CAPÍTULO 46


O General Toda Hiromatsu aceitou o despacho particular que Mariko lhe estendeu. Quebrou os selos de Toranaga. O pergaminho relatava brevemente o que acontecera em Yokosé, confirmava a decisão de Toranaga de se submeter, ordenava a Hiromatsu que defendesse a fronteira e as passagens para o Kwanto contra qualquer intruso até que ele chegasse (mas para despachar qualquer mensageiro de Ishido ou proveniente de leste), e continha instruções sobre o cristão renegado e sobre o Anjin-san. Com ar cansado o velho soldado leu a mensagem uma segunda vez. — Agora conte-me tudo que viu em Yokosé, ou ouviu, que se relacione ao Senhor Toranaga.

Mariko obedeceu.

— Agora conte-me o que você pensa que aconteceu. Novamente ela obedeceu.

— O que ocorreu na cha-no-yu entre você e meu filho? Ela lhe contou tudo exatamente como acontecera.

— Meu filho disse que o nosso amo perderia? Antes do segundo encontro com o Senhor Zataki?

— Sim, senhor. — Tem certeza? — Oh, sim, senhor.

Houve um longo silêncio na sala que ficava bem alta no torreão do castelo, que dominava a cidade. Hiromatsu pôs-se de pé e dirigiu-se para a seteira na espessa parede de pedra, as costas e os joelhos doendo, a espada frouxa nas mãos. — Não entendo.

— Senhor?

— Nem ao meu filho, nem ao nosso amo. Podemos esmagar quaisquer exércitos que Ishido lance em campo. E quanto à decisão de se submeter...

Ela brincou com o leque, observando o céu noturno, estrelado e agradável.

Hiromatsu estudou-a. — Você está com ótima aparência, Mariko-san, mais jovem do que nunca. Qual é o seu segredo? — Não tenho segredo algum, senhor — respondeu ela, sua garganta repentinamente seca. Pensou que sua fala se fragmentaria, mas o momento passou e o velho desviou novamente os olhos astutos para a cidade lá embaixo.

— Agora conte-me o que aconteceu desde que você saiu de Osaka. Tudo o que você viu, ouviu, ou de que participou — disse ele.

A noite ia alta quando ela concluiu. Relatou tudo claramente, exceto a extensão da sua intimidade com o Anjin-san. Mesmo nisso foi cuidadosa em não ocultar a estima que sentia por ele, o respeito pela sua inteligência e bravura. Ou a admiração de Toranaga pelo seu valor.

Por algum tempo Hiromatsu continuou a andar de um lado para o outro, o movimento abrandando-lhe a dor. Tudo se encaixava com o relatório de Yoshinaka e o de Omi — até a tirada de Zataki antes de esse daimio abalar para Shinano. Agora ele compreendia muitas coisas que não estavam claras, e tinha informação suficiente para tomar uma decisão calculada. Parte do que ela relatou desgostou-o. Parte fê-lo odiar ainda mais o filho; conseguia entender-lhe os motivos, mas isso não fazia diferença. O resto do que ela disse forçou-o a ressentir-se com o bárbaro e algumas vezes a admirá-lo. — Você o viu puxar o nosso senhor para a segurança?

— Sim. O Senhor Toranaga estaria morto agora, senhor, não fosse ele. Tenho absoluta certeza. Ele salvou o nosso amo três vezes: escapando do Castelo de Osaka, a bordo da galera, na enseada de Osaka, e absolutamente no terremoto. Vi as espadas que Omi-san tirou da escavação. Estavam retorcidas como massa de talharim e inutilizadas.

— Acha que o Anjin-san realmente pretendia cometer seppuku?

— Sim. Pelo Senhor Deus dos cristãos, acredito que ele assumiu esse compromisso. Apenas Omi-san o impediu. E, senhor, acredito totalmente que ele seja digno de ser samurai, digno de ser hatamoto.

— Não pedi essa opinião.

— Por favor, desculpe-me, senhor, na verdade não pediu. Mas o senhor estava com a pergunta na ponta da língua.

— Tornou-se leitora de pensamento, assim como treinadora de bárbaro?

— Oh, não, por favor, desculpe-me, senhor, claro que não — disse ela, na sua voz mais delicada. — Meramente respondi ao líder do meu clã com o melhor da minha paupérrima habilidade. Os interesses do nosso amo estão em primeiro lugar na minha cabeça. Os seus vêm em segundo apenas em relação aos dele. — Vêm?

— Por favor, desculpe-me, mas não deveria ser necessário perguntar. Ordene-me, senhor. E eu obedecerei.

— Por que tão orgulhosa, Mariko-san? — perguntou ele, irritadiço. — E tão segura? Hein?

— Por favor, desculpe-me, senhor. Fui rude. Não mereço essa...

— Eu sei! Nenhuma mulher merece! — Hiromatsu riu. — Mas ainda assim há vezes em que necessitamos da sabedoria de uma mulher, a sabedoria fria, cruel, malévola, astuciosa e prática. Elas são muitíssimo mais espertas do que nós, neh?

— Oh, não, senhor — disse ela, perguntando-se o que ele realmente tinha em mente.

— É ótimo que estejamos sozinhos. Se isso fosse repetido em público, diriam que o velho Punho de Aço está caduco, que é tempo de ele aposentar a espada, raspar a cabeça, e começar a dizer preces a Buda pelas almas dos homens que mandou para o Vazio. E teriam razão.

— Não, senhor. É como o senhor seu filho disse. Até que o destino do nosso amo esteja determinado, o senhor não pode se retirar. Nem o senhor, nem o senhor meu marido. Nem eu.

— Sim. Ainda assim eu ficaria muito satisfeito em pousar a minha espada e procurar a paz de Buda para mim e para aqueles que matei.

Contemplou a noite algum tempo, sentindo a própria idade, depois olhou para ela. Ela era agradável de se ver, mais do que qualquer outra mulher que ele jamais conhecera.

— Senhor?

— Nada, Mariko-san. Só estava me lembrando da primeira vez em que a vi.

Isso fora quando Hiromatsu secretamente empenhara a própria alma a Goroda para obter aquela garota frágil para o filho, o mesmo filho que havia massacrado a própria mãe, a única mulher que Hiromatsu realmente adorara. Por que consegui Mariko para ele? Porque eu queria magoar o táicum, que também a desejava. Para magoar um rival, mais nada.

Minha consorte foi realmente infiel? perguntou-se o velho, reabrindo a chaga perpétua. Ó deuses, quando os olhar no rosto, pedirei uma resposta para essa pergunta. Quero um sim ou não!

Exijo essa verdade. Acho que é uma mentira, mas Buntaro disse que ela estava sozinha com aquele homem no quarto, o cabelo em desalinho, o quimono solto, e foi meses antes de eu voltar. Poderia ser uma mentira, neh? Ou a verdade, neh? Deve ser a verdade — com certeza filho algum decapitaria a própria mãe sem ter certeza, não?

Mariko estava observando os sulcos no rosto de Hiromatsu, a pele repuxada e esfoliada pela idade, e a vetusta força muscular dos seus braços e ombros. No que estará pensando? perguntou a si mesma, gostando dele. Já terá visto através de mim? Sabe sobre mim e o Anjin-san agora? Sabe que tremo de amor por ele? Que quando eu tiver que escolher entre ele, o senhor e Toranaga, escolherei a ele?

Hiromatsu erguia-se junto da seteira, olhando para a cidade, os dedos apertando a bainha e o punho da espada, esquecido dela. Estava meditando sobre Toranaga e o que Zataki dissera há alguns dias, em amargo desgosto, desgosto que ele compartilhara. — Sim, é claro que quero conquistar o Kwanto e plantar o meu estandarte nos muros do castelo de Yedo agora e torná-lo meu. Nunca quis isso antes, mas agora quero. Mas assim? Não há honra! Não há honra para o meu irmão nem para mim! Ou para qualquer pessoa! Exceto Ishido, e aquele camponês não entende nada de nada.

