CAPÍTULO 25


Blackthorne levou uns bons dez minutos para recuperar forças suficientes que lhe permitissem erguer-se sem auxilio. Nesse meio tempo os samurais ronins liquidaram os feridos graves e lançaram todos os cadáveres ao mar. Os seis marrons haviam perecido, e todos os cinzentos. Limparam o navio e deixaram-no pronto para partida imediata; puseram os marujos aos remos e postaram alguns junto dos pilares, esperando para soltar as cordas de atracação. Todos os archotes tinham sido apagados. Alguns samurais foram mandados para patrulhar a praia ao norte, a fim de interceptar Buntaro. O grosso dos homens de Toranaga correu na direção sul, para um quebra-mar de pedra, a uns duzentos passos de distância, onde tomaram uma forte posição de defesa contra os cem cinzentos da fragata que, tendo visto o ataque, aproximavam-se velozmente.

Quando todos a bordo tinham sido conferidos e reconferidos, o líder pos as mãos em concha em torno dos lábios e chamou na direção da praia. Imediatamente mais samurais disfarçados de ronins, comandados por Yabu, saíram da noite e se desdobraram em escudos protetores, a norte e a sul. Depois Toranaga apareceu e começou a caminhar lentamente na direção da escada de embarque, sozinho. Descartara-se do quimono de mulher e da capa escura de viagem, e removera a maquilagem. Agora usava a sua armadura, e sobre ela um quimono marrom simples, espadas ao sash. A brecha atrás dele era fechada pelos últimos dos seus guardas e a falange movia-se com passo comedido rumo ao molhe.

Bastardo, pensou Blackthorne. Você é um bastardo cruel, de tripas geladas, sem coração, mas tem majestade, não há dúvida.

Vira Mariko ser carregada para baixo, ajudada por uma jovem, e presumira que estivesse ferida, mas não gravemente, por que todos os samurais com ferimentos graves eram mortos imediatamente, se quisessem, ou se não pudessem se matar, e ela era samurai.

Tinha as mãos muito fracas, mas agarrou o leme, aprumou-se ajudado por um marinheiro, e sentiu-se melhor, a leve brisa dissipando os vestígios de náusea. Ainda atordoado, oscilando sobre os pés, observou Toranaga.

Houve um súbito clarão vindo do torreão e o débil ecoar de sinos de alarme. Depois, dos muros do castelo, fogos começaram a se lançar para as estrelas. Fogos de aviso.

Jesus Cristo, eles devem ter recebido a notícia, devem ter sabido da fuga de Toranaga.

Em meio ao grande silêncio, viu Toranaga olhar para trás e para cima. Luzes começaram a bruxulear por toda a cidade. Sem pressa, Toranaga voltou-se e subiu a bordo.

Do norte, gritos distantes desciam com o vento. Buntaro! Deve ser ele, com o resto da coluna. Blackthorne perscrutou a escuridão à distância, mas não conseguiu ver nada. Ao sul a brecha entre os cinzentos atacantes e os marrons defensores estava se fechando rapidamente. Blackthorne avaliou quantidades. Mais ou menos iguais no momento. Mas por quanto tempo?

- Keirei! - Todos a bordo se ajoelharam e se curvaram profundamente quando Toranaga veio ao convés. Toranaga fez um gesto a Yabu, que o seguia. Imediatamente Yabu tomou o comando, dando ordens para zarpar. Cinqüenta samurais da falange subiram correndo a escada de embarque para tomar posições de defesa, de frente para a praia, armando os arcos.

Blackthorne sentiu alguém puxar-lhe a manga.

- Anjin-san!

- Hai? - Olhou para o rosto do capitão. O homem proferiu uma torrente de palavras, apontando para o leme. Blackthorne percebeu que o capitão presumia que ele estivesse no comando e pedia permissão para zarpar.

- Hai, capitão-san - respondeu. - Levantar ferros! Isogi! - Sim, depressa, disse a si mesmo, perguntando-se como conseguira lembrar a palavra tão facilmente.

A galera afastou-se lentamente do molhe, ajudada pelo vento e impelida pelos hábeis remadores. Então Blackthorne viu os cinzentos atacarem o quebra-mar, e o violento assalto começou. Naquele instante, saindo da escuridão por trás de um alinhamento de botes encalhados na areia surgiram três homens e uma jovem enredados num combate de retirada com nove cinzentos. Blackthorne reconheceu Buntaro e a jovem Sono.

