CAPÍTULO 44


À hora do Bode, o cortejo cruzou a ponte de novo. Foi tudo como antes, exceto que agora Zataki e seus homens usavam trajes mais leves, para viajar — ou para enfrentar uma escaramuça. Estavam todos pesadamente armados e, embora muito bem disciplinados, todos ansiosos por um combate de morte, se viesse. Sentaram-se em ordem em frente às forças de Toranaga, que os superavam largamente em quantidade. O Padre Alvito estava a um lado, entre os assistentes. E Blackthorne.

Toranaga deu as boas-vindas a Zataki com a mesma formalidade calma, prolongando o sentar-se cerimonioso. Desta vez os dois daimios ficaram sozinhos sobre o estrado, as almofadas mais afastadas uma da outra, sob um céu carregado. Yabu, Omi, Naga e Buntaro estavam no chão, em torno de Toranaga, e quatro dos conselheiros de combate de Zataki se espaçavam atrás dele. No momento correto, Zataki pegou o segundo pergaminho. — Vim para a sua resposta formal.

— Concordo em ir a Osaka e em me submeter à vontade do conselho — disse Toranaga calmamente, e curvou-se.

— Vai se submeter? — começou Zataki, o rosto desfigurado de incredulidade. — O senhor, Toranaga-noh-Minowara, vai...

— Ouça — interrompeu Toranaga, numa ressonante voz de comando que ricocheteou em torno da clareira, sem parecer alta. — O conselho de regentes deve ser obedecido! Embora seja ilegal, está constituído e nenhum daimio isolado tem o direito de dividir o reino, por mais razão que ele tenha. O reino tem precedência. Se um daimio se revolta, é dever de todos destruí-lo.

Jurei ao táicum que nunca seria o primeiro a romper a paz, e não serei, ainda que o país esteja dominado pelo mal. Aceito o convite. Aceito-o hoje.

Agastado, cada samurai estava tentando adivinhar o que aquela inacreditável meia-volta significaria. Estavam todos doloridamente certos de que muitos, se não todos, seriam forçados a se tornar ronins, com tudo o que isso significava — perda de honra, de renda, de família, de futuro.

Buntaro sabia que acompanharia Toranaga na sua última viagem e lhe compartilharia o destino — morte com toda a família, de todas as gerações. Ishido era seu inimigo demais para perdoar, e de qualquer modo, quem quereria continuar vivo quando seu próprio senhor desistia da verdadeira luta de um modo tão covarde? Karma, pensou Buntaro, cáustico. Buda me dê forças! Agora estou comprometido em tirar a vida de Mariko e a do nosso filho, antes de tirar a minha. Quando? Quando meu dever estiver cumprido e nosso senhor tiver segura e honradamente partido para o Vazio. Ele precisará de um assistente fiel, neh? Foi-se tudo, como folhas de outono, todo o futuro e o presente, Céu Carmesim e o destino. Está igualmente bem, neh? Agora o Senhor Yaemon herdará, com certeza. O Senhor Toranaga deve estar secretamente tentado, no mais íntimo do seu coração, a tomar o poder, por mais que o negue. Talvez o táicum volte à vida por intermédio do filho e, oportunamente, combateremos com a China de novo e desta vez venceremos, para nos erguer ao topo do mundo, como é nosso dever divino. Sim, a Senhora Ochiba e Yaemon não nos venderão na próxima vez, como Ishido e seus covardes seguidores fizeram na última...

Naga estava desconcertado. Nada de Céu Carmesim? Nada de guerra honrosa? Nada de luta até a morte nas montanhas de Shinano ou nas planícies de Kyoto? Nada de morte honrosa em batalha, heroicamente defendendo o estandarte do pai, nada de pilhas de inimigos mortos, em cima dos quais se escarranchar num último momento de glória, ou numa vitória divina? Nada de ataque, mesmo com as vis armas de fogo? Nada disso — apenas um seppuku, provavelmente às pressas, sem pompa, cerimônia ou honra, e sua cabeça espetada num chuço, exposta ao escárnio do populacho. Apenas uma morte e o fim da linhagem Yoshi. Pois naturalmente cada um deles morreria, o pai, todos os irmãos, irmãs, primos, sobrinhos e sobrinhas, e tias e tios. Seus olhos se fixaram em Zataki. O sangue começou a inundar-lhe o cérebro.

