CAPÍTULO 32
Doze dias depois, à tarde, chegou o mensageiro de Osaka. Uma escolta de dez samurais vinha com ele. Os cavalos estavam cobertos de suor e quase mortos. As bandeiras à ponta das lanças exibiam o símbolo do todo-poderoso conselho de regentes. O dia estava quente, nublado e úmido.
O mensageiro era um samurai magro, rijo, de grau superior, um dos lugar-tenentes de Ishido. Chamava-se Nebara Jozen e era conhecido pela sua inclemência. Seu quimono cinzento estava rasgado e salpicado de lama, os olhos vermelhos de fadiga. Recusou comida e bebida e impolidamente solicitou uma audiência imediata com Yabu.
- Perdoe a minha aparência, Yabu-san, mas o meu assunto é urgente - disse. - Sim, peço-lhe perdão. Meu amo pergunta: por que o senhor treina os soldados de Toranaga junto com os seus, e por que eles se exercitam com tantas armas?
Yabu corou ante a grosseria do outro, mas conservou a calma, sabendo que Jozen devia ter recebido instruções específicas e aquela falta de educação prenunciava uma perigosa posição de poder. Além disso, sentia-se enormemente inquieto de que tivesse havido outra brecha na sua segurança.
- É muito bem-vindo, Jozen-san. Pode garantir ao seu amo que tenho sempre os interesses dele no coração - disse ele com uma cortesia que não enganou a nenhum dos presentes.
Encontravam-se na varanda da fortaleza. Omi estava sentado logo atrás de Yabu. Igurashi, que fora perdoado poucos dias antes, estava mais perto de Jozen e, em torno deles, guardas mais íntimos.
- O que mais seu amo manda dizer?
- Meu amo ficará contente de saber que os interesses dele são os seus - respondeu Jozen. - Agora, quanto às armas e ao treinamento: meu amo gostaria de saber por que o filho de Toranaga, Naga, é segundo em comando. Segundo em comando de quê? O que é tão importante para que o filho de Toranaga se encontre aqui? pergunta o General Ishido polidamente. Isso é do interesse dele. Sim. Tudo o que os seus aliados fazem lhe interessa. Por que, por exemplo, o bárbaro parece estar encarregado de treinamento? Treinamento do quê? Sim, Yabu-sama, isso também é muito interessante. - Jozen mudou as espadas para uma posição mais confortável, contente por ter as costas protegidas pelos seus próprios homens. - Depois: o conselho de regentes reúne-se novamente no primeiro dia da lua nova. Dentro de vinte dias. O senhor é formalmente convidado a comparecer a Osaka, a fim de renovar seu juramento de fidelidade.
O estômago de Yabu contorceu-se.
- Tomei conhecimento de que o Senhor Toranaga renunciou.
- Sim, Yabu-san, realmente renunciou. Mas o Senhor Ito Teruzumi vai tomar-lhe o lugar. Meu amo será o novo presidente dos regentes.
Yabu foi dominado pelo pânico. Toranaga dissera que os quatro regentes nunca conseguiriam se pôr de acordo quanto a um quinto. Ito Teruzumi era um daimio menor da província de Negato, na Honshu ocidental, mas sua família era antiga, descendia da linhagem Fujimoto, portanto ele seria aceitável como regente, embora fosse um homem ineficaz, afeminado e um fantoche.
- Eu ficaria honrado em receber o convite deles - disse Yabu defensivamente, tentando ganhar tempo para pensar.
- Meu amo pensou que o senhor talvez quisesse partir imediatamente. Então estaria em Osaka para a reunião formal. Ordenou-me que lhe dissesse que todos os daimios estão recebendo o mesmo convite. Agora. Assim todos terão oportunidade de estar lá a tempo, no vigésimo primeiro dia. Sua Alteza Imperial, o Imperador Go-Nijo, autorizou uma cerimônia da contemplação da flor, a fim de honrar a ocasião. - Jozen estendeu um pergaminho oficial.
- Isto não tem o selo do conselho de regentes.
- Meu amo emitiu o convite agora, sabendo que, na qualidade de leal vassalo do falecido taicum, na qualidade de fiel vassalo de Yaemon, seu filho e herdeiro e governante legítimo do império quando atingir a idade, o senhor compreenderá que o novo conselho naturalmente aprovará o ato dele. Neh?
- Certamente seria um privilégio testemunhar o encontro formal. - Yabu lutava para controlar o próprio rosto.
- Ótimo - disse Jozen. Puxou outro pergaminho, abriu-o o estendeu-o a Yabu. - Isto é uma cópia da carta de nomeação do Senhor Ito, aceita, assinada e autorizada pelos outros regentes, os senhores Ishido, Kiyama, Onoshi e Sugiyama. - Jozen não se deu ao trabalho de dissimular um olhar de triunfo, sabendo que aquilo fechava totalmente a armadilha sobre Toranaga e qualquer um dos seus aliados, e que além disso o pergaminho tornava a ele o aos seus homens invulneráveis.
Yabu pegou o pergaminho. Seus dedos tremiam. Não havia dúvida quanto à sua autenticidade. Fora rubricado pela Senhora Yodoko, a esposa do taicum, que afirmava que o documento era verdadeiro, assinado em sua presença, uma das seis cópias que estavam sendo enviadas por todo o império, e que aquela cópia em particular se destinava aos senhores de Iwari, Mikawa, Totomi, Suruga, Izu e do Kwanto. Estava datado de onze dias antes.
- Os senhores de Iwari, Mikawa, Suruga e Totomi já aceitaram. Aqui estão os selos deles. O senhor é o penúltimo na minha lista. O último é o Senhor Toranaga.
- Por favor, agradeça ao seu amo e diga-lhe que espero com ansiedade pelo momento de saudá-lo e congratular-me com ele - disse Yabu.
- Ótimo. Solicitaria que o senhor respondesse por escrito. Seria satisfatório que fosse agora.
- Esta noite, Jozen-san. Depois da refeição noturna.
- Muito bem. E agora podemos ir ver o treinamento.
- Não há treinamento hoje. Todos os meus homens estão realizando marchas forçadas - disse Yabu.
No momento em que Jozen e seus homens entraram em Izu, Yabu recebera um aviso urgente e imediatamente ordenara aos seus homens que cessassem o tiroteio e continuassem apenas o treinamento com armas silenciosas, bem longe de Anjiro.
- Amanhã o senhor poderá vir comigo... ao meio-dia, se desejar.
Jozen olhou para o céu. A tarde estava findando agora.
- Ótimo. Eu poderia dormir um pouco. Mas voltarei ao crepúsculo, com a sua permissão. Então o senhor, o seu comandante, Omi-san, e o segundo em comando, Naga-san, me falarão, no interesse do meu amo, sobre o treinamento, as armas e tudo. E sobre o bárbaro.
- Ele está... sim. Naturalmente. - Yabu fez um gesto a Igurashi. - Providencie alojamento para o nosso honrado hóspede e seus homens.
- Obrigado, mas isso não é necessário - disse Jozen imediatamente. - O chão é futon suficiente para um samurai, e a minha sela basta como travesseiro. Apenas um banho, por favor... esta umidade, neh? Acamparei no cume da montanha... naturalmente, com a sua permissão.
- Como quiser.
Jozen curvou-se rigidamente e se afastou, rodeado pelos seus homens. Estavam todos pesadamente armados. Dois arqueiros tinham sido deixados segurando os cavalos.
Assim que todos se afastaram, o rosto de Yabu contorceu-se de cólera.
- Quem me traiu? Quem? Onde está o espião?
Igualmente pálido, Igurashi fez sinal aos guardas para que se afastassem até onde não pudessem ouvir.
- Yedo, senhor disse ele. - Tem que ser. A segurança é perfeita aqui.
- Oh, ko! - disse Yabu, quase rasgando a roupa. - Fui traído. Estamos isolados. Izu e o Kwanto estão isolados. Ishido venceu. Ele venceu.
Omi disse calmamente:
- Não antes de vinte dias, senhor. Mande imediatamente uma mensagem ao Senhor Toranaga. Informe-o de que...
- Imbecil! - sibilou Yabu. - É claro que Toranaga já sabe! Onde eu tenho um espião ele tem cinqüenta. Ele me deixou sozinho na armadilha.
- Não penso assim, senhor - disse Omi, sem medo. - Iwari, Totomi e Sugura são hostis a ele, neh? E a qualquer um que seja aliado dele. Eles nunca o preveniriam, portanto ele talvez ainda não saiba. Informe-o e sugira...
- Você não ouviu? - gritou Yabu. - Os quatro regentes concordaram com a designação de Ito, portanto o conselho é legal novamente e vai se reunir dentro de vinte dias!
- A resposta a isso é simples, senhor. Sugira a Toranaga que mande assassinar imediatamente Ito Teruzumi ou um dos outros regentes.
A boca de Yabu se escancarou.
- O quê?
- Se o senhor não quiser fazer isso, envie-me, deixe-me tentar. Ou Igurashi-san. Com o Senhor Ito morto, Ishido está indefeso de novo.
- Não sei se você ficou louco ou o quê - disse Yabu. - Você entende o que acabou de dizer?