— Então apóie Toran...

— Para quê? Para aniquilar o herdeiro?

— Ele disse uma centena de vezes que apóia o herdeiro. Acredito nele. E se tivéssemos um Minowara para nos comandar, não um camponês arrivista e a bruxa da Ochiba, neh? Esses incompetentes terão oito anos de governo até que Yaemon atinja a idade, se o Senhor Toranaga morrer. Por que não dar ao Senhor Toranaga os oito anos? Ele é Minowara! Disse mil vezes que entregará o poder a Yaemon. Está com o cérebro no traseiro? Toranaga não é inimigo de Yaemon nem seu!

— Nenhum Minowara se ajoelharia diante daquele camponês! Ele mijou na própria honra e na de todos nós. Na sua e na minha!

Discutiram e se xingaram e, em particular, quase chegaram às vias de fato. — Vamos — escarnecera ele, insultando Zataki — saque a espada, traidor! Você é traidor do seu irmão, que é o cabeça do seu clã!

— Sou cabeça do meu próprio clã. Temos a mesma mãe, mas não o mesmo pai. O pai de Toranaga mandou minha mãe embora em desgraça. Não ajudarei Toranaga — mas se ele abdicar e rasgar o ventre, apoiarei Sudara...

Não há necessidade de fazer isso, disse Hiromatsu para a noite, ainda enraivecido. Não há necessidade de fazer isso enquanto eu estiver vivo, nem de se submeter humilhado. Sou general-chefe. É meu dever proteger a honra e a casa do meu amo, até dele mesmo. Portanto agora decido eu:

Ouça, senhor, por favor, desculpe-me, mas desta vez desobedeço. Com orgulho. Desta vez eu o traio. Agora vou cooptar o seu filho e herdeiro, o Senhor Sudara, e a esposa dele, a Senhora Genjiko, e juntos ordenaremos Céu Carmesim quando as chuvas cessarem, e então a guerra começará. E até que morra o último homem no Kwanto, enfrentando o inimigo, vou mantê-lo em segurança no castelo de Yedo, diga o senhor o que disser, custe o que custar.

Gyoko estava encantada de estar novamente em casa, em Mishima, entre as suas garotas e os razões e contas de transporte, seus débitos a receber, hipotecas e notas promissórias.

— Agiu muito bem — disse ao seu contador-chefe.

O mirrado homenzinho balbuciou um agradecimento e se afastou coxeando. Ele se voltou com violência para o cozinheiro-chefe. — Treze chogins de prata, duzentos momnes de cobre pela comida de uma semana?

— Oh, por favor, desculpe-me, ama, mas os rumores de guerra fizeram os preços ir voando para o céu — disse o homem gordo truculentamente. — Tudo. Peixe, arroz e verduras — até o molho de soja dobrou de preço do mês passado para cá, e o saquê é pior. Trabalhar, trabalhar, trabalhar, naquela cozinha quente, sem ar, que com certeza precisa ser melhorada. Caro! Ah! Em uma semana servi cento e setenta e dois convidados, alimentei dez cortesãs, onze famintas aprendizes de cortesã, quatro cozinheiros, dezesseis criadas, e catorze criados. Por favor, desculpe-me, ama, sinto muito, mas a minha avó está muito doente, por isso preciso pedir dez dias de folga para...

Gyoko arrancou os cabelos só o suficiente para ser enfática, mas não o suficiente para prejudicar a própria aparência, e dispensou-o dizendo que estava arruinada, arruinada, que teria que fechar a mais famosa casa de chá de Mishima sem um cozinheiro-chefe tão perfeito e que seria tudo por culpa dele — culpa dele que ela tivesse que atirar na neve todas as suas devotadas garotas, e fiéis mas infelizes auxiliares. — Não se esqueça de que o inverno se aproxima — lamuriou-se ela a título de salva de despedida.

Depois, contente, sozinha, calculou lucros e perdas, e os lucros foram o dobro do que ela esperava. O saquê que tomou teve um gosto melhor do que nunca, e se o preço dos alimentos estava subindo, o mesmo acontecia com o custo do saquê. Imediatamente escreveu ao filho em Odawara, onde se localizava a fábrica de saquê deles, dizendo-lhe que dobrasse a produção. Depois deu ouvidos às inevitáveis brigas de criadas, despediu três, contratou mais quatro, mandou chamar a agente de cortesãs, e fez generosas ofertas pelos contratos de sete cortesãs que admirava.

— E quando gostaria de que as honradas damas chegassem, Gyoko-san? — sorriu a velha, de modo afetado, a sua própria comissão considerável.

— Imediatamente. Imediatamente. Vamos, mexa-se.

Depois convocou o carpinteiro e fez planos para a ampliação da casa de chá, para os quartos extras para as damas extras.

— Finalmente o lugar na Sexta Rua está à venda, ama. Quer que eu feche negócio agora?

Por meses ela esperara pela locação daquela esquina em particular. Mas agora meneou a cabeça e mandou-o embora com instruções para optar pela compra de quatro hectares de terreno em estado natural na colina, ao norte da cidade. — Mas não faça tudo sozinho. Use intermediários. Não seja ganancioso. E não quero que corra por aí que estou comprando para mim.

— Mas quatro hectares? Isso é...

— No mínimo quatro, talvez cinco, nos próximos cinco meses. Mas apenas opções, compreendeu? Devem todos ser colocados em nome destas pessoas.

Estendeu a lista de prepostos seguros e o tocou para fora, vendo mentalmente a cidade murada dentro de uma cidade já florescendo. Riu consigo mesma, de alegria.

Em seguida cada cortesã foi chamada e a cada uma Gyokosan repreendeu, elogiou, tratou aos berros ou juntou-se no choro. Algumas foram promovidas, algumas rebaixadas, os preços de "travesseiro" aumentados ou diminuídos. Depois, no meio de tudo, Omi foi anunciado.

-— Sinto muito, mas Kiku-san não está bem — disse-lhe ela. — Nada sério! Apenas a mudança de clima, pobre criança.

— Insisto em vê-Ia.

— Sinto muito, Omi-san, mas certamente ouviste. Kiku-san pertence ao nosso suserano, neh?

— Sei a quem ela pertence — gritou Omi. — Quero vê-Ia, isso é tudo.

— Oh, sinto muito, claro, o senhor tem todo o direito de gritar e blasfemar, sinto muito, por favor, desculpe-me. Mas, sinto muito, ela não está bem. Esta noite... ou talvez mais tarde... ou amanhã... o que posso fazer, Omi-san? Se ela ficar bem o bastante, talvez eu pudesse mandar-lhe um recado, se o senhor me dissesse onde está hospedado...

Ele disse, sabendo que não havia o que pudesse fazer, e abalou furioso, querendo estraçalhar Mishima inteira.

Gyoko pensou em Omi. Depois mandou chamar Kiku e contou-lhe o programa que arranjara para as suas duas noites em Mishima. — Talvez possamos persuadir a nossa Senhora Toda a protelar quatro ou cinco noites, criança. Conheço meia dúzia de pessoas aqui que pagariam um resgate de pai para que você as entretivesse em festas particulares. Ah! Agora que o grande daimio a comprou, ninguém pode tocá-la, nunca mais, então você pode cantar, dançar e fazer mímica e será a nossa primeira gueixa!

— E o pobre Omi-san, ama? Nunca o ouvi tão mal-humorado antes, sinto muito que tenha gritado com a senhora.

— Ah! O que é um grito ou dois quando finalmente privamos com daimios e os mais ricos do rico arroz e corretores de seda. Esta noite direi a Omi-san onde você estará na última vez em que cantar, mas direi cedo demais, assim ele terá que esperar. Arranjarei um aposento por perto. Enquanto isso ele terá muito saquê... e Akiko para servi-lo. Não vai fazer mal algum cantar uma ou duas canções tristes para ele depois — ainda não temos certeza sobre Toranaga-sama, neh? Não recebemos um pagamento à vista, e ainda há um saldo a receber.

