CAPÍTULO 16


- Talvez tivesse sido melhor me consultar antes de remover o meu prisioneiro da minha jurisdição, Senhor Ishido – disse Toranaga.

- O bárbaro estava na prisão comum, com pessoas comuns. Naturalmente presumi que o senhor não tivesse mais interesse algum por ele, do contrário eu não o teria tirado de lá. Claro que nunca pretendi interferir nos seus assuntos privados. - Ishido estava aparentemente calmo e respeitoso, mas por dentro estava muito agitado. Sabia que fora surpreendido numa indiscrição. Era verdade que devia ter perguntado a Toranaga primeiro. A polidez mais banal exigia isso. Ainda assim, isso não teria importado em absoluto se ainda detivesse o bárbaro em seu poder, nos seus quartéis, simplesmente teria cedido o estrangeiro quando quisesse, se e quando Toranaga o pedisse. Mas como alguns de seus homens tinham sido interceptados e infamemente mortos, e depois o daimio Yabu e alguns dos homens de Toranaga tinham tomado posse física do bárbaro, a posição mudava completamente. Perdera em dignidade, quando toda a sua estratégia para a destruição pública de Toranaga era precisamente colocar o outro nessa posição.

- Novamente peço desculpas.

Toranaga relanceou o olhar para Hiromatsu. Aquele pedido de desculpas soava como música. Os dois homens sabiam quanto esforço custara a Ishido. Encontravam-se na grande sala de audiências. Por acordo prévio, os dois antagonistas tinham apenas cinco guardas presentes, homens de confiança garantida. O resto esperava do lado de fora. Yabu também esperava lá fora. E o bárbaro estava se banhando.

Bom, pensou Toranaga, sentindo-se muito contente consigo mesmo. Pensou rapidamente em Yabu e resolveu não vê-lo ainda e continuar a brincar com ele. Pediu a Hiromatsu que o despachasse e voltou-se de novo para Ishido.

- Naturalmente suas desculpas são aceitas. Felizmente não houve nenhum dano.

- Então posso levar o bárbaro ao herdeiro... assim que ele esteja apresentável?

- Enviá-lo-ei assim que tivermos terminado com ele.

- Posso perguntar quando será isso? O herdeiro o esperava esta manhã.

- Não deveríamos nos preocupar demais com isso, o senhor o eu, neh? Yaemon tem só sete anos. Estou certo de que um menino de sete anos pode se controlar com paciência. Neh? A paciência é uma forma de disciplina e exige prática. Não é mesmo?

Explicarei o mal-entendido pessoalmente. Vou lhe dar outra aula de natação esta manhã.

- Oh?

- Sim. O senhor também devia aprender a nadar, Senhor Ishido. É um excelente exercício e poderia ser de grande utilidade durante a guerra. Todos os meus samurais sabem nadar. Insisto em que todos eles aprendam essa arte.

- Os meus passam o tempo praticando arco e flecha, esgrima, equitação e tiro.

- Os meus juntam a isso a poesia, a caligrafia, a arte de arranjar flores, a cerimônia de cha-no-yu. Os samurais devem ser bem versados nas artes da paz para serem fortes nas artes bélicas.

- A maioria dos meus homens já é mais que perito nessas artes - disse Ishido, consciente de que sua própria escrita era pobre, e a leitura limitada. - Os samurais são gerados para a guerra. Conheço a guerra muito bem. Isso é suficiente no momento. Isso é obediência ao testamento do nosso amo.

- A aula de natação de Yaemon é à hora do Cavalo. - O dia e a noite eram, cada um, divididos em seis partes iguais. O dia começava com a hora da Lebre, das cinco às sete da manhã, depois do Dragão, das sete às nove. Seguiam-se as horas da Cobra, do Cavalo, do Bode, do Macaco, do Galo, do Cão, do Javali, do Rato e da Raposa, e o ciclo terminava com a hora do Tigre, entre as três e as cinco da manhã - Gostaria de participar da aula?

- Não, obrigado. Sou velho demais para mudar meus hábitos - disse Ishido fracamente.

- Ouvi dizer que o capitão de seus homens recebeu ordem de cometer seppuku.

- Naturalmente. Os bandidos deviam ter sido apanhados. No mínimo um deles devia ter sido capturado. Aí teríamos descoberto os outros.

- Estou atônito de que essa podridão tenha podido agir tão perto do castelo.

- Concordo. Talvez o bárbaro pudesse descrevê-los.

- O que um bárbaro saberia dizer? - Toranaga riu. - Quanto aos bandidos, eram ronins, não eram? Os ronins são muito numerosos entre os seus homens. Talvez algumas investigações ali fossem frutíferas. Neh?

- As investigações estão sendo apressadas. Em muitas direções. - Ishido ignorou o sarcasmo velado sobre os ronins, os sem-amo, samurais mercenários, quase párias, que haviam, aos milhares, se reunido sob a bandeira do herdeiro quando Ishido espalhara em segredo o rumor de que, em nome do herdeiro e da mãe do herdeiro, aceitaria a fidelidade deles, perdoaria - inacreditavelmente - e esqueceria suas imprudências, seu passado, e lhes recompensaria a lealdade, no decorrer do tempo, com a prodigalidade do taicum. Ishido sabia que fora uma manobra brilhante. Deu-lhe uma enorme quantidade de samurais treinados; garantiu a lealdade deles, pois os ronins sabiam que nunca teriam chance igual; trouxera para seu lado todos os encolerizados, muitos dos quais tinham sido reduzidos a ronins pelas conquistas de Toranaga e de seus aliados. E finalmente eliminara do reino um perigo - um aumento na população de bandidos -, pois praticamente o único modo de vida suportável e acessível a um samurai desgraçado o bastante para se tornar ronin era transformar-se em monge ou em bandido.

- Há muitas coisas que não entendo sobre essa emboscada - disse Ishido, a voz impregnada de veneno. - Sim. Por que, por exemplo, bandidos tentariam capturar esse bárbaro para trocá-lo por resgate? Há muitos outros na cidade, muitíssimo mais importantes. Não foi isso que o bandido disse? Era resgate o que queriam. Resgate de quem? Qual é o valor do bárbaro? Nenhum. E como ficaram sabendo onde ele estaria? Foi só ontem que dei a ordem de trazê-lo para o herdeiro, pensando que isso divertiria o menino. Muito curioso.

- Muito - disse Toranaga.

- Depois há a coincidência de o Senhor Yabu estar nas vizinhanças com alguns dos seus homens e alguns dos meus na hora exata. Muito curioso.

- Muito. Naturalmente ele estava lá porque eu mandara chamá-lo, e seus homens estavam lá porque combinamos - por sugestão sua - que seria uma boa política, e um modo de começar a sanar a brecha entre nós, os seus homens acompanharem os meus por toda parte enquanto estou nesta visita oficial.

- Também é estranho que os bandidos, que foram suficientemente corajosos e bem organizados para assassinar os primeiros dez sem que houvesse combate, agissem como coreanos quando nossos homens chegaram. Os dois lados estavam em condições de igualdade. Por que os bandidos não lutaram ou não levaram o bárbaro para as colinas imediatamente, ao invés de ficarem estupidamente num caminho principal para o castelo? Muito curioso.

- Muito. Com certeza levarei uma guarda dobrada comigo, amanhã, quando for falcoar. A título de prevenção. É desconcertante saber que há bandidos tão perto do castelo. Sim. Talvez o senhor gostasse de caçar também? Fazer um de seus falcões competir contra os meus? Estarei caçando nas colinas ao norte.

- Não, obrigado. Estarei ocupado amanhã. Talvez depois de amanhã? Ordenei a vinte mil homens que varressem todas as florestas, bosques e clareiras em torno de Osaka. Não haverá um bandido dentro de vinte ris em dez dias. Isso eu posso lhe prometer.

