sobre a boca. - Isso é mais do que a população de Portugal todo, a Espanha toda, a França toda, a Neerlândia espanhola e a Inglaterra, tudo junto, e você quake poderia juntar aí o Santo Império Romano inteiro também!

Senhor Jesus, pensou Blackthorne, a Inglaterra toda não tem mais que trés milhões de habitantes. E isso inclui o País de Gales.Se há tantos japoneses assim, como vamos poder lidar com eles? Se há vinte milhões, isso significa que, se quisessem, poderiam facilmente reunir um exército com mais homens do que a nossa população inteira. E se são todos tão ferozes quanto os que eu vi - e por que não seriam? -, pelas chagas de Cristo, eles seriam imbatíveis. E se também são parcialmente católicos, e se os jesuítas estão aqui maciçamente, os efetivos deles aumentarão, e não há fanático que se compare a um convertido fanático. Então que chance temos nós e os holandeses na Ásia?

Absolutamente nenhuma.

- Se você acha que é muito - estava dizendo Rodrigues -, espere até ir à China. São todos amarelos lá, todos com cabelos e olhos pretos. Oh, Inglês, digo-lhe que você tem tanta novidade para aprender! Estive em Cantão no ano passado, nas vendas de seda. Cantão é uma cidade murada no sul da China, sobre o rio Pérola, ao norte da nossa Cidade do Nome de Deus, Macau. Há um milhão desses pagãos comedores de cachorros só dentro daqueles muros. A China tem mais gente do que todo o resto do mundo reunido. Deve ter. Pense nisso! - Um espasmo de dor percorreu-lhe o corpo e ele pressionou o estômago com a mão ilesa. - Tive alguma hemorragia? Em algum lugar?

- Não. Verifiquei isso. É só a sua perna e o ombro. Você não está ferido por dentro, Rodrigues, pelo menos não acho que esteja.

- Como está a perna? Muito mal?

- Foi lavada e limpa pelo mar. O corte estava limpo e a pele também, no momento.

- Você derramou conhaque em cima e acendeu fogo?

- Não. Eles não me deixariam. Ordenaram que eu me afastasse. Mas o médico parece saber o que está fazendo. A sua gente virá a bordo logo?

- Sim. Assim que atracarmos. Isso é mais que provável.

- Bom. você estava dizendo? Sobre a China e Cantão?

- Eu estava falando demais, talvez. Temos tempo bastante para falar nisso.

Blackthorne viu a mão ilesa do português brincar com o pacote lacrado e novamente perguntou a si mesmo que significado tinha aquilo.

- Sua perna vai ficar boa. Você vai saber disso no decorrer da semana.

- Sim, Inglês.

- Não acho que vá degenerar... não tem pus... você está pensando com clareza, de modo que o seu cérebro está em ordem.

Você ficará ótimo, Rodrigues.

- Ainda lhe devo a vida. - Um arrepio percorreu o português. - Quando estava me afogando, tudo em que podia pensar era nos caranguejos subindo e me entrando pelos olhos. Podia senti-los agitando-se dentro de mim, Inglês. Foi a terceira vez que fui atirado ao mar e de cada vez é pior.

- Fui posto a pique quatro vezes. Três por espanhóis.

A porta da cabina se abriu, o capitão inclinou-se e fez sinal para que Blackthorne subisse.

- Hai! - Blackthorne levantou-se. - você não me deve nada, Rodrigues - disse gentilmente. - Deu-me a vida e socorreu-me quando eu estava desesperado, e agradeço-lhe isso. Estamos quites.

- Talvez, mas ouça, Inglês, uma verdade para você, como pagamento parcial: nunca se esqueça de que os japoneses têm seis caras e três corações. É um ditado deles que um homem tem um falso coração na boca para que todo mundo veja, outro no peito para mostrar aos amigos muito especiais e à família, e o verdadeiro, o real, o secreto,' que nunca é conhecido por ninguém exceto por eles mesmos, escondido só Deus sabe onde. São traiçoeiros para além da crença.

- Por que Toranaga quer me ver?

- Não sei. Pela Virgem abençoada! Não sei. Volte para me ver, se puder.

- Sim. Boa sorte, espanhol!

- Espanhol é a mãe! Ainda assim, vá com Deus!

Blackthorne retribuiu o sorriso, sem reservas. Subiu para o convés e ficou atarantado com o impacto de Osaka, sua imensidade, o laborioso formigueiro humano, e o enorme castelo que dominava a cidade.

De dentro da vastidão do castelo vinha a beleza sublime do torreão - a torre central - com sete ou oito pavimentos de altura, coruchéus pontudos com telhados curvos em cada nível, as telhas todas douradas e os muros azuis. É ali que Toranaga deve estar, pensou, sentindo repentinamente uma farpa de gelo nas entranhas.

Um palanquim fechado levou-o a um casarão. Ali deram-lhe um banho, comeu, inevitavelmente a sopa de peixe, peixe cru e defumado, um pouco de verduras em conserva, e bebeu a água quente com ervas. Ao invés de sopa de trigo, esta casa ofereceu-lhe uma tigela de arroz. Ele só tinha visto arroz em Nápoles. Era branco e saudável, mas para ele insosso. Seu estômago gritava por carne e pão, pão fresco sequinho, pesado de manteiga, um bife de lombo, tortas, frangos, cerveja, ovos.