- Senhor, rogo-lhe, por favor, seja paciente comigo. O Anjin-san deu-lhe seu inestimável conhecimento, neh? Mais do que jamais sonhamos possível. Agora Toranaga também sabe disso, através dos seus relatórios, e provavelmente por intermédio dos relatórios particulares de Naga-san. Se pudermos conseguir tempo suficiente, nossos quinhentos atiradores e os outros trezentos lhe darão um poder de combate absoluto, mas apenas uma vez. Quando o inimigo, seja quem for, vir o modo como o senhor usa os homens e a potência de tiro, aprenderá rapidamente. Mas terá perdido a primeira batalha. Uma batalha - se for a batalha certa - dará a Toranaga a vitória total.
- Ishido não precisa de batalha alguma. Dentro de vinte dias terá o mandato do imperador.
- Ishido é um camponês. É filho de um camponês, um mentiroso, e abandona os companheiros em batalha.
Yabu encarou Omi, o rosto rubro.
- Você... você sabe o que está dizendo?
- Foi o que ele fez na Coréia. Eu estava lá. Eu vi, meu pai viu. Ishido realmente abandonou Buntaro-san e a nós, e deixou que nos virássemos sozinhos. Ele é apenas um camponês traiçoeiro, o cão do taicum, certamente. Não se pode confiar em camponeses. Mas Toranaga é Minowara. O senhor pode confiar nele. Aconselho-o a considerar apenas os interesses de Toranaga.
Yabu sacudiu a cabeça, incrédulo.
- Você é surdo? Não ouviu Nebara Jozen? Ishido venceu. O conselho estará em vigor dentro de vinte dias.
- Pode estar em vigor.
- Mesmo se Ito... Como é que você poderia? Não é possível.
- Certamente eu poderia tentar, mas eu nunca conseguiria fazê-lo a tempo. Nenhum de nós, não em vinte dias. Mas Toranaga poderia. - Omi sabia que se colocara entre as mandíbulas do dragão. - Imploro-lhe que considere a idéia.
Yabu enxugou o rosto e as mãos.
- Depois desta convocação, se o conselho se reunir e eu não me encontrar presente, eu e todo o meu clã estaremos mortos, você inclusive. Preciso de dois meses, no mínimo, para treinar o regimento. Mesmo que o tivéssemos treinado agora, Toranaga e eu nunca conseguiríamos vencer contra todos os outros. Não, você está errado, tenho que apoiar Ishido.
- O senhor não precisa partir para Osaka antes de dez dias... catorze, se for em marcha forçada - disse Omi. - Fale a Toranaga sobre Nebara Jozen imediatamente. O senhor salvará Izu e a casa de Kasigi. Imploro-lhe, Ishido vai traí-lo e devorálo. Ikawa Jikkyu é parente dele, neh?
- Mas e Jozen? - exclamou Igurashi. - Hein? E os atiradores? A estratégia maravilhosa? Ele quer saber sobre tudo esta noite.
- Conte-lhe. Em detalhes. Ele não é mais que um lacaio - disse Omi, começando a manobrá-los. Sabia que estava arriscando tudo, mas tinha que tentar proteger Yabu de se alinhar com Ishido, e assim arruinar a chance que tinham. - Abra os seus planos a ele.
Igurashi discordou exaltadamente.
- Assim que Jozen souber o que estamos fazendo, mandará uma mensagem ao Senhor Ishido. É importante demais para que ele não faça isso. Ishido roubará os planos, depois estaremos liquidados.
- Nós seguimos o mensageiro e o matamos à nossa conveniência.
Yabu se inflamou.
- Aquele pergaminho foi assinado pela mais alta autoridade do país! Todos eles viajam sob a proteção dos regentes! Você deve estar louco para sugerir uma coisa assim! Isso me tornaria um marginal!
Omi balançou a cabeça, mantendo um ar confiante.
- Acredito que Yodoko-sama e os outros foram ludibriados, assim como Sua Alteza Imperial, pelo traidor Ishido. Devemos proteger os atiradores, senhor. Devemos deter qualquer mensageiro...
- Silêncio! Seu conselho é loucura!
Omi curvou-se ante a chicotada verbal. Mas levantou os olhos e disse calmamente:
- Então, por favor, permita-me cometer seppuku, senhor. Mas primeiro, por favor, deixe-me concluir. Eu falharia no meu dever se não tentasse protegê-lo. Imploro esse último favor como vassalo fiel.
- Conclua!
- Não há conselho de regentes agora, portanto não há proteção legal para esse Jozen e seus homens insultantes e de modos abomináveis, a menos que o senhor honre um documento ilegal devido a... - Omi ia dizer "fraqueza", mas mudou a palavra e manteve a voz tranqüilamente autoritária - devido a ser ludibriado como os outros, senhor. Não há conselho. Eles não podem lhe "ordenar" a fazer coisa alguma, nem a ninguém. Uma vez que estejam reunidos, sim, podem, e então o senhor terá que obedecer. Mas agora, quantos daimios obedecerão antes que ordens legais possam ser emitidas? Apenas os aliados de Ishido, neh? Iwari, Mikawa, Totomi e Suruga não são governadas por parentes dele, todos abertamente aliados a ele? Aquele documento significa a guerra, sim, mas rogo-lhe que a empreenda nos seus termos, não nos de Ishido. Trate essa ameaça com o desprezo que merece! Toranaga nunca foi vencido em combate. Ishido sim. Toranaga evitou tomar parte no catastrófico ataque do taicum à Coréia. Ishido não. Toranaga é a favor dos navios e do comércio. Ishido não é. Toranaga desejará a marinha do bárbaro - o senhor não advogou essa idéia junto a ele? Ishido não. Ishido fechará o império. Toranaga o manterá aberto. Ishido dará a Ikawa Jikkyu o seu feudo hereditário de Izu, se vencer. Toranaga lhe dará toda a província de Jikkyu. O senhor é o principal aliado de Toranaga. Ele não lhe deu a sua espada? Não lhe deu o controle dos atiradores? Os atiradores não garantem uma vitória, usados de surpresa? O que o camponês Ishido dá em troca? Manda um samurai ronin sem educação, com ordens deliberadas de envergonhá-lo em sua própria província! Digo que Toranaga Minowara é a nossa única chance. O senhor deve ir com ele. - Curvou-se e esperou em silêncio.
Yabu deu uma olhada em Igurashi.
- Bem?
- Concordo com Omi-san, senhor. - O rosto de Igurashi refletia a sua preocupação. - Quanto a matar o mensageiro, isso seria perigoso, não haveria caminho de volta, senhor. Jozen certamente enviará um ou dois amanhã. Talvez eles pudessem desaparecer, mortos por bandidos... - Ele se deteve no meio da frase. - Pombos-correio! Havia dois cestos nos cavalos de carga de Jozen!
- Teremos que envenená-los esta noite - disse Omi.
- Como? Eles serão vigiados.
- Não sei. Mas têm que ser eliminados antes do amanhecer.
- Igurashi - disse Yabu -, mande homens para vigiar Jozen imediatamente. Veja se ele envia um dos pombos agora, hoje.
- Sugiro que o senhor mande todos os seus falcões e falcoeiros para o leste, também imediatamente - acrescentou rapidamente Omi.
- Ele suspeitará de traição se vir seus pássaros abatidos ou se perceber que mexeram neles - disse Igurashi.
Omi deu de ombros.
- Os pássaros têm que ser detidos.
Igurashi olhou para Yabu. Yabu assentiu, resignado.
- Faça isso.
Quando Igurashi voltou, disse:
- Omi-san, ocorreu-me uma coisa. Muito do que disse estava certo, sobre Jikkyu e o Senhor Ishido. Mas se aconselha fazer os mensageiros "desaparecerem", por que brincar com Jozen? Por que dizer alguma coisa a ele? Por que não matá-lo imediatamente?
- Por que não, realmente? A menos que isso pudesse divertir a Yabu-sama. Concordo que seu plano é melhor, Igurashi-san - disse Omi.
Os dois olharam para Yabu.
- Como posso conservar os atiradores em segredo? - perguntou-lhes este.
- Mate Jozen e os seus homens - retrucou Omi.
- Não há outro meio?
Omi balançou a cabeça. Igurashi balançou a cabeça.
- Talvez eu pudesse negociar com Ishido - disse Yabu, abalado, tentando pensar num modo de sair da armadilha. - Você tem razão sobre o tempo. Tenho dez dias, catorze no máximo. Como lidar com Jozen e ainda deixar tempo para manobrar?
- Seria prudente fingir que o senhor vai a Osaka - disse Omi. - Mas não há mal em informar Toranaga imediatamente, neh? Um dos nossos pombos poderia chegar a Yedo antes do pôr-do-sol. Talvez. Não há mal algum nisso.
- O senhor poderia falar ao Senhor Toranaga sobre a chegada de Jozen - disse Igurashi -, e sobre a reunião do conselho dentro de vinte dias, sim. Mas quanto ao assassinato do Senhor Ito, isso é perigoso demais para pôr por escrito, mesmo se... Perigoso demais, neh?
