CAPÍTULO 45
A viagem até Mishïma levou nove dias, e todas as noites, durante parte da noite, eles estiveram juntos. Secretamente. Involuntariamente Yoshinaka os ajudava. A cada hospedaria, com toda a naturalidade, escolhia quartos contíguos para todos eles. — Espero que não faça objeção, senhora, mas isto facilitará muito a segurança — dizia sempre, e Mariko concordava e tomava o quarto central, com Kiku e Gyoko de um lado, Blackthorne do outro. Depois, no escuro da noite, ela deixava a sua criada, Chimmoko, e ia ao encontro dele. Com quartos contíguos, mais o vozerio habitual, os sons noturnos, a cantoria e a pândega de outros viajantes, com seus enxames de criadas sempre presentes e ansiosas por agradar, as alertas sentinelas guardando o exterior não tinham como perceber nada. Apenas Chimmoko estava a par do segredo.
Mariko tinha consciência de que Gyoko, Kiku e todas as mulheres do grupo acabariam sabendo. Mas isso não a preocupava. Era samurai e elas não. A sua palavra pesaria contra a delas, a menos que fosse surpreendida em flagrante, e nenhum samurai, nem mesmo Yoshinaka, normalmente abriria a sua porta à noite, sem ser convidado. Pelo que constava a todos, Blackthorne compartilhava o leito com Chimmoko, ou uma das criadas da hospedaria. Não era assunto de ninguém, só dele. Então, apenas uma mulher podia traí-Ia, e se ela fosse traída, a delatora e todas as mulheres do grupo morreriam de uma morte ainda mais vulgar e prolongada do que a dela, por uma traição tão repugnante. Depois, além disso, se ela desejasse, antes que atingissem Mishima ou Yedo, todas sabiam que ela podia mandar matá-las, conforme o seu capricho, pela mais ligeira das indiscrições, real ou alegada. Mariko tinha certeza de que Toranaga não se oporia a essas mortes. Certamente não à de Gyoko e, bem no íntimo, Mariko tinha certeza de que ele não objetaria nem à de Kiku. Dois mil e quinhentos kokus podiam comprar muitas cortesãs de primeira classe.
Por isso se sentia segura quanto às mulheres. Mas não quanto a Blackthorne, por mais que o amasse agora. Ele não era japonês. Não fora educado desde o nascimento para construir as cercas internas e impenetráveis atrás das quais se esconder. Seu rosto, seu comportamento ou seu orgulho o trairiam. Ela não tinha medo por si mesma. Apenas por ele.
— Finalmente sei o que significa amor — murmurou ela na primeira noite. E como não lutava mais contra o furioso assalto do amor, mas se entregara à sua irresistibilidade, o seu terror pela segurança dele a consumia. — Eu o amo, por isso temo por você — sussurrou, abraçada a ele, usando o latim, a língua dos amantes. — Eu a amo. Oh, como a amo.
— Eu o destruí, meu amor. Estamos condenados agora. Destruí-o... essa é a verdade.
— Não, Mariko, de algum modo acontecerá alguma coisa que fará tudo dar certo.
— Eu não deveria ter começado. A culpa é minha. — Não se preocupe, peço-lhe. Karma é karma. Finalmente ela fingiu ser persuadida e fundiu-se aos braços dele. Mas tinha certeza de que ele seria a sua própria nêmesis. Por si mesma não tinha medo.
As noites foram jubilosas. Ternas. Cada uma melhor do que a anterior. Os dias foram fáceis para ela, difíceis para ele. Ele estava constantemente em guarda, determinado, por causa dela, a não cometer nenhum engano. — Não haverá engano — disse ela enquanto cavalgavam juntos, seguramente afastados dos outros, agora mantendo uma simulação de absoluta confiança após o lapso da primeira noite. — Você é forte. É samurai e não haverá engano — disse em latim.
— E quando chegarmos a Yedo?
— Deixe Yedo se preocupar com Yedo. Eu o amo. — Sim. Eu também a amo.
— Então por que está tão triste?
— Triste, não, senhora. É só que o silêncio é doloroso. Eu gostaria de gritar o meu amor do topo das montanhas. Deliciavam-se com a sua privacidade e com a certeza de que ainda estavam a salvo de olhos curiosos.
— O que acontecerá a eles, Gyoko-san? — perguntou Kiku suavemente no palanquim, no primeiro dia de viagem.