No dia seguinte uma criada veio buscá-lo. As roupas que Rodrigues lhe dera foram lavadas e passadas. Ela ficou olhando enquanto ele se vestia, e ajudou-o a calçar os sapatos-meias rabis. Do lado de fora havia um novo par de sandálias de tiras. Faltavam as botas. Ela balançou a cabeça e apontou pari as sandálias e depois para o palanquim com cortinas. Uma falange de samurais o rodeava. O chefe fez-lhe sinal que se apressasse e entrasse no palanquim.

Puseram-se em movimento imediatamente. As cortinas estavam hermeticamente fechadas. Após uma eternidade, o palanquim parou.

- Você não vai ficar com medo - disse ele em voz alta, e saiu.

O gigantesco portão de pedra do castelo estava à sua frente fixado a um muro de trinta pés, com ameias interligadas, bastiões o fortificações exteriores. A porta era imensa, com placas de ferro, e estava aberta, o rastrilho de ferro forjado levantado. Além havia uma ponte de madeira, com vinte passos de largura e duzentos de comprimento, que se estendia sobre o fosso e terminava numa enorme ponte levadiça, e outro portão, aberto no segundo muro, igualmente imenso.

Centenas de samurais estavam por toda parte. Todos usavam o mesmo uniforme cinza-escuro - quimonos presos com cinto, cada um com cinco pequenas insígnias circulares, uma em cada braço, uma de cada lado do peito e uma no meio das costas.

A insígnia era azul, aparentemente uma flor ou várias flores.

- Anjin-san!

Hiromatsu estava sentado rigidamente num palanquim aberto, levado por quatro carregadores de libré. Seu quimono era marrom-escuro, o cinto preto, o mesmo dos cinqüenta samurais que o rodeavam. Eles, igualmente, tinham cinco insígnias no quimono, mas escarlates, como a que tremulava no topo do mastro, o monograma de Toranaga. Esses samurais carregavam longas lanças, com minúsculas bandeiras na ponta.

Blackthorne curvou-se sem pensar, levado pela majestade de Hiromatsu. O velho curvou-se também, formalmente, a espada comprida solta, no colo, e fez-lhe sinal que o seguisse.

O oficial do portão avançou. Houve uma leitura cerimoniosa do papel que Hiromatsu lhe estendeu, muitas mesuras e olhares para Blackthorne. Em seguida passaram para a ponte, com uma escolta dos cinzentos engatando ao lado deles.

A superfície do fosso profundo estava cinqüenta pés abaixo. Estendia-se por cerca de trezentos passos até o outro lado, depois acompanhava os muros quando estes se voltavam para o norte. Senhor Deus, pensou Blackthorne, eu odiaria ter que tentar um ataque aqui. Os defensores poderiam deixar a guarnição do muro exterior perecer, queimar a ponte, e estariam a salvo lá dentro. Jesus, o muro externo deve ter aproximadamente uma milha quadrada e olhe, deve ter vinte, trinta pés de espessura - o de dentro também. E é construído com enormes blocos de pedra. Cada um deve ter dez pés por dez! No mínimo! Perfeitamente cortados e fixados no lugar sem argamassa. Devem pesar cinqüenta toneladas no mínimo. Melhor do que qualquer um que pudéssemos fazer. Armas de assédio? Certamente poderiam bombardear os muros externos, mas as armas defensoras revidariam o ataque com a mesma intensidade. Seria duro pegá-los aqui em cima, e não há nenhum ponto mais alto do qual arremessar granadas para dentro do castelo. Se o muro externo fosse tomado, os defensores ainda poderiam fazer os atacantes voar para longe das ameias. Mas mesmo que se pudessem colocar armas de assédio ali, voltá-las contra o muro seguinte e bombardeá-lo, não lhe causaria dano algum. Poderiam danificar o portão, mas para que serviria isso? Como se poderia cruzar o fosso? É vasto demais para os métodos normais. O castelo deve ser inexpugnável - com soldados suficientes. Quantos soldados há aqui? Quantos habitantes da cidade encontrariam abrigo lá dentro?

Faz a Torre de Londres parecer uma pocilga. E a Hampton Court toda caberia num canto!

No portão seguinte houve outra verificação cerimoniosa dos papéis. A estrada virou para a esquerda imediatamente, descendo uma vasta avenida alinhada de casas pesadamente fortificadas por trás de muros maiores e menores, facilmente defendíveis, depois se multiplicava num labirinto de degraus e caminhos. Depois havia outro portão e mais verificação, outro rastrilho e outro vasto fosso e novas voltas e volteios até que Blackthorne, que era um observador acurado, com uma extraordinária memória e senso de direção, se perdesse em hesitação numa confusão premeditada pelos planejadores do castelo. E o tempo todo inúmeros cinzentos os olhavam de taludes, trincheiras, ameias, parapeitos e bastiões. E havia mais deles em pé, guardando, marcando, treinando ou cuidando de cavalos em estábulos abertos. Soldados por toda parte, aos milhares. Todos bem armados e meticulosamente vestidos.

