CAPÍTULO 42
Chegaram a Yokosé pelo meio-dia. Buntaro já havia interceptado Zataki na noite anterior e, conforme ordenara Toranaga, dera-lhe as boas-vindas com grande formalidade. — Pedi-lhe que acampasse fora da aldeia, ao norte, senhor, até que o local de encontro pudesse ser preparado — disse Buntaro. — A reunião formal ocorrerá aqui esta tarde, se lhe aprouver — acrescentou, inexpressivo. — Achei que a hora do Bode seria auspiciosa.
— Bom.
— Ele queria encontrá-lo esta noite, mas eu rejeitei isso. Disse-lhe que o senhor ficaria "honrado" em encontrá-lo hoje ou amanhã, como ele quisesse, mas não após escurecer.
Toranaga grunhiu uma aprovação, mas continuou montado no seu cavalo coberto de suor. Usava um peitoral de armas, elmo, e uma leve armadura de bambu, assim como a sua escolta, igualmente esgotada pela viagem. Novamente olhou em torno com cuidado. A clareira fora muito bem escolhida, sem possibilidade alguma de emboscada. Não havia árvores ou casas nas proximidades, que pudessem ocultar arqueiros ou mosqueteiros. A leste da aldeia o terreno era plano e um pouco mais alto. Norte, oeste e sul estavam guardados pela aldeia e pela ponte de madeira que se estendia sobre o rio de curso rápido. Ali na garganta a água redemoinhava, o leito infestado de rochas. A leste, atrás dele e dos cavaleiros exaustos e transpirando, o caminho subia abruptamente o passo até o cume enevoado, a cinco ris de distância. Montanhas erguiam-se acima de tudo ao redor, muitas vulcânicas, a maioria com os picos nas nuvens. No centro da clareira, um estrado de doze esteiras fora especialmente erguido sobre colunas baixas. Cobria-o um alto dossel de junco. Os artesãos não pareciam ter tido pressa. Duas almofadas de brocado estavam colocadas uma diante da outra sobre os tatamis.
— Tenho homens ali, ali e ali — continuou Buntaro, apontando com o arco para todos os penhascos que davam para o vale. — O senhor pode vê-los a muitas ris em todas as direções, senhor. Boas posições de defesa — a ponte e a aldeia inteira estão cobertas. A leste a sua retirada está garantida por mais homens. É claro que a aldeia está bem vigiada por sentinelas, e deixei uma "guarda de honra" de cem homens no acampamento dele.
— O Senhor Zataki está lá agora?
— Não, senhor. Escolhi uma hospedaria para ele e seus escudeiros nos arredores da aldeia, a norte, digna da posição dele, convidei-o a desfrutar dos banhos lá mesmo. A hospedaria é isolada e está protegida. Sugeri que o senhor iria à nascente Shuzenji amanhã e ele seria seu convidado. — Buntaro indicou uma hospedaria de um andar na extremidade da clareira, que dava para a melhor vista, perto de uma fonte pequena que efervescia da rocha num banho natural. — Aquela hospedaria é sua, senhor. — Em frente da estalagem, estavam um grupo de homens, todos ajoelhados, de cabeça bem baixa, curvados imóveis na direção deles. — São o chefe e os anciãos da aldeia. Eu não sabia se o senhor iria querer vê-los imediatamente.
— Mais tarde. — O cavalo de Toranaga relinchou, cansado, sacudiu a cabeça, os freios retinindo. Ele o afagou e, agora totalmente satisfeito com a segurança, fez sinal a seus homens e desmontou. Um dos samurais de Buntaro segurou-lhe as rédeas — o samurai, como Buntaro e todos eles, de armadura, armado para combate, e de prontidão.
Toranaga espreguiçou-se e fez flexões para relaxar os músculos com cãibras das costas e das pernas. Viera na dianteira desde Anjiro em marcha forçada, parando apenas para trocar as montarias. O resto do comboio de bagagem, sob o comando de Omi — palanquins e carregadores —, ainda estava bem longe, enfileirado na estrada que descia do cume. A estrada de Anjiro serpeava ao longo da costa, depois se ramificava. Eles haviam tomado o caminho oeste, para o interior, e subido resolutamente através de florestas luxuriantes com caça abundante, o monte Omura à direita, os picos da cordilheira vulcânica Amagi à esquerda, elevando-se quase a cinco mil pés. A cavalgada o havia alegrado — finalmente um pouco de ação! Parte da jornada fora através de uma região tão boa para falcoar, que ele se prometeu que um dia caçaria por toda Izu.
— Bom. Sim, muito bom — disse ele por sobre o alarido dos seus homens desmontando e tagarelando e se separando. — Você agiu bem.
— Se me quiser honrar, senhor, rogo-lhe que me permita destruir o Senhor Zataki e seus homens imediatamente. — Ele o insultou?
— Não... pelo contrário, seus modos foram dignos de um cortesão, mas a bandeira sob a qual ele viaja é uma traição contra senhor.
— Paciência. Quantas vezes tenho que lhe dizer? — disse Toranaga, sem grosseria.
— Tenho medo sempre, senhor — replicou Buntaro, asperamente. — Por favor, desculpe-me.
— Você costumava ser amigo dele.
— Ele costumava ser seu aliado.
— Ele lhe salvou a vida em Odawara.
— Estávamos do mesmo lado em Odawara — disse Buntaro gelidamente, depois explodiu: — Como ele pode lhe fazer isso, senhor? Seu próprio irmão! O senhor não o favoreceu, não lutou do mesmo lado que ele, a vida toda?
— As pessoas mudam. — Toranaga concentrou toda a atenção no estrado. Delicadas cortinas de seda tinham sido penduradas às vigas sobre a plataforma como decoração. Borlas ornamentais de brocado, combinando com as almofadas, formavam um friso agradável, e dos quatro pilares dos cantos pendiam borlas maiores. — Está rico demais e dá ao encontro importância excessiva — disse ele. — Deixe-o mais simples. Remova as cortinas, todas as borlas e almofadas, devolva-as aos mercadores, e se eles não derem o dinheiro de volta ao mestre quarteleiro, diga-lhe que as venda. Providencie quatro almofadas, não duas, simples, de palha.
— Sim, senhor.
O olhar de Toranaga deu com a fonte e ele se aproximou de lá. A água, fumegante e sulfurosa, chiava quando ele se aproximou de uma fenda nas rochas. Seu corpo doía por um banho. — E o cristão? — perguntou.
— Senhor?
— Tsukku-san, o padre cristão?
— Oh, ele! Está em algum lugar na aldeia, mas do outro lado da ponte. Está proibido de vir a este lado sem a sua permissão. Por quê? É importante? Ele disse alguma coisa sobre como ficaria honrado em vê-lo, quando fosse conveniente. O senhor o quer aqui agora?
— Ele está sozinho?
Buntaro fez um muxoxo. — Não. Tem uma escolta de vinte acólitos, todos tonsurados como ele. Todos homens de Kyushu, senhor, todos bem-nascidos e todos samurais. Todos bem montados, mas sem armas. Mandei revistá-los completamente.
— E ele?
— Claro que a ele também, mais que a qualquer outro. Havia quatro pombos-correio na sua bagagem. Confisquei-os.
— Bom. Destrua-os ... Algum imbecil fez isso por engano, sinto muito, neh?
— Compreendo. Quer que eu mande buscá-lo agora? — Mais tarde. Vê-lo-ei mais tarde.
Buntaro franziu o cenho. — Foi errado revistá-lo?
Toranaga meneou a cabeça e distraidamente olhou para trás, para o cume da montanha, perdido em pensamento. Depois disse: — Mande um par de homens em quem possamos confiar vigiar o Regimento de Mosquetes.
— Já fiz isso, senhor. — O rosto de Buntaro acendeu-se com uma satisfação austera. — E a guarda pessoal do Senhor Yabu contém alguns dos nossos ouvidos e olhos. Ele não vai poder peidar sem que o senhor saiba, se for esse o seu desejo.
