CAPÍTULO 34
À hora do Cavalo, onze horas da manhã, dez dias após a morte de Jozen e de todos os seus homens, um comboio de três galeras contornou o promontório de Anjiro. Estavam apinhadas de soldados. Toranaga desembarcou. A seu lado vinha Buntaro.
- Primeiro quero assistir a um exercício de ataque, Yabu-san, com os quinhentos originais - disse Toranaga. - Imediatamente.
- Poderia ser amanhã? Isso me daria tempo para preparar disse Yabu afavelmente, mas interiormente furioso com o imprevisto da chegada de Toranaga e enraivecido com os seus espiões por não o terem prevenido. Mal tivera tempo de acorrer à praia com uma guarda de honra. - O senhor deve estar cansado...
- Não estou cansado, obrigado - disse Toranaga, intencionalmente brusco. - Não preciso de "defensores" nem de um ambiente elaborado, nem de gritos ou mortes simuladas. Esquece-se, velho amigo, de que encenei peças nó suficientes e representei o suficiente para ser capaz de usar a minha imaginação. Não sou um ronin camponês! Por favor, ordene que seja organizado imediatamente.
Encontravam-se na praia ao lado do desembarcadouro. Toranaga estava rodeado pelos guardas de elite, e havia outros desembarcando da galera atracada. Mais mil samurais, pesadamente armados, amontoavam-se nas duas galeras que esperavam a pouca distância da praia. Fazia um dia quente, o céu estava sem nuvens, com uma leve arrebentação, e um nevoeiro de calor no horizonte.
- Igurashi, providencie! - Yabu dominou a própria raiva.
Desde a primeira mensagem que enviara, referente à chegada de Jozen onze dias antes, houvera simplesmente um escoar de relatórios inexpressivos de Yedo, mandados pela sua própria rede de espionagem, e nada além de esporádicas e enfurecedoramente inconclusivas respostas de Toranaga aos seus sinais cada vez mais urgentes: "Sua mensagem recebida e sendo seriamente estudada".
"Chocado com as notícias sobre o meu filho. Por favor, espere instruções posteriores". Depois, há quatro dias: "Os responsáveis pela morte de Jozen serão punidos. Devem permanecer em seus postos, mas continuar sob prisão até que eu possa me consultar com o Senhor Ishido". E na véspera, a surpresa de estarrecer: "Hoje recebi o convite formal do novo conselho de regentes para ir a Osaka, à cerimônia de contemplação da flor. Quando o senhor pretende partir? Comunique imediatamente".
- Com certeza isto não significa que Toranaga vai de fato? - perguntara Yabu, aturdido.
- Ele está forçando o senhor a se comprometer - respondera Igurashi. - Qualquer coisa que o senhor diga vai colocá-lo numa armadilha.
- Concordo - dissera Omi.
- Por que não estamos recebendo notícias de Yedo? O que aconteceu aos nossos espiões?
- É quase como se Toranaga tivesse posto uma capa por sobre o Kwanto inteiro - dissera Omi. - Talvez ele saiba quem são os seus espiões!
- Este é o décimo dia, senhor - lembrara Igurashi. - Tudo está pronto para aw sua partida para Osaka. Deseja partir ou não?
Agora, ali na praia, Yabu abençoava seu kami guardião que o persuadira a aceitar o conselho de Omi para ficar até o último dia possível, três dias a contar daquele.
- Em relação à sua mensagem final, Toranaga-sama, a que chegou ontem - disse ele -, o senhor certamente não vai a Osaka.
- O senhor vai?
- Reconheço-o como líder. Naturalmente estou à espera da sua decisão.
- A minha decisão é fácil, Yabu-sama. Mas a sua é difícil. Se for, os regentes certamente o retalharão por ter destruído Jozen e seus homens. E Ishido está muito furioso mesmo - e com razão. Neh?
- Eu não fiz isso, Senhor Toranaga. A destruição de Jozen, embora merecida, foi contra as minhas ordens.
- Foi muito bom que Naga-san o tenha feito, neh? De outro modo o senhor certamente teria tido que fazê-lo por si mesmo. Discutirei sobre Naga-san mais tarde, mas venha, conversaremos enquanto caminhamos para o local de treinamento. Não há necessidade de desperdiçar tempo. - Toranaga pôs-se em marcha no seu passo célere, seguido de perto pelos seus guardas. - Sim, o senhor está realmente num dilema, amigo velho. Se for, perde a cabeça, perde Izu e, naturalmente, toda a sua família Kasigi vai para o pátio de execução. Se ficar, o conselho ordenará a mesma coisa. - Olhou-o de soslaio. - Talvez o senhor devesse fazer o que sugeriu que eu fizesse na última vez em que estive em Anjiro. Ficarei feliz em ser o seu auxiliar. Talvez a sua cabeça abrande o mau humor de Ishido quando eu o encontrar.
- Minha cabeça não tem valor para Ishido.
- Não concordo.
Buntaro interceptou-os.
- Desculpe-me, senhor. Onde quer que os homens sejam aquartelados?
- No planalto. Faça o seu acampamento permanente lá. Duzentos guardas ficarão comigo na fortaleza. Quando tiver completado os arranjos, junte-se a mim. Quero que você assista ao exercício de treinamento. - Buntaro saiu apressado.
- Acampamento permanente? O senhor vai ficar aqui? - perguntou Yabu.
- Não, apenas os meus homens. Se o ataque é tão bom quanto ouvi dizer formaremos nove batalhões de assalto de quinhentos samurais cada um.
- O quê?
- Sim. Trouxe mais mil samurais selecionados para o senhor agora. O senhor providenciará os outros mil.
- Mas não há armas suficientes e o treina...
- Sinto muito, o senhor está enganado. Trouxe mil mosquetes comigo, muita pólvora e munição. O resto chegará dentro de uma semana, com mais mil homens.
