CAPÍTULO 29


- Anjin-san?

- Hai? - Blackthorne foi arrancado de um sono profundo.

- Aqui está um pouco de comida. E chá.

Por um instante ele não conseguiu se lembrar de quem era ou de onde estava. Depois reconheceu sua cabina a bordo da galera. Um raio de sol atravessava a escuridão. Sentia-se muitíssimo descansado. Não havia batida de tambor agora, e mesmo no mais profundo do seu sono seus sentidos lhe disseram que a âncora estava sendo baixada e que o navio estava seguro, perto da praia, em mar calmo.

Viu uma criada carregando uma bandeja, Mariko ao lado dela - já sem o braço na tipóia -, e ele deitado no beliche do piloto, o mesmo que usara durante a viagem de Anjiro para Osaka, que agora era quase, de certo modo, tão familiar quanto o seu próprio beliche na cabina do Erasmus. Erasmus! Vai ser formidável estar de volta a bordo e rever os rapazes.

Ele se espreguiçou voluptuosamente, depois pegou a xícara de chá que Mariko oferecia.

- Obrigado. Está delicioso. Como vai o seu braço?

- Muito melhor, obrigada. - Mariko flexionou-o para mostrar-lhe. - Foi apenas um ferimento superficial.

- Está com melhor aparência, Mariko-san.

- Sim, sinto-me melhor agora.

Quando ela voltara a bordo ao amanhecer, com Toranaga, estava prestes a perder os sentidos. - É melhor ficar em cima - dissera-lhe ele. - O enjôo passará mais depressa.

- Meu amo pergunta... pergunta para que o tiro de pistola.

- Foi só uma brincadeira de pilotos.

- Meu amo o cumprimenta pela sua habilidade náutica.

- Tivemos sorte. A lua ajudou. E a tripulação foi maravilhosa. Mariko-san, quer perguntar ao capitão-san se ele conhece estas águas? Desculpe, mas diga a Toranaga-sama que não vou conseguir ficar acordado muito mais tempo. Ou podemos lançar âncoras por mais ou menos uma hora, em alto-mar? Preciso dormir.

Ele se lembrava vagamente de ela falando que Toranaga dissera que ele podia descer, que o capitão-san era absolutamente capaz, já que iam permanecer em águas costeiras e não iam para alto-mar. Blackthorne espreguiçou-se de novo e abriu uma vigia da cabina. Havia praia rochosa a umas duzentas jardas de distância.

- Onde estamos?

- Ao largo da costa da província de Totomi, Anjin-san. O Senhor Toranaga quis nadar e deixar os remadores descansar algumas horas. Estaremos em Anjiro amanhã.

- A aldeia de pescadores? Isso é impossível. É quase meio-dia e ao amanhecer estávamos em Osaka. É impossível!

- Ah, isso foi ontem, Anjin-san. O senhor dormiu um dia, uma noite e metade de mais um dia - respondeu ela. - O Senhor Toranaga disse para deixá-lo dormir. Agora ele acha que uma nadada seria bom para despertá-lo. Depois de comer.

A comida eram duas tigelas de arroz e peixe assado na brasa com o molho escuro, agridoce, de vinagre doce, que ela lhe dissera que era feito de feijões fermentados.

- Obrigado. Sim, gostaria de nadar. Quase trinta e seis horas? Não admira que eu me sinta ótimo. - Pegou a bandeja da empregada, ávido. Mas não comeu imediatamente. - Por que ela está com medo? - perguntou.

- Não está com medo, Anjin-san. Só um pouco nervosa. Por favor, desculpe-a. Nunca tinha visto um estrangeiro de perto antes.

- Diga-lhe que, quando faz lua cheia, crescem chifres nos bárbaros e eles põem fogo pela boca, como dragões.

Mariko riu.

- Certamente não lhe direi isso. - Apontou para a mesa. - Há pó dental, uma escova, água e toalhas limpas. - - Depois, em latim: - Agrada-me ver que o senhor está bem. É exatamente como se comentou na marcha: o senhor tem grande coragem.