— Bom. — A cabeça do comboio de bagagem, ainda bem distante, contornou uma curva no caminho sinuoso. Toranaga podia ver os três palanquins, Omi cavalgando na liderança, conforme o ordenado, o Anjin-san ao seu lado, também cavalgando com desembaraço.
Toranaga deu-lhes as costas. — Trouxe sua esposa comigo. — Sim, senhor.
— Ela está me pedindo permissão para ir a Osaka.
Buntaro encarou-o, mas não disse nada. Depois olhou de soslaio para as figuras discerníveis.
— Dei-lhe a minha aprovação... desde que, naturalmente, você também aprove.
— Tudo o que o senhor aprovar, eu aprovarei — disse Buntaro.
— Posso permitir-lhe que vá por terra, de Mishima, ou que acompanhe o Anjin-san até Yedo, e vá de lá para Osaka, por mar. O Anjin-san concordou em ser responsável por ela... se você aprovar.
— Seria mais seguro por mar — Buntaro estava ardendo por dentro.
— Tudo depende da mensagem do Senhor Zataki. Se Ishido declarou formalmente guerra contra mim, então é claro que devo proibi-lo. Senão, sua esposa pode seguir amanhã ou depois de amanhã, se você aprovar.
— Concordo com qualquer coisa que o senhor decida.
— Esta tarde transfira os seus deveres a Naga-san. É um bom momento para você e sua esposa fazerem as pazes.
— Por favor, desculpe-me, senhor. Devo ficar com os meus homens. Imploro-lhe que me deixe com os meus homens. Até que o senhor esteja longe, em segurança.
— Esta noite você transferirá seus deveres ao meu filho. Você e sua esposa se reunirão a mim à refeição noturna. Ficarão na hospedaria. Farão as pazes.
Buntaro olhava fixamente para o chão. Depois disse, ainda mais rígido: — Sim, senhor.
— Ordeno-lhe que tente fazer as pazes — disse Toranaga. Pretendia acrescentar "uma paz honrosa é melhor do que a guerra, neh?" Mas isso não era verdade, poderia ter dado início a uma discussão filosófica, e ele estava cansado e não queria discussões, apenas um banho e repouso. — Agora vá buscar o chefe da aldeia!
O cabeça e os anciãos da aldeia caíram uns sobre os outros na sua pressa de se curvar diante dele, dando-lhe as boas-vindas do modo mais extravagante. Toranaga disse-lhes bruscamente que a conta que apresentariam ao seu mestre quarteleiro quando ele partisse naturalmente seria justa e razoável. — Neh?
— Hai — disseram em coro humildemente, abençoando os deuses pela inesperada boa fortuna e pelos gordos lucros que aquela visita inevitavelmente lhes traria. Com muitas mesuras e cumprimentos mais, dizendo de como estavam orgulhosos e honrados de poderem servir ao maior daimio do império, o chefe da aldeia, um velho alegre, conduziu-o até a hospedaria.
Toranaga inspecionou-a completamente por entre multidões de mesuras, criadas sorridentes de todas as idades, a nata da aldeia. Havia dez aposentos em torno de um jardim indefinível, com uma pequena casa de chá no centro, cozinhas nos fundos e, a oeste, aninhada nas rochas, uma grande casa de banho alimentada pelas fontes naturais. A hospedaria inteira era rodeada por uma cerca caprichada — um caminho coberto levava ao banho — e fácil de defender.
— Não necessito da hospedaria inteira, Buntaro-san — disse ele, novamente em pé na varanda. — Três aposentos serão suficientes: um para mim, um para o Anjin-san e um para as mulheres. Fique você com um quarto. Não há necessidade de pagar pelo resto.
— O meu mestre quarteleiro diz que fez um negócio muito bom pela hospedaria inteira, senhor, dia a dia, melhor do que metade do preço, e ainda está fora de estação. Aprovei o custo, por causa da sua segurança.
— Muito bem — concordou Toranaga relutante. — Mas quero ver a conta antes de partirmos. Não há necessidade de desperdiçar dinheiro. É melhor encher os quartos com guardas, quatro em cada aposento.
— Sim, senhor. — Buntaro já havia decidido fazer isso. Observou Toranaga afastar-se a passos largos com dois guarda-costas, rodeado pelas quatro criadas mais bonitas, indo para o seu quarto na ala leste. Que mulheres? perguntou-se ele, sombriamente. Que mulheres precisavam do quarto? Fujiko? Não importa, pensou, cansado, logo saberei.
Uma criada passou alvoroçada. Sorriu-lhe, alegre, e ele retribuiu mecanicamente. Era jovem, bonita, tinha uma pele macia, e ele dormira com ela na noite anterior. Mas a união não lhe dera prazer, e embora ela fosse hábil, animada e bem treinada, a luxúria dele desaparecera — ele nunca sentira desejo por ela. Finalmente, por causa das boas maneiras fingira atingir o auge, assim como ela fingira, para deixá-lo logo depois.
Ainda meditando saiu do pátio, para apreciar a estrada.
Por que Osaka?
À hora do Bode, as sentinelas da ponte se afastaram para o lado. O cortejo começou a passar. Primeiro vinham batedores portando bandeiras decoradas com o todo-poderoso emblema dos regentes, depois o rico palanquim, e finalmente mais guardas.
Aldeãos se curvaram, todos de joelhos. Tanta riqueza e pompa os deixava secretamente curiosos. Precavidamente o chefe da aldeia perguntara se devia reunir toda a sua gente para honrar a ocasião. Toranaga mandara uma mensagem dizendo que todos os que não estivessem trabalhando poderiam assistir, com a permissão dos respectivos amos. Então o chefe, com cautela ainda maior, selecionara uma delegação que incluía velhos e jovens obedientes, exatamente o suficiente para fazer uma demonstração — embora todos os adultos tivessem gostado de estar presentes —, mas não o suficiente para ir contra as ordens do grande daimio. Todos os que podiam estavam assistindo às escondidas, por trás de janelas e portas.
Saigawa Zataki, senhor de Shinano, era mais alto do que Toranaga, e cinco anos mais jovem, com a mesma largura de ombros e nariz proeminente. Mas tinha o estômago chato, a barba curta, preta e densa, os olhos meras fendas no rosto. Embora parecesse haver uma fantástica semelhança entre os meios irmãos quando estavam longe, agora que estavam juntos eram absolutamente diferentes. O quimono de Zataki era luxuoso, a armadura cintilante e cerimonial, as espadas bem usadas.
— Bem-vindo, irmão — Toranaga avançou do estrado e se curvou. Estava usando o mais simples dos quimonos e sandálias de palha de soldado. E as espadas. — Por favor, desculpe-me por recebê-lo assim informalmente, mas vim tão depressa quanto pude.
— Por favor, desculpe-me por incomodá-lo. Está com boa aparência, irmão. Muito boa. — Zataki desceu do palanquim e retribuiu a reverência dando início às intermináveis e meticulosas formalidades do cerimonial que agora dirigia a ambos.
— Por favor, tome esta almofada, Senhor Zataki.
— Por favor, desculpe-me, eu ficaria honrado se o senhor se sentasse primeiro, Senhor Toranaga.
— É muito gentil. Mas, por favor, honre-me sentando-se primeiro.
Continuaram com o jogo que já haviam jogado tantas vezes, um com o outro e com os amigos e inimigos, ascendendo à escada do poder, apreciando as regras que governavam cada movimento e cada frase, que protegiam a honra individual de cada um, de modo que nenhum deles pudesse cometer um engano, se comprometer ou comprometer a missão.
Finalmente sentaram-se um diante do outro sobre as almofadas, à distância de duas espadas um do outro. Buntaro postou-se atrás à esquerda de Toranaga. O principal assistente de Zataki, um velho samurai grisalho, também se pôs atrás, à esquerda do amo. Em torno do estrado, a vinte passos, estavam samurais de Toranaga, sentados em fileiras, todos deliberadamente ainda vestidos com os trajes de viagem, mas com as armas em perfeitas condições. Omi estava sentado no chão à extremidade do estrado, Naga no lado oposto. Os homens de Zataki estavam vestidos formalmente, e ricamente, as capas imensas e com ombros em forma de asas presas com fivelas de prata. Mas estavam igualmente bem armados. Acomodaram-se, também a vinte passos de distância.