Omi observava Toranaga com olhos semicerrados, o ódio a devorá-lo. Nosso amo enlouqueceu, pensou. Como pode ser tão estúpido? Temos cem mil homens e o Regimento de Mosquetes e mais cinqüenta mil em torno de Osaka! Céu Carmesim é mil vezes melhor do que urna solitária sepultura fedorenta!

Sua mão pesava sobre o punho da espada e, num momento de enlevo, ele se imaginou pulando para a frente para decapitar Toranaga, estender a cabeça do suserano ao regente Zataki e assim pôr termo à charada desprezível. Depois morrer pela própria mão com honra, ali, diante de todos. Pois que sentido havia em viver agora? Agora Kiku estava fora do seu alcance, seu contrato comprado e possuído por Toranaga, que os traíra a todos. Na noite passada seu corpo ficara em chamas enquanto ela cantava e ele sabia que a canção, secretamente, se destinava a ele, e só a ele. Ardor não reconhecido — ele e ela. Espere: por que não um suicídio conjunto? Morrer lindamente juntos, estar juntos por toda a eternidade. Oh, que maravilhoso seria isso! Fundir nossas almas na morte, como um testemunho sem fim da nossa adoração à vida. Mas primeiro o traidor Toranaga, neh?

Com um esforço, Omi se arrastou de volta da beira do precipício.

Tudo deu errado, pensou. Não existe paz na minha casa, sempre raiva e discussão, e Midori sempre em lágrimas. Minha vingança contra Yabu é remota agora. Não houve acordo secreto com Zataki, com ou sem Yabu, negociado durante horas na noite passada. Nenhum acordo de espécie alguma. Nada certo. Mesmo quando Mura encontrou as espadas, estavam ambas tão mutiladas pela força da terra, que sei que Toranaga me odiou por te-las mostrado a ele. E agora, finalmente, isto — esta covarde e traidora rendição!

É quase como se eu estivesse enfeitiçado — num mau encantamento. Lançado pelo Anjin-san? Talvez. Mas está tudo perdido do mesmo jeito. Nada de espadas, vinganças, via secreta de fuga, Kiku, o futuro. Espere. Existe um futuro com ela. A morte é um futuro, e passado e presente, e será muito limpo e simples...

— Está desistindo? O senhor não vai combater? — berrou Yabu, consciente de que a sua morte e a da sua linhagem estavam garantidas agora.

— Aceito o convite do conselho — replicou Toranaga. Como o senhor aceitará o convite do conselho!

— Não farei...

Omi saiu do devaneio com presença de espírito suficiente para saber que tinha que interromper Yabu e protege-lo da morte instantânea que qualquer confrontação com Toranaga causaria. Mas deliberadamente apertou os lábios, dando vivas de alegria consigo mesmo diante desse presente enviado pelo céu, e esperou que o desastre de Yabu o arruinasse de vez.

— Não vai fazer o quê? — perguntou Toranaga.

A alma de Yabu guinchou perigo. Ele tentou disfarçar: — Eu... eu... naturalmente seus vassalos obedecerão. Sim... se o senhor decide... qualquer coisa que o senhor decida eu... eu farei.

Omi praguejou intimamente e permitiu que a expressão vítrea do rosto voltasse, a mente ainda paralisada pela totalmente inesperada capitulação de Toranaga.

Furioso, Toranaga deixou Yabu continuar gaguejando, aumentando a intensidade do pedido de desculpas. Depois, desdenhosamente, interrompeu-o: —Bom.

Voltou-se para Zataki, mas não relaxou a vigilância. — Então, Irmão, o senhor pode ignorar o segundo pergaminho. Não há mais nada... — Do canto do olho, viu o rosto de Naga alterar-se e girou na sua direção: — Naga!

O jovem quase saltou fora da própria pele, mas a mão deixou a espada. — Sim, Pai? — gaguejou ele.

— Vá buscar meus materiais de escrita! Já! — Quando Naga estava bem longe do alcance da espada, Toranaga respirou, aliviado por ter impedido o ataque a Zataki antes que tivesse começado. Seus olhos estudaram Buntaro cuidadosamente. Depois Omi. E por último Yabu. Achou que os três estavam agora suficientemente controlados para não fazer qualquer gesto imbecil que precipitaria um tumulto imediato e uma grande carnificina.

Mais uma vez dirigiu-se a Zataki. — Dar-lhe-ei a minha aceitação formal e por escrito imediatamente. Isso preparará o conselho para a minha visita de cerimônia. — Baixou a voz e falou apenas aos ouvidos de Zataki: — Dentro de Izu o senhor está seguro, regente. Fora também está seguro. Até que minha mãe esteja fora do seu alcance, o senhor estará seguro. Só até lá. Esta reunião está encerrada.