— Por favor, desculpe-me, mas Choko não seria uma escolha melhor? É mais bonita, mais jovem e mais meiga. Tenho certeza de que ele a apreciaria mais.

— Sim, criança. Mas Akiko é forte e muito experiente. Quando esse tipo de loucura se apossa dos homens, eles tendem a ser rudes. Mais do que você imaginaria. Até Omi-san. Não convite formal para o chá, no dia seguinte, às oito, para as Mama-sans mais influentes de Mishima, a fim de discutirem um assunto de grande importância —, ela mergulhou com prazer num banho perfeito. Ahhhhhhh! No momento perfeito, uma massagem perfeita. Perfume, pó, maquilagem e penteado. Agora um quimono folgado de seda leve. Em seguida, no momento perfeito, seu favorito chegou. Tinha dezoito anos, um estudante, filho de um samurai empobrecido. Chamava-se Inari.

— Oh, como você é adorável... corri para cá assim que o seu poema chegou — disse ele sem fôlego. — Fez uma viagem agradável? Estou tão feliz em dar-lhe as boas-vindas! Obrigado, obrigado pelos presentes... a espada é perfeita, e o quimono! Oh, como a senhora é boa para mim!

Sim, sou, disse ela a si mesma, embora o negasse resolutamente por causa da dignidade dele. Logo estava deitada ao lado dele, suada e langorosa. Ah, Inari, pensou ela inebriada, o seu Pilão Translúcido não tem a compleição do do Anjin-san, mas o que lhe falta em tamanho você certamente compensa com um vigor cataclísmico.

— Por que ri? — perguntou ele, sonolento.

— Porque você me faz feliz — suspirou ela, encantada por ter tido a grande fortuna de ter sido educada. Tagarelou com facilidade, elogiou-o com extravagância e afagou-o até que pegasse no sono, suas mãos e sua voz realizando tudo o que era necessário por volição própria, advinda do longo hábito. Tinha a mente bem longe. Pensava em Mariko e no seu amante, repensando as alternativas. Até onde ousaria pressionar Mariko? Ou a quem deveria entregá-los, ou ameaçá-la com essa possível entrega, sutilmente é claro: Toranaga, Buntaro ou quem? O padre cristão? Haveria algum lucro nisso? Ou o Senhor Kiyama — certamente qualquer escândalo envolvendo a grande Senhora Toda com o bárbaro arruinaria a chance do filho dela de se casar com a neta de Kiyama. Essa ameaça a tornaria flexível à minha vontade? Ou não devo fazer nada — há mais lucro nisso, de algum modo?

Coitada de Mariko. Uma senhora tão adorável! Caramba, mas ela daria uma cortesã sensacional! Coitado do Anjin-san.

E os mosquetes e armas escondidos pelos camponeses em Anjiro, por exemplo, ou sobre o novo Regimento de Mosquetes — seus efetivos, oficiais, organização e quantidade de armas. Ou sobre Toranaga, que na última noite em Yokosé "travesseirou" com Kiku alegremente, usando um ritmo clássico de "seis rasos e cinco fundos" com o vigor de um homem de trinta anos, e depois dormiu como um bebê até o amanhecer. Esse não é o padrão de um homem perturbado por preocupações, neh?

E quanto à agonia do padre tonsurado, virgem, que, nu e de joelhos, primeiro rezou ao seu intolerante Deus cristão, implorando perdão pelo pecado que estava prestes a cometer com a garota, e o outro pecado, um pecado de verdade, que ele cometera em Osaka — estranhas coisas secretas do "confessionário", que lhe foram sussurradas por um leproso, depois traiçoeiramente passadas por ele ao Senhor Harima. O que Toranaga faria com isso? Interminavelmente pondo para fora o que fora sussurrado, passado adiante, e depois a oração com os olhos bem fechados — antes que o pobre imbecil se esparramasse em cima da garota sem habilidade alguma e, depois, saísse correndo como uma abominável criatura da noite. Tanto ódio, sofrimento e vergonha entrelaçados.

E quanto ao segundo cozinheiro de Omi, o qual cochichara a uma criada a qual cochichara ao amante o qual cochichara a Akiko que tinha ouvido às ocultas sobre Omi e a mãe tramando a morte de Kasigi Yabu, seu suserano? Ah! Se isso viesse a público, seria como lançar um gato entre todos os pombos Kasigi! Assim como o oferecimento secreto de Omi e Yabu a Zataki, se soprado aos ouvidos de Toranaga — ou as palavras que Zataki resmungou no sono que a sua parceira de "travesseiro" memorizou e me vendeu no dia seguinte por um chogin de prata inteiro, palavras que sugeriam que o General Ishido e a Senhora Ochiba comem juntos, dormem juntos, e que o próprio Zataki ouvira-os grunhindo e gemendo e gritando enquanto Yang atravessava Yin. Gyoko sorriu consigo mesma, satisfeita. Chocante, neh, pessoas em posições tão elevadas!

E o outro fato estranho de que, no momento das Nuvens e Chuva, e alguns momentos antes, o Senhor Zataki inconscientemente chamara a parceira de "Ochiba". Curioso, neh?

Será que o oh-tão-necessário-de-ambos-os-lados Zataki mudaria a canção se Toranaga lhe oferecesse Ochiba como isca? Gyoko casquinou consigo mesma, animada com todos os adoráveis segredos, todos muito valiosos nos ouvidos certos, que homens haviam derramado junto com o Sumo do Prazer. — Ele mudaria — murmurou confiante. — Oh, sim.

— O quê?

— Nada, nada, Inari-chan. Dormiu bem?

— O quê?

Ela sorriu e deixou-o mergulhar no sono de novo. Depois, quando ele estava pronto, tocou-o com a mão e os lábios para o prazer dele. E para o seu.

— Onde está o Inglês agora, padre?

— Não sei exatamente, Rodrigues. Ainda. Deve estar numa das hospedarias ao sul de Mishima. Deixei um criado para descobrir qual. — Alvito juntou o resto do molho com uma casca de pão fresco.

— Quando saberá?

— Amanhã, sem falta.

— Que vá, eu gostaria de vê-lo de novo. Ele está bem? — perguntou Rodrigues.

— Sim. — O sino do navio soou seis vezes. Três da tarde. — Ele contou ao senhor o que lhe aconteceu desde que partiu de Osaka?

— Sei de alguns trechos. Por ele e por outros. É uma longa história e há muito a contar. Primeiro lidarei com os meus despachos, depois conversaremos.

Rodrigues encostou-se na cadeira, na pequena cabina de popa. — Bom. Isso seria muito bom. — Viu os traços agudos do jesuíta, os penetrantes olhos castanhos salpicados de amarelo. Olhos de gato. — Ouça, padre — disse ele —, o Inglês salvou o meu navio e a minha vida. Claro que é inimigo, claro que é herege, mas é um piloto, um dos melhores que já existiram. Não é errado respeitar um inimigo, ou mesmo gostar dele.

— Jesus perdoou a seus inimigos, mas eles ainda o crucificaram. — Calmamente Alvito retribuiu o olhar fixo do piloto. — Mas eu também gosto dele. Pelo menos, compreendo-o melhor. Vamos deixá-lo por enquanto.

Rodrigues assentiu, concordando. Notou que o prato do padre estava vazio, então esticou-se por sobre a mesa e colocou-lhe a travessa mais perto. — Pronto, padre, coma mais um pouco de frango. Pão?

— Obrigado. Sim, estava faminto. — O padre agradecidamente arrancou outra perna, comerei. Não tinha percebido como estava com fome e pegou mais salva, cebola e pão, depois cobriu tudo com o fim do espesso molho.

— Vinho?

— Sim, obrigado.

— Onde está o resto da sua gente, padre?