- Teremos nove batalhões de assalto?
- Sim. Formarão um regimento. Buntaro comandará.
- Talvez fosse melhor que eu fizesse isso. Ele...
- Oh, mas o senhor se esquece de que o conselho se reúne dentro de poucos dias. Como pode comandar um regimento se está indo para Osaka? O senhor não se preparou para partir?
Yabu parou.
- Somos aliados. Combinamos que o senhor seria o líder e urinamos sobre o trato. Mantive o trato e estou mantendo. Agora pergunto: qual é o seu plano? Guerreamos ou não?
- Ninguém declarou guerra contra mim. Ainda.
Yabu ansiou por desembainhar a lâmina Yoshimoto e fazer esguichar o sangue de Toranaga no pó, de uma vez por todas, custasse o que custasse. Podia sentir a respiração dos guardas de Toranaga à sua volta, mas não estava se preocupando agora.
- O conselho também não é o seu dobre de morte? O senhor mesmo disse isso. Uma vez que se reúnam, o senhor terá que obedecer. Neh?
- Naturalmente. - Toranaga fez sinal aos guardas que se afastassem e se apoiou calmamente na espada, as sólidas pernas separadas e firmes.
- Então qual é a sua decisão? O que propõe?
- Primeiro assistir a um ataque.
- Depois?
- Depois ir caçar.
- Vai a Osaka?
- Naturalmente.
- Quando?
- Quando me aprouver.
- Quer dizer, não quando aprouver a Ishido.
- Quero dizer quando me aprouver.
- Ficaremos isolados - disse Yabu. - Não podemos lutar contra todo o Japão, mesmo com um regimento de assalto, e possivelmente não poderemos treinar um em dez dias.
- Sim.
- Então qual é o plano?
- O que aconteceu exatamente com Jozen e Naga-san?
Yabu contou-lhe sinceramente, omitindo apenas o fato de que Naga fora manipulado por Omi.
- E o meu bárbaro? Como está se comportando o Anjin-san?
- Bem. Muito bem. - Yabu contou-lhe sobre a tentativa de seppuku na primeira noite, e como habilmente dobrara o Anjin-san para proveito deles ambos.
- Isso foi inteligente - disse Toranaga lentamente. - Nunca imaginei que ele tentaria seppuku. Interessante.
- Foi muito oportuno que eu dissesse a Omi que estivesse preparado.
- Sim.
Impaciente, Yabu esperava mais, mas Toranaga permaneceu em silêncio.
- A notícia que mandei sobre o Senhor Ito tornando-se regente - disse Yabu afinal. - O senhor já sabia antes de receber a minha mensagem?
Toranaga não respondeu de imediato.
- Tinha ouvido alguns rumores. O Senhor Ito é uma escolha perfeita para Ishido. O pobre imbecil sempre gostou de uma boa vara enquanto tem o nariz metido no ânus de outro homem. Serão bons amigos, os dois.
- O voto dele destruirá o senhor, ainda assim.
- Desde que haja um conselho.
- Ah, então o senhor tem um plano?
- Sempre tenho um plano - ou planos -, o senhor não sabia? Mas o senhor, qual é o seu aliado? Se desejar partir, parta. Se quiser ficar, fique. Escolha! - Pôs-se em movimento.
Mariko estendeu a Toranaga um pergaminho de caracteres escritos muito juntos.
- Isso é tudo? - perguntou ele.
- Sim, senhor - respondeu ela, não gostando do abafamento da cabina nem de estar a bordo da galera de novo, ainda que atracada ao cais. - Muito do que está no Manual de Guerra será repetido, mas tomei notas todas as noites e escrevi tudo conforme aconteceu - ou tentei fazer isso. É quase como um diário do que foi dito e aconteceu desde que o senhor partiu.
- Ótimo. Alguém mais o leu?
- Não que eu saiba. - Ela usou o leque para se refrescar. - A consorte e os criados do Anjin-san me viram escrevendo, mas mantive o pergaminho fechado a chave.
- Quais são as suas conclusões?
Mariko hesitou. Deu uma olhada na cabina e na vigia fechada.
- Apenas os meus homens estão a bordo - disse Toranaga -, e nenhum nos conveses inferiores. Apenas nós.
- Sim, senhor. Só me lembrei que o Anjin-san disse que não há segredos a bordo de um navio. Desculpe. - Pensou um instante, depois disse confiante: - O Regimento de Mosquetes vencerá uma batalha. Os bárbaros poderiam nos destruir se desembarcassem com armas e canhões. O senhor precisa ter uma marinha bárbara. Nessa medida o conhecimento do Anjin-san foi enormemente valioso para o senhor, razão pela qual devia ser mantido secreto, apenas para os seus ouvidos. Nas mãos erradas esse conhecimento seria mortífero para o senhor.
- Quem compartilha esse conhecimento agora?
- Yabu-san sabe muita coisa, mas Omi-san sabe mais, é ele o mais intuitivo. Igurashi-san, Naga-san, e as tropas. As tropas, naturalmente, compreendem a estratégia, não os detalhes mais sutis, e nada sobre o conhecimento político e genérico do Anjinsan. Eu, mais do que todos. Escrevi tudo o que ele disse, perguntou ou comentou. Da melhor maneira que pude. Claro que ele só nos falou a respeito de certas coisas, mas o alcance dessas coisas é vasto, e a memória, quase perfeita. Com paciência ele pode fornecer-lhe um quadro acurado do mundo, seus costumes e perigos. Se estiver dizendo a verdade.
- Está?
- Acredito que sim.
- Qual é a sua opinião sobre Yabu?