Toranaga sabia que Ishido estava usando os bandidos como desculpa para aumentar o número de seus homens nas proximidades. Se diz vinte, quer de fato dizer cinqüenta. A armadilha está chegando mais perto, disse ele a si mesmo. Por que tão depressa? Que nova traição aconteceu? Por que Ishido está tão confiante?

- Ótimo. Então, depois de amanhã, Senhor Ishido. Manterá seus homens longe da minha área de caça? Não gostaria que meu jogo fosse perturbado - acrescentou.

- É claro. E o bárbaro?

- Ele é e sempre foi minha propriedade. Assim como o navio. Mas poderá ficar com ele quando eu tiver terminado. E depois pode mandá-lo para o pátio de execução, se quiser.

- Obrigado. Sim. Farei isso. - Ishido fechou o leque e escorregou-o para dentro da manga. - Ele não tem importância. O importante e a razão pela qual vim vê-lo é que... oh, a propósito, ouvi dizer que a senhora minha mãe está visitando o mosteiro de Johji.

- Oh? Eu teria pensado que a estação já está um pouco avançada para apreciar as flores de cerejeira. Certamente já terão passado do auge agora.

- Tem razão. Mas afinal, se ela quer vê-las, por que não? Nunca se pode contrariar os mais velhos. Têm lá as suas manias e vêem as coisas de modo diferente, neh? Mas sua saúde não é boa. Preocupo-me com ela. Tem que ser muito cuidadosa... resfria-se com muita facilidade.

- Com minha mãe acontece o mesmo. É preciso vigiar a saúde dos velhos. - Toranaga tomou nota mentalmente, para enviar uma mensagem imediata lembrando ao prior que velasse atentamente pela saúde da velha. Se morresse no mosteiro, a repercussão seria terrível. Ele ficaria em desgraça perante o império. Todos os daimios perceberiam que no jogo de xadrez pelo poder ele usara uma velha indefesa, a mãe do inimigo, como refém e falhara na sua responsabilidade por ela. Tomar um refém era, na verdade, muito perigoso.

Ishido ficara quase cego de raiva quando soubera que sua venerada mãe se encontrava em poder de Toranaga, em Nagoya. Cabeças rolaram. Imediatamente trouxera à tona planos para a destruição de Toranaga, e tomara a resolução solene de investir contra Nagoya e aniquilar o Daimio Kazamaki - sob cuja responsabilidade ela estivera ostensivamente -, no momento em que as hostilidades começassem. Enviara uma mensagem particular ao prior, através de intermediários, dizendo que a menos que ela fosse retirada do mosteiro em segurança dentro de vinte e quatro horas, Naga, o único filho de Toranaga que se encontrava ao alcance, e qualquer uma de suas mulheres que pudesse ser apanhada, infelizmente despertariam no dia seguinte na aldeia de leprosos, sendo alimentados por eles e servidos por uma de suas prostitutas.

Ishido sabia que enquanto sua mãe estivesse em poder de Toranaga ele teria que agir com cautela. Mas deixara bem claro que se não a deixassem partir, ele poria o império a ferro e fogo.

- Como está a senhora sua mãe, Senhor Toranaga? - perguntou polidamente.

- Muito bem, obrigado. - Toranaga permitiu-se demonstrar a própria felicidade, tanto pela lembrança da mãe quanto pelo conhecimento da fúria impotente de Ishido. - Está notavelmente bem para setenta e quatro anos. Só espero estar tão forte quanto ela quando tiver essa idade. - Você tem cinqüenta e oito. Toranaga, mas nunca chegará aos cinqüenta e nove, prometeu Ishido a si mesmo. - Por favor, transmita-lhe meus melhores votos de uma vida permanentemente feliz. Obrigado novamente e sinto muito que o senhor tenha sido incomodado. - Curvou-se com grande polidez e então, contendo com dificuldade o imenso prazer que sentia, acrescentou: - Oh, sim, o assunto importante pelo qual eu queria vê-lo é que a última reunião formal dos regentes foi adiada. Não vamos nos reunir hoje ao pôr-do-sol.

Toranaga conservou o sorriso no rosto mas por dentro ficou petrificado.

- Oh? Por quê?

- O Senhor Kiyama está doente. Os senhores Sugiyama e Onoshi concordaram em adiar. Eu também. Alguns dias não têm importância, não é, em se tratando de assuntos tão importantes?

- Podemos fazer a reunião sem o Senhor Kiyama.

- Combinamos que não podemos. - Os olhos de Ishido escarneciam.

- Formalmente?

- Aqui estão nossos quatro selos.

Toranaga estava perturbadíssimo. Qualquer atraso o colocava num risco incomensurável. Poderia negociar a mãe de Ishido por uma reunião imediata? Não, porque levaria tempo demais para as ordens irem e voltarem e ele concederia uma vantagem muito grande por nada.

- Quando será a reunião, então?

- Suponho que o Senhor Kiyama esteja bem amanhã, ou talvez depois de amanhã.

- Ótimo. Mandarei meu médico particular ir vê-lo.

- Estou certo de que ele apreciaria isso. Mas o seu médico proibiu qualquer visita. A doença poderia ser contagiosa, neh?

- Qual é a doença?

- Não sei, senhor. Foi o que me disseram.

- O médico é bárbaro?

- Sim. Informaram que é o principal médico dos cristãos. Um médico-sacerdote cristão para um daimio cristão. Os nossos não são bons o bastante para um daimio tão... tão importante - disse Ishido, com um riso zombeteiro.

A preocupação de Toranaga aumentou. Se o médico fosse japonês, havia muitas coisas que ele poderia fazer. Mas com um médico cristão - inevitavelmente um padre jesuíta -, bem, ir contra um deles, ou mesmo se intrometer com um deles, poderia afastar todos os daimios cristãos, coisa que ele não podia se permitir arriscar. Sabia que sua amizade com Tsukku-san não o ajudaria contra os daimios cristãos Onoshi e Kiyama. Fazia parte dos interesses cristãos apresentar uma frente unida. Dentro em breve teria que se aproximar deles, dos padres bárbaros, para fazer um acerto, descobrir o preço da cooperação deles. Se Ishido realmente tem Onoshi e Kiyama consigo - e todos os daimios cristãos seguiriam esses dois se eles agissem em conjunto -, então estou isolado, pensou Toranaga. E o único recurso que me resta é Céu Carmesim.

- Visitarei o Senhor Kiyama depois de amanhã - disse ele, fixando um último prazo.

- Mas e o contágio? Eu nunca me perdoaria se alguma coisa lhe acontecesse enquanto se encontra aqui em Osaka, senhor. É nosso hóspede, está sob os meus cuidados. Devo insistir em que não faça isso.

- Fique descansado, Senhor Ishido, o contágio que me derrubará ainda não nasceu, neh? O senhor se esquece da predição do adivinho. - Quando a delegação chinesa viera ao taicum, seis anos antes, para tentar encerrar a guerra nipo-sino-coreana, um famoso astrólogo viera com ela. Esse chinês predissera muitas coisas que depois se concretizaram. Num dos jantares de cerimônia incrivelmente pródigos, o próprio taicum pedira ao adivinho que predissesse a morte de alguns de seus conselheiros. O astrólogo dissera que Toranaga morreria a golpe de espada quando atingisse a meia-idade. Ishido, o famoso conquistador da Coréia - ou Chosen, como os chineses chamavam aquela terra -, morreria com saúde, velho, os pés firmes na terra, o homem mais famoso de sua época. Mas o taicum morreria na cama, respeitado, venerado, com muita idade, deixando um filho saudável para sucedê-lo. Isso agradara tanto ao taicum, que ainda não tinha filhos, que ele resolvera deixar a delegação regressar à China e não matar os emissários como planejara devido às suas insolências anteriores. Ao invés de negociar a paz, como esperara, o imperador chinês, por intermédio da delegação, meramente oferecera "investi-lo rei do País de Wa", que era como os chineses chamavam o Japão. O taicum mandara-os vivos para casa e não dentro das minúsculas caixas que já haviam sido preparadas para eles, e reiniciara a guerra contra a Coréia e a China.