— Deixei-os numa hospedaria perto do ancoradouro. Rodrigues olhou pelas vigias que davam para Nimazu, os ancoradouros e o porto, bem a estibordo, a embocadura do Kano, onde a água era mais escura do que o resto do mar. Muitos barcos de pesca iam e vinham. — Esse criado que deixou lá, padre... pode confiar nele? Tem certeza de que os encontrará? — Oh, sim. Eles certamente não vão sair de lá por dois dias no mínimo. — Alvito já decidira não mencionar o que ele, ou mais corretamente, lembrou-se, o que o Irmão Miguel suspeitava, por isso apenas acrescentou: — Não se esqueça de que eles estão viajando formalmente. Com a posição de Toda Mariko e as bandeiras de Toranaga, viajam com toda a formalidade. Todo mundo, em quatro léguas, saberia sobre eles e onde estão hospedados. Rodrigues riu. — O Inglês viajando formalmente? Quem teria acreditado nisso? Como um daimio sifilítico?

— Isso não é nem a metade, piloto. Toranaga tornou-o samurai e hatamoto.

— O quê?

— Agora o Piloto-Mor Blackthorne usa as duas espadas. Com as pistolas. E é confidente de Toranaga, em certa medida, e seu protegido.

— O Inglês?

— Sim. — Alvito deixou o silêncio pairar na cabina e voltou a comer.

— Sabe o porquê disso? — perguntou Rodrigues. — Sim, em parte. Tudo a seu tempo, piloto.

— Conte-me apenas o porquê. Rapidamente. Os detalhes mais tarde, por favor.

— O Anjin-san salvou a vida de Toranaga pela terceira vez. Duas durante a fuga de Osaka, a última em Izu, durante um terremoto. — Alvito atacou vigorosamente a carne da coxa. Um filete de sumo correu-lhe pela barba negra.

Rodrigues esperou, mas o padre não disse mais nada. Pensativamente seus olhos caíram no cálice que segurava entre as mãos. A superfície do vinho vermelho-escuro refletiu a luz. Após uma longa pausa, disse: — Não seria bom para nós aquele Inglês incrível perto de Toranaga. Não em absoluto. Não ele. Hein?

— Concordo.

— Ainda assim, gostaria de vê-lo. — O padre não disse nada. Rodrigues deixou-o limpar o prato em silêncio, depois ofereceu mais, agora já não sentindo alegria alguma. O resto da carcaça e a última asa foram aceitos, e outro cálice de vinho. Depois, para terminar, um pouco de excelente conhaque francês, que o padre pegou num armário.

— Rodrigues, gostaria de tomar um copo?

— Obrigado. — O marujo observou Alvito verter o líquido amarronzado no copo de cristal. Todo o vinho e o conhaque tinham vindo do estoque particular do padre-inspetor, como um presente de despedida ao seu amigo jesuíta.

— Naturalmente, Rodrigues, você ficará à vontade para compartilhá-lo com o padre — dissera Dell'Aqua. — Vá com Deus, que ele vele por você e o leve com segurança a bom porto e para casa de novo.

— Obrigado, Eminência.

Sim, obrigado, Eminência, mas nada de malditos agradecimentos, disse-lhe Rodrigues causticamente, nada de agradecimentos por conseguir que o meu capitão-mor me mandasse vir para bordo deste barco de porcos sob o comando deste jesuíta e longe dos braços da minha Gracia, pobre querida. Nossa Senhora, a vida é tão curta, curta demais e traiçoeira demais para desperdiçá-la sendo acompanhante de padres fedorentos, até de Alvito, que é mais homem do que qualquer outro e, por causa disso, mais perigoso. Nossa Senhora, ajude-me!

— Oh! Você já vai, Rod-san? Vai tão cedo? Oh, que pena... — Volto logo, minha querida.

— Oh, que pena... sentimos falta, o pequenino e eu.

Por um momento ele considerara a possibilidade de levá-la para bordo do Santa Filipa, mas imediatamente pusera de lado o pensamento, sabendo que seria perigoso para ela, para ele e para o navio. — Sinto muito, volto logo.

— Nós esperamos, Rod-san. Por favor, desculpe minha tristeza, sinto muito.

Sempre o português hesitante e com sotaque pesado que ela tentava tão arduamente falar, insistindo em ser chamada pelo nome de batismo, Gracia, e não por Nyan-nyan, de som tão agradável, que significava Gatinho e lhe assentava tão bem e de que ele gostava mais ainda.

Ele zarpara de Nagasaki, detestando partir, amaldiçoando todos os padres e capitães-mor, querendo que o verão terminasse e o outono chegasse, de modo que ele pudesse levantar ferros com o Navio Negro, os porões carregados, rumar para casa finalmente, rico e independente. Mas depois o quê? A perpétua pergunta o assoberbava. E ela — e a criança? Nossa Senhora, ajude-me a responder isso com paz.

— Uma excelente refeição, Rodrigues — disse Alvito, brincando com uma migalha de pão na toalha. — Obrigado.

— Bom. — Rodrigues estava sério agora. — Qual é o seu plano, padre? Devemos... — Ele parou no meio da frase e olhou para fora. Depois, descontente, levantou-se da mesa, coxeou doloridamente até uma vigia do lado da terra e perscrutou o exterior. — O que é, Rodrigues?

— Pensei ter sentido a maré mudar. Só quis verificar o nosso espaço de manobras. — Abriu mais a vigia e se inclinou para fora, mas ainda não conseguiu ver a âncora de proa. — Com licença um instante, padre.

Subiu ao convés. A água lambia a corrente da âncora que mergulhava angulosa na água lamacenta. Nenhum movimento. Então apareceu um fio de esteira e o navio começou a se mover em segurança, para tomar sua nova posição com a maré vazante. Ele examinou a posição, depois as vigias. Estava tudo perfeito, nenhum outro navio por perto. A tarde estava excelente, a neblina dissipada há muito tempo. Estavam a uma amarra mais ou menos da praia, afastados o suficiente para impedir uma abordagem súbita, e bem longe das rotas que levavam aos atraçadouros.

O navio era uma lorcha, um casco japonês adaptado às velas e cordames portugueses modernos: veloz, de dois mastros, e equipado como uma corveta. Tinha quatro canhões a meia-nau, dois pequenos morteiros de proa e dois de popa. Chamava-se Santa Filipa e carregava uma tripulação de trinta marujos.

Seus olhos foram para a cidade e para as colinas além. — Pesaro!

— Sim, senhor?

— Prepare a chalupa. Vamos a terra antes do crepúsculo. — Bom. Estará pronto. Quando volta?

— Ao amanhecer.

— Melhor ainda! Comandarei o grupo de desembarque — dez homens.

— Nada disso, Pesaro. É kinjiru! Minha Nossa Senhora, o seu cérebro está podre? — Rodrigues se escarranchou no tombadilho e se inclinou sobre a amurada.

— Não está certo que todos devam sofrer — disse o contramestre, Pesaro. — Comandarei o grupo e prometo que não haverá problema. Estamos engaiolados há duas semanas já.

— As autoridades do porto daqui disseram kinjiru, sinto muito, mas sempre é o maldito kinjiru! Lembra? Isto não é Nagasaki!

— Sim, pelo sangue de Jesus Cristo, e que ele tenha piedade! — O homem atarracado carregou o sobrolho. — Foi só um japona que foi retalhado.

— Um morto retalhado, dois esfaqueados gravemente, muitos feridos, e uma garota ferida antes que os samurais interrompessem a arruaça. Preveni vocês todos antes de descerem a terra: "Nimazu não é Nagasaki, portanto comportem-se!" Minha Nossa Senhora! Tivemos sorte em dar o fora com apenas um marujo morto. Eles estariam dentro da lei se quisessem picar vocês cinco em pedaços.

— Lei deles, piloto, não nossa. Malditos macacos! Foi só uma rixa de bordel.