- Yabu-san é um homem violento, totalmente sem escrúpulos. Não honra nada além dos próprios interesses. Dever, lealdade, tradição não significam nada para ele. Sua mente tem repentes de grande astúcia, até brilho. É igualmente perigoso como aliado ou inimigo.
- Tudo isso são virtudes louváveis. O que há para ser dito contra ele?
- É um mau administrador. Seus camponeses se revoltariam se dispusessem de armas.
- Por quê?
- Taxas extorsivas, Taxas ilegais. Ele fica com setenta e cinco partes de cada cem partes de arroz, peixe e toda a produção. Introduziu um imposto por cabeça, imposto pela terra, imposto pelo barco. Cada venda, cada barril de saquê, tudo é taxado em Izu.
- Talvez eu devesse empregá-lo, ou ao seu mestre quarteleiro, para o Kwanto. O que ele faz aqui é problema dele. Seus camponeses nunca obterão armas, portanto não temos nada com que nos preocupar. Eu ainda poderia usar isto como base se fosse necessário.
- Mas, senhor, sessenta partes é o limite legal.
- Era o limite legal. O taicum tornou legal, mas está morto. O que mais sobre Yabu?
- Come pouco, parece ter boa saúde, mas Suwo, o massagista, acha que ele tem problemas de rins. Tem alguns hábitos curiosos.
- Quais?
Ela lhe contou sobre a Noite dos Gritos.
- Quem lhe falou sobre isso?
- Suwo. E a esposa e a mãe de Omi-san.
- O pai de Yabu também costumava cozinhar os inimigos. Perda de tempo. Mas posso compreender essa sua necessidade de fazer isso ocasionalmente. O sobrinho, Omi?
- Muito sagaz. Muito sábio. Totalmente leal ao tio. Um vassalo muito capaz, impressivo.
- A família de Omi?
- A mãe dele é... é adequadamente firme com Midori, a esposa. A esposa é samurai, gentil, forte, e muito boa. São todos vassalos leais de Yabu-san. Atualmente Omi-san não tem consortes, embora Kiku, a mais famosa cortesã de Izu, seja quase como uma consorte. Se ele pudesse comprar o contrato dela, acho que a levaria para a sua casa.
- Ele me ajudaria contra Yabu, se eu quisesse que fizesse isso?
Ela ponderou ,a respeito. Depois meneou a cabeça.
- Não, senhor. Acho que não. Acho que ele é vassalo de seu tio.
- Naga?
- Um samurai tão bom quanto um homem pode ser. Viu imediatamente o perigo de Jozen-san e seus homens contra o senhor, e enfrentou a situação até que o senhor pudesse ser consultado. Embora deteste o Batalhão de Mosquetes, treina arduamente as companhias a fim de torná-las perfeitas.
- Acho que ele foi muito estúpido sendo fantoche de Yabu.
Ela arrumou uma dobra do quimono, sem dizer nada.
Toranaga abanou-se.
- Agora, o Anjin-san?
Ela estivera esperando por essa pergunta e, agora que fora feita, todas as observações inteligentes que ia fazer desapareceram-lhe da cabeça.
- Bem?
- Deve julgar pelo pergaminho, senhor. Em certos aspectos ele é impossível de explicar. Claro, sua educação e herança não têm nada em comum com as nossas. É muito complexo e está além da nossa... além da minha compreensão. Costumava ser muito aberto. Mas, desde que tentou seppuku, mudou. Está mais fechado. - Ela lhe contou o que Omi dissera e fizera naquela primeira noite. E a promessa de Yabu.
- Ah, foi Omi que o deteve, não Yabu-san?
- Sim.
- E Yabu seguiu o conselho de Omi?
- Exatamente, senhor.
- Então Omi é o conselheiro. Interessante. Mas com certeza o Anjin-san não espera que Yabu cumpra a promessa, espera?
- Sim, totalmente.
Toranaga riu.
- Que infantilidade!
- A "consciência" cristã é muito profunda nele, sinto muito. Ele não pode evitar o seu karma, parte do qual é ser ele totalmente governado por esse ódio da morte, ou das mortes, do que ele chama de "inocentes". Até a morte de Jozen afetou-o profundamente. Durante muitas noites seu sono foi perturbado e durante dias mal conversou com pessoa alguma.
- Essa "consciência" se aplicaria a todos os bárbaros?
- Não, embora devesse, a todos os bárbaros cristãos.
- Ele perderá essa "consciência"?
- Penso que não. Mas é tão indefeso quanto uma boneca até que a perca.
- A consorte dele?
Ela lhe contou tudo.
- Ótimo. - Ele ficou satisfeito pela escolha de Fujiko e pelo fato de o seu plano ter funcionado tão bem. - Muito bom.
- Ela agiu muito bem no caso das armas. Que tal os hábitos dele?
- Na maior parte, normais, exceto por um surpreendente constrangimento em relação a assuntos de "travesseiro" e uma curiosa relutância em discutir as funções mais normais. - Ela também descreveu a sua inusitada necessidade de solidão, e seu gosto abominável em se tratando de comida. - Na maioria das outras coisas ele é cortês, razoável, arguto, um aluno competente, e muito curioso a respeito de nós e dos nossos costumes. Consta tudo do meu relatório, mas, numa palavra, expliquei alguma coisa sobre o nosso modo de vida, um pouco sobre nós e a nossa história, sobre o taicum e os problemas que afligem o nosso reino agora.
- Ah, sobre o herdeiro?
- Sim, senhor. Fiz mal?
- Não. Eu lhe disse que o educasse. Como está o japonês dele?
- Muito bom, considerando. Com o tempo ele falará a nossa língua razoavelmente bem. É muito bom aluno, senhor.
- "Travesseiro"?
- Uma das criadas - disse ela imediatamente.
- Ele a escolheu?
- Sua consorte a mandou a ele.
- E?