- Não, Senhor Toranaga, não esqueci - disse Ishido, lembrando-se muito bem. - Mas o contágio pode ser desconfortável. Por que estar desconfortável? Poderia contrair sífilis como seu filho Noboru, sinto muito, ou lepra, como o Senhor Onoshi. Ele ainda é jovem, mas sofre muito. Oh, sim, sofre.

Toranaga ficou momentaneamente perturbado. Conhecia a devastação causada por ambas as doenças muitíssimo bem. Noboru, o mais velho de seus filhos vivos, contraíra a sífilis chinesa aos dezessete anos - dez anos antes - e todas as curas dos médicos japoneses, chineses, coreanos e cristãos não tinham conseguido debelar a doença que já o desfigurara, mas não o mataria. Se me tornar todo-poderoso, prometeu Toranaga a si mesmo, talvez possa exterminar essa doença. Será que realmente vem das mulheres? Como é que as mulheres a pegam? Pobre Noboru. Não fosse a sífilis seria meu herdeiro, porque é um brilhante soldado, um administrador melhor do que Sudara, e muito astuto. Deve ter feito muitas coisas ruins numa vida anterior para ter que carregar esse peso nesta.

- Por Buda, não desejo nenhuma das duas para ninguém - disse ele.

- Acredito - disse Ishido, acreditando de fato que Toranaga, se pudesse, bem que gostaria que ele tivesse a ambas. Curvou-se mais uma vez e saiu.

Toranaga rompeu o silêncio:

- Bem?

- Ficar ou partir, agora - disse Hiromatsu -, é a mesma coisa: catástrofe, porque agora o senhor foi traído e está isolado. Se ficar para a reunião - e não vai haver reunião por uma semana - Ishido terá mobilizado suas legiões em torno de Osaka e o senhor nunca escapará, aconteça o que acontecer à Senhora Ochiba em Yedo. E Ishido está claramente resolvido a arriscá-la para pegar o senhor. É óbvio que o senhor foi traído e os quatro regentes tomarão uma decisão contra o senhor. Se partir, ainda assim eles poderão sancionar qualquer ordem que Ishido deseje dar. O senhor tem que suster uma decisão de quatro a um. Jurou fazer isso. Não pode ir contra a sua palavra solene como regente.

- Concordo.

O silêncio se fez, interminável.

Hiromatsu esperou, com ansiedade crescente.

- O que vai fazer?

- Primeiro vou nadar - disse Toranaga, com surpreendente jovialidade. - Depois verei o bárbaro.


A mulher atravessou silenciosamente o jardim particular de Toranaga no castelo, dirigindo-se para a pequena cabana de sapé que se erguia numa clareira entre bordos. Seu quimono e obi de seda eram os mais simples, ainda que fossem os mais elegantes que os mais famosos artesãos da China conseguiam fazer. Usava o cabelo à última moda de Kyoto, preso no alto e mantido no lugar por longos alfinetes de prata. Uma sombrinha colorida protegia-lhe a pele muito delicada. Era minúscula, apenas cinco pés, mas perfeitamente proporcionada. Em torno do pescoço usava uma fina corrente de ouro e, pendendo dela, um pequeno crucifixo, também de ouro.

Kiri esperava na varanda da cabana. Sentara-se pesadamente à sombra, suas nádegas transbordando da almofada, e observou a mulher aproximando-se pelo caminho de pedras que tinham sido colocadas com tanto cuidado no musgo que pareciam ter crescido ali.

- Está mais bela do que nunca, mais jovem do que nunca, Toda Mariko-san - disse Kiri sem inveja, retribuindo-lhe a mesura.

- Gostaria que fosse verdade, Kiritsubo-san - retrucou

Mariko, sorrindo. Ajoelhou-se sobre uma almofada, e inconscientemente arranjou as saias num formato delicado.

- É verdade. Quando foi que nos encontramos pela última vez? Há dois... três anos? Você não mudou um fio de cabelo em vinte anos. Deve fazer quase vinte anos desde que nos vimos pela primeira vez. Lembra-se? Foi numa festa que o Senhor Goroda deu. Você tinha catorze anos, era recém-casada e extraordinária.

- E assustada.

- Não, não você. Assustada não.

- Foi há dezesseis anos, Kiritsubo-san, não vinte. Sim, lembro-me muito bem. - Bem demais, pensou ela, entristecida. Foi o dia em que meu irmão me cochichou que acreditava que nosso venerado pai ia se vingar do seu suserano, o Ditador Goroda, que ia assassiná-lo. Seu suserano!

Oh, sim, Kiri-san, lembro-me daquele dia, daquele ano e daquela hora. Foi o início de todo o horror. Nunca admiti para ninguém que sabia o que iria acontecer antes que acontecesse. Nunca preveni meu marido, ou Hiromatsu, pai dele - ambos fiéis vassalos do ditador -, de que havia uma traição planejada por um de seus maiores generais. Pior, nunca preveni Goroda, meu suserano. Por isso falhei no meu dever para com meu suserano, para com meu marido, para com a família dele, que, devido ao meu casamento, é a minha única família. Oh, minha Nossa Senhora, perdoe o meu pecado, ajude-me a me purificar. Mantive-me em silêncio para proteger meu amado pai, que profanou a honra de mil anos. Ó meu Deus, Ó Senhor Jesus de Nazaré, salvem esta pecadora da danação eterna...

- Foi há dezesseis anos - disse Mariko serenamente.

- Eu estava carregando o filho do Senhor Toranaga naquele ano - disse Kiri, e pensou: se o Senhor Goroda não tivesse sido perfidamente traído e assassinado pelo seu pai, o meu Senhor Toranaga nunca teria precisado lutar na batalha de Nagakudé, eu nunca teria apanhado um resfriado e meu filho nunca teria sido abortado. Talvez. Mas talvez não. Era apenas karma, meu karma, acontecesse o que acontecesse, neh? - Ah, Mariko-san - disse ela, sem maldade -, isso é muito tempo, parece quase outra vida. Mas você não tem idade. Por que não posso ter o seu rosto, o seu belo cabelo e caminhar tão graciosamente? - Kiri riu. - A resposta é simples: porque como demais!

- O que importa? Você goza do favor do Senhor Toranaga, neh? Portanto está realizada. É sábia, afetuosa, íntegra e feliz.

- Preferia ser magra, poder continuar comendo e gozando do favor dele - disse Kiri. - Mas e você? Não é feliz?

- Sou apenas um instrumento do meu Senhor Buntaro. Se o senhor meu marido está feliz, então, é claro, eu estou feliz. O eu prazer é o meu prazer. É o mesmo que com você - disse Mariko.

- Sim. Mas não é o mesmo. - Kiri abanou o leque, a seda dourada refletindo o sol da tarde. Estou tão contente por não ser você, Mariko, com toda a sua beleza, e seu brilho, coragem e erudição. Não! Eu não suportaria estar casada com aquele homem odioso, feio, arrogante, violento, por um dia, quanto mais por dezessete anos. É tão diferente do pai, o Senhor Hiromatsu. Aquele, sim, é um homem maravilhoso. Mas Buntaro? Como é que os pais têm filhos tão terríveis? Gostaria de ter um filho, oh, como gostaria! Mas você, Mariko, como agüentou tantos maus tratos todos esses anos? Como suportou as suas tragédias? Parece impossível que não haja sombra delas no seu rosto ou na sua alma. - É uma mulher surpreendente, Toda Buntaro Mariko-san.