Buntaro liderava a retirada para o molhe, a espada ensangüentada, setas fincadas na armadura sobre o peito e as costas. A garota estava armada com uma lança, mas cambaleava, sem fôlego. Um dos marrons parou corajosamente para cobrir a retirada. Os cinzentos o engoliram. Buntaro subiu correndo os degraus, a garota ao lado dele com o último marrom, depois se voltou e atacou os cinzentos como um touro enlouquecido. Os dois primeiros foram arremessados para fora do ancoradouro: um quebrou as costas contra as pedras embaixo, o outro caiu berrando, sem o braço direito. Os cinzentos hesitaram momentaneamente, dando à jovem tempo para assestar a lança, mas todos a bordo sabiam que era apenas um gesto. O último marrom se precipitou à frente do amo e se lançou de cabeça contra o inimigo. Os cinzentos o liquidaram, depois atacaram maciçamente.

Arqueiros do navio disparavam saraivada atrás de saraivada, matando ou mutilando todos os cinzentos menos dois. Uma espada ricocheteou no elmo de Buntaro e bateu-lhe no ombro da armadura. Buntaro golpeou o cinzento sob o queixo com o antebraço protegido de armadura, quebrando-lhe o pescoço, e se atirou contra o último.

Esse homem também morreu.

A garota estava de joelhos agora, tentando recobrar o fôlego. Buntaro não perdeu tempo certificando-se de que os cinzentos estavam mortos. Simplesmente decepou-lhes a cabeça com golpes únicos, perfeitos, e depois, quando o molhe estava completamente seguro, voltou-se para o mar, acenou para Toranaga, exausto mas feliz. Toranaga retribuiu o aceno, igualmente satisfeito.

O navio estava a vinte jardas do molhe e a brecha continuava se alargando.

- Capitão-san - chamou Blackthorne, gesticulando com urgência -, volte ao ancoradouro! Isogi!

Obediente, o capitão gritou as ordens. Todos os remos pararam e começaram a se mover em sentido contrário. Imediatamente Yabu arremeteu do outro lado do tombadilho e falou energicamente ao capitão. A ordem foi clara. O navio não devia retornar.

- Há muito tempo, pelo amor de Cristo! Olhe! - Blackthorne apontou para o trecho de terra batida, vazio, e o quebramar, onde os ronins estavam mantendo os cinzentos cercados.

Mas Yabu balançou a cabeça.

O afastamento era de trinta jardas agora e a mente de Blackthorne gritava: o que é que há com você? Aquele é Buntaro, o marido dela!

- Você não pode deixá-lo morrer, é um dos nossos! - gritou para Yabu e para o navio. - Ele! Buntaro! - Voltou-se para o capitão. - De volta para lá. Isogi! - Mas desta vez o marujo meneou a cabeça, sem ação, manteve a rota de fuga e o mestre remador continuou a bater no grande tambor.

Blackthorne correu para Toranaga, que estava de costas para ele, estudando a praia e o ancoradouro. Imediatamente quatro samurais guarda-costas se puseram no caminho do piloto, espadas levantadas. Ele chamou:

- Toranaga-sama! Dozo! Ordene que o navio volte! Lá! Dozo - por favor! Volte!

- Iyé, Anjin-san. - Toranaga apontou uma vez para os archotes de aviso no castelo e uma vez para o quebra-mar, e deulhe as costas de novo com determinação.

- Por que você, seu covarde de merda... - começou Blackthorne, mas parou. Saiu correndo para a amurada e se debruçou. - Naaaaadem! - gritou ele, fazendo os gestos. - Nadem, pelo amor de Cristo!

Buntaro compreendeu. Pôs a jovem em pé, falou-lhe e empurrou-a ligeiramente na direção da beirada do ancoradouro, mas ela gritou e caiu de joelhos diante dele. Obviamente não sabia nadar.

Desesperadamente Blackthorne esquadrinhou o convés. Não havia tempo para descer um bote. A distância era muita para atirar uma corda. Ele não tinha forças suficientes para nadar até lá e voltar. Não havia salva-vidas. Como um último recurso, correu para os remadores mais próximos, dois a cada grande remo, e interrompeu-lhes o movimento. Todos os remos a bombordo ficaram momentaneamente fora de tempo, remo batendo contra remo. A galera girou desajeitadamente, a batida parou, e Blackthorne mostrou aos remadores o que queria.