— Desastre, Kiku-san. Não há esperança para o futuro deles. Ele dissimula bem, mas ela...! A adoração que sente é gritante. Olhe para ela! Parece uma jovenzinha! Oh, como é tola!
— Mas é tão bela, neh? Que sorte ser tão completa, neh? — Sim, mas ainda assim eu não gostaria que a morte deles recaísse sobre mais ninguém.
— O que Yoshinaka fará quando os descobrir? — perguntou Kiku.
— Talvez não descubra. Rezo para isso. Os homens são muito tolos e estúpidos. Não conseguem ver as coisas mais simples sobre as mulheres, graças a Buda, abençoado o seu nome. Oremos para que eles não sejam descobertos até que tenhamos concluído o nosso negócio em Yedo. Oremos para que não nos considerem responsáveis. Oh, sim! E esta tarde, quando pararmos, vamos procurar o santuário mais próximo e acender dez bastões de incenso. Por todos os deuses, vou até doar a um templo para todos os deuses três kokus anuais, durante dez anos, se escaparmos e se eu conseguir o meu dinheiro.
— Mas eles são tão lindos juntos, neh? Nunca tinha visto uma mulher desabrochar tanto.
— Sim, mas ela vai murchar como uma camélia quebrada quando for acusada diante de Buntaro-san. O karma deles é o karma deles, e não há nada que possamos fazer por eles. Ou pelo Senhor Toranaga — ou mesmo por Omi-san. Não chore, criança. — Pobre Omi-san.
Omi os havia alcançado no terceiro dia. Ficara na hospedaria deles, e após a refeição noturna falara em particular com Kiku, pedindo-lhe formalmente que se juntasse a ele por toda a eternidade.
— De boa vontade, Omi-san, de boa vontade — respondera ela imediatamente, permitindo-se chorar, pois gostava muitíssimo dele. — Mas o meu dever para com o Senhor Toranaga, que me favoreceu, e para com Gyoko-san, que me formou, me proíbe isso. — Mas o Senhor Toranaga perdeu os seus direitos sobre você. Ele se rendeu. Está liquidado.
— Mas o contrato não, Omi-san, por mais que eu deseje isso. O contrato dele é legal, um compromisso. Por favor, desculpe-me, devo recusar...
— Não responda agora, Kiku-san. Pense. Por favor, eu lhe peço. Dê-me a sua resposta amanhã — dissera ele, e se fora. Mas a lacrimosa resposta fora a mesma. — Não posso ser tão egoísta, Omi-san. Por favor, perdoe-me. Meu dever para com o Senhor Toranaga, para com Gyoko-san... não posso, por mais que o deseje. Por favor, perdoe-me.
Ele argumentara. Houvera mais lágrimas. Juraram adoração perpétua e depois ela o mandara embora, com uma promessa: — Se o contrato se romper, ou o Senhor Toranaga morrer e eu ficar livre, farei qualquer coisa que o senhor queira, obedecerei a qualquer ordem sua. — E então ele deixara a hospedaria e seguira na frente para Mishima, cheio de pressentimentos, e ela secara as lágrimas e retocara a maquilagem. Gyoko a cumprimentara: — Você é tão sábia, criança. Oh, como eu gostaria de que a Senhora Toda tivesse metade da sua sabedoria.
Yoshinaka os levava vagarosamente de hospedaria em hospedaria ao longo do curso do rio Kano, que coleava para o norte, rumo ao mar, conformando-se com os atrasos que sempre pareciam acontecer, não se preocupando com o tempo. Toranaga lhe dissera reservadamente que não era preciso se apressar. — Preferiria que eles chegassem mais tarde do que cedo, Yoshinaka-san. Compreende?
— Sim, senhor — respondera ele. Agora abençoava seu kami guardião por lhe dar um intervalo. Em Mishima, com o Senhor Hiromatsu — ou em Yedo, com o Senhor Toranaga —, ele teria que fazer o seu relatório obrigatório, oral e por escrito. Então teria que decidir se contaria o que pensava, não o que fora tão cuidadoso em não ver. Iiiiiih, dizia a si mesmo atônito, com certeza estou enganado. A Senhora Toda? Ela e outro homem, e ainda por cima o bárbaro!