Mariko serviu o chá cerimonial e houve uma conversa formal e inócua entre os dois irmãos. No momento correto, Mariko curvou-se e saiu, Buntaro doloridamente consciente da presença dela e imensamente orgulhoso da sua graça e beleza. Depois, cedo demais, Zataki disse bruscamente: — Trouxe ordens do conselho de regentes.
Um silêncio repentino caiu sobre a área. Todos, até os seus homens, ficaram agastados com a falta de modos de Zataki, com o modo insolente como dissera "ordens" e não "mensagem", e com a sua falha não esperando que Toranaga perguntasse "Como posso ser-lhe útil?", conforme exigia o cerimonial.
Naga disparou os olhos do braço da espada de Zataki para o pai. Viu o rubor no pescoço de Toranaga, o que era sinal infalível de uma explosão iminente. Mas o seu rosto continuou tranqüilo, e Naga ficou atônito quando ouviu a resposta controlada: — Desculpe, o senhor tem ordens? Para quem, Irmão? Certamente tem uma mensagem?
Zataki sacou com violência dois pequenos rolos da manga. A mão de Buntaro quase disparou para a espada à espera ante a rapidez inesperada, pois o ritual exigia que todos os movimentos fossem lentos e calculados. Toranaga não se movera. Zataki rompeu o selo do primeiro rolo e leu numa voz alta, insensível: — "Por ordem do conselho de regentes, em nome do Imperador Go-Nijo, o Filho do Céu: saudamos nosso ilustre vassalo Yoshi-noh-Minowara e convidamo-lo a prestar obediência diante de nós em Osaka, incontinenti, e convidamo-lo a informar nosso ilustre embaixador, o regente Senhor Saigawa Zataki, se nosso o convite é aceito ou recusado — incontinenti".
Levantou os olhos e, em voz igualmente alta, continuou: — Está assinado por todos os regentes e selado com o Grande Selo do reino. — Com arrogância, colocou o rolo diante dele. Toranaga fez sinal a Buntaro, que avançou, curvou-se profundamente para Zataki, pegou o rolo, voltou-se para Toranaga, curvou-se de novo. Toranaga aceitou o rolo e fez sinal a Buntaro que voltasse a seu lugar.
Toranaga estudou o rolo interminavelmente.
— Todas as assinaturas são autênticas — disse Zataki. — O senhor aceita ou recusa?
Numa voz controlada, de modo que apenas os que estavam no estrado e Omi e Naga pudessem ouvi-lo, Toranaga disse:
— Por que eu não lhe tiro a cabeça pelas maneiras abomináveis? — Porque sou filho de minha mãe — replicou Zataki. — Isso não o protegerá se continuar assim. — Então ela morrerá antes do tempo. — O quê?
— A senhora nossa mãe encontra-se em Takato. — Takato era a inexpugnável fortaleza e capital de Shinano, a província de Zataki. — Lamento que o corpo dela tenha que permanecer lá para sempre.
— Blefe! Você a honra tanto quanto eu.
— Pelo espírito imortal dela, Irmão, por mais que a honre, detesto ainda mais o que você está fazendo ao reino.
— Não viso a mais território e...
— Você visa a destruir a sucessão.
— Está errado de novo, e sempre protegerei o meu sobrinho de traidores.
— Você visa à queda do herdeiro. É nisso que acredito e por isso resolvi continuar vivo e fechar Shinano e a estrada nordeste contra você, custe o que custar, e continuarei a fazer isso até que Kwanto esteja em mãos amistosas, custe o que custar.
— Nas suas mãos, Irmão?
— Quaisquer mãos seguras, o que exclui as suas, Irmão.
— Confia em Ishido?
— Não confio em ninguém, você me ensinou isso. Ishido é Ishido, mas a lealdade dele é inquestionável. Até você admitirá isso.
— Admitirei que Ishido está tentando me destruir e dividir reino, que usurpou o poder e que está infringindo o testamento do táicum.
— Mas você tramou com o Senhor Sugiyama para aniquilar o conselho de regentes. Neh?
A veia da testa de Zataki latejava como um verme preto. — O que você pode dizer? Um dos conselheiros dele admitiu a traição: que você conspirou com Sugiyama para que ele aceitasse o Senhor Ito no seu lugar, depois renunciasse na véspera da primeira reunião e fugisse à noite, e assim lançasse o reino em confusão. Ouvi a confissão ... Irmão.
— Você foi um dos assassinos? Zataki corou. — Ronins fanáticos mataram Sugiyama, não eu, nem qualquer dos homens de Ishido!
— Curioso que você tenha tomado o lugar dele como regente tão depressa, neh?
— Não. Minha linhagem é tão antiga quanto a sua. Mas não ordenei essa morte, nem Ishido. Ele jurou isso pela sua honra de samurai. Eu também. Os ronins mataram Sugiyama, mas ele merecia morrer.
— Por tortura, desonrado numa cela imunda, seus filhos e consortes esquartejados diante dele?
— Isso é um boato espalhado por descontentes infames, talvez pelos seus espiões, para desacreditar o Senhor Ishido e, através dele, a Senhora Ochiba e o herdeiro. Não há prova disso.
— Olhe os corpos deles.
— Os ronins incendiaram a casa. Não há corpos.
— Muito conveniente, neh? Como é que você pode ser tão crédulo? Você não é um camponês estúpido!
— Recuso-me a sentar aqui e ouvir esse lixo. Dê-me a sua resposta agora. E então ou me tire a cabeça, e ela morre, ou deixe-me ir. — Zataki inclinou-se para a frente. — Poucos momentos depois de a minha cabeça ter rolado dos ombros, dez pombos correio estarão voando para o norte, em direção a Takato. Tenho homens de confiança ao norte, leste e oeste, a um dia de marcha daqui, fora do seu alcance, e se eles falharem, há mais homens em segurança do outro lado das suas fronteiras. Se você me tirar a cabeça, mandar me assassinar ou se eu morrer em Izu — seja qual for a razão —, ela também morrerá. Agora, ou você me corta a cabeça ou vamos terminar a entrega dos rolos e parto imediatamente de Izu. Escolha!
— Ishido assassinou o Senhor Sugiyama. Oportunamente lhe darei a prova. Isso é importante, neh? Só preciso de um pouco...
— Você não tem mais tempo! "Incontinenti", diz a mensagem. Claro que se você se recusar a obedecer, ótimo, assim será feito. Olhe — Zataki colocou o segundo rolo sobre os tatamis —, aqui está o seu impedimento formal e a ordem para cometer seppuku, que você tratará com desprezo igual — que Buda o perdoe! Agora está tudo feito. Partirei imediatamente, e na próxima vez que nos virmos será num campo de batalha, e por Buda, antes do pôr-do-sol desse dia, prometi a mim mesmo que verei a sua cabeça na ponta de um chuço.
Toranaga mantinha os olhos fixos no adversário. — O Senhor Sugiyama era seu amigo e meu. Companheiro nosso, um samurai tão honrado quanto jamais existiu. A verdade sobre a morte dele deveria ser de importância para você.
— A sua tem mais importância, Irmão.
— Ishido o sugou como um bebê faminto na teta da mãe.
Zataki voltou-se para o seu conselheiro. — Pela sua honra de samurai, eu postei homens e qual é a mensagem?
O velho samurai, grisalho e digno, chefe dos confidentes de Zataki, e bem conhecido de Toranaga como homem honrado, sentia-se aborrecido e envergonhado pela ruidosa demonstração de ódio, assim como todos os que ouviam. — Sinto muito, senhor — disse ele, num sussurro sufocado, curvando-se para Toranaga —, mas meu amo, naturalmente, está dizendo a verdade. Como se poderia questionar isso? E, por favor, desculpe-me, mas é meu dever, com toda a honra e humildade, assinalar-lhes que... essa falta de polidez tão surpreendente e vergonhosa, entre os senhores, não é digna da sua posição nem da solenidade desta ocasião. Se os seus vassalos... se pudessem ter ouvido... duvido que qualquer um dos senhores pudesse tê-los contido. Esqueceram-se do seu dever como samurais e do seu dever para com os seus homens. Por favor, desculpem-me — ele se curvou para os dois —, mas isto tinha que ser dito. — E acrescentou: — Todas as mensagens foram idênticas, Senhor Toranaga, e sob o selo oficial do Senhor Zataki: "Matem a senhora minha mãe imediatamente".