— Bom. "Visita de cerimônia"? — Zataki foi abertamente desdenhoso. — Que hipocrisia! Nunca pensei que veria o dia em que Yoshi Toranaga-noh-Minowara se ajoelharia ao General Ishido. O senhor é...

— O que é mais importante, Irmão? — disse Toranaga. — A continuidade da minha linhagem ou a do reino?

A escuridão pairava sobre o vale. Estava se espalhando agora, a base das nuvens mal e mal a trezentos pés do solo, obscurecendo completamente o caminho para o passo. A clareira e o adro da hospedaria estavam cheios de samurais se acotovelando, malhumorados. Cavalos pisoteavam irritadamente. Oficiais gritavam ordens com aspereza desnecessária. Carregadores atemorizados corriam de um lado para o outro, preparando a coluna que partia. Faltava por volta de uma hora para o escurecer.

Toranaga escrevera a floreada mensagem, assinara, e a enviara por um mensageiro a Zataki, ignorando as súplicas de Buntaro, Omi e Yabu, em conferência privada. Ouvira os argumentos deles silenciosamente.

Quando terminaram, ele disse: — Não quero mais saber de conversa. Escolhi o meu caminho. Obedeçam!

Dissera-lhes que regressaria a Anjiro imediatamente para reunir o resto dos seus homens. No dia seguinte tomaria a estrada costeira de leste em direção a Atami e Odawara, dali para os desfiladeiros entre as montanhas, até Yedo. Buntaro comandaria a sua escolta. No dia seguinte, também, o Regimento de Mosquetes deveria embarcar em galeras, em Anjiro, e zarpar para esperá-lo em Yedo, com Yabu ao comando. Omi seguiria para a fronteira, pela estrada central, com todos os guerreiros disponíveis em Izu. Devia dar assistência a Hiromatsu, que estava no comando supremo, e garantir que o inimigo, Ikawa Jikkyu, não interferisse no tráfego normal. Omi devia se basear em Mishima por enquanto, para guardar aquele setor da estrada Tokaido, e preparar palanquins e cavalos em quantidade suficiente para Toranaga e o séquito considerável que era necessário para uma visita de cerimônia formal. — Alerte todos os pontos de parada ao longo da estrada e prepare-os igualmente. Compreendeu?

— Sim, senhor.

— Certifique-se de que esteja tudo perfeito!

— Sim, senhor. Pode contar comigo. — Até Omi tinha estremecido sob o olhar penetrante e terrível.

Quando tudo ficou pronto para a partida, Toranaga saiu dos seus aposentos para a varanda. Todos se curvaram. Carrancudo, fez-lhes sinal que continuassem e mandou buscar o estalajadeiro. O homem foi todo mesuras ao apresentar a conta, de joelhos. Toranaga verificou item por item. A conta era justa. Ele assentiu e atirou-a ao seu pagador, para que a pagasse, depois chamou Mariko e o Anjin-san. Mariko recebeu permissão para ir a Osaka. — Mas antes você irá direto daqui até Mishima. Entregue este despacho particular a Hiromatsu, depois continue até Yedo com o Anjin-san. É responsável por ele até chegarem. Você provavelmente irá por mar a Osaka, decidirei isso mais tarde. Anjin-san! Recebeu o dicionário do padre-san?

— Por favor? Sinto muito, não compreendo. Mariko traduzira.

-— Sinto muito. Sim, eu livro recebi.

— Quando nos encontrarmos em Yedo, você estará falando japonês melhor do que agora. Wakarimasu ka?

— Hai. Gomen nasal.

Tristemente, Toranaga saiu para o pátio, um samurai segurando-lhe um amplo guarda-chuva para protegê-lo da chuva. Como um só, todos os samurais, carregadores e aldeãos novamente se curvaram. Toranaga não prestou atenção neles, simplesmente subiu no seu palanquim coberto, à testa da coluna, e fechou as cortinas.

Imediatamente, os seis carregadores semidespidos ergueram a liteira e se puseram em marcha, num trote cerrado, os calosos pés descalços chapinhando nas poças. Samurais da escolta cavalgavam à frente, e outra guarda montada cercava o palanquim. Carregadores de reserva e o comboio de bagagem seguiam atrás, todos correndo, todos tensos e apavorados. Omi chefiava a vanguarda. Buntaro estava no comando da retaguarda. Yabu e Naga já haviam partido ao encontro do Regimento de Mosquetes, que ainda estava atravessado na estrada em emboscada, à espera de Toranaga no cume; o regimento engataria atrás, para formar uma retaguarda. — Retaguarda contra quem? — rosnara Yabu a Omi nos poucos momentos à parte que tiveram antes de Yabu partir a galope.