- Obrigada, Kiritsubo Toshiko-san. Oh, Kiri-san, é tão bom ver você.

- O mesmo digo eu. Como está seu filho?

- Lindo-lindo-lindo. Saruji tem quinze anos agora, imagine! Alto, forte, igualzinho ao pai, e o Senhor Hiromatsu deu um feudo a Saruji e ele... você sabe que ele vai se casar?

- Não, com quem?

- Ela é uma neta do Senhor Kiyama. O Senhor Toranaga combinou tudo muito bem. Um casamento excelente para a nossa família. Só gostaria que a garota fosse... fosse mais atenciosa com meu filho, mais adequada. Sabe, ela... - Mariko riu, um pouco acanhada. - Pronto, estou falando como todas as sogras que sempre existiram. Mas acho que você concordaria, ela realmente ainda não está treinada.

- Você terá tempo para fazer isso.

- Oh, espero que sim. Tenho sorte por não ter uma sogra. Não sei o que faria.

- Você a encantaria e a treinaria como faz com toda a gente da sua casa, neh?

- Gostaria que isso também fosse verdade. - As mãos de Mariko estavam imóveis ao colo. Ela observou uma libélula pousar, depois disparar como uma seta. - Meu marido ordenou-me que viesse aqui. O Senhor Toranaga quer ver-me?

- Sim. Quer que você sirva de intérprete para ele.

Mariko ficou espantada.

- Com quem?

- Com o novo bárbaro.

- Oh! Mas... e o Padre Tsukku-san? Está doente?

- Não. - Kiri brincou com o leque. - Acho que só nos deixaram a curiosidade de saber por que o Senhor Toranaga quer você aqui e não o padre, como na primeira entrevista. Por que será, Mariko-san, que temos que guardar o dinheiro todo, pagar todas as contas, treinar todos os criados, comprar toda a comida o todo o vestuário da casa - na maioria das vezes, até as roupas dos nossos senhores -, e eles na realidade não nos contam nada, não é?

- Talvez seja para isso que a nossa intuição existe.

- Provavelmente. - O olhar de Kiri era franco e cordial.

- Mas imagino que se trate de um assunto muito particular. Por isso você juraria pelo seu Deus cristão não divulgar nada sobre este encontro. A ninguém.

O dia pareceu perder o calor.

- Naturalmente - disse Mariko, inquieta. Compreendeu muito claramente que o que Kiri queria dizer era que ela não devia contar nada ao marido, ao pai dele, nem ao confessor. Como o marido lhe ordenara que viesse, obviamente a uma solicitação do Senhor Toranaga, seu dever para com o suserano superava o dever para com o marido, de modo que ela poderia livremente omitir informações. Mas e o confessor? Poderia não dizer nada a ele? E por que era ela a intérprete e não o Padre Tsukkusan? Sabia que mais uma vez, contra sua vontade, estava envolvida no tipo de intriga política que lhe havia atormentado a vida, o mais uma vez desejou que sua família não fosse antiga e Fujimoto, que nunca tivesse nascido com o dom das línguas, que lhe permitira aprender as quase incompreensíveis línguas portuguesa o latina, e que nunca tivesse nascido em absoluto. Mas então, pensou ela, eu nunca teria visto meu filho, nem aprendido sobre o menino Jesus ou a verdade Dele, ou sobre a vida eterna.

É o seu karma, Mariko, disse a si mesma tristemente, só karma.

- Muito bem, Kiri-san. - E acrescentou, com um pressentimento: - Juro pelo senhor meu Deus que não divulgarei nada do que for dito aqui hoje, nem em qualquer outra vez que eu esteja interpretando para o meu suserano.

- Também imagino que você talvez precisasse excluir parte dos seus próprios sentimentos para traduzir exatamente o que for dito. Este novo bárbaro é estranho e diz coisas peculiares. Tenho certeza de que o meu senhor escolheu você, entre todas as possibilidades, por razões especiais.

- Sou do Senhor Toranaga, para que ele faça o que desejar. Ele não precisa nunca ter qualquer receio pela minha lealdade.

- Isso nunca esteve em questão, senhora. Não falei com má intenção.

Começou a cair uma chuva de primavera que salpicou as pétalas, o musgo e as folhas, e desapareceu, deixando ainda mais beleza no seu rastro.

- Eu lhe pediria um favor, Mariko-san. Poderia colocar o crucifixo por baixo do quimono?

Os dedos de Mariko lançaram-se para ele defensivamente.

- Por quê? O Senhor Toranaga nunca fez objeção à minha conversão, nem o Senhor Hiromatsu, o cabeça do meu clã! Meu marido tem... meu marido me deixa tê-lo e usá-lo.

- Sim. Mas crucifixos deixam este bárbaro louco de raiva e o meu Senhor Toranaga não o quer furioso, e sim calmo.


Blackthorne nunca vira alguém tão diminuto.

- Konnichi wa - disse ele. - Konnichi wa, Toranaga-sama. - Curvou-se como um cortesão, fez um gesto de cabeça ao menino ajoelhado e de olhos arregalados ao lado de Toranaga, e à mulher gorda sentada atrás dele. Estavam todos na varanda que rodeava a pequena cabana. A construção continha uma única sala pequena com biombos rústicos, vigas desbastadas, telhado de sapé, e uma área atrás que servia de cozinha. Erguia-se sobre estacaria de madeira, a um pé ou pouco mais acima do tapete de pura areia branca. Tratava-se de uma casa de chá cerimonial para o ritual do cha-no-yu, construída com materiais raros apenas para aquela finalidade, embora às vezes, como aquelas casas ficassem isoladas, em clareiras, fossem usadas para encontros e conversas privados. Blackthorne juntou o quimono em torno do corpo e sentou sobre a almofada que fora colocada sobre a areia, na frente deles. - Gomen nasai. Toranaga-sama, nihon go ga hanase-masen. Tsuyaku go imasu ka?

- Sou sua intérprete, senhor - disse Mariko imediatamente, num português quase impecável. - Mas o senhor fala japonês.

- Não, senhorita, só algumas palavras ou frases - respondeu Blackthorne, perplexo. Esperava que o Padre Alvito fosse o intérprete, e que Toranaga estivesse acompanhado de samurais e talvez do Daimio Yabu. Mas não havia nenhum samurai nas proximidades, embora muitos rodeassem o jardim.

- Meu Senhor Toranaga pergunta onde... Primeiro, talvez lhe deva perguntar se prefere falar em latim?

- Como desejar, senhorita. - Como todo homem educado, Blackthorne sabia ler, escrever e falar latim, porque era a única linguagem erudita em todo o mundo civilizado.Quem é essa mulher? Onde aprendeu um português perfeito assim? E latim? Onde mais senão com os jesuítas, pensou ele. Numa das escolas deles. Oh, como são inteligentes! A primeira coisa que fazem é construir uma escola.

Fazia só setenta anos que Inácio de Loyola formara a Companhia de Jesus e agora suas escolas, as melhores da cristandade, estavam espalhadas pelo mundo e sua influência apoiava ou destruía reis. Contava com a consideração do papa. Havia detido a torrente da Reforma e agora estava recuperando territórios imensos para a Igreja.

- Falaremos português, então - disse ela. - Meu amo de seja saber onde o senhor aprendeu "algumas palavras e frases".

- Havia um monge na prisão, senhorita, um monge franciscano, e ele me ensinou coisas como "comida", "amigo", "banho", "ir", "vir", "verdade", "falso", "aqui", "lá", 'eu", "você", "por favor", "obrigado", "querer", "não querer", "prisioneiro", "sim", "não", e assim por diante. É só um começo, infelizmente. Quer dizer ao Senhor Toranaga, por favor, que agora estou mais bem preparado para responder às perguntas dele, para ajudar, e muito contente por estar fora da prisão? Agradeço a ele por isso.