— Sim, mas os seus homens começaram, as autoridades puseram o meu navio de quarentena, e vocês estão todos marcados. Você inclusive! — Rodrigues mudou a perna de posição para diminuir a dor. — Seja paciente, Pesaro. À hora que o padre voltar, zarparemos.

— Ao amanhecer? Isso é uma ordem?

— Não, ainda não. Só prepare a chalupa. Gomez virá comigo.

— Deixe-me ir também, hein? Por favor, piloto. Estou doente de morte de estar enfiado neste maldito balde.

— Não. E é melhor não ir a terra esta noite. Nem você, nem qualquer outro.

— E se o senhor não voltar ao amanhecer? — A você não parece claro?

A carranca do contramestre aprofundou-se. Ele recuou. — Sim, sim, está claro, por Deus.

— Bom. — Rodrigues desceu.

Alvito estava adormecido, mas despertou no momento que o piloto abriu a porta da cabina. — Ah, está tudo bem? — perguntou, satisfeito agora, de mente e corpo.

— Sim. Foi só o turno. — Rodrigues tomou uns goles de vinho, para tirar o gosto horrível da boca. Era sempre assim depois de um quase-motim. Se Pesaro não tivesse cedido imediatamente, mais uma vez Rodrigues teria tido que estourar a cara de um. Então hesitou, de enfrentar o homem ou colocá-lo a ferros ou ordenar cinqüenta chicotadas ou mergulhar o homem abaixo da quilha, ou pôr em prática qualquer uma da centena de obscenidades essenciais, pela lei do mar, para se manter a disciplina. Sem disciplina qualquer navio estaria perdido. — Qual é o plano agora, padre? Zarpamos ao amanhecer? — Como estão os pombos-correio?

— Em boa saúde. Ainda temos seis: quatro Nagasaki, dois Osaka.

O padre verificou o ângulo do sol. Quatro ou cinco horas até o crepúsculo. Muito tempo para soltar as aves com a primeira mensagem codificada que ele planejara há muito tempo: "Toranaga rende-se às ordens dos regentes. Vou primeiro a Yedo, depois a Osaka. Acompanharei Toranaga a Osaka. Ele diz que ainda podemos construir a catedral em Yedo. Despachos pormenorizados com Rodrigues".

— Quer dizer ao tratador, por favor, para preparar dois Nagasaki e um Osaka imediatamente? — disse Alvito. — Depois conversaremos. Não vou voltar com você. Estou indo para Yedo por terra. Vai me tomar a maior parte da noite e do dia de amanhã escrever um despacho detalhado, que você levará ao padre-inspetor, entregando às mãos dele apenas. Você zarpará assim que eu tiver terminado?

— Está bem. Se for muito perto do crepúsculo, esperarei até o amanhecer. Há bancos de areia e areias movediças por dez léguas.

Alvito assentiu. As doze horas extras não fariam diferença. Sabia que teria sido muitíssimo melhor se ele tivesse podido mandar as notícias de Yokosé, Deus amaldiçoe o demônio pagão que destruiu os meus pombos lá! Tenha paciência, disse a si mesmo. Para que a pressa? Isso não é uma regra vital da nossa ordem? Paciência. Quem espera sempre alcança. Quem espera e quem trabalha. O que importam doze horas, ou mesmo oito dias? Não mudarão o curso da história. Os dados foram lançados em Yokosé.

— Vai viajar com o Inglês? — estava perguntando Rodrigues. — Como antes?

— Sim. De Yedo voltarei para Osaka. Acompanharei Toranaga. Gostaria de que você parasse em Osaka com uma cópia do meu despacho, para o caso de o padre-inspetor estar lá ou ter partido de Nagasaki antes que você chegue lá e esteja a caminho. Você pode entregá-lo ao Padre Soldi, secretário dele... apenas a ele.

— Está bem. Ficarei contente em partir. Somos odiados aqui.

— Com a mercê de Deus, podemos mudar tudo isso, Rodrigues. Com a boa graça de Deus, converteremos todos os pagãos aqui.

— Amém a isso. Sim. — O homem alto moveu a perna, o latejamento momentaneamente abrandado. Olhou fixamente pela janela. Depois se levantou, impaciente. — Vou eu mesmo buscar os pombos. Escreva a sua mensagem, depois conversaremos. Sobre o Inglês. — Subiu ao convés e selecionou as aves nos cestos. Quando retornou, o padre já usara a pena especial, aguçada com uma agulha, e a tinta para inscrever a mesma mensagem em código nas minúsculas tiras de papel. Alvito encheu os minúsculos cilindros, lacrou-os, e soltou os pássaros. Os três fizeram um círculo no ar, depois rumaram para oeste, ao sol da tarde.

— Conversaremos aqui ou lá embaixo?

— Aqui. É mais fresco. — Rodrigues apontou o centro do tombadilho, fora do raio de audição.

Alvito sentou-se numa cadeira-de-mar. — Primeiro sobre Toranaga.

Contou brevemente ao piloto o que acontecera em Yokosé, omitindo o incidente com o Irmão José e a sua suspeita sobre Mariko e Blackthorne. Rodrigues ficou tão assombrado com a rendição quanto ele ficara. — Nada de guerra? É um milagre! Agora estamos realmente seguros, o nosso Navio Negro está seguro, a Igreja está rica, estamos ricos... graças a Deus, aos santos e a Nossa Senhora! Essa é a melhor notícia que o senhor poderia ter trazido, padre. Estamos seguros!

— Se Deus quiser. Uma coisa que Toranaga disse me perturbou. Colocou deste jeito: "Posso ordenar e o meu cristão estará livre — o Anjin-san. Com seu navio, e com seus canhões".

O imenso bom humor de Rodrigues sumiu. — O Erasmus ainda está em Yedo? Ainda está sob o controle de Toranaga?

— Sim. Seria grave se o Inglês fosse solto?

— Grave? Aquele navio nos mandaria para o inferno se apanhasse o nosso Navio Negro entre aqui e Macau com ele a bordo, armado, com metade de uma tripulação decente. Temos apenas a pequena fragata para intervir e ela não é páreo para o Erasmus! Nem nós. Ele poderia dançar em torno de nós e teríamos que arriar as nossas bandeiras.

— Tem certeza?

— Sim. Diante de Deus... o Erasmus seria um assassino.

— Furioso, Rodrigues fechou um punho. — Mas espere um momento... o Inglês disse que chegou aqui com apenas doze homens, e nem todos marujos, muitos deles mercadores e a maioria doente. Esses poucos não conseguiriam manejar o navio. O único lugar onde ele poderia conseguir uma tripulação seria Nagasaki — ou Macau. Poderia conseguir o suficiente em Nagasaki! Há os que... é melhor que seja mantido longe de lá, e de Macau! — Digamos que ele tivesse uma tripulação nativa?

— Quer dizer, alguns dos degoladores de Toranaga? Ou wakos? Quer dizer, se Toranaga se rendeu, todos os seus homens se tornam ronins, neh? Se o Inglês tivesse tempo suficiente poderia treiná-los. Facilmente. Jesus Cristo... por favor, desculpe-me, padre, mas se o Inglês conseguisse samurais ou wakos... não podemos arriscar isso — ele é bom demais. Todos vimos isso em Osaka! Ele solto nessa maldita Ásia com uma tripulação de samurais...

Alvito observava-o, ainda mais preocupado agora. — Acho que é melhor eu enviar outra mensagem ao padre-inspetor. Ele deve ser informado, se é urgente assim. Ele saberá o que fazer.