- Concordo. Nada sobre Ito. Toranaga deve pensar nisso por si mesmo. E óbvio, neh?
- Sim, senhor. Impensável, mas óbvio.
Omi esperou em silêncio, a mente procurando uma solução freneticamente. Yabu estava de olhos nele, mas Omi não sentiu medo. Seu conselho fora razoável e oferecido apenas para a proteçãd do clã, da família e de Yabu, o atual líder do clã. O fato de Omi haver decidido eliminar Yabu e mudar a liderança não o impediu de aconselhá-lo sagazmente. E estava preparado para morrer agora. Se Yabu fosse tão estúpido a ponto de não aceitar a verdade evidente das suas idéias, então logo não haveria clã algum para liderar. Karma.
Yabu inclinou-se para a frente, ainda irresoluto.
- Existe algum modo de eliminar Jozen e seus homens sem perigo para mim, e permanecer descomprometido por dez dias?
- Naga. Tente de algum modo aprontar uma armadilha com Naga - disse simplesmente.
Ao crepúsculo, Blackthorne e Mariko atingiram o portão da casa dele, seguidos de batedores. Estavam ambos cansados. Ela cavalgava como um homem, usando calças folgadas e, sobre elas, um manto afivelado. Usava também um chapéu de aba larga e luvas para se proteger do sol. Até as camponesas tentavam proteger o rosto e as mãos dos raios de sol. Desde tempos imemoriais, quanto mais escura fosse a pele, mais comum era a pessoa; quanto mais branca, mais apreciada.
Criados pegaram as rédeas e levaram embora os cavalos. Blackthorne dispensou os batedores num japonês tolerável e saudou Fujiko, que esperava sempre.
- Posso servir-lhes o chá, Anjin-san? - disse ela cerimoniosamente, como sempre.
- Não - disse ele, como sempre. - Primeiro vou tomar banho. Depois saquê e um pouco de comida.
E, como sempre, retribuiu-lhe a reverência e seguiu pelo corredor até os fundos da casa, saiu para o jardim e tomou o caminho circundante que levava à casa de banho, de taipa. Uma criada tirou-lhe a roupa, ele entrou e se sentou, nu. Outra criada o esfregou, ensaboou-o e verteu-lhe água em cima para lavar a espuma e a sujeira. Depois, completamente limpo, gradualmente - porque a água estava muito quente - entrou na imensa banheira de ferro e deitou-se.
- Jesus Cristo, isto é formidável - exultou ele, e deixou orgulhosamente na varanda, como que o calor se infiltrasse nos músculos, os olhos fechados, o suor escorrendo pela testa.
Ouviu a porta se abrir, a voz de Suwo e "Boa noite, amo" seguido de muitas palavras em japonês que não compreendeu. Mas naquela noite estava cansado demais para tentar conversar com Suwo. E o banho, conforme Mariko explicara muitas vezes, "não é meramente para limpar a pele. O banho é um presente que Deus ou os deuses nos deram, um prazer conferido por Deus, para ser apreciado e tratado como tal".
- Sem conversa, Suwo - disse ele. - Esta noite quero penso.
- Sim, amo. Perdão, mas o senhor devia dizer: "Esta noite quero pensar".
- Esta noite quero pensar - repetiu Blackthorne, tentando pôr os sons quase incompreensíveis na cabeça, contente por ser corrigido, mas exausto disso.
- Onde está o dicionário-gramática? - fora a primeira coisa que perguntara a Mariko naquela manhã. - Yabu-sama mandou outra solicitação?
- Sim. Por favor, seja paciente, Anjin-san. Chegará logo.
- Foi prometido com a galera e as tropas. Não chegou. As tropas e as armas sim, mas os livros não. Tenho sorte de a senhora estar aqui. Seria impossível sem a senhora.
- Difícil, mas não impossível, Anjin-san.
- Como digo: "Não, vocês estão fazendo errado! Devem correr todos como um grupo, parar como um grupo, apontar e atirar como um grupo"?
- Com quem está falando, Anjin-san? - perguntara ela.
E então, novamente, ele sentira a frustração se avolumar.
- É tudo muito difícil, Mariko-san.
- Oh, não. O japonês é muito fácil de falar, comparado com outras línguas. Não há artigos, não há "o", "a", "um", "uma". Não há conjugações de verbos nem infinitivos. Todos os verbos são regulares, terminando em "masu", e pode-se dizer quase tudo usando apenas o presente, se se quiser. Se é uma pergunta, acrescenta-se "ka" depois do verbo. Se é uma negativa, troca-se "masu" por "masen". O que poderia ser mais fácil? "Yukimasu" quer dizer "eu vou", mas quer dizer igualmente "você vai", "ele", "ela", "nós", "eles", ou "irá", ou até "poderia ter ido". Até o plural e o singular são iguais. "Tsuma" significa "esposa" ou "esposas". Muito simples.
- Bem, como se faz a diferença entre "eu vou", "yukimasu", e "eles foram", "yukimasu"?
- Pela inflexão, Anjin-san, e o tom. Ouça: "yukimasu"... "yukimasu".
- Mas o som é exatamente o mesmo!
- Ah, Anjin-san, isso é porque o senhor está pensando na sua língua. Para compreender japonês o senhor tem que pensar em japonês. Não se esqueça de que a nossa língua é a língua do infinito. É tudo muito simples, Anjin-san. Apenas mude o seu conceito do mundo. Aprender japonês é apenas aprender uma nova arte, separada do mundo ... É tudo muito simples.
- É tudo uma bosta, isso sim - resmungou ele em inglês, e sentiu-se melhor.
- O quê? Que foi que disse?
- Nada. Mas o que a senhora diz não faz sentido.
- Aprenda os caracteres escritos - dissera Mariko.
- Não posso. Vai levar tempo demais. Eles não têm sentido algum.
- Olhe, na realidade são simples quadros, Anjin-san. Os chineses são muito inteligentes. Emprestamos a escrita deles há mil anos atrás. Olhe, pegue este caráter, ou símbolo, que representa um porco.
- Não se parece com um porco.
- Mas já pareceu, Anjin-san. Deixe-me mostrar-lhe. Olhe. Junte o símbolo de telhado sobre o símbolo do porco e o que é que tem?
- Um porco e um telhado.
- Mas o que isso significa? O novo caráter?
- Não sei.
- Casa. Antigamente os chineses achavam que um porco sob um telhado era o lar. Eles não são budistas, são comedores de carne, portanto um porco, para eles, para camponeses, representa a riqueza, portanto uma boa casa. Daí o caráter.
- Mas como se diz?
- Depende de ser chinês ou japonês.
- Oh, ko!
- Oh, ko de fato - rira ela. - Eis outro caráter. Um símbolo de telhado com dois porcos embaixo significa contentamento. Um telhado com duas mulheres embaixo é igual a discórdia. Neh?
- Absolutamente!
- Claro, os chineses são muito estúpidos em muitas coisas e as mulheres deles não são educadas como as daqui. Não há discórdia na sua casa, há?
Blackthorne pensou nisso agora, no décimo segundo dia do seu renascimento. Não. Não havia discórdia. Mas tampouco era um lar. Fujiko era apenas como uma governanta digna de confiança e naquela noite, quando ele fosse para a cama, para dormir, os futons estariam desdobrados e ela estaria ajoelhada ao lado, pacientemente, inexpressivamente. Estaria vestida com o quimono de dormir, semelhante ao quimono do dia, mais macio e com apenas um sash frouxo em vez do obi rígido à cintura.
- Obrigado, senhora - ele diria. - Boa noite.
Ela se curvaria e iria silenciosamente para o quarto do outro lado do corredor, ao lado do quarto onde Mariko dormia. Depois ele se poria embaixo do mosquiteiro de seda de excelente qualidade. Ele nunca vira mosquiteiros assim antes. Depois se deitaria prazerosamente e no meio da noite, ouvindo os poucos insetos zumbindo lá fora, se ateria ao Navio Negro, à importância do Navio Negro para o Japão.
Sem os portugueses, nada de comércio com a China. E nada de sedas para roupas ou mosquiteiros. Mesmo agora, com a umidade do clima apenas começando, ele já podia perceber o valor da seda.
Se ele se mexesse durante a noite, uma criada abriria a porta quase imediatamente, para lhe perguntar se desejava alguma coisa. Uma vez ele não compreendera. Fez sinal à criada que se fosse e dirigiu-se ao jardim, sentando-se nos degraus e olhando a lua. Dentro de poucos minutos Fujiko, desalinhada e sonolenta, veio e se sentou em silêncio atrás dele.
- Posso servir-lhe alguma coisa, senhor?
- Não, obrigado. Por favor, vá para a cama.
Ela dissera alguma coisa que ele não entendera. Novamente ele lhe fez sinal que fosse embora, então ela falara asperamente com a criada, que esperava como uma sombra. Logo apareceu Mariko.
- Está bem, Anjin-san?
- Sim. Não sei por que vocês ficaram perturbadas, Jesus Cristo... só estou olhando a lua. Não conseguia dormir. Só queria tomar um pouco de ar.