Blackthorne observou quando ela se voltou e falou a Toranaga. Sabia que teria que falar com simplicidade, de preferência com sentenças curtas, e teria cuidado, porque, ao contrário do padre, que traduzia simultaneamente, esta mulher esperava até que ele acabasse, depois fazia uma sinopse, ou uma versão do que fora dito - o problema habitual com todos os intérpretes, exceto com os melhores, embora mesmo estes, como com o jesuíta, permitissem que sua personalidade interferisse no que era dito, voluntária ou involuntariamente. O banho, a massagem, a comida e as duas horas de sono haviam-no revigorado incalculavelmente. As criadas de banho, todas de peso e força, haviam-no esfregado, ensaboaram-lhe o cabelo, trançando-o depois num rabo capricha do, e o barbeiro lhe aparara a barba. Deram-lhe uma tanga limpa, um quimono e um sash, e tabis e sandálias para os pés. Os futons sobre os quais dormira estavam limpíssimos, assim como o quarto. Parecera tudo um sonho e, acordando de um sono sem sonhos, perguntara-se momentaneamente qual era o sonho, aquele ou a prisão.

Aguardara com impaciência, esperando ser conduzido de novo à presença de Toranaga, planejando o que dizer e o que revelar, como superar o Padre Alvito em esperteza e como ganhar ascendência sobre ele. E sobre Toranaga. Pois sabia, para além de qualquer dúvida, por causa do que Frei Domingo lhe contara sobre os portugueses, sobre a política japonesa e o comércio, que agora podia ajudar Toranaga, o qual, em troca, poderia facilmente lhe dar as riquezas que desejava.

E agora, sem padre algum com quem lutar, sentiu-se ainda mais confiante. Só preciso de um pouco de sorte e paciência.

Toranaga ouvia atentamente a intérprete que parecia uma boneca.

Eu poderia levantá-la do chão com uma mão, pensou Blackthorne, e se passasse as duas mãos em torno da cintura dela, meus dedos se tocariam. Que idade terá? Perfeita! Casada? Não usa aliança. Ah, isso é interessante. Não está usando jóia de tipo algum. Exceto os alfinetes de prata no cabelo. Nem a outra mulher, a gorda.

Rebuscou a memória. As outras duas mulheres na aldeia também não usavam jóias, coisa que ele também não vira em nenhuma das mulheres da casa de Mura. Por quê?

E quem é a gorda? Esposa de Toranaga? Ou a ama do menino? Será que o menino é filho de Toranaga? Ou neto, talvez? Frei Domingo disse que os japoneses têm só uma esposa de cada vez, mas tantas consortes - amantes legais - quantas desejem.

Será que a intérprete é consorte de Toranaga?

Como seria estar com uma mulher assim na cama? Eu teria medo de esmagá-la. Não, não se quebraria. Há mulheres na Inglaterra quase tão pequenas. Mas não como ela.

O menino era pequeno, ereto, de olhos redondos, com o cabelo preto e cheio amarrado numa cauda curta. Sua curiosidade parecia enorme. Sem pensar, Blackthorne piscou. O menino deu um pulo, depois riu, interrompeu Mariko e apontou e falou. Eles o ouviram indulgentemente e ninguém o mandou calar-se. Quando terminou, Toranaga falou brevemente para Blackthorne.

- O Senhor Toranaga pergunta por que fez isso, senhor?

- Oh, só para divertir o rapazinho. É uma criança como qualquer outra, e as crianças no meu país geralmente riem quando a gente faz isso. Meu filho deve estar mais ou menos com essa idade agora. Tem sete anos.

- O herdeiro tem sete anos - disse Mariko após uma pausa, depois traduziu o que ele dissera.

- Herdeiro? Isso quer dizer que o menino é o único filho do Senhor Toranaga? - perguntou Blackthorne.

- O Senhor Toranaga instruiu-me para dizer-lhe que, por favor, se limite apenas a responder às perguntas, por enquanto. - E acrescentou: - Se for paciente, Capitão-Piloto Blackthorne, estou certa de que terá uma oportunidade de perguntar tudo o que desejar mais tarde.

- Muito bem.

- Como seu nome é muito difícil de dizer, senhor, pois não temos os sons para pronunciá-lo... posso, para o Senhor Toranaga, usar o nome japonês, Anjin-san?

- Naturalmente. - Blackthorne ia perguntar o nome dela, mas lembrou-se do que ela dissera e da necessidade de ser paciente.

- Obrigada. Meu senhor pergunta se tem outros filhos.

- Uma filha. Nasceu pouco antes de eu partir da Inglaterra. Portanto tem uns dois anos agora.

- O senhor tem uma esposa ou muitas?

- Uma. E o nosso costume. Como os portugueses e espanhóis. Não temos consortes, consortes formais.

- É a sua primeira esposa, senhor?

- Sim.

- Por favor, qual é a sua idade?

- Trinta e seis.

- Na Inglaterra, onde o senhor vive?

- Nos subúrbios de Chatham. E um pequeno porto perto de Londres.

- Londres é a cidade principal?

- Sim.

- Ele pergunta que línguas o senhor fala.

- Inglês, português, espanhol, holandês e, naturalmente, latim.

- O que é "holandês"?

- Uma língua falada na Europa, na Neerlândia. E muito semelhante ao alemão.

Ela franziu o cenho.

- Holandês é uma língua pagã? Alemão também?

- Ambos os países são não-católicos - disse ele, cuidadoso.

- Desculpe, isso não é o mesmo que pagão?

- Não, senhorita. O cristianismo está dividido em duas religiões distintas e muito separadas. Catolicismo e protestantismo. São duas versões do cristianismo. A seita no Japão é católica. No momento as duas seitas estão muito hostis uma com a outra. - Ele reparou na surpresa dela e sentiu a impaciência crescente de Toranaga por estar sendo deixado fora da conversa. Seja cuidadoso, advertiu a si mesmo. Ela com certeza é católica. Mude de assunto. E seja simples. - Talvez o Senhor Toranaga não queira discutir religião, senhorita, já que isso foi parcialmente tratado no nosso primeiro encontro.

- O senhor é um cristão protestante?

- Sim.

- E os cristãos católicos são seus inimigos?

- A maioria deles me consideraria herege e inimigo deles, sim.

Ela hesitou, voltou-se para Toranaga e começou a falar falou longamente.

Havia muitos guardas em torno do perímetro do jardim.

Todos bem afastados, todos marrons. Então Blackthorne notou dez cinzentos sentados num grupo em ordem à sombra, todos de olhos no menino. Que significado tinha aquilo?

Toranaga estava interrogando Mariko de novo, depois falou diretamente a Blackthorne.

- Meu senhor quer saber a seu respeito e sobre sua família - começou Mariko. - Sobre o seu país, a rainha e os governantes anteriores, os hábitos, os costumes, e a história. O mesmo com relação a todos os outros países, particularmente Portugal e Espanha. Tudo sobre o mundo em que o senhor vive. Sobre os seus navios, armas, comidas, comércio. Sobre suas guerras e batalhas, como dirigem um navio, como o senhor conduziu seu navio e o que aconteceu na viagem. Ele quer compreender... Desculpe, por que ri?

- Só porque isso parece ser praticamente tudo o que sei, senhorita.

- Isso é precisamente o que meu amo deseja. "Precisamente" é a palavra correta?

- Sim, senhorita. Posso cumprimentá-la pelo seu português, que é impecável?

O leque esvoaçou ligeiramente.