O seu dever não é ver? perguntou a si mesmo. Obter provas. Surpreendê-los por trás de portas fechadas, deitados juntos. Você será condenado por cumplicidade se não fizer isso, neh? Seria muito fácil, embora eles sejam muito cuidadosos.
Sim, mas apenas um imbecil levaria informações assim, pensou ele. Não é melhor fazer o papel de estúpido e rezar para que ninguém os traia e assim não traia a você? A vida dela terminou, estamos todos condenados, então o que importa? Desvie os olhos. Deixe-os ao karma deles. Que importância tem isso?
Com toda a alma o samurai sabia que tinha muitíssima importância.
— Ah, bom dia, Mariko-san. Que lindo dia — disse o Padre Alvito, caminhando até eles. Estavam fora da hospedaria, prontos para iniciar a jornada do dia. Ele fez o sinal-da-cruz sobre ela. — Que Deus a abençoe e a mantenha em suas mãos para sempre. — Obrigada, padre.
— Bom dia, piloto. Como está hoje? — Bem, obrigado. E o senhor?
O grupo deles e os jesuítas haviam se encontrado durante a marcha. Algumas vezes tinham ficado na mesma hospedaria. Outras, viajaram juntos.
— Gostaria de que eu cavalgasse com o senhor esta manhã, piloto? Eu ficaria feliz em continuar as aulas de japonês, se estiver disposto.
— Obrigado. Sim, eu gostaria.
No primeiro dia, Alvito se oferecera para tentar ensinar a língua a Blackthorne.
— Em troca de quê? — perguntara Blackthorne, cauteloso. — De nada. Ajudar-me-ia a passar o tempo, e para lhe dizer a verdade, no momento me sinto entristecido com a vida e velho. Também, talvez, para me desculpar pelas minhas palavras ásperas.
— Não espero desculpas de sua parte. O senhor tem o seu jeito, eu o meu. Não podemos nunca nos encontrar.
— Talvez... mas durante a nossa viagem poderíamos compartilhar coisas, neh? Somos viajantes da mesma estrada. Gostaria de ajudá-lo.
— Por quê?
— O conhecimento pertence a Deus. Não a um homem. Gostaria de ajudá-lo com um presente... nada em troca.
— Obrigado, mas não confio no senhor.
— Então, se insiste, em troca fale-me sobre o seu mundo, sobre o que viu e onde esteve. Qualquer coisa que queira, mas apenas o que quiser. A verdade. Realmente, eu ficaria fascinado e seria uma troca justa. Vim para o Japão com treze ou catorze anos, e não vi nada do mundo. Poderíamos até combinar uma trégua para a viagem, se o senhor desejar.
— Mas sem religiões, política ou doutrinas papais? — Sou o que sou, piloto, mas tentarei.
Então começaram a trocar conhecimento cautelosamente. Para Blackthorne parecia uma troca injusta. A erudição de Alvito era enorme, ele era um professor exemplar, enquanto Blackthorne achava que relatava apenas coisas que qualquer piloto saberia. — Mas isso não é verdade — dissera Alvito. — O senhor é um piloto único, fez coisas inacreditáveis. Um entre meia dúzia na terra, neh?
Gradualmente uma trégua aconteceu de fato entre eles, e isso agradou a Mariko.
— Isso é amizade, Anjin-san, ou o começo dela — disse ela. — Não. Amizade, não. Desconfio dele tanto quanto sempre, assim como ele de mim. Somos inimigos perpétuos. Não esqueci nada, nem ele. Isto é uma trégua, temporária, provavelmente para uma finalidade especial que ele nunca revelaria se eu perguntasse. Eu o compreendo e não há mal nisso, desde que eu não descuide da minha guarda.
Enquanto ele passava o tempo com Alvito, Mariko cavalgava indolentemente com Kiku e Gyoko e conversava sobre "travesseiro" e sobre modos de agradar aos homens e sobre o Mundo do Salgueiro. Em troca falava-lhes sobre o mundo, compartilhando o que presenciara, participara ou aprendera sobre o ditador Goroda, o táicum e até o Senhor Toranaga, contando-lhes histórias criteriosas sobre os grandes que nenhum plebeu jamais conheceria.