- Foi mutuamente satisfatório, informaram-me.
- Ah! Então ela não teve dificuldade.
- Não, senhor.
- Mas ele é proporcional?
- A garota disse: "Oh, sim, muito'. "Pródigo' foi a palavra que ela usou.
- Excelente. Pelo menos nisso o karma dele é bom. Esse é o problema com muitos homens. Yabu, por exemplo, e Kiyama. Lanças pequenas. Uma infelicidade nascer com uma lança pequena. Muita. Sim. - Deu uma olhada no pergaminho, depois fechou o leque com um estalido. - E você, Mariko-san? Como está?
- Bem, obrigada, senhor. Estou muito contente de vê-lo com tão boa aparência. Posso oferecer-lhe meus cumprimentos pelo nascimento de seu neto?
- Sim, obrigado. Sim, estou muito satisfeito. O menino é bem formado e parece saudável.
- E a Senhora Genjiko?
Toranaga grunhiu.
- Forte como sempre. Sim. - Franziu os lábios, meditando um instante. - Talvez você pudesse recomendar uma mãe adotiva para a criança. - Era costume que os filhos de samurais importantes tivessem mães adotivas, a fim de que a mãe natural pudesse atender ao marido e ao funcionamento da casa dele, deixando à mãe adotiva a preocupação com a criação da criança, tornando-a forte e uma honra para os pais. - Receio que não seja fácil encontrar a pessoa certa. A Senhora Genjiko não é a ama mais fácil para quem se trabalhar, neh?
- Estou certa de que o senhor encontrará a pessoa perfeita, senhor. Mas certamente pensarei no assunto - replicou Mariko, sabendo que oferecer tal conselho seria tolice, pois nenhuma mulher nascida poderia satisfazer Toranaga e a nora.
- Obrigado. Mas e você, Mariko-san, como está?
- Bem, senhor, obrigada.
- E a sua consciência cristã?
- Não há conflito, senhor. Nenhum. Fiz tudo o que o senhor desejou. Realmente.
- Algum padre esteve aqui?
- Não, senhor.
- Tem necessidade de um?
- Seria bom me confessar, receber o sacramento e ser abençoada. Sim, sinceramente, eu gostaria disso... confessar as coisas permitidas e ser abençoada.
Toranaga estudou-a atentamente. Os olhos dela eram honestos.
- Agiu bem, Mariko-san. Por favor, continue assim.
- Sim, senhor, obrigada. Uma coisa... o Anjin-san precisa muito de uma gramática e um dicionário.
- Mandei pedir ao Tsukku-san. - Notou o franzir de cenho dela. - Acha que ele não os enviará?
- Ele obedeceria, claro. Talvez não com a velocidade que o senhor gostaria.
- Logo saberei disso - acrescentou Toranaga agourentamente. - Só lhe restam treze dias.
Mariko se espantou.
- Senhor? - perguntou, sem compreender.
- Treze? Ah - disse Toranaga com indiferença, dissimulando o seu lapso momentâneo -, quando estávamos a bordo do navio português, ele pediu permissão para visitar Yedo. Concordei, desde que fosse dentro de quarenta dias. Restam treze. Não foi de quarenta dias o tempo que aquele bonzo, aquele profeta, Moisés, passou na montanha, reunindo os mandamentos do "Deus" que foram gravados em pedra?
- Sim, senhor.
- Você acredita que isso aconteceu?
- Sim. Mas não compreendo como nem por quê.
- É uma perda de tempo discutir coisas de Deus. Neh?
- Se se visa a fatos, sim, senhor.
- Enquanto esperava por esse dicionário, você tentou fazer um?
- Sim, Toranaga-sama. Receio que não seja muito bom. Infelizmente parece haver muito pouco tempo, e muitos problemas. Aqui ... por toda parte - acrescentou ela, intencionalmente.
Ele assentiu, concordando, sabendo que ela gostaria ardentemente de perguntar muitas coisas: sobre o novo conselho, a designação do Senhor Ito, a sentença de Naga, e se a guerra seria imediata.
- Somos afortunados em ter o seu marido de volta, neh?
O leque dela parou.
- Nunca pensei que ele escaparia vivo. Disse uma prece e queimei incenso em memória dele todos os dias. - Buntaro lhe contara naquela manhã como outro contingente de samurais de Toranaga cobrira a sua retirada da praia e como ele atingira os arredores de Osaka sem dificuldade. Depois, com cinqüenta homens escolhidos e cavalos de reserva, disfarçados de bandidos, ele rumara às pressas para as colinas e caminhos secundários numa arremetida impetuosa para Yedo. Por duas vezes seus perseguidores o alcançaram, mas o inimigo não estava em número suficiente para contê-lo e ele conseguiu escapar. Adiante sofreu uma emboscada e perdeu todos os homens, menos quatro, e escapou novamente, aprofundando-se mais na floresta, viajando à noite, dormindo durante o dia. Frutas e água de nascentes, um pouco de arroz apanhado em casas de fazendas solitárias, depois a galope de novo, sempre com caçadores nos calcanhares. Levara vinte dias para chegar a Yedo. Dois homens sobreviveram com ele. - Foi quase um milagre - disse ela. - Pensei estar possuída por um kami quando o vi ao seu lado na praia.
- Ele é inteligente. Muito forte e muito inteligente.
- Posso pedir-lhe notícias do Senhor Hiromatsu, senhor? E de Osaka? A Senhora Kiritsubo e a Senhora Sazuko?
Sem omitir opinião, Toranaga informou que Hiromatsu chegara a Yedo um dia antes de ele partir para Anjiro, embora as duas damas tivessem decidido ficar em Osaka, sendo a saúde da Senhora Sazuko a razão para esse adiamento. Não havia necessidade de elaborar. Tanto ele quanto Mariko sabiam que isso era meramente uma fórmula para poupar a dignidade e que o General Ishido nunca permitiria que duas reféns tão valiosas partissem, agora que Toranaga estava fora do seu alcance.