Fujiko falou com ela hesitante, constrangida, magoada com a irritação na voz dele.
- Ela diz que o senhor a mandou ir dormir de novo. Ela só queria que o senhor soubesse que não é nosso costume que uma esposa ou consorte durma enquanto o amo está acordado, era só isso, Anjin-san.
- Diga a ela que terá que mudar o costume. Levanto-me com freqüência à noite. É um hábito que adquiri ao mar. Tenho o sono muito leve em terra.
- Sim, Anjin-san.
Mariko explicara e as duas mulheres se afastaram. Mas Blackthorne sabia que Fujiko não tinha ido dormir e não o faria até que ele mesmo dormisse. Ela estava sempre em pé e à espera, fosse qual fosse a hora em que ele voltasse para casa. Algumas noites caminhava pela praia sozinho. Embora insistisse em ficar só, sabia que era seguido e observado. Não porque tivessem medo de que ele tentasse escapar. Apenas porque era o costume deles que as pessoas importantes fossem sempre escoltadas. Em Anjiro ele era importante.
Com o tempo, acabara aceitando a presença dela. Fora como Mariko dissera: "Pense nela como numa rocha, numa shoji ou numa parede. É dever dela servi-lo".
Com Mariko era diferente.
Sentia-se contente de que ela tivesse ficado. Sem a sua presença, nunca teria começado o treinamento, para não mencionar a tradução dos meandros da estratégia. Abençoava a ela, a Frei Domingo, a Alban Caradoc e aos seus outros professores.
Nunca pensei que as batalhas serviriam jamais a algum bom uso, pensou ele novamente. Uma vez, quando seu navio transportava uma carga de lãs inglesas para Antuérpia, uma frota espanhola caíra em cima da cidade e todos os homens foram para as barricadas e os diques. O ataque de surpresa fora rechaçado e a infantaria espanhola batida. Essa foi a primeira vez em que ele viu Guilherme, duque de Orange, usando regimentos como peças de xadrez. A\ inçando, retirando em pânico simulado para se reagruparem, investindo de novo, as armas espocando em salvas combinadas, rasgando as entranhas, martelando os ouvidos, irrompendo por entre os Invencíveis para deixá-los moribundos ou gritando, o mau cheiro de sangue e pólvora, urina e cavalos e excremento invadindo a gente, e uma alegria selvagem e frenética com a matança dominando-o, e a força de vinte homens nos seus braços.
- Jesus Cristo, é formidável ser vitorioso - disse ele em voz alta, na banheira.
- Amo? - disse Suwo.
- Nada - retrucou ele em japonês. - Eu falando... estava só pensar... estava só pensando alto.
- Compreendo, amo. Sim. Seu perdão.
Blackthorne deixou-se devanear novamente.
Mariko. Sim, ela tem sido inestimável.
Após aquela primeira noite do seu quase-suicídio, nada mais fora dito. O que havia para dizer?
Fico contente de haver tanta coisa para fazer, pensou ele. Nenhum tempo para pensar, exceto aqui no banho, nestes poucos minutos. Nunca há tempo suficiente para fazer tudo. Ordenaram-me que me concentrasse em treinamento e ensino, e não em aprender, mas quero aprender, tento aprender, preciso aprender para cumprir a promessa a Yabu. Não há horas suficientes. Sempre exausto, esgotado, na hora de dormir, dormindo imediatamente, para estar em pé ao amanhecer e sair a galope para o planalto. Treinando a manhã toda, depois uma refeição frugal, nunca satisfatória e sempre sem carne. Depois, toda tarde, até o pôr-do-sol - às vezes até mais tarde -, com Yabu e Omi e Igurashi e Naga e Zukimoto e alguns outros oficiais, falando sobre guerra, respondendo a perguntas sobre guerra. Como travar combate. Como os bárbaros guerreiam e como os japoneses guerreiam. Em terra e no mar. Escribas sempre tomando notas. Muitas, muitas notas.
Às vezes apenas com Yabu.
Mas sempre com Mariko, uma parte dele, falando por ele. E por Yabu. Mariko agora diferente em relação a ele, ele não mais um estranho.
Outros dias os escribas relendo as notas, sempre verificando, sendo meticulosos, revisando e verificando de novo até, doze dias e cem horas mais ou menos de explanações detalhadas e exaustivas depois, terem formado um manual de guerra. Exato. E letal. Letal a quê? Não a nós, ingleses ou holandeses, que viremos aqui pacificamente e apenas como comerciantes. Letal aos inimigos de Yabu e aos inimigos de Toranaga, e aos nossos inimigos portugueses e espanhóis quando tentarem conquistar o Japão. Como fizeram por toda parte. Em cada território recentemente descoberto. Primeiro chegam os padres. Depois os conquistadores.
Mas aqui não, pensou ele com grande contentamento. Aqui nunca - agora. O manual é letal e à prova disso. Com alguns anos para que o conhecimento se difunda, não vai haver conquista alguma aqui.
- Anjin-san?
- Hai, Mariko-san?
Ela estava se curvando para ele.
- Yabu-ko wa kiden no goshusseki o kon-ya wa hitsuyo to senu to oserareru, Anjin-san.
Lentamente as palavras se formaram ria cabeça dele: "O Senhor Yabu não solicita a sua presença esta noite".
- Ichi-ban - disse ele, feliz. - Domo.
- Gomen nasai, Anjin-san. Anata wa...
- Sim, Mariko-san - interrompeu-a ele, o calor da água consumindo-lhe a energia. - Sei que devia ter dito de modo diferente, mas não quero mais falar japonês agora. Não esta noite. Agora me sinto como um menino de escola que pode faltar à aula por causa dos feriados de Natal. A senhora percebe que estas serão as primeiras horas livres que terei, desde a minha chegada?
- Sim, sim, percebo. - Ela sorriu obliquamente. - E o senhor percebe, Senhor Capitão-Piloto B'rack'fon, que estas serão as primeiras horas livres que terei desde a minha chegada?
Ele riu. Ela estava usando um pesado roupão de banho de algodão, amarrado frouxamente, e uma toalha em torno da cabeça para proteger o cabelo. Toda noite, assim que a massagem dele começava, ela vinha tomar banho, às vezes sozinha, às" vezes com Fujiko.
- Pronto, sua vez agora - disse ele, começando a se levantar.
- Oh, por favor, não. Não desejo perturbá-lo.
- Então vamos compartilhar o banho. Está magnífico.
- Obrigada. Mal posso esperar para lavar o suor e o pó.
- Ela tirou o roupão e sentou-se no minúsculo assento. Uma criada começou a ensaboá-la, enquanto Suwo esperava pacientemente, junto da mesa de massagem.
- E exatamente como um feriado de escola - disse ela, igualmente feliz.
A primeira vez que Blackthorne a vira nua no dia em que nadaram, sentira-se grandemente afetado. Agora a sua nudez, em si mesma, não o tocava fisicamente. Vivendo juntos em estilo japonês, numa casa japonesa, onde as paredes eram de papel e as salas serviam a múltiplas finalidades, ele a vira despida e parcialmente vestida muitas vezes. Chegara até a vê-la satisfazendo necessidades fisiológicas.
- O que é mais normal, Anjin-san? Os corpos são normais, e as diferenças entre homens e mulheres são normais, neh?
- Sim, mas é, hum, é que fomos educados de modo diferente.
- Mas agora o senhor está aqui e os nossos costumes são os seus costumes, e o que é normal é normal. Neh?
Normal era urinar ou defecar ao ar livre se não houvesse latrinas ou baldes, simplesmente erguendo o quimono ou abrindo-o, agachando-se ou ficando em, pé, todos os demais polidamente esperando sem olhar, raramente havendo divisórias para a privacidade. Por que se deveria exigir privacidade? E logo um dos camponeses vinha coletar as fezes e as misturava com água para fertilizar as plantações. O excremento humano e a urina eram a única fonte substancial de fertilizante do império. Havia poucos cavalos e bovinos, e nenhum outro recurso animal em absoluto. Portanto cada partícula humana era guardada e vendida aos fazendeiros de todo o país.
E depois de se ter visto os bem-nascidos e os humildes abrindo ou levantando o quimono, e ficando em pé ou agachando-se, não há muito com que se sentir embaraçado.
- Há, Anjin-san?
- Não.
- Ótimo - dissera ela, muito satisfeita. - Logo o senhor gostará de peixe cru, algas frescas, e então será realmente um hatamoto.
A criada derramou água em cima dela. Depois, limpa, Mariko avançou para a banheira e deitou-se em frente a ele, com um profundo suspiro de êxtase, o pequeno crucifixo oscilando entre os seios.
- Como é que a senhora faz isso? - disse ele.
- Isso o quê?
- Entrar na água tão depressa. É tão quente.
- Não sei, Anjin-san, mas pedi que pusessem mais lenha no fogo e aquecessem a água. Para o senhor, Fujiko sempre se certifica de que a água fique... podemos chamar de tépida.
- Se isso é tépido, então sou o tio de um holandês!
- O quê?
- Nada.
O calor da água tornou-os sonolentos e eles se refestelaram um instante, sem dizer palavra. Mais tarde ela disse:
- O que gostaria de fazer esta noite, Anjin-san?