Poucas léguas ao sul de Mishima, o rio se insinuava para oeste, para tombar placidamente na costa e no grande porto de Numazu, e eles abandonaram a região barrancosa e seguiram pelas férteis e chatas planícies onde se cultivava o arroz, ao longo da larga e movimentada estrada que rumava para o norte. Havia muitos riachos e afluentes a vadear. Alguns eram rasos. Outros profundos e muito largos, e eles tinham que atravessa-los em batelões impelidos a varas. Mas o mais comum era serem vadeados sobre os ombros de carregadores, dos muitos que estavam sempre posicionados por perto com essa finalidade específica, tagarelando e se oferecendo para esse privilégio.
Aquele era o sétimo dia desde Yokosé. A estrada se bifurcava e ali o Padre Alvito disse que tinha que deixa-los. Tomaria a direção oeste, para retornar ao seu navio por um dia ou pouco mais, mas os alcançaria e se juntaria a eles de novo na estrada de Mishima a Yedo, se isso fosse permitido. — Naturalmente são ambos bem-vindos, se quiserem vir comigo.
— Obrigado, mas, sinto muito, há coisas que devo fazer em Mishima — disse Mariko.
— Anjin-san? Se a Senhora Mariko vai estar ocupada, o senhor seria bem-vindo sozinho. O nosso cozinheiro é muito bom, o vinho é excelente. Como Deus é o meu juiz, o senhor estaria seguro, e livre para ir e vir como quisesse. Rodrigues está a bordo. Mariko viu que Blackthorne queria deixá-la. Como pode ele? perguntou a si mesma com uma grande tristeza. Como pode querer me deixar quando o tempo é tão curto? — Por favor, vá, Anjin-san — disse ela. — Seria ótimo para o senhor... e bom ver o Rodrigues, neh?
Mas Blackthorne não foi, apesar do muito que queria. Não confiava no padre. Nem por Rodrigues ele colocaria a cabeça naquela armadilha. Agradeceu a Alvito e os dois ficaram a observá-lo se afastar.
— Vamos parar agora, Anjin-san — disse Mariko, embora mal fosse meio-dia. — Não há pressa, neh?
— Excelente. Sim, eu gostaria.
— O padre é um bom homem, mas fiquei contente de que tenha ido embora.
— Eu também. Mas ele não é um bom homem. É um padre. Ela ficou perplexa com a veemência dele. — Oh, desculpe, Anjin-san, desculpe-me por dizer...
— Não é importante, Mariko-chan. Eu lhe disse... nada foi esquecido. Ele estará sempre atrás da minha pele. — Blackthorne foi ao encontro do Capitão Yoshinaka.
Desconcertada, ela olhou para a estrada ocidental.
Os cavalos da comitiva do Padre Alvito moviam-se por entre os outros viajantes sem pressa. Alguns passantes curvavam-se para o pequeno cortejo, alguns se ajoelhavam, muitos ficavam curiosos, muitos carrancudos. Mas todos, polidamente, saíam do caminho. Exceto qualquer samurai. Quando encontrava um samurai, ainda que de importância ínfima, o Padre Alvito se movia para a esquerda ou para a direita, e seus acólitos o acompanhavam.
Ele estava contente por deixar Mariko e Blackthorne, contente com o intervalo. Tinha despachos urgentes a enviar ao padre-inspetor, que não pudera mandar porque os seus pombos correio tinham sido destruídos em Yokosé. Havia tantos problemas a resolver: Toranaga, Uo, o pescador, Mariko e o pirata. E José, que continuava a seguir-lhe os passos.
— O que ele está fazendo ali, Capitão Yoshinaka? — exclamara ele no primeiro dia, ao notar José entre os guardas, usando um quimono militar e, desajeitadamente, espadas.
— O Senhor Toranaga ordenou-me que o levasse para Mishima, Tsukku-san. Lá devo entregá-lo ao Senhor Hiromatsu. Oh, sinto muito, a vista dele o ofende?
— Não... não — dissera ele, de modo não convincente. — Ah, está olhando para as espadas dele? Não há razão para se preocupar. São apenas punhos, não têm lâminas. Foram ordens do Senhor Toranaga. Parece que o homem foi mandado para a sua ordem tão jovem, que não está claro se ele deve ou não usar espadas de verdade, por mais direito que tenha de usa-las e por mais que as queira. Parece que ele se juntou à sua ordem ainda criança, Tsukku-san. Ainda assim, naturalmente, não podemos ter um samurai sem espadas, neh? Uraga-noh-Tadamasa certamente é um samurai, embora tenha sido um padre bárbaro durante vinte anos. Nosso amo prudentemente fez essa acomodação.