- Obrigada, senhor. Sim, meu amo quer saber a verdade sobre tudo, o que é fato e o que seria sua opinião.

- Ficaria contente em dizer-lhe. Talvez leve um pouco de tempo.

- Meu amo tem tempo, diz ele.

Blackthorne olhou para Toranaga:

- Wakarimasu.

- Se me desculpar, senhor, meu amo me ordena que lhe diga que sua pronúncia está um pouco errada. - Mariko mostrou-lhe como dizer, ele repetiu e agradeceu. - Sou a Senhora Mariko Buntaro, não senhorita.

- Sim, senhora. - Blackthorne deu uma olhada em Toranaga. - Por onde ele gostaria que eu começasse?

Ela perguntou. Um sorriso fugaz passou pelo rosto forte de Toranaga.

- Pelo começo, diz ele.

Blackthorne sabia que se tratava de outro julgamento. Com que, dentre todas as ilimitadas possibilidades, começaria? A quem falaria? A Toranaga, ao menino ou à mulher? Obviamente, se só houvesse homens presentes, seria a Toranaga. Mas agora? Por que as mulheres e o menino estavam presentes? Aquilo devia ter algum significado.

Resolveu se concentrar no menino e nas mulheres.

- Em tempos antigos meu país era governado por um grande rei que tinha uma espada mágica chamada Excalibur, e sua rainha era a mais linda mulher da terra. Seu principal conselheiro era um mágico, Merlin, e o nome do rei era Artur - começou ele confiantemente, contando a lenda que seu pai, na infância perdida num nevoeiro, costumava contar-lhe. - A capital do Rei Artur chamava-se Camelot, aquele era um tempo feliz, sem guerras, com boas colheitas e... - De repente ele percebeu a enormidade do seu engano. O cerne da história eram Guinevere e Lancelot, uma rainha adúltera e um vassalo infiel; Mordred, filho ilegítimo de Artur, que traiçoeiramente vai à guerra contra o pai e um pai que mata esse filho em batalha, só para ser mortalmente ferido por ele. Oh, Jesus Deus, como pude ser tão estúpido? Toranaga não é como um grande rei? Estas não são as damas dele? Esse não é o seu filho?

- Está doente, senhor?

- Não... não, desculpe... foi só que...

- Estava falando sobre esse rei e sobre boas colheitas...

- Sim. E... como a maioria dos países, nosso passado e obscurecido por mitos e lendas, a maioria dos quais sem importância - disse ele claudicante, tentando ganhar tempo.

Ela o encarava perplexa. Os olhos de Toranaga tornaram-se mais perscrutadores e o menino bocejou.

- O senhor estava dizendo?

- Eu... bem... - Então teve um clarão de inspiração.

- Talvez o melhor que eu poderia fazer seria desenhar um mapa do mundo, senhora, do modo como o conhecemos - disse num fôlego só. - Gostaria que eu fizesse isso?

Ela traduziu e ele notou um vislumbre de interesse em Toranaga, mas nada no menino ou nas mulheres. Como envolvê-los?

- Meu amo diz que sim. Mandarei buscar papel...

- Obrigado. Mas isto servirá por ora. Mais tarde, se me der material para escrever, poderei desenhar um mais preciso.

Blackthorne levantou-se da almofada e se ajoelhou. Com os dedos começou a traçar um mapa grosseiro na areia, de cabeça para baixo a fim de que eles pudessem ver melhor.

- A terra é redonda, como uma laranja. Este mapa é como a sua crosta, só que em oval, norte-sul, plano e esticado um pouquinho no topo o na base. Um holandês chamado Mercator inventou o modo de fazer isto com precisão há vinte anos. É o primeiro mapa-múndi preciso. Podemos até navegar com ele... ou com os globos de Mercator. - Blackthorne fizera um esboço dos continentes com traços arrojados. - Isto é norte e isto é sul, leste e oeste. O Japão fica aqui, o meu país do outro lado do mundo... aqui. Isto tudo é desconhecido e inexplorado... - Sua mão eliminou tudo na América do Norte, ao norte de uma linha indo do México à Terra Nova, tudo na América do Sul além do Peru e de uma estreita faixa costeira em torno daquele continente, depois tudo a norte o a leste da Noruega, tudo a leste da Moscóvia, toda a Ásia, todo o interior da África, tudo ao sul de Java e a extremidade da América do Sul.

- Conhecemos as linhas costeiras, mas pouca coisa mais. O interior da África, das Américas e da Ásia são mistérios quase completos para nós. - Ele parou para que ela pudesse assimilar.

Ela traduziu com mais facilidade agora e ele sentiu que o seu interesse crescia. O menino mexeu-se e chegou um pouco mais para perto.

- O herdeiro deseja saber onde estamos nós, no mapa.

- Aqui. Isto é Catai, na China, acho. Não sei a que distância estamos da costa. Levei dois anos para navegar daqui até aqui. - Toranaga e a gorda esticaram o pescoço para ver melhor.

- O herdeiro pergunta por que somos tão pequenos no seu mapa.

- E só uma escala, senhora. Neste continente, da Terra Nova, aqui, ao México, aqui, há quase mil léguas, cada uma de três milhas. Yedo está a umas cem léguas daqui.

Houve um silêncio, depois eles conversaram entre si.

- O Senhor Toranaga deseja que o senhor lhe mostre no mapa como chegou ao Japão.

- Por aqui. Este é o estreito de Magalhães - ou passo -, na extremidade da América do Sul. É chamado assim por causa do navegador português que o descobriu, há oitenta anos. Desde então os portugueses e espanhóis o mantiveram secreto, para seu uso exclusivo. Fomos os primeiros estrangeiros a atravessar o passo. Eu tinha um dos portulanos secretos deles, um tipo de mapa, mas ainda assim precisei esperar seis meses para conseguir passar, porque os ventos estavam contra nós.

Ela traduziu o que ele disse, Toranaga olhou, incrédulo.

- Meu amo diz que o senhor está enganado. Todos os bár... todos os portugueses vêm do sul. É essa a rota deles, a única rota.

- Sim. É verdade que os portugueses preferem esse caminho - o cabo da Boa Esperança, como o chamamos -, porque eles têm dúzias de fortes ao longo dessas costas - África, Índia e as ilhas das Especiarias - onde se abastecer e passar o inverno. E os seus galeões-belonaves patrulham e monopolizam as rotas marítimas. Entretanto, os espanhóis usam o estreito de Magalhães para chegar às suas colônias americanas no Pacífico, e às Filipinas, ou então atravessam por aqui, pelo estreito istmo do Panamá, indo por terra para evitar meses de viagem. Para nós era mais seguro navegar pelo estreito de Magalhães, do contrário teríamos que cruzar o fogo de todos esses fortes portugueses inimigos. Por favor, diga ao Senhor Toranaga que agora conheço a posição de muitos deles. Muitos utilizam soldados japoneses, aliás - acrescentou com ênfase. - O frade que me deu a informação na prisão era espanhol e hostil aos portugueses, e a todos os jesuítas.

Blackthorne viu uma reação imediata no rosto dela e, quando traduziu, no rosto de Toranaga. De tempo a ela, e conserve as coisas simples, preveniu-se ele.

- Soldados japoneses? Quer dizer, samurais?

- Ronins seria mais exato, imagino.

- O senhor disse um mapa "secreto"? Meu senhor quer saber como o obteve.