Os olhos deles se encontraram, mas o momento passou logo. Ela se curvou polidamente. A criada curvou-se. A porta fechou-se atrás delas. Não pense nela, ordenou-se ele. Pense em Toranaga ou em Anjiro. Por que paramos em Anjiro amanhã? Para desembarcar Yabu? Que bom que nos livramos dele! Omi estará em Anjiro. O que vou fazer com Omi?

Por que não pedir a Toranaga a cabeça de Omi? Ele lhe deve um favor ou dois. Ou por que não pedir para lutar com Omi-san? Como? Com pistolas ou espadas? Você não teria chance com uma espada, e seria assassinato se você tivesse uma arma de fogo. O melhor é não fazer nada e esperar. Logo você terá uma chance e então se vingará dos dois. Você goza do favor de Toranaga agora. Seja paciente. Pergunte a si mesmo o que você precisa dele. Logo estaremos em Yedo, portanto você tem muito tempo.

Blackthorne usou os pauzinhos do modo como vira os homens na prisão fazer, erguendo a tigela de arroz até junto à boca e empurrando os arroz grudento da borda da tigela para a boca com os pauzinhos. Os pedaços de peixe eram mais difíceis. Ele ainda não tinha destreza suficiente, então usou os dedos, contente por estar comendo a sós, sabendo que comer com os dedos na frente de Mariko, Toranaga ou qualquer japonês seria muito descortês.

Depois de ter desaparecido cada pedacinho, ele continuava faminto.

- Preciso conseguir mais comida - disse ele em voz alta.

- Jesus do paraíso, gostaria de comer pão fresco, ovos fritos, manteiga, queijo...

Subiu ao convés. Quase todos estavam despidos. Alguns homens estavam se enxugando, outros tomando sol, e uns poucos pulavam do costado. Ao mar, perto do navio, samurais e marujos nadavam, ou chapinhavam como crianças.

- Konnichi wa, Anjin-san.

- Konnichi wa, Toranaga-sama.

Toranaga, completamente nu, vinha subindo a escada de embarque que fora descida até a água.

- Sonata wa oyogitamo ka? - disse ele, gesticulando na direção do mar, tirando a água da cintura e dos ombros com tapinhas.

- Hai, Toranaga-sama, domo - disse Blackthorne, presumindo que o outro lhe perguntava se não queria nadar.

Toranaga apontou de novo para o mar e falou brevemente, depois chamou Mariko para interpretar. Mariko avançou do convés de popa, protegendo a cabeça com uma sombrinha carmesim, o quimono branco informal amarrado com negligência.

- Toranaga-sama diz que o senhor parece muito descansado, Anjin-san. A água é revigoração.

- Revigorante - disse ele, corrigindo-a polidamente. - Sim.

- Ah, obrigada... revigorante. Ele disse: por favor, nade, então.

Toranaga estava negligentemente encostado à amurada, enxugando as orelhas com uma pequena toalha. Quando sentiu o ouvido esquerdo entupido, inclinou a cabeça para o lado e saltou sobre o calcanhar esquerdo até destapá-lo. Blackthorne viu que Toranaga era muito musculoso e muito rijo, com exceção da barriga. Embaraçado, muito consciente da presença de Mariko, despiu a camisa, o codpiece, as calças, até estar igualmente nu.

- O Senhor Toranaga perguntou se todos os ingleses são tão peludos quanto o senhor, com cabelo tão claro.

- Alguns sim - disse ele.

- Nós... nossos homens não têm cabelo no peito nem nos braços como o senhor. Não muito. Ele disse que o senhor tem uma excelente compleição.

- Ele também tem. Agradeça-lhe por favor. - Blackthorne afastou-se, dirigindo-se para o topo da prancha de embarque, consciente dela e da jovem, Fujiko, ajoelhada na popa sob um guarda-sol amarelo, uma criada ao seu lado, também a observá-lo.

Então, incapaz de conservar a dignidade o suficiente para caminhar despido até o mar, ele mergulhou por sobre o costado dentro da água azul-pálida. Foi um mergulho perfeito e o frio do mar atingiu-o de modo estimulante. O fundo arenoso estava três braças abaixo, algas flutuando, multidões de peixes indiferentes aos nadadores. Perto do fundo, interrompeu a queda, girou e brincou com os peixes, depois voltou à tona e começou a nadar para o navio com a braçada aparentemente preguiçosa e fácil, mas muito rápida, que Alban Caradoc lhe ensinara.