— O que vai acontecer a ele?
— Devo entregá-lo ao Senhor Hiromatsu. Talvez ele seja mandado de volta ao tio para ser julgado, talvez fique conosco. Só obedeço a ordens, Tsukku-san.
O Padre Alvito fora falar com José, mas Yoshinaka o detivera polidamente. — Sinto muito, mas o meu amo também ordenou que ele fosse deixado sozinho. Longe de todo mundo. Particularmente de cristãos. Até que o Senhor Harima faça um julgamento, disse o meu amo. Uraga-san é vassalo do Senhor Harima, neh? O Senhor Harima também é cristão. Neh? O Senhor Toranaga diz que um daimio cristão deve lidar com um renegado cristão. Afinal de contas, o Senhor Harima é tio dele e líder da casa, e foi ele quem o colocou sob a sua custódia.
Embora fosse proibido, Alvito tentara de novo, naquela noite, conversar em particular com José, para lhe pedir que se retratasse do seu sacrilégio e se ajoelhasse em penitência diante do padre inspetor, mas o jovem friamente se afastara, sem ouvir, e depois daquilo José era sempre mandado bem à frente.
De algum modo, Santa Mãe de Deus, temos que trazê-lo de volta à mercê de Deus, pensou Alvito angustiado. O que posso fazer? Talvez o padre-inspetor saiba como lidar com José. Sim, e saberá o que fazer quanto à inacreditável decisão de Toranaga de se submeter, o que, nas reuniões secretas, eles haviam descartado como uma impossibilidade. — Não, isso é totalmente contra o caráter de Toranaga — dissera Dell'Aqua. — Ele irá à guerra. Quando as chuvas cessarem, talvez antes, se conseguir que Zataki se desdiga e traia Ishido. Minha previsão é que ele esperará tanto quanto puder e tentará forçar Ishido a fazer o primeiro movimento — o seu jogo de espera habitual. Aconteça o que acontecer, se Kiyama e Onoshi apoiarem Ishido e Osaka, o Kwanto será arrasado e Toranaga destruído e a inimizade enterrada.
— E Kiyama e Onoshi? Manterão pelo bem comum?
— Sim. Estão totalmente convencidos de que uma vitória de Toranaga seria o dobre de morte para a Santa Igreja. Agora que Harima vai se pôr do lado de Ishido, receio que Toranaga seja uma ilusão perdida.
Guerra civil de novo, pensou Alvito. Irmão contra irmão, pai contra filho, aldeia contra aldeia. Anjiro pronta para se revoltar, armada com mosquetes roubados, assim cochichou Uo, o pescador. E as outras notícias assustadoras: um Regimento de Mosquetes secreto quase pronto! Uma unidade de cavalaria moderna, em estilo europeu, com mais de dois mil mosquetes, adaptado à tática de guerra japonesa. Oh, Nossa Senhora, proteja os fiéis e amaldiçoe aquele herege...
Que lástima que Blackthorne tenha a mente deformada. Poderia ser um valioso aliado. Eu nunca teria pensado nisso, mas é verdade. É inacreditavelmente bem informado sobre as peculiaridades do mar e do mundo. Bravo e astuto, honesto dentro da sua heresia, franco e sem malícias. Nunca precisa que lhe digam alguma coisa duas vezes, sua memória é surpreendente. Ensinou-me muito sobre o mundo. E sobre si mesmo. É errado isso? perguntou-se Alvito tristemente enquanto se voltava para acenar a Mariko uma última vez. É errado aprender sobre o seu inimigo e, em troca, ensinar? Não. Errado é fazer vista grossa a um pecado mortal.
Três dias após a partida de Yokosé, a observação do Irmão Miguel o abalara.
— Acredita que são amantes?
— O que é Deus senão amor? Não Senhor Jesus? — retrucara Miguel. — Só se tocando com os olhos e isso ao corpo deles, não sei, padre, e Suas almas se tocam e eu pareço causa disso.
— Você deve estar enganado. Ela nunca faria isso! É contra toda a sua formação, contra a sua lei e a lei de Deus. Ela é uma cristã devota. Sabe que o adultério é um pecado hediondo.