- Shigata ga nai - disse ele. - Karma, neh? Não há nada que se possa fazer. É karma, não é?
- Sim. - Ele pegou o pergaminho. - Agora devo ler isto. Obrigado, Mariko-san. Agiu muito bem. Por favor, traga o Anjin-san à fortaleza ao amanhecer.
- Senhor, agora que o meu amo está aqui, terei...
- Seu marido já concordou que enquanto eu estiver aqui, você permanece onde está e atua como intérprete. Seu dever primordial é para com o Anjin-san pelos próximos dias.
- Mas, senhor, preciso instalar casa para o meu senhor. Ele necessitará de criados e de uma casa.
- Isso seria um desperdício de dinheiro, tempo e esforço, no momento. Ele ficará com os soldados, ou na casa do Anjin-san, onde lhe apraza. - Notou um lampejo de irritação. - Nan ja?
- Meu lugar deve ser com o meu amo. Para servi-lo.
- O seu lugar é onde eu quero que seja. Neh?
- Sim, por favor, desculpe-me. Naturalmente.
- Naturalmente.
Ela se foi.
Ele leu o pergaminho cuidadosamente. E o Manual de Guerra. Depois releu partes do pergaminho. Guardou-os ambos em segurança, postou guardas à porta da cabina, e subiu ao convés.
Estava amanhecendo. O dia prometia calor e nebulosidade. Ele cancelou o encontro com o Anjin-san, conforme pretendia, e cavalgou para o planalto com cem guardas. Ali reuniu seus falcoeiros e três falcões, e caçou na extensão de vinte ris. Pelo meiodia havia ensacado três faisões, duas grandes galinholas, uma lebre e um par de codornizes. Mandou um faisão e a lebre para o Anjin-san, o resto para a fortaleza. Alguns dos seus samurais não eram budistas e ele lhes tolerava os hábitos alimentares. Quanto a si mesmo, comeu um pouco de arroz frio com uma pasta de peixe, um pouco de alga marinha em conserva com fatias de gengibre. Depois se enrodilhou no chão e dormiu.
A tarde findava e Blackthorne encontrava-se na cozinha, assobiando alegremente. Em torno dele estavam o cozinheiro-chefe, o cozinheiro assistente, o preparador de verduras, o preparador de peixe, e seus assistentes, todos sorridentes, mas interiormente mortificados pelo fato de o amo estar ali na cozinha deles, com a ama, e também porque ela lhes dissera que ele ia honrá-los mostrando-lhes como preparar e cozer ao seu estilo. E por último por causa da lebre.
Ele já havia pendurado o faisão às vigas de um telheiro externo com a cuidadosa instrução de que ninguém, ninguém devia tocá-lo senão ele.
- Eles compreendem, Fujiko-san? Não tocar senão eu? - perguntou ele com uma seriedade zombeteira.
- Oh, sim, Anjin-san. Todos compreenderam. Desculpe-me, mas o senhor deve dizer: "Ninguém deve tocá-lo senão eu".
- Agora - estava ele dizendo, a ninguém em particular -, a delicada arte de cozinhar. Lição número um.
- Dozo gomen nasai? - perguntou Fujiko.
- Miru! Observe.
Sentindo-se jovem de novo - pois um dos seus primeiros biscates fora limpar caça, ele e o irmão, roubada com um risco enorme nas propriedades nos arredores de Chatham -, escolheu uma faca comprida e curva. O sushi-chefe empalideceu. Aquela era a sua faca favorita, com uma ponta especialmente afiada para garantir que as fatias de peixe cru fossem sempre cortadas com perfeição. A equipe toda sabia disso, e todos contiveram o fôlego, sorrindo mais ainda para dissimular o embaraço por ele, enquanto ele aumentava o tamanho do sorriso, para ocultar a própria vergonha.
Blackthorne abriu a barriga da lebre e destramente tirou a bolsa do estômago e as entranhas. Uma das criadas mais jovens teve náuseas e escapou silenciosamente. Fujiko resolveu multá-la com o salário de um mês, desejando ao mesmo tempo também poder ser uma camponesa e sumir com honra.
Eles olharam petrificados quando ele cortou as patas, depois empurrou as pernas dianteiras para dentro, a fim de soltar a pele. Fez o mesmo com as pernas traseiras e cortou a pele em círculo para puxá-las pela abertura do ventre; depois, com um puxão hábil, abriu o couro acima da cabeça como se fosse um casaco de inverno sendo tirado. Estendeu o animal quase pelado sobre o cepo, e decapitou-o deixando a cabeça com os olhos fixos, patéticos, ainda ligada ao couro. Virou a pele do lado certo de novo e colocou-a de lado. Um suspiro percorreu a cozinha. Ele não o ouviu, concentrado em cortar as pernas nas juntas e retalhar a carcaça. Outra criada sumiu despercebida.
- Agora quero uma panela - disse Blackthorne, com um sorriso amável.
Ninguém lhe respondeu. Simplesmente olhavam com os mesmos sorrisos fixos. Ele viu um grande caldeirão de ferro, imaculado. Pegou-o com as mãos ensangüentadas e encheu-o de água num recipiente de madeira, depois pendurou-o sobre o braseiro, armado no chão de terra, num poço cercado de pedras. Acrescentou os pedaços de carne.
- Agora alguns vegetais e especiarias - disse ele.
- Dozo? - perguntou Fujiko, guturalmente.
Ele não sabia as palavras japonesas, por isso olhou em torno. Havia algumas cenouras e algumas raizes que pareciam nabos num cesto de madeira. Limpou-as, cortou-as em fatias e juntou-as à sopa com sal e um pouco do escuro molho de soja.