— Como posso provar que não estou tentando destruir o herdeiro? — perguntou Toranaga ao irmão.
— Abdique imediatamente de todos os seus títulos e poder em favor do seu filho e herdeiro, o Senhor Sudara, e cometa seppuku hoje. Então eu e os meus homens, até o último, apoiaremos Sudara como senhor do Kwanto.
— Considerarei o que você disse.
— Hein?
— Considerarei o que você disse — repetiu Toranaga com mais firmeza. — Encontramo-nos amanhã à mesma hora, se lhe aprouver.
O rosto de Zataki contorceu-se. — Isso é mais um dos seus truques? O que há para justificar outro encontro?
— O que você disse e isto — Toranaga levantou o rolo que tinha na mão. — Dar-lhe-ei a minha resposta amanhã.
— Buntaro-san! — Zataki apontou o segundo rolo. — Por favor, dê isto ao seu amo.
— Não! — A voz de Toranaga repercutiu em torno da clareira. Depois, com grande cerimônia, acrescentou alto: — Fico formalmente honrado em aceitar a mensagem do conselho e submeterei a minha resposta ao seu ilustre embaixador, meu irmão, o senhor de Shinano, amanhã a esta hora.
Zataki encarou-o desconfiado. — Que possível resp...
— Por favor, desculpe-me, senhor -— interrompeu o velho samurai baixinho, com uma dignidade grave, novamente mantendo a conversa em particular —, sinto muito, mas o Senhor Toranaga está perfeitamente correto em sugerir isso. E uma escolha solene que o senhor lhe deu, uma escolha que não está contida nos pergaminhos. E justo e honrado que se dê a ele o tempo que solicita.
Zataki pegou o segundo pergaminho e o empurrou de volta à manga. — Muito bem. Concordo. Senhor Toranaga, por favor, desculpe-me os maus modos. Por último, por favor, diga-me onde está Kasigi Yabu. Tenho um pergaminho para ele. Só um, no caso dele.
— Eu o mandarei ao senhor.
O falcão fechou as asas e caiu a mil pés no céu vespertino, chocando-se contra o pombo em fuga com uma explosão de penas, depois segurou-o nas garras e carregou-o para o solo, novamente caindo como uma pedra. Então, a poucos pés do chão, soltou a presa agora morta, freou furiosamente e pousou perfeitamente. — Ic-ic-ic-ic-üicc! — guinchou a ave, arrepiando as penas do pescoço com orgulho, as garras dilacerando a cabeça do pombo no seu êxtase da conquista.
Toranaga, com Naga como escudeiro, saiu a galope. O daimio deslizou da sela. Gentilmente chamou a ave de volta ao punho. Obediente, ela subiu para a luva. Imediatamente foi recompensada com um pedaço de carne de uma presa anterior. Ele lhe colocou o capuz, apertando as correias com os dentes. Naga pegou o pombo e o colocou na sacola de caça cheia pela metade que pendia da sela do seu pai, depois se voltou e chamou com gestos os batedores e guardas afastados.
Toranaga montou novamente, o falcão confortavelmente na sua luva, seguro pelos delgados pioses de couro. Ele levantou os olhos para o céu, avaliando a claridade que ainda havia.
No fim da tarde, o sol aparecera, e agora, no vale, o dia morrendo rapidamente, o sol de há muito oculto pelo pico ocidental, estava frio e agradável. As nuvens estavam tomando rumo norte, empurradas pelo vento dominante, flutuando sobre os picos das montanhas e ocultando muitos. Àquela altitude, o ar era limpo e suave.
— Devemos ter um bom dia amanhã, Naga-san. Sem nuvens, imagino. Acho que caçarei assim que amanhecer.
— Sim, Pai. — Naga o observava, perplexo, com medo de fazer perguntas como sempre, mas querendo saber tudo. Não conseguia entender como o pai podia estar tão despreocupado depois de uma reunião tão hedionda. Despedir-se de Zataki com a cerimônia devida, depois, imediatamente, convocar seus gaviões, batedores e guardas e levá-los para as colinas ondulantes além da floresta, parecia a Naga uma extraordinária demonstração de autocontrole. O simples fato de pensar em Zataki fazia a pele de Naga arrepiar-se, e ele sabia que o velho conselheiro tinha razão: se um décimo da conversa tivesse sido ouvido, os samurais teriam saltado para defender a honra dos respectivos senhores. Não fosse pela ameaça que pendia sobre a cabeça da sua venerada avó, Naga teria se atirado a Zataki pessoalmente. Acho que é por isso que meu pai é o que é, e está onde está, pensou ele...
Seus olhos perceberam cavaleiros surgindo da floresta abaixo e galopando na direção deles sobre os contrafortes ondulantes. Além do verde escuro da floresta, o rio era uma faixa negra enroscando-se. As luzes nas hospedarias piscavam como vagalumes. — Pai!
— Hein? Ah, sim, estou vendo agora. Quem são?
— Yabu-san, Omi-san e... oito guardas.
— Seus olhos são melhores do que os meus. Ah, sim, agora os reconheço.
Sem pensar, Naga disse: — Eu não teria deixado Yabu-san ir sozinho ao encontro do Senhor Zataki sem... — Parou e gaguejou: — Por favor, desculpe-me.
— Por que não teria mandado Yabu-san sozinho?
Naga se amaldiçoou por abrir a boca e estremeceu sob o olhar fixo de Toranaga. — Por favor, desculpe-me, mas porque eu nunca saberia que acordo secreto eles teriam feito. Ele poderia fazer isso, Pai, facilmente. Eu os teria mantido separados... por favor, desculpe-me. Não confio nele.
— Se Yabu-san e Zataki-san planejam traição pelas minhas costas, eles o farão, mande eu uma testemunha ou não. Algumas vezes é mais prudente dar linha extra à vítima... é assim que se pega um peixe, neh?
— Sim, por favor, desculpe-me.
Toranaga percebeu que o filho não havia compreendido, nunca compreenderia, seria sempre meramente um falcão para ser lançado contra um inimigo, veloz, voraz e mortalmente.
— Fico contente de que você compreenda, meu filho — disse para encorajá-lo, conhecendo-lhe as boas qualidades e valorizando-as. — Você é um bom filho — acrescentou, falando sinceramente.
— Obrigado, Pai — disse Naga, cheio de orgulho com o raro elogio. — Só espero que o senhor perdoe minhas tolices e me ensine a servi-lo melhor.
— Você não é tolo — disse Toranaga, quase acrescentando "Yabu é que é". Quanto menos gente souber, melhor, e não é necessário esforçar a sua mente. Você é tão jovem... meu filho mais novo, não fosse o seu meio irmão, Tadateru. Quantos anos ele tem? Ah, sete, sim, deve estar com sete.
Observou um momento os cavaleiros que se aproximavam. — Como está sua mãe, Naga?
— Como sempre, a mulher mais feliz do mundo. Só me deixa vê-Ia uma vez por ano. O senhor não pode convencê-la a mudar?
— Não — disse Toranaga. — Ela nunca mudará.
Toranaga sempre se animava quando pensava em ChanoTsuboné, sua oitava consorte oficial e mãe de Naga. Riu consigo mesmo ao se lembrar do humor grosseiro dela, suas faces com covinhas, o traseiro insolente, o modo como ondulava e o entusiasmo com que "travesseirava".