A pequena baía era desolada: muitos rochedos, uma minúscula praia de seixos, e nenhum sinal de vida. Montanhas erguiamse a mil pés contra um céu azul, infinito.Deitou-se sobre uma rocha, tomando sol. Quatro samurais haviam nadado com ele e não estavam muito longe. Sorriram e acenaram. Mais tarde ele nadou de volta, e eles o seguiram.

Toranaga continuava a observá-lo.

Subiu ao convés. Sua roupa tinha sumido. Fujiko, Mariko e as duas criadas ainda estavam lá. Uma das criadas inclinou-se e ofereceu-lhe uma toalha ridiculamente pequena, que ele pegou e com que começou a se enxugar, voltando-se, constrangido, para a amurada. Ordeno-lhe que se sinta à vontade, disse a si mesmo. Você fica à vontade, nu, num quarto fechado com Felicity, não fica? É só em público, com mulheres por perto - com ela por perto -, que você fica embaraçado. Por quê? Eles não reparam na nudez e isso é totalmente sensato. Você está no Japão. Deve agir como eles. Você vai ser como eles e agir como um rei.

- O Senhor Toranaga diz que o senhor nada muito bem. O senhor lhe ensinaria aquela braçada? - estava dizendo Mariko.

- Ficaria contente em fazer isso - disse ele, e forçou-se a se voltar e se encostar como Toranaga fizera. Mariko lhe sorria - parecendo tão bonita, pensou ele.

- O modo como o senhor mergulhou no mar. Nunca... nunca vimos isso antes. Sempre pulamos. Ele quer aprender a fazer isso.

- Agora?

- Sim, por favor.

- Posso ensinar-lhe ... pelo menos, posso tentar.

Uma criada segurava um quimono de algodão para Blackthorne, que, agradecido, deslizou para dentro dele, amarrando-o com o cinto. Agora, completamente descontraído, explicou como mergulhar, como erguer os braços em torno da cabeça e saltar, mas tomando cuidado para evitar o mergulho de barriga.

- É melhor começar do pé da escada de embarque, com queda de cabeça, sem pular nem correr. É assim que ensinamos as crianças.

Toranaga ouviu, fez perguntas e depois, quando se sentiu satisfeito, disse através de Mariko:

- Ótimo. Creio que compreendi. - Caminhou para o topo da escada. Antes que Blackthorne pudesse detê-lo, Toranaga se atirou na água, quinze pés abaixo. A barrigada foi péssima. Ninguém riu. Toranaga voltou ruidosamente para o convés e tentou de novo. Mais uma vez aterrissou na horizontal. Outros samurais foram igualmente mal sucedidos.

- Não é fácil - disse Blackthorne. - Levei um bom tempo para aprender. Deixe estar e amanhã tentamos de novo.

- O Senhor Toranaga disse: "Amanhã é amanhã. Hoje vou aprender a mergulhar".

Blackthorne tirou o quimono e demonstrou de novo. Alguns samurais o imitaram. Todos falharam. Assim como Toranaga. Seis vezes. Após outra demonstração, Blackthorne subiu para o pé da prancha e viu Mariko entre eles, nua, preparando-se para se lançar no espaço. Seu corpo era perfeito. No antebraço, o curativo.

- Espere, Mariko-san! É melhor tentar daqui. A primeira vez.

- Muito bem, Anjin-san.

Ela desceu até ele, o minúsculo crucifixo realçando-lhe a nudez. Ele lhe mostrou como se curvar e cair para a frente no mar, segurando-a pela cintura para que mudasse de posição, de modo que a cabeça atingisse a água primeiro.

Então Toranaga tentou perto da linha d'água e foi razoavelmente bem sucedido. Mariko tentou de novo e o toque da sua pele aqueceu Blackthorne, que de repente começou a fazer brincadeira e caiu na água, orientando-os lá debaixo até se esfriar.

Então subiu correndo ao convés, ficou de pé sobre a amurada e mostrou-lhes um mergulho de morto, que achou que poderia ser mais fácil, sabendo que ter êxito era vital para Toranaga.