Dois samurais avançaram para contê-lo, mas Toranaga ordenou-lhes que se afastassem.

Juntos, Blackthorne e quatro marujos atiraram um remo como um dardo. A madeira planou um instante, depois chocou-se com a água habilmente, e o seu impulso carregou-a para o ancoradouro.

Naquele momento houve um grito de vitória no quebra-mar. Reforços de cinzentos afluíam rapidamente da cidade e, embora os samurais ronins estivessem rechaçando os atacantes presentes, era apenas uma questão de tempo para que o muro fosse rompido.

- Vamos - gritou Blackthorne. - Isogiiiii!

Buntaro puxou a garota, fazendo-a levantar-se, apontou para o remo e depois para o navio. Ela se curvou debilmente. Ele a ignorou e voltou toda a atenção para a batalha, suas pernas imensas firmes sobre o molhe.

A garota chamou alguém no navio. Uma voz de mulher respondeu e ela pulou. Sua cabeça feriu a superfície. Ela se debateu na direção do remo e agarrou-o. Ele lhe agüentou o peso com facilidade e ela deu impulso com as pernas. Uma pequena onda apanhou-a, Sono flutuou sobre ela com segurança e se aproximou mais da galera. Então o medo fez que afrouxasse o aperto e o remo escorregou para longe. Ela se debateu por um momento interminável, depois desapareceu abaixo da superfície.

Não voltou mais.

Buntaro estava sozinho agora sobre o ancoradouro e observava a evolução da batalha. Mais cinzentos de reforço, alguns a cavalo, vinham do sul para se unir aos outros e ele sabia que logo o quebra-mar seria tragado por um mar de homens. Cuidadosamente olhou para o norte, oeste e sul. Depois deu as costas à batalha e se dirigiu para a ponta do molhe. A galera estava seguramente a setenta jardas dessa extremidade, parada, esperando. Todos os barcos de pesca haviam sumido da área há muito tempo e esperavam tão longe quanto possível de ambos os lados da enseada, suas luzes de âncora parecendo inúmeros olhos de gatos na escuridão.

Quando atingiu o fim do cais, Buntaro tirou o elmo, o arco, a aljava e a armadura, e colocou tudo ao lado das bainhas. A espada mortífera e a espada curta, nuas, ele as colocou separadamente. Depois, despido até a cintura, apanhou seu equipamento e atirou-o ao mar. Examinou reverentemente a espada mortífera, depois jogou-a com toda a força, bem longe. Desapareceu quase sem ruído.

Ele se curvou formalmente para a galera, para Toranaga, que se dirigiu imediatamente para o tombadilho, onde podia ser visto. Retribuiu a reverência.

Buntaro ajoelhou-se e colocou a espada curta cuidadosamente sobre a pedra à sua frente, o luar rutilando sobre a lâmina, e ficou imóvel, quase que como em oração, encarando a galera.

- Que diabos ele está esperando? - resmungou Blackthorne, a galera lugubremente silenciosa sem a batida do tambor.

- Por que não pula e nada?

- Está se preparando para cometer seppuku.

Mariko estava em pé ao seu lado, sustentada por uma jovem.

- Jesus, Mariko, a senhora está bem?

- Sim - disse ela, mal o ouvindo, o rosto abatido mas nem por isso menos belo.

Ele viu a atadura grosseira no seu braço esquerdo perto do ombro onde a manga fora cortada, o braço descansando numa tipóia de tecido rasgado de um quimono. Havia sangue manchando a atadura e um filete correndo-lhe pelo braço.

- Estou muito contente... - Então apreendeu o que ela dissera.

- Seppuku? Ele vai se matar? Por quê? Ele tem tempo de sobra para chegar até aqui! Se não souber nadar, olhe... há um remo que lhe servirá facilmente de apoio. Ali, perto do molhe, está vendo? A senhora não ve?

- Sim, mas meu marido sabe nadar, Anjin-san - disse ela.

- Todos os oficiais do Senhor Toranaga devem... devem aprender, ele insiste. Mas resolveu não nadar.

- Pelo amor de Cristo, por quê?

Uma súbita agitação irrompeu na praia, alguns mosquetes dispararam, e o muro foi rompido. Alguns dos samurais ronins recuaram e o feroz combate individual começou de novo. Desta vez a ponta de lança do inimigo foi contida, e repelida.