Fora a viúva de um fazendeiro das proximidades de Yedo, que o atraíra vinte anos atrás. Ficara com ele três anos, depois pedira permissão para retornar à terra. Ele lhe permitira ir-se. Agora vivia numa boa fazenda perto do lugar onde nascera — gorda e contente, uma monja budista, honrada por todos e sem obrigação para com ninguém. De vez em quando ia vê-Ia e então riam muito juntos, sem motivo, amigos.
— Ah, é uma boa mulher — disse Toranaga.
Yabu e Omi chegaram e desmontaram. A dez passos, pararam e se curvaram.
— Ele me deu um pergaminho — disse Yabu, enraivecido, brandindo-o. — "...Convidamo-lo a deixar Izu imediatamente e rumar para Osaka hoje, e apresentar-se no Castelo de Osaka para uma audiência, ou todas as suas terras ficam confiscadas e o senhor, conseqüentemente, declarado fora da lei." — Amarrotou o rolo na mão e atirou-o ao chão. — "Hoje"!
— Então o senhor deve partir imediatamente — disse Toranaga, repentinamente muito bem-humorado ante a truculência e estupidez de Yabu.
— Senhor, imploro-lhe — começou Omi apressadamente, caindo de joelhos —, o Senhor Yabu é seu vassalo devotado e imploro-lhe humildemente que não escarneça dele. Perdoe-me por ser tão rude, mas o Senhor Zataki ... Perdoe-me por ser tão rude.
— Yabu-san, desculpe a observação, por favor, tinha a intenção de ser cordial — disse Toranaga, amaldiçoando o seu lapso.
— Devemos todos ter senso de humor ante essas mensagens, neh?
— Chamou o falcoeiro, deu-lhe a ave do punho, e dispensou a ele e aos batedores. Depois afastou todos os samurais do raio de audição, exceto Naga, acocorou-se e os mandou fazer o mesmo. — Talvez fosse melhor me contar o que aconteceu.
— Quase não há nada a contar — disse Yabu. — Fui vê-lo. Recebeu-me com o mínimo absoluto de cortesia. Primeiro houve "saudações" do Senhor Ishido e um convite brusco para me aliar secretamente a ele, planejar o seu assassinato imediato, e matar cada samurai de Toranaga em Izu. Naturalmente me recusei a ouvir, e imediatamente — imediatamente —, sem qualquer cortesia, ele me estendeu isto! — Os dedos dele apontaram beligerantemente na direção do pergaminho. — Se a sua ordem direta não o estivesse protegendo, eu o teria feito em pedaços na hora! Solicito-lhe que anule essa ordem. Não posso viver com essa vergonha. Tenho que me vingar!
— Isso foi tudo o que aconteceu?
— Não é o suficiente?
Toranaga passou por cima da rudeza de Yabu e olhou carrancudo para Omi. — Você merece ser censurado, neh? Por que não teve a inteligência de proteger melhor o seu senhor? Supõe-se que você seja um conselheiro. Deveria ter sido o escudo dele. Deveria ter levado o Senhor Zataki a falar às claras tentando descobrir o que Ishido tem em mente, qual era o suborno, que planos eles têm. Supõe-se que você seja um conselheiro de valor. Teve uma oportunidade perfeita e desperdiçou-a como um simplório inexperiente!
Omi baixou a cabeça. — Por favor, desculpe-me, senhor.
— Eu poderia desculpá-lo, mas não vejo por que o Senhor Yabu deva fazer isso. Agora tem que agir, de um modo ou de outro.
— O quê? — disse Yabu.
— Por que outro motivo acha que fiz o que fiz? Para adiar... naturalmente, para adiar — disse Toranaga.
— Mas um dia? Que valor tem um dia? — perguntou Yabu.
— Quem sabe? Um dia para nós é um dia a menos para o inimigo. — Os olhos de Toranaga relampejaram de volta a Omi. — A mensagem de Ishido foi verbal ou por escrito?
Foi Yabu quem respondeu. — Verbal, é claro.
Toranaga mantinha o olhar penetrante fixo em Omi. — Você falhou no seu dever para com o seu senhor e para comigo. — Por favor, desculpe...
— O que foi que você disse exatamente? Omi não respondeu.
— Esqueceu-se da sua educação, também? O que foi que disse?
— Nada, senhor. Não disse nada.
— O quê?
— Ele não disse nada a Zataki porque não estava presente — rugiu Yabu. — Zataki pediu para falar comigo sozinho.
— Oh? — Toranaga ocultou o contentamento por Yabu ter tido que admitir o que ele já supunha, e que parte da verdade agora estava às claras. — Por favor, desculpe-me, Omi-san. Naturalmente presumi que você tivesse estado presente.
— O erro foi meu, senhor. Deveria ter insistido. O senhor tem razão, falhei em proteger o meu senhor — disse Omi. — Eu deveria ter sido mais enérgico. Por favor, desculpe-me. Yabusama, por favor, desculpe-me.
Antes que Yabu pudesse responder, Toranaga disse: — É claro que você está perdoado, Omi-san. Se o seu senhor rejeitou a sua companhia, isso é privilégio dele. O senhor rejeitou, Yabu-sama?
— Sim... sim, mas não achei que tivesse importância. O senhor acha que eu...
— Bem, o dano está feito agora. O que planeja fazer?
— Naturalmente ignorar a mensagem, senhor. — Yabu estava inquieto. — O senhor acha que eu poderia ter evitado pegá-la?
— É claro. Poderia ter negociado com ele por um dia. Talvez mais. Semanas até — acrescentou Toranaga, revolvendo a faca mais fundo na ferida, maliciosamente deliciado com o fato de a própria estupidez de Yabu tê-lo atirado ao anzol, e nem um pouco preocupado com a traição para a qual Yabu indubitavelmente fora atraído, bajulado, lisonjeado, ou ameaçado. — Sinto muito, mas está comprometido. Não tem importância, é como o senhor diz: "Quanto mais depressa todo mundo escolher posições, melhor". — Levantou-se. — Não há necessidade de voltar ao regimento esta noite. Vocês dois juntem-se a mim à refeição noturna. Providenciarei um entretenimento. — Para todo mundo, disse a si mesmo, com muita satisfação.
Os hábeis dedos de Kiku feriram um acorde, o plectro seguro com firmeza. Depois ela começou a cantar e a pureza da sua voz encheu a noite silenciosa. Estavam sentados no grande aposento que se abria para a varanda e o jardim, fascinados pelo extraordinário efeito que ela causava sob os archotes bruxuleantes, os fios de ouro do seu quimono captando a luz quando ela se curvava sobre o samisen.
Toranaga correu os olhos em torno momentaneamente. A um lado seu, Mariko estava sentada entre Blackthorne e Buntaro. Do outro, Omi e Yabu, lado a lado. O lugar de honra ainda estava vazio. Zataki fora convidado, mas naturalmente lamentara ter que declinar do convite, por estar mal de saúde, embora tivesse sido visto galopando pelas colinas a nordeste, e agora estivesse "travesseirando" com o seu vigor lendário. Naga e guardas escolhidos com muito cuidado estavam por toda parte. Gyoko vagava em algum lugar na obscuridade. Kiku-san estava ajoelhada na varanda de frente para eles, de costas para o jardim — minúscula, sozinha e esplêndida.
Mariko tinha razão, pensou Toranaga. A cortesã vale o dinheiro. Seu espírito estava fascinado por ela, sua preocupação com Zataki abrandada. Mando chamá-la de novo esta noite ou durmo sozinho? Sua virilidade levantou-se quando se lembrou da noite anterior.
— Então, Gyoko-san, deseja ver-me? — perguntara em seus aposentos particulares da fortaleza.
— Sim, senhor.
Ele acendera o bastão de incenso. — Por favor, prossiga.
Gyoko se curvara, mas ele mal tinha olhos para ela. Era a primeira vez que via Kiku de perto. A proximidade realçava-lhe os traços magníficos, ainda não marcados pelos rigores da sua profissão. — Por favor, toque um pouco de música enquanto conversamos — dissera, surpreso de que Gyoko estivesse preparada para conversar na frente dela.
Kiku obedecera imediatamente, mas a música não fora nada como a desta noite. Fora calmante, um acompanhamento para o negócio que estava sendo tratado. Esta noite era para excitar, para admirar, e para prometer.