— Eu sei o que fazer! — O punho de Rodrigues esmagou-se contra a amurada. Pôs-se de pé e deu as costas. — Ouça, padre, escute a minha confissão: na primeira noite, quando ele se encontrava ao meu lado e na galera, ao mar, quando estávamos indo de Anjiro, meu coração me disse que o matasse, e depois de novo durante a tempestade. Jesus me ajude, foi a hora em que o mandei para a frente e deliberadamente dei uma guinada sem preveni-lo, ele sem um salva-vidas, para assassiná-lo, mas o Inglês não caiu ao mar como qualquer outro teria caído. Achei que aquilo era a mão de Deus, e tive certeza disso quando, mais tarde, ele me salvou o navio, e depois quando o navio estava salvo e a onda me pegou e eu estava me afogando, meu último pensamento foi que aquilo também era punição de Deus pela minha tentativa de assassinato. Não se faz isso a um piloto — ele nunca faria isso a mim! Mereci daquela vez e depois, quando me descobri vivo e ele se inclinando em cima de mim, ajudando-me a beber, fiquei tão envergonhado e novamente implorei o perdão de Deus e fiz um juramento sagrado de tentar retribuir-lhe isso. Minha Nossa Senhora! — exclamou ele atormentado. — Aquele homem me salvou embora soubesse que eu tentei matá-lo. Vi isso nos olhos dele. Salvou-me e me ajudou a viver e agora tenho que matá-lo. — Por quê?

— O capitão-mor estava certo: Deus nos ajude se o Inglês zarpar no Erasinus, armado, com metade de uma tripulação decente.

Blackthorne e Mariko dormiam na paz noturna da sua casinha, no conjunto de casinhas que constituía a Hospedaria das Camélias, que ficava na Nona Rua Sul. Havia três aposentos em cada casa. Mariko tomara um para si e Chimmoko, Blackthorne outro, e o terceiro, que dava para a porta da frente e a varanda, fora deixado vazio, para estar, comer, e conversar.

— Acha que isto é seguro? — perguntara Blackthorne ansioso. — Não ter Yoshinaka, ou mais criadas ou guardas dormindo aqui?

— Não, Anjin-san. Na realidade nada é seguro. Mas será agradável ficarmos sozinhos. Esta hospedaria é considerada a mais bonita e famosa de Izu. É bonita, neh?

E era. Cada casa minúscula erguia-se sobre pilares elegantes, tinha varandas circundantes e quatro degraus, feitos das melhores madeiras, tudo polido e brilhando. Ficavam todas separadas cinqüenta passos da vizinha e cercadas por jardins bem tratados dentro do jardim maior por trás dos altos muros de bambu. Havia riachos, tanques de lírios, quedas d'água, árvores floridas em abundância, com perfumes diurnos e perfumes noturnos, um aroma doce e voluptuoso. Caminhos de pedra, limpos, cobertos com delicados telhados, levavam aos banhos centrais, frio, quente e muito quente, alimentados por fontes naturais. Lanternas multicoloridas, criados e criadas felizes, e nunca uma palavra áspera para perturbar os sinos das árvores, a água borbulhando e os pássaros cantando nos aviários.

— Naturalmente pedi duas casas, Anjin-san, uma para o senhor e uma para mim. Infelizmente, apenas uma estava disponível, sinto muito. Mas Yoshinaka-san não ficou descontente. Pelo contrário, ficou aliviado pois assim não terá que dividir os seus homens. Postou sentinelas em cada caminho, portanto estamos totalmente seguros e não podemos ser incomodados como em outros lugares. Por que deveríamos ser incomodados? O que poderia estar errado com um quarto aqui, outro ali, e Chimmoko para partilhar o seu leito?

— Nada. Nunca vi lugar tão bonito. Como a senhora é um inteligente, e como é bela.

— Ah, como é gentil comigo, Anjin-san. Primeiro tome um banho, depois a refeição da noite e muito saque.

— Bom. Muito bom.

— Ponha de lado seu dicionário, Anjin-san, por favor. — Mas a senhora está sempre me encorajando.

— Se largar o livro um instante... eu conto-lhe um segredo. — Qual?

— Convidei Yoshinaka-san para comer conosco. E algumas senhoras. Para nos entreter.

— Ah!

— Sim. Depois que eu o deixar, o senhor escolherá uma, neh? — Mas isso poderia perturbar-lhe o sono, sinto muito.

— Prometo que dormirei pesadamente, meu amor. Falando sério, uma mudança poderia ser bom para você.

— Sim, mas no próximo ano, não agora. — Seja sério.

— Eu sou.

— Ah, então, nesse caso, se por acaso você polidamente mudar de idéia e mandá-la embora cedo — depois que Yoshinaka-san tenha partido com a sua acompanhante —, ah, quem sabe o que o kami da noite poderia encontrar para você então?

— O quê?

— Fui fazer compras hoje. — Oh? E o que comprou? — Ah!

Ela havia comprado um sortimento dos acessórios de "travesseiro" que Kiku lhes mostrara, e muito mais tarde, quando Yoshinaka partira e Chimmoko vigiava na varanda, ela os ofereceu a ele com uma profunda mesura. Meio jocosamente, ele aceitou com igual formalidade, e juntos escolheram um anel de prazer.

— Isso parece que pica muito, Anjin-san, neh? Tem certeza de que não se importa?

— Não, não se você não se importa, mas pare de rir ou vai estragar tudo. Apague as velas.

— Oh, não, por favor, quero olhar.

— Pelo amor de Deus, pare de rir, Mariko! — Mas você também está rindo!

— Não interessa, apague a luz ou... Pronto, agora olhe o que você fez.

— Oh!

— Pare de rir! Não é bom pôr a cabeça sobre os futons... Depois, mais tarde, problemas.

— Mariko...

— Sim, meu amor?

— Não consigo encontrá-lo. — Oh! Deixe-me ajudá-lo.

— Ah, está tudo bem. Eu estava deitado em cima.

— Oh! Você tem... tem certeza de que não se importa?

— Não, mas é um pouco, bem, toda esta conversa e ter que esperar, não é uma coisa que levante exatamente, é?

— Oh, eu não me importo. A culpa foi minha, por rir. Oh, Anjin-san, amo-o muito, por favor, desculpe-me.

— Está desculpada. — Adoro tocar você. — Nunca conheci nada como o seu toque. — O que está fazendo, Anjin-san?

— Colocando isto. — Está difícil?

— Sim. Pare de rir!

— Oh, sinto muito, talvez você... — Pare de rir!

— Por favor, perdoe-me...

Depois ela pegou no sono na hora, totalmente extenuada. Ele não. Para ele fora bom, mas não perfeito. Ficara preocupado demais com ela. Resolvera que aquela vez seria para o prazer dela, não o seu. Sim, isto foi para ela, pensou, amando-a. Mas uma coisa foi perfeita: sei que realmente a satisfiz. Por uma vez. Estou absolutamente certo.

Dormiu. Algum tempo mais tarde o som de vozes e discussão e, misturado a isso, o som de português, começou a se infiltrar pelo seu sono leve. Por um momento pensou estar sonhando, depois reconheceu a voz: — Rodrigues!

Mariko murmurou, ainda mergulhada no sono.

Ao som de passos no caminho, ele se pôs de joelhos em pânico controlado. Ergueu-a como se fosse uma boneca, dirigiu-se para a shoji, e parou exatamente quando a porta foi aberta por fora. Era Chimmoko. A criada estava de cabeça baixa, os olhos discretamente fechados. Ele passou às pressas por ela, com Mariko nos braços, e deitou-a gentilmente sobre os seus próprios acolchoados, ainda meio adormecida, e correu silenciosamente para o seu quarto de novo, sentindo um suor gelado embora a noite estivesse quente. Enfiou um quimono às apalpadelas e rumou às pressas para a varanda. Yoshinaka atingira o segundo degrau. — Nan desu ka, Yoshinaka-san?

— Gomen nasai, Anjin-san — disse Yoshinaka. Apontou para os archotes no portão da hospedaria, acrescentando muitas palavras que Blackthorne não entendeu. Mas a essência do que disse era que aquele homem lá, o bárbaro, quer vê-lo e eu lhe disse que esperasse e ele disse que não esperaria, agindo como um daimio, coisa que ele não é, e tentou entrar à força, o que eu impedi. Disse que era seu amigo. É?