- Devíamos ter algumas cebolas, alho e vinho do Porto.
- Dozo? - perguntou Fujiko de novo, infeliz.
- Kotaba shirimasen. Não sei as palavras.
Ela não o corrigiu, simplesmente pegou uma colher e ofereceu-lhe. Ele balançou a cabeça.
- Saquê - ordenou. O cozinheiro assistente voltou à vida num sobressalto e deu-lhe o pequeno barril de madeira.
- Domo. - Blackthorne verteu um cálice no caldeirão, depois mais um, para uma boa medida. Ele teria bebido um pouco do barril, mas sabia que seria falta de educação bebê-lo frio e sem cerimônia, e certamente ali na cozinha.
- Jesus Cristo, eu adoraria uma cerveja - disse ele.
- Dozo gozientashita, Anjin-san?
- Kotaba shirimasen, mas este cozido vai ficar excelente. Ichi-ban, neh? - Apontou para o caldeirão que chiava.
- Hai - disse ela, sem convicção.
- Okuru tsukai arigato Toranaga-sama - disse Blackthorne.
- Mande um mensageiro para agradecer ao Senhor Toranaga. - Ninguém lhe corrigiu o mau japonês.
- Hai.
Uma vez fora da cozinha, Fujiko correu para a latrina, a pequena cabana que se erguia em esplendor solitário perto da porta principal, no jardim. Estava muito enjoada.
- Está se sentindo bem, ama? - perguntou a criada, Nigatsu. Era de meia-ldade, rechonchuda, e cuidara de Fujiko a vida toda.
- Vá embora! Mas antes traga um pouco de chá. Não. Você teria que entrar na cozinha... oh, oh, oh!
- Tenho chá aqui, ama. Pensamos que a senhora precisaria de um pouco de chá, então fervemos a água em outro braseiro. Aqui está!
- Oh, você é tão inteligente! - Fujiko beliscou afetuosamente a bochecha redonda de Nigatsu, enquanto outra criada vinha abaná-la. Enxugou a boca na toalha de papel e sentou-se, agradecida, sobre almofadas na varanda. - Oh, assim é melhor!
- E era melhor ao ar livre, à sombra, o bom sol da tarde lançando sombras escuras, borboletas alimentando-se, o mar lá embaixo, calmo e iridescente.
- O que está acontecendo, ama? Não ousamos nem espiar.
- Não tem importância. O amo... o amo... nao importa. Os costumes dele são esquisitos, mas esse é o nosso karma.
Desviou o olhar quando viu o seu cozinheiro-chefe, que vinha untuosamente pelo jardim, e sentiu o coração afundar mais um pouco.
Ele se curvou formalmente, um homenzinho teso, magro, de pés grandes e dentes muito salientes. Antes que pudesse proferir uma palavra, Fujiko disse com um sorriso insípido:
- Encomende facas novas na aldeia. Um novo caldeirão de cozinhar arroz. Um cepo novo, novos recipientes de água - todos os utensílios que achar necessários. Esses que o amo usou devem ser conservados para sua finalidade particular. Você reservará uma área especial, construirá outra cozinha se quiser, onde o amo possa cozinhar, se desejar - até que você seja eficiente.
- Obrigado, Fujiko-sama - disse o cozinheiro. - Desculpe-me por interrompê-la, mas, sinto muito, por favor, desculpeme, conheço um excelente cozinheiro na aldeia vizinha. Não é budista e até esteve na Coréia com o Exército, por isso aprendeu tudo sobre o... como... cozinhar para o amo muito melhor do que eu.
- Quando eu quiser outro cozinheiro, eu lhe direi. Quando o considerar inapto ou fingindo-se de doente, eu lhe direi. Até lá você será o cozinheiro-chefe aqui. Aceitou o posto por seis meses - disse ela.
- Sim, ama - disse o cozinheiro com dignidade exterior, mas tremendo por dentro, pois Fujiko-noh-Anjin não era ama para brincadeira. - Por favor, desculpe-me, mas fui contratado para cozinhar. Tenho orgulho em cozinhar. Mas nunca aceitei ser... ser açougueiro. Os etas são açougueiros. Claro que não podemos ter um eta aqui, mas esse outro cozinheiro não é budista como eu, como meu pai, o pai dele, e o pai do pai dele, ama, e eles nunca, nunca... Por favor, esse novo cozinheiro...
- Você cozinhará aqui como sempre fez. Acho a sua comida excelente, digna de um mestre-cuca de Yedo. Até mandei uma das suas receitas para a Senhora Kiritsubo, em Osaka.
- Oh? Obrigado. Faz-me muita honra. Qual, ama?
- A das enguias frescas, minúsculas, e medusa e ostras em fatias, com apenas o toque exato de soja, que você faz tão bem. Excelente! A melhor que já comi.
- Oh, obrigado, ama - rebaixou-se ele.
- Claro que as suas sopas deixam muito a desejar.
- Oh, sinto muito!
- Discutirei isso com você mais tarde. Obrigada, cozinheiro - disse ela, ensaiando uma dispensa.
O homenzinho permaneceu no lugar resolutamente.
- Por favor, desculpe-me, ama, mas oh ko, com completa humildade, se o amo... quando o amo ...
- Quando o amo lhe disser que cozinhe ou abata animais ou seja o que for, você fará isso correndo. Imediatamente. Como qualquer criado leal faria. Mas como pode levar muito tempo para você se tornar eficiente, então, talvez, seja melhor que você faça acertos provisórios com esse outro cozinheiro, para que o visite nos raros dias em que o amo possa querer comer à sua própria maneira.
A honra satisfeita, o cozinheiro sorriu e curvou-se.
- Obrigado. Por favor, desculpe-me por pedir esclarecimento.