— Sim, isso é o que ensinamos. Mas o casamento dela foi xintoísta, não foi consagrado diante do Senhor nosso Deus. É adultério ainda assim?
— Você também questiona a Palavra? Está contaminado pela heresia de José?
— Não, padre, por favor, desculpe-me, a Palavra nunca. Apenas o que o homem fez dela.
A partir dali ele os observara mais de perto. Evidentemente o homem e a mulher gostavam grandemente um do outro. Por que não gostariam? Nada de errado nisso! Constantemente juntos, cada um aprendendo com o outro, a mulher com ordem de pôr de lado a própria religião, o homem sem nenhuma, ou somente uma pátina da heresia luterana, como Dell'Aqua disse que era verdadeiro para todos os ingleses. Ambos pessoas fortes, vitais, embora díspares.
À confissão ela não dissera nada. Ele não a pressionara. Os olhos dela não lhe disseram nada e disseram tudo, mas não havia nada de real para julgar. Ele podia ouvir a si mesmo explicando a Dell'Aqua: "Miguel deve ter-se enganado, Eminência". "Mas cometeu adultério? Houve alguma prova?" “Iye por ela realmente nenhuma".
Alvito freou e se voltou momentaneamente. Viu-a em pé sobre a leve elevação, o piloto conversando com Yoshinaka, a velha madama e a prostituta pintada reclinadas no palanquim. Estava atormentado pelo zelo fanático que sentia manar de dentro de si. Pela primeira vez ousou perguntar, ainda que a si mesmo: você se prostituiu com o piloto, Mariko-san? O herege danou a sua alma por toda a eternidade? Você, que foi escolhida em vida para ser uma freira e provavelmente a nossa primeira abadessa nativa? Está vivendo em pecado hediondo, inconfesso, profanada, ocultando o seu sacrilégio do seu confessor, e assim conspurcada diante de Deus? Viu-a acenar. Desta vez ele não retribuiu e deu as costas, cravou as esporas nos flancos do cavalo, e disparou.
Naquela noite o sono deles foi perturbado. — O que é, meu amor?
— Nada, Mariko-chan. Durma de novo.
Mas ela não dormiu. Nem ele. Muito antes de ter que fazer isso, ela deslizou de volta ao seu quarto, e ele se levantou e sentou no pátio, estudando no dicionário à luz de velas até o amanhecer. Quando o sol surgiu e o dia esquentou, suas preocupações noturnas se dissiparam e eles continuaram a jornada pacificamente. Logo atingiram a grande via principal, a Tokaido, a leste de Mishima, e os viajantes se tornaram mais numerosos. A grande maioria estava, como sempre, a pé, os pertences às costas. Havia alguns cavalos de carga na estrada e nenhuma carruagem.
— Oh, carruagem... uma coisa com rodas, neh? Não são utilizadas no Japão, Anjin-san. Nossas estradas são íngremes demais e sempre entrecortadas por rios e riachos. As rodas também estragariam a superfície das estradas, por isso são proibidas para todo mundo, exceto o imperador, e ele viaja apenas algumas ris cerimoniais em Kyoto, sobre uma estrada especial. Não necessitamos de rodas. Como se pode atravessar um rio ou um riacho com veículos? — e há muitos, muitíssimos a vadear. Há, talvez, sessenta riachos para cruzar entre este ponto e Yedo, Anjin-san. Quantos já tivemos que atravessar? Dúzias, neh? Não, todos nós andamos ou cavalgamos. Claro que cavalos e palanquins, particularmente, são permitidos apenas para pessoas importantes, daimios e samurais, e ainda assim nem para todos os samurais.
— O quê? Mesmo se se tem dinheiro não se pode alugar um? — Não, a menos que se seja da classe correta, Anjin-san. Isso é muito sábio, não acha? Os médicos e os muito velhos podem viajar a cavalo ou de palanquim, ou os muito doentes, se tiverem permissão escrita concedida pelo seu suserano. Palanquins ou cavalos não seriam certos para camponeses e plebeus, Anjin-san. Isso poderia ensinar-lhes hábitos preguiçosos, neh? É muito mais saudável, para eles, caminhar.
— Além disso, conserva-os no seu lugar. Neh?