Buntaro avançou a passos largos para o alto e curvo portão da hospedaria, sem tomar conhecimento do aguaceiro. — Mariko-san!

Obedientemente ela se apressou na direção dele, seu guarda-chuva laranja de papel oleado batido pelos pingos pesados. — Sim, senhor?

Sob a aba do chapéu de bambu, os olhos de Buntaro foram dela para Blackthorne, que observava da varanda. — Diga a ele... — Parou.

— Senhor?

Ele a encarou. — Diga-lhe que o torno responsável por você. — Sim, senhor — disse ela. — Mas, por favor, desculpe-me, eu sou responsável por mim.

Buntaro voltou-se e mediu a distância até a cabeça da coluna. Quando a olhou de novo, seu rosto mostrava um vestígio do seu tormento.

— Agora não haverá folhas outonais para os nossos olhos, neh?

— Isso está nas mãos de Deus, senhor.

— Não, está nas mãos do Senhor Toranaga — disse ele com desdém.

Ela levantou os olhos, sem vacilar sob o olhar dele. A chuva caía forte. As gotas caíam da borda do guarda-chuva como uma cortina de lágrimas. A lama salpicava na barra do quimono dela. Então disse: — Sayonara... até que eu a veja em Osaka.

Ela ficou surpresa. — Oh, desculpe, mas eu não vou vê-lo em Yedo? Com certeza o senhor estará lá com o Senhor Toranaga, chegará quase ao mesmo tempo, vê-lo-ei então.

— Sim. Mas em Osaka, quando nos encontrarmos lá ou quando você regressar de lá, será quando começaremos de novo. Será então que eu a verei realmente, neh?

— Ah, compreendo. Sinto muito.

— Sayonara, Mariko-san — disse ele.

— Sayonara, meu senhor. — Mariko curvou-se, Ele lhe retribuiu a reverência imperiosamente e se afastou pelo charco na direção do seu cavalo. Saltou para a sela e disparou, sem olhar para trás.

— Vá com Deus — disse ela, de olhos fixos nele.

Blackthorne viu os olhos dela acompanhando Buntaro. Esperava ao abrigo do telhado, a chuva diminuindo. Logo a cabeça da coluna desapareceu nas nuvens, depois o palanquim de Toranaga, e ele respirou com mais facilidade, ainda abalado por Toranaga e por todo o dia de mau agouro.

Naquela manhã a caça começara muito bem. Ele escolhera um falcão minúsculo, de longas asas, como um esmerilhão, e fizera-o voar com muito sucesso contra uma calhandra. Comandando o ataque, conforme era privilégio seu, ele galopara através da floresta ao longo de uma trilha bem batida, mascates e sitiantes itinerantes dispersos pelo caminho. Mas um vendedor de óleo, alquebrado pelo tempo, com um cavalo igualmente molambento, bloqueou o caminho crixento, não se moveu do lugar. Na animação da caçada, Blackthorne gritara ao homem que se afastasse, mas o mascate não arredou pé, então ele o cobrira de imprecações. O vendedor de óleo retrucara com rudeza, gritando também, e então Toranaga se aproximara, apontara para o seu próprio guarda-costas e dissera: — Anjin-san, dê-lhe a sua espada um instante — e algumas palavras que ele não compreendeu. Blackthorne obedeceu imediatamente. Antes que percebesse o que estava acontecendo, o samurai investiu contra o mercador. O golpe foi tão selvagem e perfeito, que o vendedor de óleo ainda deu um passo antes de cair, dividido em dois pela cintura.

Toranaga dera um murro na maçaneta da sela com um prazer momentâneo, depois caíra de novo na sua melancolia, enquanto os outros samurais davam vivas. O guarda-costas limpou a lâmina cuidadosamente, usando o seu sash de seda para proteger o aço. Embainhou a espada com satisfação e devolveu-a, dizendo alguma coisa que Mariko depois explicou: — Ele só disse, Anjin-san, que ficou orgulhoso de poder testar essa lâmina. O Senhor Toranaga está sugerindo que o senhor apelide a espada de "Vendedor de óleo", porque um tal golpe e agudeza deviam ser lembrados com honra. Sua espada agora tornou-se lendária, neh?