- Naturalmente você pagará ao cozinheiro substituto do seu próprio salário.
Quando ficaram sozinhas de novo, Nigatsu casquinou por trás da mão: - Oh, Ama-chan, posso cumprimentá-la pela sua vitória total e pela sua sabedoria? O cozinheiro-chefe quase soltou gases quando a senhora disse que ele também teria que pagar!
- Obrigada, Nanny-san. - Fujiko podia sentir o aroma da lebre começando a cozinhar. E se ele me pedir que coma com ele? estava pensando ela, e quase perdeu as forças. Mesmo que não peça, terei que servir. Como posso evitar de ficar nauseada? Você não vai ficar com náuseas, ordenou-se ela. É o seu karma. Você deve ter sido absolutamente terrível na sua vida anterior. Sim. Mas lembre-se de que tudo está excelente agora. Só mais cinco meses e seis dias. Não pense nisso, pense apenas no seu amo, que é um homem bravo e forte, embora tenha horríveis hábitos alimentares...
Cavalos subiram com estrépito até o portão. Buntaro desmontou e afastou o resto dos seus homens com um gesto. Depois, acompanhado apenas do seu guarda pessoal, avançou a passos largos pelo jardim, empoeirado e sujo de suor. Carregava o seu arco imenso e, às costas, a aljava. Fujiko e a criada curvaram-se cordialmente, detestando-o. O tio era famoso pelas fúrias selvagens, incontroláveis, que o faziam investir violentamente sem prevenir ou provocar disputas com praticamente qualquer pessoa. A maior parte do tempo apenas os seus criados sofriam, ou as suas mulheres.
- Por favor, entre, Tio. Que gentileza de sua parte visitar-nos tão cedo - disse Fujiko.
- Ah, Fujiko-san. Você... Que fedor é esse?
- Meu amo está cozinhando a caça que o Senhor Toranaga lhe enviou... está mostrando aos meus miseráveis criados como cozinhar.
- Se ele quer cozinhar, suponho que possa, embora... - Buntaro franziu o nariz com desagrado. - Sim, um amo pode fazer qualquer coisa na sua própria casa, dentro da lei, desde que não perturbe os vizinhos.
Legalmente um cheiro como aquele poderia ser causa de reclamação, e seria péssimo incomodar os vizinhos. Os inferiores nunca faziam nada que pudesse perturbar os superiores. Senão cabeças rolavam. Era por isso que, em todo o país, os samurais cautelosa e cortesmente viviam perto de samurais, do mesmo nível se possível, camponeses ao lado de camponeses, mercadores nas suas ruas, e etas isolados fora. Omi era o vizinho imediato deles. Ele é superior, pensou ela.
- Espero sinceramente que ninguém seja perturbado - disse ela a Buntaro, inquieta, perguntando-se que nova maldade estaria ele tramando. - O senhor queria ver o meu amo? - Começou a se levantar, mas ele a deteve.
- Não, por favor, não se incomode, esperarei - disse ele formalmente, e o coração dela quase parou. Buntaro não era conhecido pela boa educação, e polidez vinda dele era coisa muito perigosa. - Peço desculpas por chegar assim, sem enviar antes um mensageiro para solicitar uma entrevista - estava ele dizendo -, mas o Senhor Toranaga me disse que eu poderia, talvez, ser autorizado a usar o banho e me alojar aqui. De vez em quando. Você perguntaria ao Anjin-san, mais tarde, se ele daria permissão?
- Naturalmente - disse ela, dando continuidade ao padrão usual de etiqueta, embora a idéia de ter Buntaro na sua casa lhe repugnasse. - Estou certa que ele ficará honrado, Tio. Posso oferecer-lhe chá ou saquê, enquanto espera?
- Saquê, obrigado.
Nigatsu rapidamente colocou uma almofada na varanda e disparou em busca do saquê, por mais vontade de ficar que tivesse.
Buntaro estendeu o arco e a aljava ao guarda, descalçou as sandálias empoeiradas, e subiu à varanda pisando duro. Tirou a espada mortífera do sash, sentou-se de pernas cruzadas, e pousou a espada sobre os joelhos.
- Onde está minha esposa? Com o Anjin-san?
- Não, Buntaro-sama, sinto muito, ela recebeu ordem de ir à fortaleza, onde ...
- Ordem? De quem? De Kasigi Yabu?
- Oh, não, do Senhor Toranaga, senhor, quando ele voltou da caçada esta tarde.
- Oh, o Senhor Toranaga? - Buntaro acalmou-se e contemplou carrancudo a fortaleza do outro lado da baía. O estandarte de Toranaga tremulava ao lado do de Yabu.
- Gostaria que eu mandasse alguém buscá-la?
Ele balançou a cabeça.
- Há bastante tempo para ela. - Suspirou, olhou de viés para a sobrinha, filha da sua irmã mais nova. - Sou feliz por ter uma esposa tão completa, neh?
- Sim, senhor. É sim. Ela foi enormemente valiosa para interpretar o conhecimento do Anjin-san.
Buntaro olhou fixamente para a fortaleza, depois farejou o vento quando o cheiro do cozido chegou numa nova lufada.
- É como estar em Nagasaki, ou de volta à Coréia. Preparam carne o tempo todo, cozida ou assada. Fede... você nunca cheirou nada parecido. Os coreanos são animais, como canibais. O fedor do alho entra até na roupa e no cabelo da gente.
- Deve ter sido terrível.
- A guerra foi boa. Poderíamos ter vencido facilmente. E assolado a China. E civilizado ambos os países. - Buntaro avermelhou-se e sua voz soou estridente. - Mas não vencemos. Fracassamos e tivemos que regressar com a nossa vergonha porque fomos traídos. Traídos por traidores imundos, altamente colocados.