— Senhor — começara Gyoko formalmente —, primeiro possa eu humildemente agradecer-lhe a honra que me faz, à minha pobre casa, e a Kiku-san, a primeira das minhas damas do Mundo do Salgueiro. O preço que pedi pelo contrato é insolente, eu sei, impossível, tenho certeza, não decidido até o amanhecer de amanhã, quando a Senhora Kasigi e a Senhora Toda, na sua sabedoria, decidirão. Se se tratasse de um assunto seu, o senhor teria decidido há muito tempo, pois o que significa o desprezível dinheiro para qualquer samurai, ainda mais para o maior daimio do mundo?
Gyoko fizera uma pausa para efeito. Ele não mordera a isca, mas movera o leque ligeiramente, o que podia ser interpretado como irritação com a expansividade dela, aceitação do cumprimento ou uma absoluta rejeição do preço solicitado, dependendo da disposição dela. Ambos sabiam com muita clareza quem é que realmente aprovava a quantia.
— O que é o dinheiro? Nada além de um meio de comunicação — continuara ela —, assim como a música de Kiku-san. O que, de fato, nós, do Mundo do Salgueiro, fazemos senão comunicar e entreter, iluminar a alma do homem, aliviar-lhe o fardo... — Toranaga reprimira uma resposta cáustica, lembrando-se de que a mulher comprara um bastão de tempo por quinhentos kokus, e quinhentos kokus mereciam uma audição atenta. Por isso deixou-a continuar e ouviu com um ouvido, deixando o outro gozar da música perfeita que o atingia no âmago do ser, afagando-o até uma sensação de euforia. Então fora rudemente arrastado de volta ao mundo da realidade, por alguma coisa que Gyoko dissera.
— O quê?
— Eu estava meramente sugerindo que o senhor devia tomar o Mundo do Salgueiro sob a sua proteção e mudar o curso da história.
— Como?
— Fazendo o que sempre fez, senhor, interessando-se pelo futuro do império inteiro, antes de se interessar pelo seu.
Ele deixou o ridículo exagero passar e disse a si mesmo que fechasse os ouvidos à música — que ele caíra na primeira armadilha dizendo a Gyoko que trouxesse a garota, na segunda deixando-se regalar com a beleza e o perfume dela, e na terceira permitindo-lhe tocar sedutoramente enquanto a ama falava.
— O Mundo do Salgueiro? O que há com o Mundo do Salgueiro?
— Duas coisas, senhor. Primeiro, atualmente o Mundo do Salgueiro está misturado com o mundo real, para prejuízo de ambos. Segundo, as nossas damas não podem, realmente, atingir a perfeição que todo homem tem o direito de esperar.
— Oh? — O perfume de Kiku, um perfume que ele nunca conhecera antes, chegou-lhe numa lufada. Fora escolhido à perfeição. Involuntariamente olhou para ela. Encontrou um meio sorriso, para ele apenas. Languidamente ela baixou os olhos e seus dedos feriram as cordas, enquanto ele os sentia em si mesmo intimamente.
Tentou se concentrar. — Desculpe, Gyoko-san. Estava dizendo?
— Por favor, desculpe-me por não ser clara, senhor. Primeiro: o Mundo do Salgueiro devia ser separado do mundo real. Minha casa de chá em Mishima fica numa rua ao sul da cidade, enquanto outras se espalham por toda a cidade. Acontece o mesmo em Kyoto e Nara, e por todo o império. Até em Yedo. Mas pensei que Yedo poderia estabelecer o padrão do mundo.
— Como? — Seu coração perdeu uma batida quando um acorde perfeito se encaixou.
— Todos os outros ofícios, sabiamente, têm ruas só para si, áreas para si. Nós deveríamos ser autorizados a ter o nosso próprio lugar, senhor. Yedo é uma cidade nova; o senhor poderia considerar a possibilidade de reservar um setor especial para o seu Mundo do Salgueiro. Traga todas as casas de chá para dentro dos muros dessa área e proíba qualquer casa de chá, ainda que modesta, do lado de fora.
Agora a mente dele se concentrou totalmente, pois ali estava uma idéia imensa. Era tão boa, que ele se censurou por não tê-la pensado por si mesmo. Todas as casas de chá e todas as cortesãs dentro de uma cerca e, em conseqüência, extraordinariamente fáceis de policiar, de observar, e de taxar, e todos os clientes igualmente fáceis de policiar, de observar e de espionar. A simplicidade estonteou-o. Ele também sabia da poderosa influência exercida pelas damas de primeira classe.
Mas seu rosto não traiu nada do seu entusiasmo. — Que vantagem há nisso, Gyoko-san?
— Teríamos a nossa própria corporação, senhor, com toda a proteção que uma corporação implica, uma corporação real num lugar, não algo espalhado, por assim dizer, uma corporação a que todos obedeceriam...
— Deveriam obedecer?
— Sim, senhor. Deveriam obedecer, pelo bem de todos. A corporação seria responsável por que os preços fossem justos e que os padrões fossem mantidos. Por que, em poucos anos, uma dama de segunda classe em Yedo se igualaria a uma de Kyoto, e assim por diante? Se o esquema tivesse valor em Yedo, por que não em cada cidade do seu domínio?
— Mas os proprietários que estivessem dentro da cerca dominariam tudo. São monopolistas, neh? Podem estipular preços de entrada extorsivos, neh, podem trancar as portas a muitos que têm um direito igual de trabalhar no Mundo do Salgueiro, neh?
— Sim, poderia ser assim, senhor. E acontecerá em alguns lugares, e em algumas épocas. Mas leis estritas podem facilmente ser feitas para garantir a justiça, e pareceria que o bem supera o mal, para nós e para os nossos honrados clientes e fregueses. Segundo: damas do...
— Vamos concluir o seu primeiro ponto, Gyoko-san — disse Toranaga secamente. — Então isso é um aspecto contra a sua sugestão, neh?
— Sim, senhor. É possível. Mas qualquer daimio poderia facilmente dar ordens em contrário. E teria que lidar apenas com uma corporação num lugar. O senhor não teria problema. Cada área, naturalmente, seria responsável pela paz da área. E pelos impostos.
— Ah, sim, os impostos! Certamente seria muito mais fácil coletar os impostos. Esse é um ponto muito bom a seu favor.
Os olhos de Gyoko estavam no bastão de incenso. Mais da metade já desaparecera. — O senhor, na sua sabedoria, poderia decretar que o nosso Mundo do Salgueiro fosse o único, no mundo todo, a nunca ser taxado. Nunca, nunca, nunca. — Ela levantou os olhos para ele, olhos sem malícia. — Afinal, senhor, nosso mundo também não é chamado de "Mundo Flutuante", não é a beleza a nossa única oferenda, não é a juventude uma grande parte da beleza? Uma coisa tão fugaz e efêmera como a juventude não é uma dádiva dos deuses, e sagrada? Dentre todos os homens, o senhor deve saber como a juventude é rara e fugaz, como a mulher o é.
A música morreu. Os olhos dele foram atraídos para Kikusan. Ela o observava atentamente, uma pequena ruga no cenho.
— Sim — disse ele honestamente. — Sei quão fugaz pode ser. — Tomou um gole de chá. — Considerarei o que você disse. Segundo?
— Segundo — Gyoko reuniu seus dotes. — Segundo e último. O senhor poderia colocar o seu carimbo no Mundo do Salgueiro para sempre. Considere algumas das nossas damas, Kikusan, por exemplo. Estuda canto, dança samisen desde os seis anos de idade. Cada momento em que esteve acordada ela passou trabalhando muito arduamente para aperfeiçoar a sua arte. Reconhecidamente se tornou uma dama de primeira classe, conforme merece o seu talento ímpar. Mas sempre é uma cortesã e alguns clientes esperam desfrutar dela no "travesseiro" assim como através da sua arte. Creio que se deviam criar duas categorias de damas. Primeiro, cortesãs como sempre: divertidas, felizes, físicas. Segundo, uma nova classe, talvez a palavra "gueixa" as descrevesse: "pessoas de arte", pessoas dedicadas exclusivamente à arte. Não se esperaria que "travesseirar" fizesse parte do seu dever. Seriam unicamente artistas, dançarinas, cantoras, musicistas — especialistas — e assim se dedicariam exclusivamente a essa profissão. As gueixas entretêm a mente e o espírito dos homens com sua beleza, graça e talento. As cortesãs satisfazem o corpo com a beleza, graça e igual talento.