- Se estivéssemos em Londres, nós... - Blackthorne parou. Não vou pensar neles, disse ele a si mesmo. Ou em Londres. Isso se foi. Isso não existe. Só aqui existe.
- Se? - Ela o estava observando, cônscia da mudança.
- Iríamos a um teatro e assistiríamos a uma peça - disse ele, dominando-se. - Vocês têm peças aqui?
- Oh, sim, Anjin-san. As peças são muito populares entre nós. O taicum gostava de representar para divertir os convidados. O Senhor Toranaga também gosta. E naturalmente há muitas companhias ambulantes para o povo comum. Mas as nossas peças não são como as suas, creio eu. Aqui os atores e atrizes usam máscaras. Chamamos as peças de no. São parte música, parte dança, e na maioria muito tristes, muito trágicas, peças históricas. Algumas são comédias. Nós veríamos uma comédia ou talvez uma peça religiosa?
- Não, iríamos ao Teatro Globe e veríamos alguma coisa de um escritor chamado Shakespeare. Gosto mais dele do que de Ben Jonson ou Marlowe. Talvez víssemos A megera domada ou Sonho de uma noite de verão ou Romeu e Julieta. Levei minha esposa para ver Romeu e Julieta e ela gostou muito. - Explicou os enredos para ela.
Na maior parte Mariko os considerou incompreensíveis.
- Seria impensável, aqui, que uma garota desobedecesse ao pai assim. Mas é muito triste, neh? Triste para a jovem e triste para o rapaz. Ela tinha apenas treze anos? Todas as suas senhoras se casam tão novas assim?
- Não. O comum é casarem com quinze ou dezesseis anos. Minha esposa tinha dezessete anos quando nos casamos. Que idade tinha a senhora?
- Apenas quinze, Anjin-san. - Uma sombra cruzou-lhe o cenho, mas ele não notou. - E após a peça, o que faríamos?
- Eu a levaria para comer. Iríamos à Stone's Chop House, em Fetter Lane, ou à Cheshire Cheese, na Fleet Street. São estalagens onde a comida é especial.
- O que comeríamos?
- Prefiro não lembrar - disse ele com um sorriso preguiçoso, voltando a mente ao presente. - Não posso me lembrar. É aqui que estamos e é aqui que comeremos, e eu gosto de peixe cru e karma é karma. - Afundou mais na banheira. - Uma grande palavra, "karma". E uma grande idéia. Seu auxílio tem sido enorme para mim, Mariko-san.
- Ser de algum valor para o senhor é um prazer meu. - Mariko descontraiu-se no calor. - Fujiko tem um prato especial para o senhor esta noite.
- Oh?
- Comprou um ... acho que o senhor chama de faisão. É um pássaro grande. Um dos falcoeiros apanhou-o para ela.
- Um faisão? É mesmo? Honto?
- Honto - retrucou ela. - Fujiko pediu-lhes que o caçassem para o senhor. Pediu-me que lhe dissesse.
- Como está sendo cozido?
- Um dos soldados viu os portugueses preparando faisões e contou a Fujiko-san. Ela lhe pede que seja paciente, caso não esteja cozido adequadamente.
- Mas como é que ela ... como é que as cozinheiras estão fazendo? - Ele se corrigiu, pois apenas os criados cozinhavam e limpavam.
- Ela me disse que primeiro alguém arranca todas as penas, depois... depois tira as entranhas. - Mariko controlou o próprio enjôo. - Depois o pássaro é cortado em pedacinhos e frito em óleo, ou cozido com sal e temperos. - O nariz dela franziu-se.
- Às vezes eles o cobrem com lama e o colocam no meio de brasas e o assam. Não temos fornos, Anjin-san. Portanto será frito. Espero que esteja bom.
- Tenho certeza de que estará perfeito - disse ele, certo de que estaria intragável.
Ela riu.
- O senhor é transparente às vezes, Anjin-san.
- A senhora não compreende como a comida é importante! - Apesar de si mesmo, ele sorriu. - Tem razão. Eu não devia ser tão interessado por comida. Mas não consigo controlar a fome.
- Logo conseguirá. Aprenderá até a tomar chá numa xícara vazia.
- O quê?
- Este não é lugar para explicar isso, Anjin-san, nem o momento. Pois é preciso que se esteja desperto e muito alerta. É necessário um pôr-do-sol tranqüilo, ou um amanhecer. Um dia lhe mostrarei como se faz, por causa do que o senhor fez. Oh, é tão bom estar aqui, não? Um banho é realmente um dom de Deus.
Ele ouviu os criados lá fora, alimentando o fogo. Agüentou o calor que se intensificava o mais que pôde, depois saiu da água, meio auxiliado por Suwo, e deitou-se ofegante, sobre a espessa toalha. O velho afundou os dedos. Blackthorne poderia ter gritado de prazer.
- Isto é muito bom.
- O senhor mudou muito nos últimos dias, Anjin-san.
- Mudei?
- Oh, sim, desde o seu renascimento... sim, muito.
Ele tentou se recordar da primeira noite, mas lembrava-se de pouca coisa. De algum modo conseguira voltar para casa sobre as próprias pernas. Fujiko e as criadas o ajudaram a se deitar. Após um sono sem sonhos, despertou ao amanhecer e foi nadar. Depois, secando ao sol, agradecera a Deus a força e a pista que Mariko lhe dera. Mais tarde, caminhando para casa, saudou os aldeões, sabendo secretamente que eles estavam libertos da maldição de Yabu, assim como ele estava.
Depois, quando Mariko chegou, ele mandou buscar Mura.
- Mariko-san, por favor, diga isto a Mura: temos um problema, você e eu. Vamos resolvê-lo juntos. Quero freqüentar a escola da aldeia. Aprender a falar com as crianças.
- Elas não têm escola, Anjin-san.
- Nenhuma?
- Não. Mura diz que há um mosteiro a algumas ris a oeste e os monges poderiam ensiná-lo a ler e escrever, se o senhor quisesse. Mas isto é uma aldeia, Anjin-san. As crianças aqui precisam aprender a pescar, a conhecer o mar, a fazer redes, a plantar e cultivar o arroz e as plantações. Há pouco tempo para qualquer outra coisa, quanto mais para ler e escrever. Além disso, os pais e os avós ensinam as suas crianças, como sempre.
- Então como poderei aprender quando a senhora tiver partido?
- O Senhor Toranaga enviará os livros.
- Precisarei de mais do que de livros.
- Será tudo satisfatório, Anjin-san.
- Sim. Talvez. Mas diga ao chefe da aldeia que sempre que eu cometer um erro, qualquer um - qualquer um, até uma criança - deve me corrigir. Imediatamente. Eu lhe ordeno.
- Ele lhe agradece, Anjin-san.
- Alguém aqui fala português?
- Ele diz que não.
- Alguém nos arredores?
- Iyé, Anjin-san.
- Mariko-san, preciso ter alguém para quando a senhora partir.
- Direi isso a Yabu-san.
- Mura-san, você...
- Ele diz que o senhor não deve usar "san" com ele nem com nenhum aldeão. Eles estão abaixo do senhor. Não é correto que o senhor diga "san" a eles ou a qualquer um inferior ao senhor.
Fujiko também se havia curvado até o chão naquele primeiro dia.
- Fujiko-san lhe dá as boas-vindas a casa, Anjin-san. Ela diz que o senhor lhe concedeu uma grande honra e roga o seu perdão pela rudeza no navio. Sente-se honrada em ser sua consorte e cabeça da sua casa. Pergunta se o senhor conservará as espadas, coisa que lhe agradará imensamente. Pertenceram ao pai dela, que já morreu. Ela não as deu ao marido porque ele tinha suas próprias espadas.
- Agradeça-lhe e diga que fico honrado com que ela seja consorte - dissera ele.
Mariko curvara-se também. Formalmente.
- O senhor está numa nova vida agora, Anjin-san. Olhamo-lo com novos olhos. É costume nosso ser formais às vezes, com grande seriedade. O senhor abriu-me os olhos. Muitíssimo. Antes o senhor era apenas um bárbaro para mim. Por favor, desculpe a minha estupidez. O que fez prova que é samurai. Agora é samurai. Por favor, perdoe a minha falta de educação de antes.
Ele se sentira muito alto naquele dia. Mas a sua quase-morte autoinfligida o alterara mais do que ele mesmo percebia, e o marcara para sempre, mais do que a soma de todas as suas outras quase-mortes. Na realidade você não estava contando com Omi? perguntava-se ele. Omi apararia o golpe? Você não lhe deu sinais de alarma em profusão? Não sei. Só sei que estou contente porque ele estava preparado, respondeu Blackthorne a si mesmo. Lá se foi mais uma vida!
- Esta é a minha nona vida. A última! - disse alto.
Os dedos de Suwo pararam no mesmo instante.
- O quê? - perguntou Mariko. - O que disse, Anjin-san?
- Nada. Não foi nada - retrucou ele, constrangido.
- Machuquei-o, amo? - disse Suwo.
- Não.