- Sim, isso é muito triste, mas o senhor tem razão. Toda a razão, Buntaro-sama - disse ela apaziguadora, dizendo facilmente a mentira, sabendo que nenhuma nação do mundo poderia conquistar a China, e ninguém poderia civilizar a China, que estava civilizada desde tempos imemoriais.
A veia da testa de Buntaro latejava e ele falava quase que para si mesmo.
- Eles pagarão. Todos eles. Os traidores. É apenas uma questão de esperar junto a um rio o tempo suficiente para que os corpos dos seus inimigos passem boiando, neh? Esperarei e cuspirei na cabeça deles em breve, muito em breve. Prometi isso a mim mesmo. - Olhou para ela. - Odeio traidores e adúlteros. E todos os mentirosos!
- Sim, concordo. O senhor tem toda a razão, Buntaro-sama - disse ela, com um calafrio, sabendo que não havia limite para a ferocidade dele. Quando Buntaro tinha dezesseis anos, executara a própria mãe, uma das consortes inferiores de Hiromatsu, pela sua suposta infidelidade enquanto o pai, Hiromatsu, estava na guerra, lutando pelo ditador, o Senhor Goroda. Depois, anos mais tarde, matara o filho mais velho, tido com a primeira esposa, por supostos insultos, e mandara a esposa de volta para a família, onde ela morrera pela própria mão, incapaz de suportar a vergonha. Ele fizera coisas terríveis às consortes e a Mariko. E discutira violentamente com o pai de Fujiko e o acusara de covardia na Coréia, desacreditando-o junto ao taicum, que imediatamente lhe ordenara que raspasse a cabeça e se tornasse monge, para morrer em devassidão, logo depois, consumido pela própria vergonha.
Fujiko precisou de toda a força de vontade para aparentar tranqüilidade.
- Ficamos muito orgulhosos de ouvir que o senhor havia escapado ao inimigo.
O saquê chegou. Buntaro começou a beber pesadamente.
Depois de passado o tempo correto de espera, Fujiko levantou-se.
- Por favor, desculpe-me um instante. - Dirigiu-se a cozinha para prevenir Blackthorne, pedir-lhe permissão para que Buntaro se alojasse na casa, e dizer a ele e aos criados o que devia ser feito.
- Por que aqui? - perguntou Blackthorne irritado. - Por que ficar aqui? É necessário?
Fujiko desculpou-se e tentou explicar que, naturalmente, Buntaro não podia ser recusado. Blackthorne voltou taciturno ao seu cozido e ela retornou à varanda, a Buntaro, com o peito doendo.
- Meu amo diz que fica honrado em tê-lo aqui. A casa dele é a sua casa.
- Como é ser consorte de um bárbaro?
- Eu imaginei que seria horrível. Mas do Anjin-san, que é hatamoto e portanto samurai? Suponho que seja como com outros homens. Esta é a primeira vez que sou consorte. Prefiro ser esposa. O Anjin-san é como os outros homens, embora, sim, alguns dos seus modos sejam muito estranhos.
- Quem teria pensado que uma mulher da nossa casa seria consorte de um bárbaro, mesmo hatamoto?
- Não tive escolha. Simplesmente obedeci ao Senhor Toranaga, e ao avô, o líder do nosso clã. É a posição da mulher, obedecer.
- Sim. - Buntaro esvaziou o cálice de saquê e ela tornou a enchê-lo. - Obediência é importante numa mulher. Mariko-san é obediente, não é?
- Sim, senhor. - Ela olhou-lhe o rosto feio, de gorila. - Ela só lhe trouxe honra, senhor. Sem a senhora sua esposa, o Senhor Toranaga nunca poderia ter obtido o conhecimento do Anjin-san.
Ele sorriu falsamente.
- Ouvi dizer que você apontou as pistolas na cara de Omi-san.
- Eu estava apenas cumprindo o meu dever, senhor.
- Onde aprendeu a usar armas?
- Eu nunca havia empunhado uma arma até então. Não sabia se as pistolas estavam carregadas. Mas teria puxado os gatilhos.
Buntaro riu.
- Omi-san também achou isso.
Ela tornou a encher o cálice.
- Nunca compreendi por que Omi-san não tentou tomá-las de mim. O seu senhor ordenara que as tirasse, mas ele não o fez.
- Eu teria feito.
- Sim, Tio, eu sei. Por favor, desculpe-me, mas ainda assim eu teria puxado os gatilhos.
- Sim. Mas teria errado!
- Sim, provavelmente. Depois daquilo aprendi a atirar.
- Ele a ensinou?
- Não. Foi um dos oficiais do Senhor Naga.
- Por quê?
- Meu pai nunca permitiu que suas filhas aprendessem a manejar espada e lança. Achava, sabiamente, acredito, que devíamos dedicar o nosso tempo a aprender coisas mais delicadas. Mas às vezes uma mulher precisa proteger seu amo e sua casa. A pistola é uma boa arma para uma mulher, muito boa. Não requer força nem muita prática. Então, agora, eu talvez possa ser um pouco mais de utilidade para o meu amo, pois eu certamente estourarei a cabeça de qualquer homem para protegê-lo, e pela honra da nossa casa.
Buntaro esvaziou o cálice.
- Fiquei orgulhoso quando ouvi que você enfrentou Omi-san. Agiu corretamente. O Senhor Hiromatsu ficará igualmente orgulhoso.
- Obrigada, Tio. Mas eu apenas cumpri um dever comum. - Curvou-se formalmente. - Meu amo pergunta se o senhor lhe concederia a honra de conversar agora, se lhe aprouver.
Ele continuou com o ritual.
- Por favor, agradeça-lhe, mas primeiro posso me banhar? Se aprouver a ele, vê-lo-ei quando a minha esposa voltar.