- Mas é preciso se manter rígido, hai? Como uma espada. Aí não há como errar. - Atirou-se. O mergulho foi perfeito. Ele voltou à tona e esperou.

Vários samurais avançaram, mas Toranaga fez-lhes sinal que se afastassem. Levantou os braços rigidamente, a coluna ereta. O peito e os quadris estavam escarlates devido às barrigadas. Depois se deixou cair para a frente, do modo como Blackthorne mostrara. Sua cabeça atingiu a água primeiro e as pernas lhe desabaram em cima, mas foi um mergulho e o primeiro mergulho bem-sucedido de qualquer um deles. Um troar de aprovação saudou-o quando surgiu à superfície. Ele repetiu, melhor desta vez. Outros homens o seguiram, alguns com êxito, outros não. Depois foi Mariko quem tentou.

Blackthorne viu os pequenos seios firmes e a minúscula cintura, o estômago chato e as pernas curvilíneas. Um lampejo de dor passou-lhe pelo rosto quando ergueu os braços acima da cabeça. Mas retesou-se como uma seta e se atirou bravamente. Varou a água como uma lança, habilmente. Quase ninguém além dele notou.

- Foi um excelente mergulho. Realmente excelente - disse ele, dando-lhe a mão para erguê-la da água até a escada de embarque. - A senhora devia parar agora. Poderia abrir de novo o corte do braço.

- Sim, obrigada, Anjin-san. - Ela se erguia ao lado dele, mal lhe atingindo o ombro, muito contente consigo mesma. - Foi uma sensação rara, a queda para a frente e o fato de ter que permanecer rígida, e mais que tudo ter que dominar o medo. Sim, foi realmente uma sensação muito rara. - Ela caminhou pelo passadiço e vestiu o quimono que a criada segurava. Depois, secando o rosto delicadamente, desceu para o convés inferior.

Jesus Cristo, isso é mulher demais, pensou ele.


Ao pôr-do-sol, Toranaga mandou chamar Blackthorne. Estava sentado no convés de popa sobre futons limpos, perto de um pequeno braseiro de carvão, em cima do qual fumegavam alguns pedaços de madeira aromática. Eram usados para perfumar o ar o manter a distância os insetos e mosquitos do crepúsculo. Seu quimono estava passado e asseado, e os imensos ombros em forma de asa do manto engomado davam-lhe uma presença formidável. Yabu, também, estava vestido formalmente, e Mariko.

Fujiko também se encontrava lá. Vinte samurais, sentados, mantinham-se silenciosamente em guarda. Havia archotes colocados em suportes e a galera oscilava calmamente ancorada na baía.

- Saquê, Anjin-san?

- Domo, Toranaga-sama. - Blackthorne curvou-se e aceitou o pequeno cálice estendido por Fujiko, ergueu-o em brinde a Toranaga e esvaziou-o. O cálice foi imediatamente enchido de novo. Blackthorne estava usando um quimono marrom da guarda e sentia-se mais à vontade e livre do que nas suas próprias roupas.

- O Senhor Toranaga diz que vamos ficar aqui esta noite. Amanhã chegaremos a Anjiro. Ele gostaria de ouvir mais a respeito do seu país e do mundo exterior.

- Claro. O que ele gostaria de saber? Está uma noite adorável, não? - Blackthorne instalou-se confortavelmente, consciente da feminilidade de Mariko. Consciente demais. Estranho, estou mais consciente dela agora que está vestida do que quando não estava usando nada.

- Sim, muito. Logo estará úmido, Anjin-san. O verão não é uma boa época. - Transmitiu a Toranaga o que dissera. - Meu amo falou que eu lhe dissesse que Yedo é pantanosa. Os mosquitos são péssimos no verão, mas a primavera e o outono são lindos ... sim, realmente as estações de nascimento e morte do ano são lindas.

- A Inglaterra tem clima temperado. O inverno é mau mais ou menos a cada sete anos. E o verão também. A carestia ocorre uma vez a cada seis anos, embora às vezes tenhamos dois anos ruins de enfiada.

- Também temos carestias. Toda carestia e ruim. Como é no seu país agora?