Novamente ele foi dominado pela simplicidade e as possibilidades de longo alcance da idéia. — Como se selecionaria uma gueixa?
— Pela aptidão. Na puberdade o seu proprietário decidiria o futuro dela. E a corporação poderia aprovar, ou rejeitar, a aprendiz, neh?
— É uma idéia extraordinária, Gyoko-san.
A mulher curvou-se e estremeceu. — Por favor, desculpe o meu fôlego, senhor, mas desse modo, quando a beleza se fana e corpo engrossa, a garota ainda pode ter um futuro excelente, um valor real. Não terá que descer a estrada por onde, hoje, todas as cortesãs devem viajar. Rogo pelas artistas que existem entre elas, Kiku-san, por exemplo. Solicito-lhe que conceda às poucas favoritas um futuro e a posição que merecem na terra. Aprender a cantar, a dançar e a tocar exige prática e prática durante anos. O "travesseiro" necessita de juventude e não há afrodisíaco como a juventude. Neh?
— Não. — Toranaga observou. — As gueixas não poderiam "travesseirar"?
— Isso não faria parte do dever de uma gueixa, fosse qual fosse o dinheiro oferecido. As gueixas nunca seriam obrigadas a "travesseirar", senhor. Se uma desejasse "travesseirar" com um homem em particular, isso seria problema particular seu — ou talvez devesse ser combinado, com a permissão da sua ama, um preço tão elevado quanto o homem pudesse pagar. O dever de uma cortesã seria "travesseirar" com talento; as gueixas e as aprendizes de gueixas seriam intocáveis. Por favor, desculpe-me por falar tanto. — Gyoko curvou-se e Kiku curvou-se. Restava uma fração mínima de incenso.
Toranaga fez-lhe perguntas por duas vezes o tempo concedido, satisfeito com a oportunidade de aprender sobre o mundo delas, sondando-lhe as idéias, as esperanças e os receios. O que aprendeu excitou-o. Reservou a informação para uso posterior, depois mandou Kiku-san para o jardim. — Esta noite, Gyokosan, eu gostaria que ela ficasse, se lhe aprouver, até o amanhecer... se estiver livre. Quer perguntar-lhe, por favor? Naturalmente entendo que ela possa estar cansada agora. Afinal de contas, tocou tão soberbamente, por tanto tempo, que eu compreenderei totalmente. Mas talvez ela considerasse a idéia. Eu ficaria agradecido se pudesse perguntar-lhe.
— Naturalmente, senhor, mas sei que ela ficaria honrada com o seu convite. É nosso dever servir de todo modo que pudermos, neh?
— Sim. Mas ela, conforme você acertadamente assinalou, é muito especial. Compreenderei totalmente se ela estiver cansada demais. Por favor, pergunte-lhe. — Deu a Gyoko um saquinho de couro contendo dez kobans lamentando a ostentação, mas sabendo que a sua posição a exigia. — Talvez isto a compense por uma noite tão exaustiva, e seja um pequeno símbolo do meu agradecimento pelas suas idéias.
— É nosso dever servir, senhor — disse Gyoko. Ele a viu tentando impedir os dedos de contar através do couro macio, e falhar. — Obrigada, senhor. Por favor, desculpe-me, eu perguntarei a ela. — Então, estranha e inesperadamente, lágrimas encheram-lhe os olhos. — Por favor, aceite os agradecimentos de uma mulher velha e vulgar pela sua cortesia e por tê-la escutado. É só que, por todo o prazer que damos, nossa única recompensa é um rio de lágrimas. Na verdade, senhor, é difícil explicar como uma mulher se sente... por favor, desculpe-me ...
— Ouça, Gyoko-san, compreendo. Não se preocupe. Considerarei tudo o que você disse. Oh, sim, vocês duas partirão comigo pouco depois do amanhecer. Alguns dias nas montanhas farão uma agradável mudança. Imagino que o preço do contrato será aprovado, neh?
Gyoko curvou-se agradecida, depois enxugou as lágrimas e disse com firmeza: — Posso, então, perguntar o nome da honrada pessoa para quem o contrato dela será comprado?
— Yoshi Toranaga-noh-Minowara.
Agora, sob a noite de Yokosé, o ar docemente frio, a música e a voz de Kiku-san possuindo a mente e o coração de todos, Toranaga deixou a própria mente devanear. Lembrou-se da cintilação de orgulho que inundara o rosto de Gyoko e admirou-se de novo com a desnorteante credulidade das pessoas. Que desconcertante que até as pessoas mais inteligentes e astutas freqüentemente vissem apenas o que queriam ver, e raramente olhassem para além da mais delgada das fachadas. Ou que ignorassem a realidade, rejeitando-a como uma fachada. E depois, quando o seu mundo inteiro caísse em pedaços e essas pessoas estivessem de joelhos, rasgando o ventre ou cortando o pescoço, ou atiradas ao mundo indiferente, arrancassem os cabelos, ou rasgassem as roupas ou lamentassem o karma, acusando deuses ou kamis ou a sorte, ou o senhor, o marido, o vassalo — qualquer coisa ou qualquer pessoa —, mas nunca a si mesmas.
Muito estranho.
Olhou para os seus convidados e viu que ainda estavam observando a garota, fechados em seus segredos, a mente expandida pelo talento dela — todos menos o Anjin-san, que estava impaciente e buliçoso. Não tem importância, Anjin-san, pensou Toranaga divertido, é apenas a sua falta de civilização. Sim, não importa, isso virá com o tempo, e ainda assim isso não tem importância, desde que você obedeça. No momento preciso da sua suscetibilidade, da sua cólera e da sua violência.
Sim, vocês estão todos aqui. Você, Omi e Yabu, Naga, Buntaro, e você, Mariko, e Kiku-san, e até Gyoko, todos os meus gaviões e falcões de Izu, todos treinados e muito preparados. Todos aqui, menos um: o padre cristão. E logo chegará a sua vez, Tsukku-san. Ou a minha.
O Padre Martim Alvito, da Companhia de Jesus, estava furioso. Bem quando sabia que devia estar se preparando para seu encontro com Toranaga, para o qual precisaria de todos os seus talentos, era defrontado com aquela nova abominação que não podia esperar. — O que você tem a dizer em sua defesa? — vociferou contra o amedrontado acólito japonês, abjetamente ajoelhado à sua frente. Os outros irmãos erguiam-se em torno do pequeno aposento, em semicírculo.
— Por favor, perdoe-me, padre. Pequei — gaguejou o homem em completa aflição. — Por favor, perdoe...
— Repito: perdoar cabe a Deus todo-poderoso, na sua sabedoria, não a mim. Você cometeu um pecado mortal. Quebrou o seu voto sagrado. Bem?
A resposta veio quase inaudível. — Sinto muito, padre. — O homem era magro e frágil. Seu nome de batismo era José e ele tinha trinta anos. Os acólitos seus companheiros, todos irmãos da Companhia, iam dos dezoito aos quarenta anos. Eram todos tonsurados, e de nobre origem samurai de províncias de Kyushu, todos rigorosamente educados para o sacerdócio, embora ainda nenhum fosse ordenado.
— Eu confessei, padre — disse o Irmão José, mantendo a cabeça curvada.