Blackthorne lembrava-se de como assentira, ocultando a própria angústia. Estava usando a Vendedor de óleo agora — seria Vendedor de óleo para sempre —, a mesma espada que Toranaga lhe presenteara. Gostaria que ele nunca me tivesse dado, pensou Blackthorne. Mas a culpa não foi toda dele, foi minha também. Gritei com o homem, ele foi rude, e samurais não podem ser tratados com rudeza. Que outra linha de conduta havia? Blackthorne sabia que não havia nenhuma. Ainda assim, a morte suprimira-lhe a alegria da caçada, embora tivesse que esconder isso com cuidado porque Toranaga estivera taciturno e difícil o dia todo.

Pouco antes do meio-dia, retornaram a Yokosé, depois houve o encontro de Toranaga com Zataki, e depois, após um banho de vapor e uma massagem, repentinamente o Padre Alvito apareceu-lhe no caminho, como um espectro vingador, acompanhado de dois acólitos hostis. — Jesus Cristo, afaste-se de mim!

— Não há necessidade de ter medo, ou de blasfemar — dissera Alvito.

— Deus amaldiçoe o senhor e todos os padres! — dissera Blackthorne, tentando se controlar, sabendo que se encontrava mergulhado em território inimigo. Anteriormente vira meia centena de samurais católicos escoando aos poucos pela ponte para a missa que Mariko lhe dissera estava sendo realizada no pátio da hospedaria de Alvito. Sua mão procurou o punho da espada, mas não a estava usando com o roupão de banho, ou carregando-a como era costumeiro, e amaldiçoou a própria estupidez, detestando estar desarmado.

— Que Deus lhe perdoe, lhe perdoe e lhe abra os olhos.

— Blasfêmia, piloto. Sim. Que eu não lhe desejo mal. Vim para lhe trazer um presente. Tome, um presente de Deus, piloto. Blackthorne pegou o pacote desconfiado. Quando o abriu e viu o dicionário-gramática de português, latim e japonês, um arrepio o percorreu. Folheou algumas páginas. A impressão era certamente a melhor que ele já vira, a qualidade e o pormenor da informação surpreendentes. — Sim, isto é um presente de Deus, está bem, mas o Senhor Toranaga lhe ordenou que me desse.

— Obedecemos apenas às ordens de Deus. — Toranaga lhe pediu que me desse?

— Sim. Foi solicitação dele.

— E uma "solicitação" de Toranaga não é uma ordem?

— Depende, capitão-piloto, de quem se é, do que se é, e de quão grande é a fé que se tem. — Alvito apontou para o livro. — Três dos nossos irmãos gastaram vinte e sete anos preparando-o.

— Por que o senhor está me dando? — Pediram-nos que fizéssemos isso.

— Por que não evitou a solicitação do Senhor Toranaga? O senhor é astuto mais que o suficiente para fazer isso.

Alvito deu de ombros. Rapidamente Blackthorne folheou o livro, examinando-o. Excelente papel, impressão e o número das páginas estavam em seqüência.

— Está completo — disse Alvito, divertido com meios livros.

— Isto é valioso em troca?

— O padre-inspetor foi muito claro. Ele nos pediu que lhe déssemos.

— Nós lidamos demais para lhe entregar assim. Por isso o estamos dando. Foi impresso neste ano, finalmente. É lindo, não? Só lhe pedimos que o estime, que trate o livro. É digno de ser bem tratado.

— É digno de ser protegido com a vida. Isto é cimento inestimável, como um dos nossos portulanos, melhor ainda. O que quer por ele?

— Não pedimos nada em troca.

— Não acredito. — Blackthorne sopesou-o ainda mais desconfiado. — O senhor deve saber que isto me une ao senhor. Dá-me todo o seu conhecimento, ainda o torna igual dez, talvez vinte anos. Com isto logo estarei falando tão bem quanto o senhor. Uma vez que possa fazer isso, poderei ensinar a outros. Esta é a chave do Japão, neh? A língua é a chave de qualquer lugar estrangeiro, neh? Dentro de seis meses serei capaz de conversar diretamente com Toranaga-sama.

— Sim, talvez seja. Se tiver seis meses. — O que significa isso?

— Nada mais além do que o senhor já sabe. O Senhor Toranaga estará morto bem antes que se passem seis meses.

— Por quê? Que novidades o senhor lhe trouxe? Desde que conversou com o senhor ele ficou como um touro, com metade da garganta dilacerada. O que foi que lhe disse, hein?