- Tivemos más colheitas três vezes nos últimos dez anos e não tivemos sol para amadurecer o trigo. Mas isso foi a mão do Todo-Poderoso. Agora a Inglaterra está muito forte. Somos prósperos. Nosso povo trabalha arduamente. Fazemos o nosso próprio tecido, todas as armas, a maior parte dos tecidos de lã da Europa. Vem alguma seda da França mas a qualidade não é boa e se destina apenas aos muito ricos.

Blackthorne resolveu não contar sobre praga, motins ou insurreições causadas pela tomada das terras da comunidade, nem sobre o êxodo dos camponeses para as cidades. Em vez disso, contou-lhes sobre os bons reis e rainhas, líderes idôneos e sábios parlamentares e guerras vitoriosas.

- O Senhor Toranaga quer que tudo fique bem claro. O senhor afirma que apenas o poder marítimo os protege da Espanha e Portugal?

- Sim. Apenas isso. O controle dos nossos mares é que nos mantém livres. Vocês são uma nação insular também, exatamente como nós. Sem o controle dos seus mares, também não ficam indefesos contra um inimigo externo?

- Meu amo concorda com o senhor.

- Ah, também foram invadidos? - Blackthorne viu um leve franzir de sobrolho quando ela se virou para Toranaga, e lembrou-se que devia se limitar a responder e não a fazer perguntas.

Quando ela lhe falou de novo, foi mais séria.

- O Senhor Toranaga diz que devo responder à sua pergunta, Anjin-san. Sim, fomos invadidos duas vezes. Há mais de trezentos anos atrás - seria 1274, pelas suas contas -, os mongóis de Kublai-Cã, que acabava de conquistar a China e a Coréia, vieram contra nós quando nos recusamos a nos submeter à autoridade dele. Alguns milhares de homens desembarcaram em Kyushu, mas nossos samurais conseguiram contê-los, e pouco depois o inimigo se retirou. Mas sete anos mais tarde eles voltaram. Dessa vez a invasão consistiu de quase mil navios chineses e coreanos, com duzentos mil homens - mongóis, chineses e coreanos -, na maior parte homens de cavalaria. Em toda a história chinesa, essa foi a maior força de invasão jamais reunida. Ficamos indefesos ante uma força tão vasta, Anjin-san. Novamente começaram a desembarcar na baía de Hakata, em Kyushu, mas antes que pudessem desdobrar todos os seus exércitos, um grande vento, um tai-fun, veio do sul e destruiu a esquadra e tudo que continha. Os que ficaram em terra foram rapidamente mortos. Foi um camicase, um vento divino, Anjin-san - disse ela, com fé absoluta -, um camicase enviado pelos deuses para proteger esta Terra dos Deuses do invasor estrangeiro. Os mongóis nunca mais voltaram e, após oitenta anos mais ou menos, a dinastia deles, a Chin, foi extirpada da China. - Mariko acrescentou com grande satisfação: - Os deuses protegeram-nos contra eles. Os deuses sempre nos protegerão contra invasões. Afinal, esta é a terra deles, neh?

Blackthorne pensou na imensa quantidade de navios e homens da invasão; fazia a armada espanhola contra a Inglaterra parecer insignificante.

- Também fomos ajudados por uma tempestade, senhora - disse ele, com igual seriedade. - Muitos acreditam que também foi enviada por Deus - certamente foi um milagre -, e quem sabe, talvez tenha sido mesmo. - Ele olhou para o braseiro quando uma brasa crepitou e as chamas dançaram. Depois disse: - Os mongóis quase nos engoliram na Europa, também. - Contou a ela como as hordas de GengisCa, neto de Kublai-Cã, chegaram quase aos portões de Viena antes que seu ataque desenfreado fosse detido, e depois deram meia-volta, deixando montanhas de cadáveres no seu rastro. - As pessoas daqueles tempos acreditaram que Gengis-Cã e seus soldados tivessem sido enviados por Deus para punir o mundo de seus pecados.

- O Senhor Toranaga diz que ele foi apenas um bárbaro, imensamente bom na guerra.