— Oh, sim. Mas isso tudo contribui para a paz, a ordem e a wa. Apenas mercadores têm dinheiro para desperdiçar, e o que são eles senão parasitas que não criam nada, não cultivam nada, não fazem nada senão se nutrir do trabalho alheio? Definitivamente eles todos devem caminhar, neh? Nisso somos muito sábios. — Nunca tinha visto tanta gente em movimento — disse Blackthorne.
— Oh, isso não é nada. Espere até que cheguemos perto de Yedo. Adoramos viajar, Anjin-san, mas raramente sozinhos. Gostamos de viajar em grupos.
Mas as multidões não lhes impediam o avanço. O emblema de Toranaga que seus estandartes exibiam, a posição pessoal de Toda Mariko, e a brusca eficiência de Akira Yoshinaka e os batedores que mandara à frente para anunciar quem os seguia, garantiam os melhores aposentos particulares a cada noite, em cada hospedaria, e uma passagem ininterrupta. Todos os outros viajantes e samurais rapidamente se punham de lado e se curvavam profundamente, esperando até que tivessem passado.
— Eles todos têm que parar e se ajoelhar assim para todo mundo?
— Oh, não, Anjin-san. Apenas para daimios e pessoas importantes. E para a maioria dos samurais... sim, isso seria uma prática muito sábia para qualquer plebeu. É polido agir assim, Anjin-san, e necessário, neh? A menos que as pessoas comuns respeitem os samurais e a si mesmas, como pode a lei ser preservada e o reino ser governado? Depois, vale o mesmo para todos. Nós paramos e nos curvamos e cedemos passagem ao mensageiro imperial, não? Todo mundo deve ser polido, neh? Daimios menos importantes têm que desmontar e se curvar para daimios mais importantes. O ritual governa a nossa vida, mas o reino é obediente. — Digamos que dois daimios iguais se encontrem?
— Então ambos desmontariam e se curvariam igualmente, e seguiriam seus caminhos.
— Digamos que o Senhor Toranaga e o General lshido se encontrassem?
Mariko passou delicadamente para o latim. — Quem são eles, Anjin-san? Esses nomes eu não conheço, não entre mim e você. — Tem razão. Por favor, desculpe-me.
— Ouça, meu amor, vamos fazer a promessa de que, se Nossa Senhora nos sorrir e escaparmos de Mishima, apenas em Yedo, na Primeira Ponte, apenas quando formos completamente obrigados a isso, deixaremos o nosso mundo particular. Por favor?
— Que perigo especial existe em Mishima?
— Lá o nosso capitão deve apresentar um relatório ao Senhor Hiromatsu. Lá eu devo vê-lo, também. Ele é um homem sábio, muito vigilante. Seria fácil nós nos trairmos.
— Temos sido cautelosos. Vamos pedir a Deus que os seus temores sejam infundados.
— Por mim mesma não me preocupo, apenas por você. — E eu por você.
— Então prometemos, um ao outro, continuar dentro do nosso mundo particular?
— Sim. Vamos fingir que é o mundo real... o nosso próprio mundo.
— Lá está Mishima, Anjin-san. — Mariko apontou para o outro lado do último riacho.
A espraiada cidade-castelo que abrigava perto de sessenta mil pessoas estava em grande parte obscurecida pela neblina baixa da manhã. Apenas o topo de algumas casas e o castelo de pedra eram distinguíveis. Além havia montanhas que desciam para o mar ocidental. Longe, a noroeste, estava a glória do monte Fuji. A norte e a leste, a cordilheira invadia o céu. — E agora?
— Agora Yoshinaka foi tentar encontrar a hospedaria mais habitável dentro de dez ris. Ficaremos lá dois dias. Levarei no mínimo isso para concluir o meu negócio. Gyoko e Kiku-san nos deixarão depois.
— E depois?
— Depois continuamos. O que o seu sentido de tempo lhe diz sobre Mishima?
— Que é amistosa e segura — replicou ele. — Depois de Mishima, será o quê?
Ela apontou para nordeste, não convencida. — Então iremos naquela direção. Há um caminho que vai caracolando através das montanhas até Hakoné. É a parte mais exaustiva de toda a estrada Tokaido. Depois a estrada desce até a cidade de Odawara, que é muito maior do que Mishima, Anjin-san. Fica no litoral. De lá até Yedo é só uma questão de tempo.
— Quanto tempo? — Não o bastante amor, sinto muito — disse ele. — Há está errada, meu todo o tempo do mundo.