— Ei, Inglês! Sou eu, Vasco Rodrigues!

— Ei, Rodrigues! — gritou Blackthorne, feliz. — Já vou. Hai, Yoshinaka-san. Kare wa watashi no iehi yujin desu. Ele é meu amigo.

— Ah so desu! — Hai. Domo.

Blackthorne desceu correndo os degraus para se dirigir ao portão. Atrás ouviu a voz de Mariko. — Nan ja, Chimmoko? — e um sussurro, e depois ela chamou com autoridade: — Yoshinaka-san!

— Hai, Toda-sama!

Blackthorne correu os olhos em torno. O samurai subiu os degraus e tomou a direção do quarto de Mariko. A porta dela estava fechada. Chimmoko erguia-se do lado de fora. Seus lençóis amarrotados estavam, agora, perto da porta, onde devia dormir sempre, corretamente, caso a ama não a desejasse no quarto consigo. Yoshinaka curvou-se para a porta e começou a relatar. Blackthorne seguiu pelo caminho com alegria crescente, descalço, os olhos no português, um largo sorriso de boas-vindas, a luz dos archotes dançando nos brincos e na fivela do vistoso chapéu dele.

— Ei, Rodrigues! É ótimo vê-lo. Como vai a perna? Como me achou?

— Nossa Senhora, você cresceu, Inglês, está mais cheio? Sim, bem, saudável e agindo como um maldito daimio! — Rodrigues deu-lhe um abraço de urso e ele retribuiu.

— Como vai a perna?

— Dói como merda, mas funciona, e achei você perguntando onde estava o grande Anjin-san — o grande bárbaro bandido e bastardo, de olhos azuis!

Riram juntos, trocando obscenidades, sem se preocupar com os samurais e criados que os rodeavam. Num instante Blackthorne mandou uma criada buscar saquê e levou Rodrigues para a varanda. Ambos andavam com a ginga de marinheiro, a mão direita de Rodrigues, por hábito, no punho do florete, o outro polegar enganchado no cinto largo, perto da pistola. Blackthorne era algumas polegadas mais alto mas o português tinha ombros ainda mais largos e um peito que parecia um barril.

Yoshinaka esperava na varanda.

— Domo arigato, Yoshinaka-san — disse Blackthorne, agradecendo de novo ao samurai, e apontou uma das almofadas a Rodrigues. — Vamos conversar aqui.

Rodrigues pôs um pé nos degraus, mas parou quando Yoshinaka se moveu para a sua frente, apontando para o florete e a pistola, e estendeu a mão esquerda, palma para cima. — Dozo!

O português franziu o cenho. — Iyé, samurai-sama, domo ari...

— Dozo!

— Iyé, samurai-sama, iyé! — repetiu Rodrigues mais ríspido. Watashi yujin Anjin-san, neh?

Blackthorne deu um passo à frente, ainda surpreso com o inesperado da confrontação. — Yoshinaka-san, shikata ga nai, neh? — disse com um sorriso. — Rodrigues yujin wata...

— Gomen nasai, Anjin-san. Kinjiru! — Yoshinaka vociferou uma ordem. Imediatamente samurais avançaram, rodeando Rodrígues ameaçadoramente, e novamente ele estendeu a mão. — Dozo!

— Esses putos de merda são melindrosos, Inglês — disse Rodrigues através de um sorriso arreganhado. — Mande-os sossegar, hein? Nunca tive que entregar as minhas armas antes.

— Não, Rodrigues! — disse ele rapidamente, sentindo a iminente decisão do amigo, depois a Yoshinaka: — Domo, gomen nasai, Rodrigues yujin, watash...

— Goinen nasai, Anjin-san. Kinjiru. — Depois, asperamente, para o português: — Ima.

— Iyé! Wakarimasu ka! — rosnou Rodrigues.

Blackthorne rapidamente postou-se entre eles. — Ei, Rodrigues, o que importa isso, neh? Deixe Yoshinaka-san ficar com elas. Não tem nada a ver com você ou comigo. É por causa da senhora, Toda Mariko-sama. Ela está lá dentro. Você sabe como eles são melindrosos sobre armas perto de daimios ou das esposas deles. Discutiremos a noite toda, você sabe como eles são, hein? Que diferença faz?

O português forçou um sorriso. — Claro. Por que não? Hai, shikata ga nai, samurai-sama. So desu?

Curvou-se como um cortesão sem sinceridade, soltou o florete e a bainha do gancho, tirou a pistola do cinto e estendeu a eles. Yoshinaka fez sinal a um samurai, que pegou as armas e correu para o portão, onde as colocou no chão e ficou de guarda. Rodrigues começou a subir os degraus, mas de novo Yoshinaka polida e firmemente pediu-lhe que parasse. Outros samurais se aproximaram para revistá-lo. Furioso, Rodrigues saltou para trás. — Iyé! Kin jiru, por Deus! Que...

Os samurais caíram-lhe em cima, seguraram-lhe os braços com força, e revistaram-no completamente. Encontraram duas facas no alto das botas, outra amarrada no antebraço esquerdo, duas pequenas pistolas — uma escondida no forro do casaco, outra sob a camisa — e um pequeno frasco de estanho ao quadril. Blackthorne examinou as pistolas. Estavam ambas engatilhadas. — A outra também estava engatilhada?

— Sim. Claro. Esta terra é hostil, não notou, Inglês? Diga-lhes que me larguem!

— Esse não é o modo habitual de visitar um amigo à noite. Neh?

— Estou lhe dizendo que esta terra é hostil. Estou sempre armado assim. Você não, normalmente? Minha Nossa Senhora, diga a esses bastardos que me deixem em paz.

— Isso é tudo? Tudo?

— Claro. Diga-lhes que me deixem em paz, Inglês! Blackthorne entregou as pistolas a um samurai e deu um passo à frente. Seus dedos tatearam cuidadosamente a face interna do largo cinto de couro de Rodrigues. Um estilete escorregou de sua bainha secreta, muito fino, muito maleável, feito do melhor aço de Damasco. Yoshinaka praguejou contra os samurais que haviam feito a vistoria. Eles se desculparam, mas Blackthorne só olhava para Rodrigues.

— Mais alguma coisa? — perguntou, o estilete solto na mão. Rodrigues sustentou-lhe o olhar, impassível.

— Eu digo a eles onde olhar... e como olhar, Rodrigues. Como um espanhol faria ... alguns deles. Hein?

— Me cago en la leche, che cabrón!

— Que va, leche! Depressa! — Nenhuma resposta. Blackthorne avançou com a faca. — Dozo, Yoshinaka-san. Watash... Rodrigues disse, rouco: — Na fita do meu chapéu —, e Blackthorne parou.

— Bom — disse ele, e estendeu a mão para o chapéu de aba larga.

— Você os ensinaria, não ensinaria? — Você não?

— Tenha cuidado com a pluma, Inglês, eu aprecio muito isso.

A fita era larga e rígida, a pluma vistosa como o chapéu.

Dentro da fita estava um delgado estilete, menor, especialmente desenhado, o aço excelente moldando-se com facilidade à curva. Yoshinaka vociferou outra violenta reprimenda aos samurais.

— Diante de Deus, isso é tudo, Rodrigues? — Nossa Senhora, eu lhe disse!

— Jure.

Rodrigues aquiesceu.

— Yoshinaka-san, ima ichi-ban. Domo — disse Blackthorne. Ele está em ordem agora. Obrigado.

Yoshinaka deu a ordem. Seus homens soltaram o português. Rodrigues esfregou os membros para abrandar a dor. — Posso me sentar, Inglês?

— Sim.

Rodrigues enxugou o suor com um lenço vermelho, depois pegou o frasco de estanho e se sentou de pernas cruzadas sobre uma das almofadas. Yoshinaka permaneceu por perto, na varanda. Todos os samurais, menos quatro, voltaram a seus postos. — Por que eles são tão melindrosos? Por que você é tão melindroso, Inglês? Nunca tive que entregar as minhas armas antes. Sou um assassino?