- Sim. Ainda assim na Inglaterra bendizemos a nossa sorte por estarmos numa ilha. Agradecemos a Deus por isso e pelo canal. E pela nossa marinha. Com a China tão perto e tão poderosa - e com vocês e a China em guerra -, surpreende-me que não tenham uma grande marinha. Não têm medo de outro ataque? - Mariko não respondeu, mas traduziu para Toranaga o que fora dito. Quando terminou, Toranaga falou com Yabu, que assentiu e respondeu, igualmente sério. Os dois homens trocaram idéias algum tempo. Mariko respondeu a outra pergunta de Toranaga, depois falou mais uma vez a Blackthorne.

- Para controlar os seus mares, Anjin-san, de quantos navios precisam?

- Não sei exatamente, mas agora a rainha deve ter uns cento e cinqüenta navios de linha. São navios construidos apenas para combate.

- Meu amo pergunta quantos navios a sua rainha constrói por ano.

- De vinte a trinta belonaves, as melhores e as mais velozes do mundo. Mas os navios geralmente são construidos por grupos particulares de mercadores e depois vendidos à coroa.

- Por lucro?

Blackthorne lembrou-se da opinião samurai sobre o lucro e o dinheiro.

- A rainha generosamente dá mais do que o custo real a fim de estimular a pesquisa e os novos estilos de construção. Sem o favor real, isso dificilmente seria possível. Por exemplo, o Erasmus, o meu navio, é de um novo tipo, um projeto inglês construido sob licença da Holanda.

- O senhor poderia construir um navio assim aqui?

- Sim. Se eu tivesse carpinteiros, intérpretes, e todo o material e tempo. Primeiro eu teria que construir um pequeno vaso. Nunca construí um inteiramente sozinho, portanto teria que experimentar... Naturalmente - acrescentou, tentanto conter a própria excitação à medida que a idéia se desenvolvia -, naturalmente, se o Senhor Toranaga desejasse um navio, ou navios, talvez se pudesse combinar um comércio. Talvez pudéssemos encomendar um número de belonaves, a serem construídas na Inglaterra. Poderíamos trazê-las até aqui para ele - mastreadas como ele quisesse e armadas como ele quisesse.

Mariko traduziu. O interesse de Toranaga se intensificou. Assim como o de Yabu.

- Ele pergunta se os nossos marinheiros podem ser treinados para tripular navios assim.

- Certamente, dando-se tempo a eles. Poderíamos nos encarregar de que os mestres de navegação - ou um deles - ficassem em suas águas por um ano. Então ele poderia criar um programa de treinamento para vocês. Uma marinha moderna. Sem igual.

Mariko falou durante algum tempo. Toranaga interrogou-a de novo, incisivo, e o mesmo fez Yabu.

- Yabu-san pergunta: "Sem igual?"

- Sim. Melhor do que qualquer coisa que os espanhóis pudessem ter. Ou os portugueses.

Fez-se silêncio. Toranaga estava evidentemente dominado pela idéia, embora tentasse dissimular.

- Meu amo pergunta se o senhor tem certeza de que isso poderia ser acertado.

- Sim.

- Quanto tempo levaria?

- Dois anos até que eu chegasse em casa. Dois anos para construir o navio ou os navios. Mais dois para voltar para cá. Metade do custo teria que ser pago antecipadamente, o restante contra entrega.

Toranaga pensativamente se inclinou para a frente e pôs mais lenha aromática no braseiro. Todos o observaram e esperaram. Depois ele falou longamente com Yabu. Mariko não traduziu o que estava sendo dito e Blackthorne sabia que não devia perguntar, embora tivesse gostado muito de tomar parte na conversa. Estudou a todos eles, até a garota Fujiko, que também ouvia atentamente, mas não conseguiu captar nada de nenhum deles. Sabia que a idéia fora brilhante, que poderia gerar um lucro imenso e garantir a sua passagem de volta em segurança para a Inglaterra.

- Anjin-san, quantos navios o senhor poderia conduzir?