Suwo disse mais alguma coisa que ele não compreendeu.
- Dozo?
- Ele quer lhe massagear as costas agora - disse Mariko, distante.
Blackthorne pôs-se de bruços, repetiu as palavras em japonês e esqueceu imediatamente. Podia vê-la através do vapor. Ela respirava profundamente, a cabeça ligeiramente inclinada para trás, a pele rosada.
Como é que agüenta o calor? perguntou-se ele. Treinamento, acho eu, desde a infância.
Os dedos de Suwo lhe causavam grande prazer, e ele cochilou momentaneamente.
No que é que eu estava pensando?
Estava pensando na sua nona vida, sua última vida, e estava com medo, lembrando-se da superstição. Mas é tolice, aqui na Terra dos Deuses, ser supersticioso. As coisas aqui são diferentes e isso vale para sempre. Hoje é para sempre.
Amanhã muitas coisas podem acontecer.
Hoje vou me adaptar às regras deles.
Vou, sim.
A criada trouxe o prato coberto. Segurava-o alto, acima da cabeça, conforme o costume, a fim de que sua respiração não maculasse o alimento. Ansiosamente ela se ajoelhou e colocou-o com cuidado sobre a mesa-bandeja diante de Blackthorne. Sobre cada mesinha havia tigelas e pauzinhos, cálices de saquê e guardanapos, e um minúsculo arranjo de flores. Fujiko e Mariko estavam sentadas em frente a ele. Usavam flores e pentes de prata no cabelo. O quimono de Fujiko era estampado com peixes verdeclaros sobre um fundo branco, o obi dourado. Mariko usava um preto e vermelho, com uma fina capa prateada e com crisântemos e um obi vermelho e prata. Estavam ambas perfumadas, como sempre. O incenso ardia a fim de manter a distância os insetos noturnos.
Blackthorne se preparara há muito tempo. Sabia que qualquer desagrado seu destruiria a noite delas. Se havia como apanhar faisões, então haveria mais caça, pensou ele. Tinha uni cavalo e armas, e podia caçar por si mesmo, desde que arrumasse tempo para isso.
Fujiko inclinou-se para a frente e tirou a tampa de sobre o prato. Os pedacinhos de carne frita estavam dourados e pareciam perfeitos. Ele começou a salivar com o aroma.
Lentamente pegou um pedaço com os pauzinhos, desejando que não caísse, e mastigou. Estava duro e seco, mas ele não comia carne há tanto tempo que achou delicioso. Outro pedaço. Ele suspirou de prazer.
- Ichi-ban, ichi-ban, por Deus!
Fujiko corou e serviu-lhe o saquê para ocultar o rosto. Mariko abanou-se, seu leque carmesim uma libélula. Blackthorne bebeu o vinho a grandes goles, outro pedaço, tomou mais vinho e ritualisticamente ofereceu a Fujiko o cálice cheio até a borda. Ela recusou, conforme o costume, mas naquela noite ele insistiu, e ela esvaziou o cálice, engasgando ligeiramente. Mariko também recusou e também foi instada a beber. Depois ele atacou o faisão tentando não demonstrar muito o prazer que sentia. As mulheres mal tocaram nas pequenas porções de verduras e peixe. Isso não o incomodou, porque era um costume feminino comer antes ou depois, de modo que todas as atenções delas pudessem se devotar ao amo.
Ele comeu o faisão todo, três tigelas de arroz e sorveu ruidosamente o saquê, o que era sinal de boas maneiras. Sentiu-se saciado pela primeira vez em meses. No decorrer da refeição, esvaziou seis frascos de vinho quente, Mariko e Fujiko dois entre si. Agora estavam coradas, dando risadinhas e no estágio da tolice.
Mariko casquinou e pôs a mão diante da boca.
- Gostaria de poder tomar saquê como o senhor, Anjin-san. Bebe melhor do que qualquer homem que eu jamais tenha conhecido. Aposto como o senhor seria o melhor em Izu! Eu poderia ganhar muito dinheiro com o senhor!
- Pensei que os samurais desaprovassem o jogo.
- Oh, desaprovam, desaprovam totalmente, eles não são mercadores ou camponeses. Mas nem todos os samurais são tão fortes quanto os outros e muitos... como se diz... muitos apostam como os bárbaros ... como os portugueses.
- As mulheres jogam?
- Oh, sim. Muito. Mas apenas com outras damas e em quantias cuidadosas, e sempre de modo a que os maridos não descubram! - Alegremente traduziu para Fujiko, que estava mais corada do que ela. - Sua consorte pergunta se os ingleses jogam. O senhor gosta de apostas?
- É o nosso passatempo nacional. - E contou-lhe sobre as corridas de cavalos, boliche, touradas, corridas, corridas de cães, falcoaria, ações de companhias novas, cartas de corso, tiro, dardos, loterias, boxe, cartas, luta romana, dados, xadrez, dominó, e sobre a época das feiras, quando se colocavam ceitis sobre números e se apostava na roleta.
- Fujiko pergunta como encontram tempo para viver, para guerrear e para "travesseirar" - disse Mariko.
- Para isso há sempre tempo. - Seus olhos se encontraram um instante mas ele não conseguiu ler nada nos dela, apenas felicidade e, talvez, excesso de vinho.
Mariko pediu-lhe que cantasse a canção hornpipe para Fujiko, e ele o fez. Elas o cumprimentaram e disseram que era a melhor que já tinham ouvido.
- Tomem mais saquê!
- Oh, o senhor não deve servir, Anjin-san, isso é dever de mulher. Eu não lhe disse?
- Sim. Tome mais um pouco, dozo!
- É melhor não. Acho que vou desabar. - Mariko abanou o leque furiosamente e o ar agitou os fios de cabelo que haviam escapado do seu penteado impecável.
- A senhora tem belas orelhas - disse ele.
- O senhor também. Nós, Fujiko-san e eu, achamos que o seu nariz é perfeito também, digno de um daimio.
Ele sorriu e curvou-se elaboradamente para elas. Elas retribuíram a reverência. As dobras do quimono de Mariko afastaram-se ligeiramente do pescoço, revelando a extremidade do seu quimono interior escarlate e a protuberância dos seios, e isso o excitou consideravelmente.
- Saquê, Anjin-san?
Ele estendeu o cálice, os dedos firmes. Ela verteu, olhando o cálice, a ponta da língua tocando os lábios enquanto se concentrava.
Relutantemente Fujiko também aceitou um pouco, embora dissesse que já não podia sentir as pernas. Sua serena melancolia parecia ter desaparecido naquela noite e ela parecia jovem de novo. Blackthorne notou que ela não era tão feia quanto ele pensara uma vez.
Jozen tinha a cabeça zunindo. Não por causa de saquê, mas devido à incrível estratégia de guerra que Yabu, Omi e Igurashi lhe descreveram tão abertamente. Apenas Naga, o segundo em comando, filho do arquiinimigo, não dissera nada, e permanecera a noite toda frio, arrogante, de costas rijas, com o narigão característico de Toranaga num rosto tenso.
- Surpreendente, Yabu-sama - disse Jozen. - Agora posso compreender a razão do sigilo. Meu amo também compreenderá. Sábio, muito sábio. E o senhor, Nagan-san, esteve em silêncio a noite toda. Gostaria de ouvir a sua opinião. O que acha desta nova mobilidade, desta nova estratégia?
- Meu pai acredita que todas as possibilidades bélicas devem ser consideradas, Jozen-san - replicou o jovem.
- Mas e o senhor, a sua opinião?
- Fui mandado para cá apenas para obedecer, observar, ouvir, aprender e testar. Não para dar opiniões.
- Naturalmente. Mas como segundo em comando, devo dizer, como um ilustre segundo em comando, considera a experiência um sucesso?
- Yabu-sama ou Omi-san devem responder a isso. Ou meu pai.
- Mas Yabu-sama disse que todos esta noite conversaríamos livremente. O que há para ocultar? Somos todos amigos, neh? O filho tão famoso de um pai tão famoso deve ter uma opinião. Neh?
Os olhos de Naga estreitaram-se ante o sarcasmo, mas ele não respondeu.
- Todos podem falar livremente, Naga-san - disse Yabu.
- O que pensa?
- Penso que, tendo a surpresa como aliada, esta idéia venceria uma escaramuça ou possivelmente uma batalha. De surpresa, sim. Mas e depois? - A voz de Naga fluiu gelidamente. - Depois todos os lados usariam o mesmo plano e uma vasta quantidade de homens morreria desnecessariamente, assassinados sem honra por um atacante que não vai saber nem a quem matou. Duvido que meu pai realmente autorize o uso disso numa autêntica batalha.
- Ele disse isso? - Yabu fez a pergunta incisivamente, sem se preocupar com Jozen.
- Não, Yabu-sama. Estou dando a minha opinião. Naturalmente.
- Mas o Regimento de Mosquetes, não o aprova? Ele lhe causa repugnância? - perguntou Yabu sobriamente.
Naga olhou-o com olhos inexpressivos, de réptil.