— Minha mensagem era particular, de Sua Eminência ao Senhor Toranaga. Sinto muito, sou meramente um mensageiro. Mas o General Ishido controla Osaka, como o senhor certamente sabe, e quando Toranaga-sama for a Osaka, estará tudo acabado para ele. E para você.

Blackthorne sentiu o gelo na medula. — Por que eu?

— Não se pode escapar ao seu destino, piloto. Ajudou Toranaga contra Ishido. Esqueceu? Colocou as mãos violentamente em cima de Ishido. Comandou a arremetida para fora da enseada de Osaka. Sinto muito, mas ser capaz de falar japonês, ou as suas espadas ou o status de samurai não o ajudarão em absoluto. Talvez seja pior agora, sendo o senhor samurai. Agora receberá ordem de cometer seppukií e se recusar... — Alvito acrescentou na mesma voz gentil: — Eu lhe disse antes que eles são um povo simples.

— Nós, ingleses, também somos um povo simples — disse ele, com não pouca bravata. — Quando estamos mortos, estamos mortos, mas antes disso depositamos nossa confiança em Deus e mantemos a nossa pólvora seca. Restam-me alguns truques, não receie.

— Oh, não tenho receio, piloto. Não receio nada, nem o senhor nem a sua heresia, nem as suas armas. Estão amarradas... assim como o senhor.

— Isso é karma, está nas mãos de Deus, chame como quiser — disse-lhe Blackthorne, aturdido. — Mas por Deus, recuperarei o meu navio e então, em alguns anos, comandarei uma esquadra de navios ingleses até aqui, e vou mandá-los todos para o inferno, para fora da Ásia.

Alvito falou novamente, com a sua calma imensa e enervante. — Isso está nas mãos de Deus, piloto. Mas os dados estão lançados e nada do que o senhor diz acontecerá. Nada. — Alvito o olhara como se ele já estivesse morto. — Que Deus tenha piedade do senhor, pois como Deus é o meu juiz, piloto, creio que o senhor nunca deixará estas ilhas.

Blackthorne estremeceu, lembrando-se com que Alvito dissera isso.

— Está com frio, Anjin-san?

Mariko estava em pé à sua frente na varanda, agora, sacudindo o guarda-chuva. — Oh, desculpe, não, não estou com frio... só estava devaneando. — Olhou para o passo. A coluna toda desaparecera nas nuvens. A chuva diminuíra um pouco e se tornara branda e suave. Alguns aldeãos e criados vinham chapinhando nas poças, em direção da casa. O átrio estava vazio, o jardim alagado. Lanternas a óleo acesas estavam aparecendo por toda a aldeia. Já não havia sentinelas junto ao portão, nem dos dois lados da ponte. Um grande vazio parecia dominar o fusco-fusco. — É muito mais bonito à noite, não é? — disse ela.

— Sim — replicou ele, totalmente consciente de que estavam sozinhos, e a salvo, se fossem cuidadosos e se ela quisesse como ele queria.

Uma criada veio e pegou-lhe o guarda-chuva, trazendo tubis secos. Ajoelhou-se e começou a enxugar os pés de Mariko com uma toalha.

— Amanhã, ao amanhecer, começaremos Anjin-san.

-— Quanto tempo levaremos?

— Alguns dias, Anjin-san. O Senhor Toranaga disse... — Mariko desviou o olhar quando Gyoko surgiu obsequiosamente de dentro da hospedaria. — O Senhor Toranaga me disse que havia muito tempo.

Gyoko curvou-se profundamente.

Toda, por favor, desculpe-me por interrompê-la. — Como vai, Gyoko-san?

— Muito bem, obrigada, embora quisesse que parasse. Não gosto dessa umidade. Mas depois, quando as cessarem, teremos o calor e isso é muito pior, neh? Mas o outono não está longe... Ah, temos sorte em ter um outono para esperar, e uma primavera celestial, neh?

Mariko não respondeu. A criada amarrou-lhe os rabis e se levantou. — Obrigada — disse Mariko, dispensando-a. — Então, Gyoko-san? Há alguma coisa que eu possa fazer pela senhora? — Kiku-san perguntou se a senhora gostaria que ela a servisse no jantar, ou que dançasse ou cantasse esta noite. O Senhor Toranaga deixou-lhe instruções para entretê-la, se a senhora quisesse.