- Uma pequena frota de cinco navios de cada vez seria o melhor. Poder-se-la esperar perder no mínimo um navio devido a tempestades, temporais, ou interferência luso-espanhola - tenho certeza de que eles tentariam impedi-los a qualquer preço de ter navios de guerra. Em dez anos o Senhor Toranaga poderia ter uma marinha de quinze a vinte navios. - Deixou-a traduzir, depois continuou, lentamente. - A primeira frota poderia trazer os mestres carpinteiros, construtores navais, atiradores, marujos e mestres. No prazo de dez a quinze anos a Inglaterra poderia fornecer ao Senhor Toranaga trinta modernos vasos de guerra, mais do que o suficiente para dominar as suas águas domésticas. E, nessa altura, se ele quisesse, possivelmente poderia estar construindo seus próprios navios aqui. Nós... - Ele ia dizer "venderemos", mas mudou a palavra. - Minha rainha ficaria honrada em ajudá-lo a formar sua própria marinha, e se ele desejar, nós treinaremos o pessoal e o forneceremos.

Oh, sim, pensou ele, exultante, quando o embelezamento final do plano se encaixou no lugar. Nós comandaremos e providenciaremos para que o almirante e a rainha lhe ofereçam uma aliança de compromisso - boa para você e boa para nós -, que será parte do negócio, e então, juntos, amigo Toranaga, escorraçamos o cão espanhol e português para fora destes mares e seremos senhores deles para sempre. Esse poderia ser o maior acordo isolado de comércio jamais realizado por qualquer nação, pensou ele alegremente. E com uma frota anglo-japonesa limpando estes mares, nós, ingleses, dominaremos o comércio de seda entre o Japão e a China. Então serão milhões todos os anos!

Se eu conseguir isso, mudarei o rumo da história. Terei riquezas e honrarias para além dos meus sonhos. Tornar-me-ei um ancestral. E tornar-se um ancestral é praticamente a melhor coisa que um homem pode tentar fazer, ainda que falhe na tentativa.

- Meu amo diz que é uma pena que o senhor não fale a nossa língua.

- Sim, mas tenho certeza de que a senhora está traduzindo perfeitamente.

- Ele não disse isso como crítica a mim, Anjin-san, mas como observação. É verdade. Seria muito melhor para o meu senhor conversar diretamente, assim como eu converso.

- Há dicionários aqui, Mariko-san? E gramáticas, gramáticas de português-japonês ou latim-japonês? Se o Senhor Toranaga pudesse me ajudar com livros e professores, eu tentaria aprender a sua língua.

- Não temos livros assim.

- Mas os jesuítas têm. A senhora mesma disse isso.

- Ah! - Ela falou com Toranaga e Blackthorne viu os olhos dos dois, de Toranaga e de Yabu, iluminar-se, e sorrisos alargar-lhes o rosto.

- Meu amo diz que o senhor será ajudado, Anjin-san.

Por ordem de Toranaga, Fujiko serviu mais saquê a Blackthorne e a Yabu. Toranaga bebia apenas chá, assim como Mariko.

Incapaz de se conter, Blackthorne disse:

- O que ele diz da minha sugestão? Qual é a resposta?

- Anjin-san, seria melhor ter paciência. Ele responderá no momento devido.

- Por favor, perguntê-lhe agora.

Relutantemente Mariko voltou-se para Toranaga.

- Por favor, desculpe-me, senhor, mas o Anjin-san pergunta com grande deferência o que o senhor pensa do plano dele. Com toda a humildade e polidez ele solicita uma resposta.

- Ele terá a minha resposta oportunamente.

Mariko disse a Blackthorne:

- Meu amo diz que vai considerar o seu plano e pensar cuidadosamente no que o senhor disse. Pedê-lhe que seja paciente.

- Domo, Toranaga-sama.

- Vou me deitar agora. Partiremos ao amanhecer. - Toranaga levantou-se. Todos o seguiram lá para baixo, menos Blackthorne. Blackthorne foi deixado com a noite.


À primeira promessa de amanhecer, Toranaga soltou quatro dos pombos-correio que tinham sido mandados para o navio com a bagagem principal, quando o navio fora preparado. Os pássaros descreveram dois círculos no ar, depois partiram, dois retornando ao lar em Osaka, dois para Yedo. A mensagem cifrada para Kiritsubo era uma ordem a ser passada para Hiromatsu: deviam todos tentar partir pacificamente de imediato. Se fossem impedidos, deviam se trancar. No momento em que a porta fosse forçada deveriam atear fogo àquela parte do castelo e cometer seppuku.

A mensagem a seu filho Sudara, em Yedo, dizia que ele escapara, estava em segurança, e ordenava-lhe que desse seguimento aos preparativos secretos para a guerra.