- Diga-lhe que nade, por Deus

- Ele não fará isso, Anjin-san. Está se preparando para morrer.

- Se quer morrer, pelo amor de Cristo, por que não vai para lá? - perguntou Blackthorne, de dedo em riste para a luta. - Por que não ajuda os seus homens? Se quer morrer, por que não morre lutando, como um homem?

Mariko, sempre apoiada à jovem, não desviou o olhar do ancoradouro.

- Porque poderia ser capturado, e se nadasse também poderia ser capturado, e depois o inimigo o exibiria diante do povo comum, o envergonharia, faria coisas terríveis. Um samurai não pode ser capturado e permanecer samurai... a pior desonra, ser capturado por um inimigo, por isso meu marido está fazendo o que um homem, um samurai, deve fazer. Um samurai morre com dignidade. Pois o que é a vida para um samurai? Nada em absoluto. A vida é sofrimento, neh? É direito e dever dele morrer com honra, diante de testemunhas.

- Que desperdício estúpido! - disse Blackthorne por entre dentes.

- Seja paciente conosco, Anjin-san.

- Paciente para quê? Para mais mentiras? Por que a senhora não confia em mim? Não mereci isso? A senhora mentiu, não mentiu? Fingiu desmaiar e isso era um sinal. Não era? Eu lhe perguntei e a senhora mentiu.

- Recebi ordens... foi uma ordem para protegê-lo. Claro que confio no senhor.

- A senhora mentiu - disse ele, sabendo que não estava sendo razoável, mas perdera o controle, abominando a insana desconsideração para com a vida e ansiando por sono e paz, ansiando pela sua própria comida, sua própria bebida, seu próprio barco e sua própria espécie. - Voces são todos animais - disse ele em inglês, sabendo que não eram, e se afastou.

- O que ele estava dizendo, Mariko-san? - perguntou a jovem, a muito custo disfarçando a própria repugnância. Era meia cabeça mais alta do que Mariko, de ossatura maior, de rosto quadrado com pequenos dentes pontiagudos. Era Usagi Fujiko, sobrinha de Mariko, e tinha dezenove anos.

Mariko contou-lhe.

- Que homem horrível! Que maneiras abomináveis! Repulsivo, neh? Como a senhora tolera estar perto dele?

- Porque salvou a honra do nosso amo. Sem a sua bravura, estou certa de que o Senhor Toranaga teria sido capturado... nós todos teríamos sido capturados. - As duas mulheres estremeceram.

- Os deuses nos protejam dessa vergonha! - Fujiko deu uma olhada em Blackthorne, que estava encostado à amurada do convés, olhando a praia. Observou um momento. - Ele parece um gorila dourado com olhos azuis... uma criatura para assustar as crianças. Horrendo, neh? - Fujiko teve um calafrio, desviou a atenção dele e olhou novamente para Buntaro. Após um momento, disse: - Invejo seu marido, Mariko-san.

- Sim - respondeu Mariko tristemente. - Mas gostaria que ele tivesse um assistente. - Por costume outro samurai sempre assistia a um seppuku, erguendo-se logo atrás do homem ajoelhado, para decapitá-lo com um único golpe antes que a agonia se tornasse insuportável e incontrolável e portanto envergonhasse o homem no momento supremo da sua vida. Sem um auxiliar, poucos homens conseguiam morrer sem desonra.

- Karma - disse Fujiko.

- Sim. Tenho pena dele. Era a única coisa que temia: não ter um assistente.

- Temos mais sorte do que os homens, neh? - As mulheres samurais cometiam seppuku enfiando a faca na garganta e por isso não precisavam de assisténcia.

- Sim - disse Mariko.

Berros e gritos de batalha vieram soprados pelo vento, distraindo-os. O quebra-mar foi novamente rompido. Uma pequena companhia de cinqüenta samurais ronins de Toranaga surgiu em disparada do norte, com alguns cavaleiros entre eles. Novamente a ruptura foi ferozmente contida, os atacantes rechaçados e mais alguns momentos ganhos.

Tempo para que? estava se perguntando Blackthorne com amargura. Toranaga está seguro agora. Está ao mar. Traiu a todos vocês.

O tambor começou de novo.

Os remos feriram a água, a proa afundou e começou a cortar as ondas, e logo surgiu um sulco à ré. Fogos de aviso ainda ardiam em cima dos muros do castelo. Quase toda a cidade estava desperta.