— Sim, ele me disse, Gyoko-san. Seria muito bom, mas talvez não esta noite. Temos que partir ao amanhecer e estou muito cansada. Haverá outras noites, neh? Por favor, peça-lhe as minhas desculpas, e, oh, sim, diga-lhe que estou encantada em ter a companhia de vocês duas na estrada. — Toranaga ordenara a Mariko que levasse as duas mulheres consigo, e ela lhe agradecera, satisfeita de tê-las como acompanhantes formais.

— A senhora é muito gentil — disse Gyoko, com mel na língua. — Mas a honra é nossa. Ainda vamos para Yedo?

— Sim. Naturalmente. Por quê?

— Por nada, Senhora Toda. Mas, nesse caso, talvez pudéssemos parar em Mishima por um ou dois dias? Kiku-san gostaria de reunir algumas roupas. Não se sente adequadamente vestida para o Senhor Toranaga, e ouvi dizer que o verão de Yedo é muito mormacento e cheio de mosquitos. Temos que ir buscar o guarda-roupa dela, por pior que seja.

— Sim. Naturalmente. As duas terão tempo mais que o suficiente.

Gyoko não olhou para Blackthorne, embora estivessem ambas muito conscientes da presença dele. — É... é trágico o que aconteceu ao nosso amo, neh?

— Karma — respondeu Mariko calmamente. E acrescentou com uma suave malignidade feminina: — Mas nada mudou, Gyoko-san. A senhora será paga no dia em que chegarmos, em prata, conforme diz o contrato.

— Oh, desculpe — disse a mulher mais velha, fingindo estar chocada. — Desculpe, Senhora Toda, mas dinheiro? Isso estava muito distante da minha mente. Nunca! Só estava preocupada com o futuro do nosso amo.

— Ele é senhor do próprio futuro — disse Mariko afavelmente, já não acreditando nisso. — Mas o seu futuro é bom, não é, aconteça o que acontecer? Está rica agora. Todos os seus problemas materiais terminaram. Logo a senhora será uma potência em Yedo, com a sua nova corporação de cortesãs, seja quem for que governe o Kwanto. Logo será a maior de todas as Mamasans, e aconteça o que acontecer, bem, Kiku-san ainda é a sua protegida e a sua juventude não foi tocada, nem o seu karma, neh?

— Minha única preocupação é com o Senhor Toranaga — respondeu Gyoko, com uma gravidade experiente, o ânus contraindo-se com o pensamento de dois mil e quinhentos kokus tão perto da sua caixa-forte. — Se há algum meio por que eu possa ajudá-lo, eu...

— Que generoso de sua parte, Gyoko-san! Falarei a ele do seu oferecimento. Sim, mil kokus do preço ajudariam muitíssimo. Aceito em nome dele.

Gyoko agitou o leque, pôs um sorriso gracioso no rosto, e a custo conseguiu não se pôr a gemer alto pela sua imbecilidade de cair numa armadilha como uma novata intoxicada de saquê. — Oh, não, Senhora Toda, como o dinheiro poderia ajudar um protetor tão generoso? Não, evidentemente o dinheiro não é ajuda para ele — balbuciou, tentando se recuperar. — Não, dinheiro não é ajuda. Melhor uma informação ou um serviço ou...

— Por favor, desculpe-me, mas que informação?

— Nenhuma, nenhuma no momento. Só usei isso como uma figura de linguagem, sinto muito. Mas dinheiro...

— Ah, desculpe, sim. Bem, falarei a ele sobre a sua oferta. E sobre a sua generosidade. Em nome dele, obrigada.

Gyoko curvou-se, sendo dispensada, e correu de volta para dentro da hospedaria.

Mariko soltou uma risadinha entrecortada. — De que está rindo, Mariko-san?

Ela lhe contou o que fora dito. — As Mama-sans devem ser a mesma coisa no mundo todo. Ela só está preocupada com o seu dinheiro.

— O Senhor Toranaga pagará apesar de... — Blackthorne parou. Mariko esperou, com ar inocente. Depois, sob o olhar dela, ele continuou: — O Padre Alvito disse que quando o Senhor Toranaga for a Osaka, estará liquidado.

— Oh, sim. Sim, Anjin-san, isso é totalmente verdadeiro — disse Mariko, com uma vivacidade que não sentia. Depois colocou Toranaga e Osaka nos respectivos compartimentos e ficou tranqüila de novo. — Mas Osaka está a muitas léguas de distância e a incontáveis bastões de tempo no futuro, e até lá, quando o que tem que ser é, Ishido não sabe, o bom padre não sabe realmente, nós não sabemos, ninguém sabe o que realmente vai acontecer. Neh? Exceto o Senhor Deus. Mas ele não nos dirá, dirá? Até, talvez, que já tenha passado. Neh?