- Ponha-se ao mar, capitão.

- Sim, senhor.

Pelo meio-dia haviam cruzado a angra entre Totomi e Izu, e estavam ao largo do cabo Ito, o ponto extremo-meridional da península de Izu. O vento estava excelente, e a vela mestra, sozinha, ajudava o impulso dos remos.

Então, bem junto à praia, num profundo canal entre a terra firme e algumas ilhotas rochosas, quando haviam virado para norte, houve um ronco agourento.

Todos os remos pararam.

- O que, em nome de Cristo... - Os olhos de Blackthorne estavam arregalados na direção da praia.

Repentinamente uma fenda imensa serpeou penhascos acima e um milhão de toneladas de rochas despencaram no mar em avalanche. As águas pareceram ferver por um momento. Uma pequena onda veio em direção à galera, e passou de lado. A avalanche cessou. O ronco se repetiu, mais profundo agora, mas remoto. Rochas rolaram dos penhascos. Todos escutaram atentamente e esperaram, olhando a face do penhasco. Sons de gaivotas, de arrebentação e de vento. Então Toranaga fez sinal ao mestre do tambor, que reiniciou a batida.

Os remos começaram. A vida no navio voltou à normalidade.

- O que foi isso? - perguntou Blackthorne.

- Apenas um terremoto. - Mariko estava perplexa. - O senhor não tem terremotos no seu país?

- Não. Nunca. Eu nunca tinha visto um.

- Oh, temo-los com freqüência, Anjin-san. Esse não foi nada, só um terremoto pequeno. O principal centro de choque deve ter sido em algum outro lugar, talvez até em alto-mar. Ou talvez tenha sido apenas um terremoto pequeno, só aqui. O senhor tem muita sorte de testemunhar apenas um terremoto pequeno.

- Foi como se a terra toda estivesse tremendo. Eu teria jurado que vi ... Ouvi falar de tremores. Na Terra Santa e na terra dos otomanos, acontecem às vezes. Jesus! - Ele desabafou, o coração ainda batendo violentamente. - Eu poderia jurar que vi aquele penhasco inteiro sacudir.

- Oh, mas sacudiu, Anjin-san. Quando se está em terra, é a sensação mais terrível do mundo. Não há aviso, Anjin-san. Os tremores vêm em ondas, às vezes de lado, às vezes de cima para baixo, às vezes três ou quatro abalos rápidos, às vezes um pequeno, seguido de um maior no dia seguinte. Não há padrão. O pior que já vivi foi há seis anos, perto de Osaka, no terceiro dia do mês das Folhas Mortas. Nossa casa desabou em cima de nós, Anjin-san. Não ficamos feridos, meu filho e eu. Arrastamo-nos para fora por entre os escombros. Os abalos continuaram por uma semana ou mais, alguns intensos, outros muito intensos. O grande castelo novo do taicum em Fujimi foi totalmente destruído. Centenas de milhares de pessoas se perderam naquele terremoto e nos incêndios que se seguiram. Esse é o maior perigo, Anjin-san, os incêndios que sempre se seguem. Nossas cidades e aldeias morrem com muita facilidade. Algumas vezes ocorre um terremoto violento em alto-mar e a lenda diz que é isso que causa o nascimento das Grandes Ondas. Têm dez ou vinte pés de altura. Não há nunca como antecipá-las e elas não têm época. Uma Grande Onda simplesmente avança do mar sobre as nossas praias e varre o interior.

Cidades podem desaparecer. Yedo foi parcialmente destruída há alguns anos por uma onda assim.

- É normal para vocês? Todos os anos?

- Oh, sim. Todos os anos, nesta Terra dos Deuses, temos abalos de terra. E incêndio, inundação, Grandes Ondas, e as tempestades monstruosas - os tai-funs. A natureza é muito severa conosco. - Lágrimas surgiram nos cantos dos olhos de Mariko.

- Talvez seja por isso que amemos tanto a vida, Anjin-san. O senhor vê, temos que amá-la. A morte faz parte do nosso ar, do nosso mar e da nossa terra. O senhor deve saber, Anjin-san, que nesta Terra dos Deuses a morte é o nosso legado.


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