- Um homem chamado Pieter Suyderhof, da Holanda, era o secretário particular do primaz de Goa - esse é o título do padre católico chefe, e Goa é capital da Índia portuguesa. A senhora sabe, naturalmente, que os portugueses estão tentando dominar aquele continente à força. Na qualidade de secretário particular desse arcebispo, que também era vice-rei português na época, todo tipo de documento lhe passava pelas mãos. Depois de muitos anos ele conseguiu alguns portulanos - mapas - e os copiou. Isso revelou os segredos do caminho através do passo de Magalhães e também como contornar o cabo da Boa Esperança, e os bancos de areia e recifes de Goa ao Japão, via Macau. Meu portulano era o de Magalhães. Estava com os meus papéis que sumiram do meu navio. São vitais para mim, e poderiam ser de um imenso valor ao Senhor Toranaga.

- Meu amo diz que já enviou ordens para procurá-los. Continue, por favor.

- Quando Suyderhof regressou à Holanda, vendeu-os à Companhia dos Mercadores da Índia Oriental, que recebera o monopólio da exploração do Extremo Oriente.

Ela o olhava friamente.

- Esse homem era um espião pago?

- Foi pago pelos mapas, sim. É o costume deles, é como recompensam um homem. Não com um título ou com uma terra, só com dinheiro. A Holanda é uma república. Claro, senhora, meu país e nosso aliado, a Holanda, estão em guerra com a Espanha e Portugal, e isso há anos. A senhora compreenderá que, na guerra, é vital descobrir os segredos do inimigo.

Mariko voltou-se e falou longamente.

- Meu senhor diz: por que esse arcebispo empregaria um inimigo?

- A história que Pieter Suyderhof contou foi que esse arcebispo, que era jesuíta, estava interessado apenas em comércio. Suyderhof dobrou os lucros deles, por isso era muito "mimado". Tratava-se de um mercador extremamente inteligente - os holandeses geralmente são superiores aos portugueses nisso -, de modo que suas credenciais não foram examinadas com muito cuidado. Além disso, muitos homens de olhos azuis e cabelo claro, alemães e outros europeus, são católicos. - Blackthorne esperou até que isso fosse traduzido, depois acrescentou cuidadosamente: - Ele era o chefe da espionagem holandesa na Ásia, um soldado do país, e colocou alguns de seus homens em navios portugueses. Por favor, diga ao Senhor Toranaga que sem o comércio com o Japão a Índia portuguesa não conseguirá viver muito tempo.

Toranaga rnanteve o olhar no mapa enquanto Mariko falava. Não houve reação ao que ela disse. Blackthorne perguntou-se se ela traduzira tudo. Depois veio o pedido:

- Meu amo gostaria de ter um mapa detalhado, feito em papel, o mais rápido possível, com todas as bases portuguesas assinaladas e a quantidade de ronins em cada unia. Por favor, continue.

Blackthorne sabia que dera um gigantesco passo à frente. Mas o menino bocejou e ele resolveu mudar a rota, sempre se dirigindo para a mesma enseada.

- O nosso mundo não é sempre do modo como parece. Por exemplo, ao sul desta linha, que chamamos de equador, as estações são invertidas. Quando estamos no verão, eles estão no inverno; quando estamos no verão, eles estão congelando.

- Por que isso?

- Não sei, mas é verdade. O caminho para o Japão passa através de um destes estreitos meridionais. Nós, ingleses, estamos tentando encontrar uma rota pelo norte, seja nordeste, através da Sibéria, seja noroeste, através das Américas. Estive ao norte até este ponto. Toda a região, aqui, é de gelo e neve perpétuos, e faz tanto frio na maior parte do ano que se a gente não usa luvas de pele, os dedos congelam em poucos momentos. O povo que vive aqui é chamado de Japão. As roupas deles são feitas de pele de animais. Os homens caçam e as mulheres fazem todo o trabalho. Parte do trabalho das mulheres é confeccionar a roupa toda. Para fazer isso, a maior parte das vezes têm de mastigar as peles para amaciá-las antes de poderem costurá-las.

Mariko riu alto. Blackthorne sorriu, sentindo-se mais confiante.

- É verdade, senhora. É honto.

- Sorewa honto desu ka? - perguntou Toranaga com impaciência. O que é verdade?

Rindo ainda mais, ela lhe contou o que fora dito. Puseram-se todos a rir.

- Vivi entre eles por quase um ano. Ficamos presos no gelo e tivemos que esperar o degelo. A comida deles é peixe, focas, ocasionalmente ursos polares, e baleias, que comem cruas. O maior refinamento deles é comer gordura de baleia crua.

- Ora, vamos, Anjin-san!

- É verdade. E vivem em pequenas casas redondas, feitas inteiramente de gelo, e nunca tomam banho.

- O quê? Nunca? - espantou-se ela.

Ele sacudiu a cabeça, e resolveu não lhe contar que os banhos eram raros na Inglaterra, mais raros até que em Portugal e na Espanha, que eram países quentes. Ela traduziu. Toranaga balançou a cabeça, não acreditando.

- Meu amo diz que isso é exagero demais. Ninguém poderia viver sem banho. Nem povos incivilizados.

- A verdade é essa, tonto - disse ele calmamente, e levantou a mão. - Juro por Jesus de Nazaré e pela minha alma, juro que é verdade.

Ela o observou em silêncio.

- Tudo?

- Sim. O Senhor Toranaga queria a verdade. Por que eu mentiria? Minha vida está nas mãos dele. É fácil provar a verdade... não, para ser honesto seria muito difícil provar o que eu disse, os senhores teriam que ir lá e ver por si mesmos. Certamente os portugueses e espanhóis, que são meus inimigos, não vão me apoiar. Mas o Senhor Toranaga pediu a verdade. Ele pode confiar em mim para dizê-la.

Mariko pensou um instante. Depois escrupulosamente traduziu. Finalmente:

- O Senhor Toranaga diz que é inacreditável que um ser humano viva sem banho.

- Sim. Mas as terras frias são assim. Os hábitos são diferentes dos seus, e dos meus. Por exemplo, no meu país, todo mundo crê que os banhos são perigosos para a saúde. Minha avó, Granny Jacoba, costumava dizer: "Um banho ao nascer e outro ao esticar as canelas".

- É muito difícil de acreditar.

- Alguns dos seus hábitos aqui são muito difíceis de acreditar. Mas é verdade que tomei mais banhos neste curto período de tempo que estou no seu país do que em toda a minha vida antes. Admito francamente que me sinto melhor com eles. - Ele sorriu. - Não acredito mais que os banhos sejam perigosos. Portanto lucrei vindo aqui, não?

Após uma pausa Mariko disse:

- Sim - e traduziu.

- Ele é surpreendente... surpreendente, neh? - disse Kiri.

- Qual é a sua opinião sobre ele, Mariko-san? - perguntou Toranaga.

- Estou convencida de que está dizendo a verdade, ou acredita estar. Parece claro que ele talvez lhe pudesse ser de grande valor, meu senhor. Temos um conhecimento tão diminuto do mundo exterior. Isso é valioso para o senhor? Não sei. Mas é quase como se ele tivesse caído das estrelas, ou aparecido do fundo do mar. Se é inimigo dos portugueses e espanhóis, suas informações, se dignas de confiança, talvez pudessem ser vitais aos seus interesses, neh?

- Concordo - disse Kiri.

- O que pensa, Yaemon-sama?

- Eu, tio? Oh, penso que ele é feio e não gosto do cabelo dourado dele, nem desses olhos de gato, e ele não parece humano absolutamente - disse o menino esbaforidamente. - Estou contente por não ter nascido bárbaro como ele, mas samurai como o meu pai, podemos ir nadar mais um pouco, por favor?

- Amanhã, Yaemon - disse Toranaga, contrariado por não ser capaz de conversar diretamente com o piloto.

Enquanto conversavam entre si, Blackthorne decidiu que chegara a hora. Mariko voltou-se para ele de novo.

- Meu amo pergunta por que o senhor esteve no norte.