- Com grande respeito, já que o senhor pede a minha opinião, sim, considero-o repugnante. Nossos antepassados sempre souberam a quem mataram ou quem os derrotava. Isso é bushido, o nosso caminho, o Caminho do Guerreiro, o caminho de um verdadeiro samurai. O melhor homem é o vencedor, neh? Mas agora, isto? Como um homem prova ao seu senhor o próprio valor? Como pode recompensar a coragem? Atirar balas é corajoso, mas também é estúpido. Onde está o valor disso? As armas são contra o nosso código samurai. Os bárbaros lutam desse modo, os camponeses lutam desse modo. O senhor percebe que mercadores e camponeses imundos, até elas, poderiam lutar desse modo? - Jozen riu e Naga continuou, mais ameaçador até. - Alguns camponeses fanáticos poderiam matar qualquer quantidade de samurais, dispondo de armas suficientes! Sim, camponeses poderiam matar qualquer um de nós, até o Senhor Ishido, que quer se sentar no lugar do meu pai.
Jozen empertigou-se.
- O Senhor Ishido não cobiça as terras de seu pai. Visa apenas a proteger o império para o seu herdeiro legítimo.
- Meu pai não é ameaça ao Senhor Yaemon, nem ao reino.
- Naturalmente, mas o senhor estava falando de camponeses. O taicum foi camponês um dia. Meu senhor Ishido foi camponês. Eu fui camponês. E ronin!
Naga não queria discutir. Sabia que não era páreo para Jozen, cuja destreza com a espada e o machado era renomada.
- Não estava tentando insultar o seu amo, o senhor ou a quem quer que seja, Jozen-san. Estava meramente dizendo que nós, samurais, devemos todos nos certificar bem de que os camponeses nunca terão armas, ou nenhum de nós estará seguro.
- Mercadores e camponeses nunca nos preocuparão - disse Jozen.
- Concordo - acrescentou Yabu -, e, Naga-san, concordo com parte do que você disse. Sim. Mas as armas são modernas. Logo todas as batalhas serão travadas com armas de fogo. Concordo em que é desagradável. Mas é o rumo da guerra moderna. E depois as coisas serão como sempre foram: os samurais mais bravos sempre conquistarão.
- Não, desculpe, mas está enganado, Yabu-sama! O que foi que esse bárbaro nos contou - a essência da estratégia de guerra deles? Ele voluntariamente admite que todos os exércitos são recrutados e mercenários. Neh? Mercenários! Nenhum senso de dever para com o senhor. Os soldados apenas lutam por paga e saquê, para violar e fartar-se. Ele não disse que os exércitos deles são exércitos de camponeses? Foi isso o que as armas levaram ao mundo dele, e é isso o que trarão ao nosso. Se eu tivesse poder, tomaria a cabeça desse bárbaro esta noite e tornaria ilegais todas as armas permanentemente.
- É isso o que pensa o seu pai? - perguntou Jozen rapidamente.
- Meu pai não diz a mim nem a ninguém o que pensa, conforme o senhor certamente sabe. Não falo por meu pai, ninguém fala por ele - replicou Naga, furioso por ter-se permitido cair na armadilha e acabar falando. - Fui mandado para cá a fim de obedecer, ouvir e não falar. Não teria falado se não tivesse sido solicitado. Se o ofendi, ou ao senhor, Yabu-sama, ou ao senhor, Omi-san, peço desculpas.
- Não há necessidade de se desculpar. Eu pedi sua opinião - disse Yabu. - Por que alguém ficaria ofendido? Isto é uma discussão, neh? Entre líderes. Você tornariá ilegais as armas?
- Sim. Acho que o senhor seria prudente mantendo um controle muito rígido de cada arma de fogo no seu domínio.
- Todos os camponeses estão proibidos de usar armas de qualquer espécie. Meus camponeses e meu povo são muito bem controlados.
Jozen sorriu malicioso para o jovem delgado, sentindo aversão por ele.
- Tem idéias interessantes, Naga-san. Mas está enganado quanto aos camponeses. Para os samurais eles não são nada além de provedores. Não representam mais ameaça do que um monte de esterco!
- No momento! - disse Naga, deixando-se comandar pelo orgulho. - É por isso que eu baniria as armas agora. Tem razão, Yabu-sama, ao afirmar que uma nova era exige novos métodos. Mas por causa do que disse esse Anjin-san, esse único bárbaro, eu iria muito além das nossas leis atuais. Eu divulgaria editos no sentido de que toda pessoa que não os samurais encontrada com uma arma de fogo ou apanhada comerciando com armas imediatamente perderia a vida, assim como cada membro da sua família de todas as gerações. Mais, eu proibiria a fabricação e a importação de armas de fogo. Proibiria os bárbaros de usá-las e de trazê-las às nossas praias. Sim, se eu tivesse poder - a que não viso e jamais visarei -, manteria os bárbaros totalmente fora do nosso país, exceto por alguns padres e um porto para o comércio, que eu cercaria com uma cerca alta e guerreiros merecedores de confiança. Por último, eu mandaria matar imediatamente esse bárbaro de mente repugnante, o Anjin-san, a fim de que o seu imundo conhecimento não se difundisse. Ele é uma doença.
- Ah, Naga-san - disse Jozen -, deve ser bom ser tão jovem. O senhor sabe, meu amo concorda com muita coisa do que disse sobre os bárbaros. Ouvi-o dizer muitas vezes: "Mantenha-os fora daqui... chute-os para fora... dê-lhes um pontapé no traseiro de volta a Nagasaki e mantenha-os lá!" O senhor mataria o Anjin-san, hein? Interessante. O meu amo também não gosta dele. Mas para ele... - Ele parou. - Ah, sim, o senhor tem um bom pensamento sobre as armas de fogo. Posso ver isso claramente. Posso dizer isso ao meu amo? A sua idéia sobre as novas leis?
- Naturalmente. - Naga estava abrandado, e mais calmo agora que tinha falado o que trazia atravessado desde o primeiro dia.
- Você deu a sua opinião ao Senhor Toranaga? - perguntou Yabu.
- O Senhor Toranaga não me perguntou a minha opinião. Espero que um dia ele me honre perguntando, como o senhor o fez - respondeu Naga de imediato, com sinceridade, e ficou surpreso de que ninguém detectasse a mentira.
- Como isto é uma discussão livre, senhor - disse Omi -, digo que esse bárbaro é um tesouro. Acredito que devemos aprender com ele. Temos que saber sobre armas e navios de combate, porque eles sabem sobre isso. Temos que saber tudo o que sabem assim que ficarem sabendo, e mesmo agora, alguns de nós devem começar a aprender a pensar como eles, de modo que logo possamos ultrapassá-los.
Naga disse, confiantemente:
- O que eles poderiam saber, Omi-san? Sim, armas e navios. Mas o que mais? Como poderiam nos destruir? Não há um samurai entre eles. Esse Anjin não admite abertamente que até os reis deles são assassinos e fanáticos religiosos? Somos milhões, eles são um punhado. Poderíamos esmagá-los apenas com as mãos.
- Esse Anjin-san abriu-me os olhos, Naga-san. Descobri que a nossa terra e a China não são o mundo todo, são apenas uma parte muito pequena. Primeiro pensei que o bárbaro fosse só uma curiosidade. Agora, não. Agradeço aos deuses por ele. Acho que nos salvou e sei que podemos aprender com ele. Já nos deu poder sobre os bárbaros meridionais ... e sobre a China.
- O quê?
- O taicum falhou porque os efetivos deles são grandes demais para nós, homem a homem, seta a seta, neh? Com armas e a habilidade bárbara, poderíamos tomar Pequim.
- Com traição bárbara, Omi-san!
- Com conhecimento bárbaro, Naga-san, poderíamos tomar Pequim. Quem quer que tome Pequim acaba controlando a China. E quem quer que controle a China pode controlar o mundo. Devemos aprender a não nos envergonhar de adquirir conhecimento, venha de onde vier.
- Digo que não precisamos de nada lá de fora.
- Sem ofensa, Naga-san, digo que devemos proteger esta Terra dos Deuses de qualquer jeito. É o nosso dever primordial proteger a única e divina posição que temos na terra. Apenas esta é a Terra dos Deuses, neh? Apenas o nosso imperador é divino. Concordo com que esse bárbaro deva ser silenciado. Mas não pela morte. Por isolamento permanente aqui em Anjiro, até que tenhamos aprendido tudo o que sabe.
Jozen coçou-se pensativamente.
- Meu amo será informado das suas idéias. Concordo em que o bárbaro deve ser isolado. E também que o treinamento deve cessar imediatamente.
Yabu puxou um pergaminho da manga.
- Aqui está um relatório completo sobre a experiência para o Senhor Ishido. Quando ele desejar que o treinamento cesse, naturalmente o treinamento cessará.
Jozen aceitou o pergaminho.
- E o Senhor Toranaga? E quanto a ele? - Seus olhos pousaram em Naga. Este não disse nada, apenas fitou o rolo de pergaminho.
- O senhor terá condição de pedir-lhe a opinião diretamente - disse Yabu. - Ele tem um relatório semelhante. Presumo que o senhor partirá para Yedo amanhã, não? Ou gostaria de presenciar o treinamento? Não preciso lhe dizer que os homens ainda não estão perfeitos.