Blackthorne amaldiçoou a si mesmo por não ter sido esperto o bastante para arrancar mais coisas de Rodrigues. A parte a informação sobre o taicum e os convertidos, fornecidas já com muita vacilação, Rodrigues fora tão fechado quanto um homem deve ser - como você foi, evitando as perguntas dele.

Concentre-se. Procure indícios. O que há de especial neste castelo? É o maior. Não, alguma coisa diferente. O quê?

Os cinzentos são hostis aos marrons? Não posso dizer, são todos tão sérios.

Blackthorne observou-os cuidadosamente e se concentrou nos detalhes. A esquerda havia um jardim multicolorido, cuidadosamente tratado, com pequenas pontes e um minúsculo riacho. Os muros agora estavam mais próximos uns dos outros, as ruas mais estreitas. Estavam se aproximando do torreão. Não havia gente da cidade lá dentro, mas centenas de criados e... Nao há canhões! É isso que é diferente! Você não viu nem um canhão. Nem um.

Senhor Deus do paraíso, nenhum canhão... por isso não há armas de assédio! Se você tivesse armas modernas e os defensores não, conseguiria explodir os muros, as portas, lançar granadas no castelo, incendiá-lo e tomá-lo?

Não conseguiria atravessar o primeiro fosso.

Com armas de assédio você talvez tornasse as coisas difíceis para os defensores, mas eles poderiam resistir para sempre - se a guarnição fosse resoluta, se houvesse quantidade suficiente deles, com comida suficiente, água e munição.

Como atravessar os fossos? De barco? Balsas com torres?

Sua mente tentava delinear um plano quando o palanquim parou. Hiromatsu desceu. Estavam num estreito beco sem saída. Um imenso portão de madeira reforçada com ferro estava encravado no muro de vinte pés, que se fundia com as fortificações externas do local fortificado acima, ainda distante do torreão, que dali ficava oculto em grande parte. Ao contrário de todos os outros portões, este era guardado pelos marrons, os únicos que Blackthorne viu dentro do castelo. Era claro que ficaram mais que contentes de ver Hiromatsu.

Os cinzentos deram meia-volta e partiram. Blackthorne notou os olhares hostis que receberam dos marrons.

Então eles são inimigos!

O portão girou nos gonzos e ele seguiu o velho para dentro. Sozinho. Os outros samurais ficaram do lado de fora.

O pátio interno era guardado por mais marrons, assim como o jardim que ficava além. Cruzaram o jardim e entraram na fortaleza. Hiromatsu descalçou as sandálias e Blackthorne o imitou.

O corredor interno era ricamente atapetado com tatamis, as mesmas esteiras de junco, limpas e macias aos pés, que havia no chão de quase todas as casas, mesmo as mais pobres. Blackthorne já havia notado que eram todas do mesmo tamanho, cerca de seis pés por três.

E de se pensar, disse a si mesmo; nunca vi esteiras moldadas ou cortadas em grandes dimensões. E nunca encontrei um aposento de formato indefinido! Todos os cômodos até agora não eram exatamente quadrados ou retangulares? Claro! Isso quer dizer que todas as casas - ou cômodos - devem ser construídos para conter um número exato de esteiras. Por isso são todas de tamanho padrão! Que coisa estranha!

Subiram escadas em caracol, facilmente defendíveis, seguiram por outros corredores e mais escadas. Havia muitos guardas, sempre marrons. Raios de sol vindos das seteiras na parede traçavam desenhos intricados. Blackthorne podia ver que agora estavam bem acima dos três principais muros circundantes. A cidade e a enseada eram uma colcha desenhada lá embaixo.

O corredor dobrou uma esquina brusca e terminou cinqüenta passos à frente.

Blackthorne sentiu gosto de bile na boca. Não se preocupe, disse a si mesmo, vote já resolveu o que vai fazer. Está comprometido.

Uma multidão de samurais, com seu jovem oficial a frente, protegia a última porta — cada um deles com a mão direita sobre o punho da espada, a esquerda na bainha, todos imóveis e prontos, fitando os dois homens que se aproximavam.

Hiromatsu sentiu-se tranqüilizado pela prontidão deles. Selecionara pessoalmente aqueles guardas. Odiava o castelo e pensou novamente em como fora perigoso para Toranaga colocar-se em poder do inimigo. Assim que desembarcara, na véspera, acorrera ao encontro de Toranaga, para lhe contar o que acontecera e descobrir se ocorrera alguma coisa desfavorável na sua ausência, Mas continuava tudo tranqüilo, embora seus espiões sussurrassem sobre perigosas formações do inimigo a norte e a leste, e que seus principais aliados, os regentes Onoshi e Kiyama, os daimios cristãos mais importantes, iam se passar para Ishido. Hiromatsu trocara a guarda e as senhas, e novamente implorara a Toranaga que partisse, o que fora em vão.

A dez passos do oficial ele se deteve.


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