- Eu era piloto de um navio. Estávamos tentando encontrar uma passagem nordeste, senhora. Muitas coisas que eu posso lhe contar soarão risíveis, eu sei - começou ele. - Por exemplo, há setenta anos os reis da Espanha e Portugal assinaram um tratado solene que dividia a posse do Novo Mundo, o mundo não descoberto, entre eles. Como o seu país cai na metade portuguesa, oficialmente o seu país pertence a Portugal - o Senhor Toranaga, a senhora, todo mundo, este castelo e tudo dentro dele foi doado a Portugal.

- Oh, por favor, Anjin-san. Perdoe-me, mas isso é um absurdo!

- Concordo com que a arrogância deles é inacreditável. Mas é verdade.

Imediatamente ela começou a traduzir e Toranaga riu ironicamente.

- O Senhor Toranaga diz que então ele poderia igualmente dividir os pagãos entre ele e o imperador da China, neh?

- Por favor, diga ao Senhor Toranaga que me desculpe mas não é a mesma coisa - disse Blackthorne, consciente de que estava em terreno perigoso. - Isso está escrito em documentos que dão a cada rei o direito de reivindicar para si qualquer território não-católico descoberto por seus súditos, aniquilar o governo existente e substituí-lo por um governo católico. - No mapa, o dedo dele traçou uma linha de norte a sul, que cortava o Brasil em dois. - Tudo o que se encontra a leste desta linha pertence a Portugal, tudo o que se encontra a oeste pertence à Espanha. Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil em 1500, por isso Portugal é dono do Brasil, destruiu toda a cultura nativa e os dirigentes legais, e enriqueceu com o ouro e a prata extraídos das minas e pilhados dos templos nativos. Todo o resto das Américas descoberto até agora é da Espanha: o México, o Peru, este continente meridional quase todo. Eles arrasaram as nações incas, aniquilaram a cultura deles e escravizaram centenas de milhares de indivíduos. Os conquistadores têm armas modernas, os nativos não tinham nenhuma. Com os conquistadores chegam os padres. Logo alguns príncipes estão convertidos e as inimizades começam a ser utilizadas. Então príncipe é atirado contra príncipe e o reino é engolido gradativamente. Agora a Espanha é a nação mais rica do nosso mundo, devido ao ouro e à prata inca e mexicana que foram pilhados e enviados para a Espanha.

Mariko estava séria agora. Captara rapidamente o significado da lição de Blackthorne. Assim como Toranaga.

- Meu amo diz que isso é conversa sem valor. Como é que eles podem se atribuir tais direitos?

- Não se atribuíram - disse Blackthorne gravemente. - Foi o papa quem lhes concedeu, o Vigário de Cristo na terra em pessoa. Em troca da difusão da palavra de Deus.

- Não acredito! - exclamou ela.

- Por favor, traduza o que eu disse, senhora. É honto.

Ela obedeceu e falou longamente, obviamente perturbada. Depois:

- Meu amo... meu amo diz que o senhor está apenas querendo envenená-lo contra os seus inimigos. Qual é a verdade? Pela sua vida, senhor?

- O Papa Alexandre VI estabeleceu a primeira linha de demarcação em 1493 - começou Blackthorne, abençoando Alban Caradoc que lhe martelara tantos fatos quando ele era jovem, e ao Frei Domingo por informá-lo sobre o orgulho japonês e lhe dar tantos indícios sobre a mente japonesa. - Em 1506, o Papa Júlio II sancionou modificações no Tratado de Tordesilhas, assinado pela Espanha e Portugal em 1494, que alterou a linha um pouco. O Papa Clemente VII sancionou o Tratado de Saragoza em 1529, há uns setenta anos, que traçou uma segunda linha aqui - seu dedo desenhou uma linha longitudinal na areia, cortando a extremidade do Japão meridional. - Isso dá a Portugal direito exclusivo sobre o seu país, sobre todos estes países - do Japão e China à África - no caminho de que eu falei. Para explorar com exclusividade, por qualquer meio, em troca de difundirem o catolicismo.

Novamente ele esperou e a mulher vacilou, confusa. Blackthorne podia sentir a crescente irritação de Toranaga por ter que esperar que ela traduzisse.

Mariko forçou os lábios para falar e repetiu o que ele dissera.

Depois ouviu Blackthorne de novo, detestando o que ouvia. Isso é realmente possível? perguntava a si mesma. Como poderia Sua Santidade fazer coisas assim? Dar nosso país aos portugueses? Deve ser mentira. Mas o piloto jurou por Jesus.

- O piloto diz, senhor - começou ela -, que... que no tempo em que essas decisões foram tomadas por Sua Santidade o papa, o mundo deles todo, inclusive o país de Anjin-san, era cristão católico. O cisma ainda não... não ocorrera. Portanto, portanto essas... essas decisões foram, naturalmente, acatadas por... por todas as nações. Ainda assim, acrescentou ele, embora os portugueses tenham exclusividade para explorar o Japão, a Espanha e Portugal estão incessantemente discutindo sobre a posse, por causa da riqueza do nosso comércio com a China.

- Qual é a sua opinião, Kiri-san? - disse Toranaga, tão chocado quanto elas. Apenas o menino brincava com o leque, desinteressadamente.

- Ele acredita estar dizendo a verdade - disse Kiri. - Sim, penso isso. Mas como prová-la... ou parte dela?

- Como você provaria, Mariko-san? - perguntou Toranaga, muito perturbado com a reação de Mariko ao que fora dito, mas muito contente por ter concordado em tê-la como intérprete.

- Eu perguntaria ao Padre Tsukku-san. Depois também enviaria alguém, um vassalo de confiança, pelo mundo para ver. Talvez com o Anjin-san.

- Se o padre não apoiar essas declarações - disse Kiri -, isso não significará necessariamente que o Anjin-san esteja mentindo, neh? - Kiri estava contente por haver sugerido que Mariko fosse a intérprete quando Toranaga procurou uma alternativa para Tsukku-san. Sabia que Mariko merecia confiança e que, uma vez tendo jurado pelo seu Deus estrangeiro, manteria silêncio mesmo sob o mais rigoroso interrogatório de qualquer padre cristão. Quanto menos esses demônios souberem, melhor, pensou Kiri. E que tesouro de conhecimento esse bárbaro tem!

Kiri viu o menino bocejar de novo e ficou contente com isso. Quanto menos a criança compreendesse, melhor, disse ela a si mesma: Depois, em voz alta:

- Por que não mandar chamar o líder dos padres cristãos e perguntar sobre esses fatos? Vamos ver o que ele diz. Eles têm o rosto aberto, na maioria, e quase não têm sutileza.

Toranaga assentiu, de olhos em Mariko.

- Pelo que você sabe sobre os bárbaros meridionais, diria que as ordens do papa seriam obedecidas?

- Sem dúvida.

- As ordens dele seriam consideradas como se o próprio Deus cristão estivesse falando?

- Sim.

- Todos os cristãos católicos obedeceriam às ordens dele?

- Sim.

- Até os nossos cristãos aqui?

- Penso que sim.

- Até você?

- Sim, senhor. Se se tratasse de uma ordem direta de Sua Santidade a mim, pessoalmente. Sim, pela salvação da minha alma. - O olhar dela mantinha-se firme. - Mas até lá não obedecerei a homem algum além do meu suserano, ao cabeça da minha família, ou ao meu marido. Sou japonesa, cristã, sim, mas primeiro sou samurai.

- Acho que seria bom, então, que essa santidade permanecesse longe das nossas praias. - Toranaga pensou um instante.

Depois resolveu o que fazer com o bárbaro, Anjin-san.

– Diga-lhe... - Parou. Os olhos de todos estavam postados na vereda e na anciã que se aproximava. Usava o hábito com capuz das monjas budistas. Com ela vinham quatro cinzentos. Pararam e ela entrou sozinha.


Загрузка...