- Gostaria de assistir a um "ataque".
- Omi-san, providencie. Você comanda.
- Sim, senhor.
Jozen voltou-se para o seu segundo em comando e deu-lhe o pergaminho.
- Masumoto, leve isto ao Senhor Ishido. Parta imediatamente.
- Sim, Jozen-san.
- Providenciê-lhe guias até a fronteira - disse Yabu a Igurashi -, e cavalos descansados.
Igurashi partiu com o samurai no mesmo instante. Jozen espreguiçou-se e bocejou.
- Por favor, desculpe-me - disse -, mas é toda a cavalgada dos últimos dias. Devo agradecer-lhe por uma noite extraordinária, Yabu-sama. Suas idéias têm longo alcance. E as suas, Omi-san. E as suas, Naga-san. Elogiá-lo-ei ao Senhor Toranaga e ao meu amo. Agora, se me desculparem, estou muito cansado e Osaka fica a um longo caminho.
- Naturalmente - disse Yabu. - Como estava Osaka?
- Muito bem. Lembra-se daqueles bandidos, os que os atacaram por terra e por mar?
- Naturalmente.
- Tomamos quatrocentas e cinqüenta cabeças naquela noite. Muitos usavam uniformes de Toranaga.
- Os ronins não têm honra. Nenhum deles.
- Alguns ronins têm - disse Jozen, aguilhoado com o insulto. Ele vivia sempre com a vergonha de um dia ter sido ronin.
- Alguns usavam até seus novos uniformes cinzentos. Nenhum escapou. Morreram todos.
- E Buntaro-san?
- Não. Ele... - Jozen parou. O "não" escapara, mas agora que o tinha dito, não se importou. - Não. Não sabemos com certeza. Ninguém encontrou a cabeça dele. O senhor não ouviu nada sobre ele?
- Não - disse Naga.
- Talvez tenha sido capturado. Talvez simplesmente o tenham esquartejado e dispersado os pedaços. Meu amo gostaria de saber, quando o senhor tiver notícias. Agora está tudo muito bem em Osaka. Os preparativos para o encontro estão em andamento. Haverá pródigos entretenimentos para celebrar a nova era, e naturalmente, para honrar todos os daimios.
- E o Senhor Toda Hiromatsu? - perguntou Naga polidamente.
- O velho Punho de Aço está mais forte e grosseiro do que nunca.
- Ainda está lá?
- Não. Partiu com todos os homens de seu pai alguns dias antes de mim.
- E a família de meu pai?
- Ouvi dizer que a Senhora Kiritsubo e a Senhora Sazuko pediram para ficar com o meu amo. Um médico aconselhou a senhora a descansar por um mês - questão de saúde, o senhor sabe. Ele achou que a jornada não seria boa para a criança. - A Yabu acrescentou: - Ela levou um tombo na noite em que o senhor partiu, não foi?
- Sim.
- Não é nada sério, espero - disse Naga, muito preocupado.
- Não, Naga-san, nada sério - disse Jozen, depois novamente para Yabu: - O senhor informou o Senhor Toranaga da minha chegada?
- Naturalmente.
- ótimo.
- As notícias que o senhor nos trouxe vão interessá-lo grandemente.
- Sim. Vi um pombo-correio fazer um círculo e voar para o norte.
- Disponho desse serviço agora. - Yabu não acrescentou que um pombo de Jozen também fora observado, nem que falcões o haviam interceptado perto das montanhas, nem que a mensagem fora decifrada: "Em Anjiro. Tudo verdade conforme relatado. Yabu, Naga, Omi e bárbaro aqui".
- Partirei amanhã, com a sua permissão, depois do "ataque". O senhor me dará cavalos descansados? Não devo fazer o Senhor Toranaga esperar. Estou ansioso por vê-lo. Meu amo também. Em Osaka. Espero que me acompanhe, Naga-san.
- Recebi ordens de vir para cá, ficarei aqui. - Naga manteve os olhos baixos, mas estava ardendo de cólera contida.
Jozen partiu e caminhou com os guardas colina acima, em direção ao seu acampamento. Substituiu as sentinelas, ordenou aos homens que dormissem, e entrou na sua pequena tenda de arbustos que haviam construído contra a chuva que se aproximava. À luz de vela, sob o mosquiteiro, reescreveu a mensagem anterior num delgado pedaço de papel de arroz, e acrescentou: "Os quinhentos canhões são letais. Planejados ataques de surpresa em massa - relatório completo já enviado através de Masumoto".
Depois datou e apagou a vela. Na escuridão, deslizou para fora do mosquiteiro, retirou um dos pombos dos cestos e colocou a mensagem no minúsculo recipiente no pé da ave. Depois, furtivamente dirigiu-se a um dos homens e estendeu-lhe o pombo.
- Leve-o para fora do mato - sussurrou ele. - Esconda-o em algum lugar onde possa pernoitar em segurança até o amanhecer. Tão longe quanto possível. Mas seja cuidadoso, há olhos por toda parte. Se for interceptado, diga que eu o mandei patrulhar, mas esconda o pombo primeiro. - O homem se afastou tão silenciosamente quanto uma barata.
Satisfeito consigo mesmo, Jozen olhou na direção da aldeia, lá embaixo. Havia luzes na fortaleza e na vertente oposta, na casa que ele sabia ser de Omi. Havia também algumas na casa logo abaixo, a casa atualmente ocupada pelo bárbaro.
Aquele rapazola, Naga, tem razão, pensou Jozen, afastando um mosquito com a mão. O bárbaro é uma praga imunda.
- Boa noite, Fujiko-san.
- Boa noite, Anjin-san.
A shoji fechou-se atrás dela. Blackthorne tirou o quimono, a tanga, e vestiu o quimono de dormir, mais leve. Enfiou-se sob o mosquiteiro e deitou-se.
Soprou a vela. Uma profunda escuridão o envolveu. A casa estava silenciosa agora. As pequenas janelas estavam fechadas e ele podia ouvir o mar quebrando na praia. Nuvens obscureciam a lua.
O vinho e o riso o haviam deixado sonolento e eufórico. Ouvia a arrebentação e se sentia à deriva com ela, a mente enevoada. Ocasionalmente um cão latia na aldeia lá embaixo. Eu devia arrumar um cachorro, pensou ele, lembrando-se do bull terrier em casa. Será que ainda está vivo? O nome era Grog, mas Tudor, seu filho, sempre chamava o animal de "Og-Og".
Ah, Tudor, rapazinho. Faz tanto tempo.
Gostaria de poder vê-los todos - ou até escrever uma carta o mandar para casa. Vejamos, pensou, como começaria?
"Meus queridos: esta é a primeira carta que pude mandar para casa desde que desembarcamos no Japão. As coisas vão bem, agora que sei como viver de acordo com os modos deles. A comida é terrível, mas esta noite comi um faisão e logo terei o meu navio de volta. Por onde começar a minha história? Hoje sou como um senhor feudal nesta terra estranha. Tenho uma casa, um cavalo, oito criados, uma governanta, meu próprio banheiro, o minha própria intérprete. Estou limpo e barbeado agora, e me barbeio todos os dias. As lâminas de aço que eles têm aqui certamente são as melhores do mundo. Meu salário é altíssimo - o suficiente para alimentar duzentos e cinqüenta famílias do Japão, por um ano. Na Inglaterra isso seria o equivalente a quase mil guinéus de ouro por ano! Dez vezes o meu salário na companhia holandesa...”
A shoji começou a se abrir. A mão dele procurou a pistola sob o travesseiro e ele se preparou, soerguendo-se. Depois captou o farfalhar de seda quase imperceptível e um bafejo de perfume.
- Anjin-san? - Um fio de sussurro, cheio de promessa.
- Hai? - perguntou ele de modo igualmente suave, perscrutando a escuridão, incapaz de enxergar com clareza.
Os passos se aproximaram. Houve o som dela ajoelhando-se, o mosquiteiro sendo puxado para o lado, e ela se juntou a ele sob a rede. Ela lhe tomou a mão e levou-a ao peito, depois aos lábios.
- Mariko-san?
Imediatamente os dedos dela se estenderam na escuridão e tocaram-lhe os lábios, pedindo silêncio. Ele assentiu, compreendendo o risco terrível que corriam. Ele segurou-lhe o pulso minúsculo e roçou-o com os lábios. Em meio à escuridão de breu, a outra mão dele procurou e acariciou o rosto dela. Ela beijou-lhe os dedos um por um. Seu cabelo estava solto e comprido até a cintura agora. As mãos dele percorreram-lhe o corpo. A adorável sensação da seda, nada embaixo.
O gosto dela era doce. A língua dele tocou-lhe os dentes, depois contornou-lhe as orelhas, descobrindo-a. Ela afrouxou o quimono dele e deixou o seu cair para o lado, a respiração mais langorosa agora. Ela se achegou mais, aninhando-se a ele, e puxou a coberta por cima da cabeça deles. Depois começou a amá-lo, com as mãos e os lábios. Com mais ternura e empenho e conhecimento do que ele jamais conhecera.