— Eu lhe perguntei se aquilo eram todas as armas e você mentiu.

— Eu não estava ouvindo. Nossa Senhora! Você... me trataria como um criminoso comum? — disse Rodrigues com azedume. — Ei, o que importa, Inglês, o que importa qualquer coisa? A noite está estragada... Ei, mas espere, Inglês! Por que se deveria permitir que alguma coisa estragasse uma grande noite? Eu perdôo a eles. E a você, Inglês. Você estava certo e eu errado. Peço desculpas. É bom revê-lo. — Desenroscou a tampa e ofereceu o frasco. — Tome ... tome um pouco de um conhaque excelente.

— Você primeiro.

O rosto de Rodrigues ficou pálido. — Nossa Senhora... você acha que eu trago veneno?

— Não. Você bebe primeiro. Rodrigues bebeu.

— Mais!

O português obedeceu, depois enxugou a boca com as costas da mão. Blackthorne aceitou o frasco. — À saúde! — Entornou-o e fingiu engolir, secretamente mantendo a língua sobre a abertura para impedir a bebida de lhe entrar na boca, por mais que tivesse vontade de beber. — Ah! — disse. — Estava bom. Tome!

— Fique com ele, Inglês. É um presente. — Do bom padre? Ou de você?

— De mim.

— Diante de Deus?

— Deus, a Virgem, você e o seu "diante de Deus"! — disse Rodrigues. — É um presente meu e do padre! Ele é dono de toda a bebida a bordo do Santa Filipa, mas a Eminência disse que eu podia compartilhá-la e o frasco é um de uma dúzia a bordo. É um presente. Onde está a sua educação?

Blackthorne fingiu beber de novo e ofereceu-o de volta. — Tome, beba mais.

Rodrigues sentiu a bebida chegar-lhe aos artelhos e ficou contente, depois de aceitar o frasco cheio de Alvito, de tê-lo secretamente esvaziado, lavado cuidadosamente e enchido com conhaque da sua própria garrafa. Minha Nossa Senhora, perdoe-me, orou, perdoe-me por duvidar do santo padre. Oh, Nossa Senhora, Deus, e Jesus, pelo amor de Deus, venham de novo à terra e mudem este mundo onde às vezes não ousamos confiar nem nos padres.

— Qual é o problema?

— Nada, Inglês. Só estava pensando que este mundo é nojento, quando não se pode mais confiar em ninguém. Vim como amigo e agora há um buraco no mundo.

— Veio mesmo? — Sim.

— Armado desse jeito?

— Estou sempre armado desse jeito. É por isso que estou vivo. Saúde! — O homenzarrão ergueu o frasco tristemente e bebeu de novo. — Mijo no mundo, mijo em tudo.

— Está dizendo que mija em mim?

— Inglês, este sou eu, Vasco Rodrigues, piloto da Marinha portuguesa, não um samurai degenerado. Troquei muitos insultos com você, todos em amizade. Esta noite vim ver o meu amigo e agora não tenho amigo. É muito triste.

— Sim.

— Eu não deveria estar triste, mas estou. Ser seu amigo me complicou a vida extraordinariamente. — Rodrigues levantou-se, descontraiu as costas, depois se sentou de novo. — Detesto sentar nestas malditas almofadas! As cadeiras são para mim. A bordo. Bem, saúde, Inglês!

— Quando você deu aquela guinada e eu fiquei a meia-nau, foi para me atirar ao mar. Não foi?

— Sim — respondeu Rodrigues imediatamente. Pôs-se de pé. — Sim. Fico contente de que você tenha perguntado, pois isso está na minha consciência terrivelmente. Fico contente de me desculpar em vida, pois não poderia me forçar a confessar a você. Sim, Inglês. Não peço perdão, compreensão, nada. Mas fico contente em confessar essa vergonha na sua cara.

— Acha que eu faria isso a você?

— Não. Mas se o momento chegasse... Nunca se sabe até o momento de julgamento da gente mesma.

— Veio aqui para me matar?

— Não. Acho que não. Acho que não era isso o que estava em primeiro lugar na minha cabeça, embora para a minha gente e o meu país nós ambos saibamos que seria melhor que você estivesse morto. É muito triste, mas é verdade. Como a vida é tola, hein, Inglês?

— Não o quero morto, piloto. Só o seu Navio Negro.

— Ouça, Inglês — disse Rodrigues, sem raiva. — Se nos encontrarmos ao mar, você no seu navio, armado, eu no meu, cuidado com a sua vida. Isso é tudo o que posso lhe prometer, apenas isso. Achei que seria possível lhe dizer isso como amigo, e ainda sou seu amigo. Exceto quanto a um encontro ao mar, estou em dívida com você para sempre. À saúde!

— Espero capturar o seu Navio Negro ao mar. À saúde, piloto!

Rodrigues partiu em silêncio. Yoshinaka e os samurais o seguiram. Ao portão o português reuniu as armas. Logo foi engolido pela noite.

Yoshinaka esperou até que as sentinelas se dispersassem. Quando ficou satisfeito de que estava tudo seguro, dirigiu-se coxeando para os seus aposentos. Blackthorne sentou-se de novo numa das almofadas e pouco depois a criada que ele mandara buscar saquê surgiu com a bandeja. Serviu-lhe um cálice e teria ficado para servi-lo, mas ele a dispensou. Agora estava sozinho. Os sons da noite rodearam-no de novo, o murmurar da queda d'água e os movimentos das aves noturnas. Estava tudo como antes, mas tudo mudara.

Tristemente ele esticou o braço para reencher o cálice, mas ouviu um roçar de seda e a mão de Mariko segurou o frasco. Ela o serviu, e outro cálice para si mesma.

— Doino, Mariko-san.

— Do itashiinashité, Anjin-san. — Ela se acomodou sobre a outra almofada. Beberam o vinho quente.

— Ele ia matá-lo, neh?

— Não sei, não com certeza.

-— O que significava aquilo: procurar como um espanhol? — Alguns deles despem os prisioneiros e depois investigam em lugares íntimos. E não com gentileza. Chamam a isso de procurar con significa, com significado. Algumas vezes usam facas. — Oh. — Ela tomou um gole e ouviu a água entre as pedras. — Acontece o mesmo aqui, Anjin-san. Às vezes. É por isso que nunca é prudente ser capturado. Se se é capturado, fica-se tão completamente desonrado, que qualquer coisa que o captor faça... É melhor não ser capturado. Neh?

Ele contemplou as lanternas movendo-se à brisa fresca e suave. — Yoshinaka tinha razão, eu estava errado. A busca era necessária. A idéia foi sua, neh? Você disse a Yoshinaka que o revistasse?

— Por favor, desculpe-me, Anjin-san, espero que isso não lhe tenha criado algum embaraço. Foi só porque eu estava com medo por sua causa.

— Agradeço-lhe — disse ele, em latim de novo, embora lamentasse que tivesse havido uma busca. Sem a vistoria ele ainda teria um amigo. Talvez, admoestou-se ele.

— Não há de quê — disse ela. — Mas era apenas o meu dever.

Mariko estava usando um quimono de noite e um sobrequimono azul, o cabelo trançado frouxamente, caindo-lhe até a cintura. Olhou para o portão, que se podia ver por entre as árvores. — Você foi muito esperto quanto à bebida, Anjin-san. Quase me belisquei de raiva por ter esquecido de prevenir Yoshinaka sobre isso. Você foi muito astuto em fazê-lo beber duas vezes. Usa-se muito o veneno nos seus países?

— Algumas vezes. Algumas pessoas usam. É um método infame.

— Sim, mas muito eficaz. Aqui também acontece.

— Terrível, não, não se poder confiar em ninguém?

— Oh, não, Anjin-san, sinto muito — respondeu ela. — Essa é apenas uma das regras mais importantes da vida — nada mais, nada menos.


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