— Hai! — Ele riu com ela. — Ah, a senhora é tão sábia. -— Obrigada. Tenho uma sugestão, Anjin-san. Durante a viagem, vamos esquecer todos os problemas externos. Todos eles. — É bom vê-Ia — disse ele em latim.

— Digo o mesmo. Um cuidado extraordinário diante das duas mulheres durante a viagem é muito necessário, neh?

— Pode contar com isso, senhora.

— Conto. Na verdade conto muitíssimo.

— Agora estamos quase sozinhos, neh? A senhora e eu. — Sim. Mas o que foi não é, nem nunca aconteceu.

— É verdade. Sim. A senhora tem razão de novo. E é linda. Um samurai avançou pelo portão e a saudou. Era um homem de meia-idade, de cabelo grisalho, rosto marcado de varíola, e caminhava coxeando levemente. — Por favor, desculpe-me, Senhora Toda, mas partiremos ao amanhecer, neh?

— Sim, Yoshinaka-san. Mas não tem importância se nos atrasarmos até o meio-dia, se o senhor quiser. Temos muito tempo. — Sim. Se a senhora prefere, partimos ao meio-dia. Boa noite, Anjin-san. Por favor, permita-me que me apresente. Sou Akira Yoshinaka, capitão da sua escolta.

— Boa noite, capitão.

Yoshinaka voltou-se para Mariko. — Sou responsável pela senhora e por ele, por isso, por favor, diga-lhe que ordenei que dois homens durmam no quarto dele à noite, como guardas pessoais. Além disso, haverá dez sentinelas em serviço a noite toda. Estarão o tempo todo à sua volta. Tenho cem homens no total. — Muito bem, capitão. Mas, desculpe, seria melhor não postar nenhum homem no quarto do Anjin-san. Eles têm o costume, muito sério, aliás, de dormirem sozinhos, ou sozinhos com uma dama. Minha criada provavelmente ficará com ele, portanto estará protegido. Por favor, mantenha os guardas por perto, mas não demais, assim ele não ficará perturbado.

Yoshinaka coçou a cabeça e franziu o cenho. — Muito bem, senhora. Sim, concordo com isso, embora o meu jeito seja mais sensato. Então, desculpe, por favor, peça-lhe que, nas próximas noites, não dê as caminhadas dele. Até que cheguemos a Yedo eu sou o responsável, e quando sou responsável por pessoas muito importantes, fico muito nervoso. — Curvou-se rigidamente e se afastou.

— O capitão pediu que o senhor não caminhe por aí sozinho durante a nossa viagem. Se se levantar à noite, leve sempre um samurai consigo, Anjin-san. Ele disse que isso o ajudaria.

— Está bem. Sim, farei isso. — Blackthorne observou-o afastando-se.

"O que mais ele disse? Ouvi alguma coisa sobre dormir? Não consegui compreendê-lo muito... " Ele parou. Kiku vinha saindo. Estava usando um roupão de banho com uma toalha decorosamente envolta em torno do cabelo. Descalça, saracoteando na direção da casa de banho alimentada pela nascente quente, fez-lhes uma meia mesura, e acenou alegremente. Eles retribuíram à saudação.

Blackthorne admirou suas longas pernas e o modo ondulante do caminhar até que ela desaparecesse. Sentiu os olhos de Mariko a observá-lo atentamente, e voltou-se para ela. — Não — disse suavemente, e meneou a cabeça.

Ela riu. — Pensei que poderia ser difícil... poderia ser desconfortável para o senhor tê-la apenas como companheira de viagem, depois de um "travesseiro" tão especial.

— Desconfortável, não. Pelo contrário, muito agradável. Tenho lembranças muito agradáveis. Estou contente de que ela pertença ao Senhor Toranaga agora. Isso torna tudo fácil, para ela e para mim. E para todos. — Ia acrescentar "todo mundo, menos Omi", mas pensou melhor e disse: — Afinal de contas, para mim ela foi apenas um presente glorioso e muito especial. Nada mais. Neh?

— Ela foi um presente, sim.

Ele teve vontade de tocar Mariko. Mas não o fez. Em vez disso, voltou-se e contemplou o desfiladeiro, sem ter certeza do que lera por trás dos olhos dela. A noite obscurecia o passo agora. E as nuvens. A água pingava delicadamente do telhado. — O que mais o capitão disse?

— Nada de importância, Anjin-san.


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