A massa principal de cinzentos atacou o quebra-mar. Os olhos de Blackthorne dirigiram-se para Buntaro.

- Seu pobre bastardo! - disse em ingles. - Pobre e estúpido bastardo!

Girou sobre os calcanhares e caminhou ao longo do convés principal, em direção à proa, à espreita de recifes à frente. Ninguém, exceto Fujiko e o capitão, notou-o afastando-se do tombadilho.

Os remadores puxavam com excelente disciplina e o navio avançava. O mar estava excelente, o vento favorável. Blackthorne provou o sal e sentiu-o com alegria. Então detectou os navios aglomerados à boca da enseada, meia légua à frente. Barcos de pesca, sim, mas apinhados de samurais.

- Estamos enrascados - disse em voz alta, sabendo de algum modo que se tratava de inimigos.

Blackthorne olhou para trás. Os cinzentos calmamente escalavam o quebra-mar, enquanto outros rumavam sem pressa para o molhe, em direção de Buntaro, mas quatro cavaleiros - marrons - surgiram a galope pelo trecho de terra batida, vindos do norte, com um quinto cavalo, um cavalo sobressalente, puxado pelo comandante. Esse homem subiu com estrépito os largos degraus de pedra do embarcadouro com o cavalo sobressalente e percorreu-lhe toda a extensão enquanto os outros tres se atiravam contra os cinzentos invasores.

Buntaro também havia olhado em torno, mas permanecia ajoelhado e, quando o homem susteve as rédeas atrás dele, afastou-o com um gesto e segurou a faca com ambas as mãos, a lâmina voltada para o corpo.

Imediatamente Toranaga pôs as mãos em concha e gritou:

- Buntaro-san! Vá com eles agora! Tente escapar!

O grito estendeu-se sobre as ondas, foi repetido, e Buntaro o ouviu claramente. Hesitou, atordoado, a faca suspensa no ar. Novamente o chamado, insistente e imperioso.

Com esforço Buntaro se arrancou do mundo da morte e gelidamente contemplou a vida e a fuga que era ordenada. O risco era grande. Melhor morrer aqui, disse a si mesmo. Toranaga não sabe disso? Aqui está uma morte honrosa. Lá, a captura quase certa. Fugir para onde? Trezentas ris até Yedo? A captura é certa!

Sentiu a força do braço, viu a adaga firme, decidida, a ponta aguçada pairando perto do seu abdome nu, e ansiou pela agonia libertadora da morte, afinal. Finalmente uma morte para expiar toda a vergonha: a vergonha por seu pai se ajoelhando diante do estandarte de Toranaga, quando deviam ter-se mantido fiéis a Yaemon, herdeiro do taicum, conforme haviam jurado; a vergonha por haver matado tantos homens que honradamente serviam à causa do taicum contra o usurpador, Toranaga; a vergonha pela mulher, Mariko, e pelo único filho, ambos maculados para sempre, o filho por causa da mãe e ela por causa do pai, o monstruoso assassino, Akechi Jinsai. E a vergonha de saber que por causa deles seu próprio nome estava conspurcado para sempre.

Quantos milhares de agonias não suportei por causa dela?

Sua alma clamava pelo esquecimento. Agora tão perto, fácil, honroso.

A próxima vida será melhor, como poderia ser pior?

Ainda assim, pousou a faca e obedeceu, e se lançou de volta ao precipício da vida. Seu suserano ordenara o último sofrimento e decidira cancelar a sua tentativa de encontrar a paz. O que mais existe para um samurai além da obediência?

Levantou-se de repente, saltou para a sela, fincou os calcanhares nos flancos do cavalo e, junto com o outro homem, disparou. Outros ronins a cavalo saíram a galope da noite a fim de guardar-lhes a retirada e liquidar os cinzentos na liderança. Depois também desapareceram, com alguns cavaleiros cinzentos a persegui-los.

Uma gargalhada irrompeu por todo o navio.

Toranaga martelou a amurada com o punho, alegremente, Yabu e os samurais riam a bandeiras despregadas. Até Mariko ria.

- Um homem se safou, mas e os mortos todos? – gritou Blackthorne enraivecido. - Olhem para a praia... deve haver trezentos, quatrocentos corpos lá. Olhem para eles, pelo amor de Cristo!

Mas o seu grito não varou a gargalhada.

Então um grito de alarme do vigia de proa. E o riso extinguiu-se.


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