— Acha que isso basta? Impaciente Alvito deu-lhe as costas e se dirigiu para a janela. A sala era comum, as esteiras razoáveis, as divisórias shoji pobremente consertadas. A hospedaria era velha e de terceira classe, mas a melhor que ele conseguira encontrar em Yokosé, já que as demais tinham sido tomadas pelos samurais. Ele contemplou a noite, ouvindo parcialmente a distante voz de Kiku elevando-se acima do ruído do rio. Antes que a cortesã terminasse, Alvito soube que não seria chamado por Toranaga. — Prostituta imunda — disse ele, meio para si mesmo, a lamentosa dissonância da canção japonesa aborrecendo-o mais do que de costume, intensificando-lhe a raiva pela traição de José.
— Ouçam, irmãos — disse aos demais, voltando-se para eles. — Está em julgamento o Irmão José, que saiu com uma prostituta ontem à noite, quebrando o seu voto sagrado de castidade, quebrando o seu voto sagrado de obediência, profanando sua alma imortal, sua posição como jesuíta, seu lugar na Igreja e tudo aquilo que ela sustenta. Diante de Deus pergunto a cada um de vocês: já fizeram o mesmo?
Todos menearam a cabeça.
— Você já fez isso antes? — Não, padre.
— Você, pecador! Diante de Deus, admite o seu pecado? — Sim, padre, já conf...
— Diante de Deus, essa foi a primeira vez?
— Não, não foi a primeira vez — disse José. — Eu... eu saí com outra há algumas noites... em Mishima.
— Mas... mas ontem dissemos missa! E a sua confissão de ontem, e a de anteontem, e a de trasanteontem, você não... Ontem dissemos missa! Pelo amor de Deus, você recebeu a eucaristia sem se ter confessado, com conhecimento pleno do seu pecado mortal?
O Irmão José estava cinza de vergonha. Estava com os jesuítas desde os oito anos de idade. — Foi a... foi a primeira vez, padre. Faz só quatro dias. Vivi a vida toda sem pecado. Novamente fui tentado... e que a abençoada Nossa Senhora me perdoe, desta vez falhei. Tenho sede. Sou um homem... somos todos homens. Por favor, o Senhor Jesus Pai perdoou os pecadores... por que o senhor não pode me perdoar? Somos todos homens ...
— Somos todos padres!
— Não somos padres de verdade! Não professamos... não somos sequer ordenados! Não somos jesuítas de verdade. Não podemos receber o quarto voto como o senhor, padre — disse José sombriamente. — Outras ordens ordenam os seus irmãos, mas não os jesuítas. Por que não...
— Cale a boca!
— Não calo! — dardejou José. — Por favor, desculpe-me, padre, mas por que alguns de nós não devem ser ordenados? — Apontou para um dos irmãos, um homem alto, de rosto redondo, que observava serenamente. — Por que o Irmão Miguel não deve ser ordenado? Estuda desde os doze anos. Agora tem trinta e seis e é um cristão perfeito, quase um santo. Converteu milhares, mas ainda não foi ordenado, embora...
— Em nome de Deus, você vai ...
— Em nome de Deus, padre, por que um de nós não pode ser ordenado? Alguém tem que ousar lhe perguntar! — José estava de pé agora. — Venho estudando há dezesseis anos, o Irmão Mateus há vinte e três, Julião mais ainda, toda a nossa vida, anos incontáveis. Sabemos as preces, os catecismos e os hinos melhor do que o senhor, e Miguel e eu até falamos latim tão bem quanto port ...
— Pare!
— ... português, e fazemos a maior parte da pregação e debate com os budistas e todos os outros idólatras, e fazemos a maior parte das conversões. Nós fazemos! Em nome de Deus e de Nossa Senhora, o que há de errado conosco? Por que não somos bons o bastante para sermos jesuítas? É só porque não somos portugueses ou espanhóis, ou porque não somos peludos nem temos olhos redondos? Em nome de Deus, padre, por que não existe um jesuíta japonês ordenado?
— Agora você vai calar a boca!
— Estivemos até em Roma, Miguel, Julião e eu! — explodiu José. — O senhor nunca esteve em Roma nem se encontrou com o padre-geral ou Sua Santidade como nós...
— O que é mais uma razão para que você soubesse fazer melhor que discutir. Vocês juraram castidade, pobreza e obediência. Foram escolhidos entre muitos, favorecidos dentre muitos, e agora você deixou sua alma se corromper tanto que...
— Sinto muito, padre, mas não penso que tenhamos sido favorecidos em gastar oito anos indo até lá e voltando se, depois de todo o nosso aprendizado, as nossas orações, as nossas pregações e a nossa espera, nem um de nós foi ordenado, embora isso tenha sido prometido. Eu tinha doze anos quando parti. Julião tinha onz...
— Proíbo-o de continuar falando! Ordeno-lhe que pare. — Depois, em meio ao terrível silêncio, Alvito olhou para os outros, que se alinhavam ao longo das paredes, olhando e ouvindo atentamente. — Vocês todos serão ordenados, em tempo. Mas você, José, diante de Deus, você será...
— Diante de Deus — irrompeu José —, no tempo de quem?
— No tempo de Deus! — bradou Alvito, pasmado com a rebelião aberta, seu fervor exaltado. — Ponha-se-de-joelhos!
O Irmão José tentou faze-lo baixar os olhos, mas não conseguiu, depois, perdendo o ânimo, suspirou, caiu de joelhos e curvou a cabeça.
— Deus tenha piedade de você. Você se confessou culpado de hediondo pecado mortal, culpado de quebrar o seu voto sagrado de castidade, o seu voto sagrado de obediência aos seus superiores. E culpado de insolência inacreditável. Como ousa questionar as nossas ordens gerais ou a política da Igreja? Você colocou em risco a sua alma imortal. Você é uma desgraça para o seu Deus, a sua Companhia, a sua Igreja, a sua família e os seus amigos. Seu caso é tão sério que terá de ser tratado pelo padre-inspetor em pessoa. Até lá você não comungará, não se confessará, nem ouvirá confissão, nem tomará parte em qualquer serviço... — Os ombros de José começaram a tremer com a agonia do remorso que o possuía. — Como penitência inicial, você fica proibido de falar, receberá apenas arroz e água durante trinta dias, passará cada noite nos próximos trinta dias de joelhos, em oração à Nossa Senhora por perdão para os seus terríveis pecados, e depois será chicoteado. Trinta chicotadas. Tire a sotaina.
Os ombros pararam de tremer. José levantou os olhos. — Aceito tudo o que o senhor ordenou, padre — disse ele, e peço desculpas de todo o coração, com toda a minha alma. Imploro-lhe o seu perdão, assim como implorarei o perdão dele para sempre. Mas não serei açoitado como um criminoso comum.
— Você será chicoteado!
— Por favor, desculpe-me, padre — disse José. — Em nome da abençoada Nossa Senhora, não é a dor. A dor não é nada para mim, a morte não é nada para mim. Que eu esteja danado e vá arder no fogo do inferno por toda a eternidade pode ser o meu karma, e eu suportarei. Mas sou samurai. Sou da família do Senhor Harima.
— Seu orgulho me enoja. Não é pela dor que você deve ser punido, mas para eliminar esse seu orgulho repugnante. Criminoso comum? Onde está a humilhação? Nosso Senhor Jesus Cristo suportou mortificação. E morreu com criminosos comuns.
— Sim. Esse é o nosso principal problema aqui, padre.
— O quê?
— Por favor, desculpe-me a franqueza, padre, mas se o rei dos reis não tivesse morrido como um criminoso comum na cruz, os samurais poderiam aceitar...
— Pare!
-— ... o cristianismo com mais facilidade. A Companhia é sábia em evitar de pregar o Cristo crucificado como as outras ordens...
Como um anjo vingador, Alvito ergueu a cruz como um escudo à sua frente. — Em nome de Deus, cale-se e obedeça ou será excomungado! Peguem-no e dispam-no!
Os outros voltaram à vida e avançaram, mas José pôs-se de pé num salto. Uma faca apareceu-lhe nas mãos, puxada de sob o hábito. Pôs-se de costas para a parede. Todos pararam. Menos o Irmão Miguel. Este avançou lenta e calmamente, a mão estendida. — Por favor, dê-me a faca, irmão — disse gentilmente.
— Não. Por favor, desculpe-me.
— Então reze por mim, irmão, assim como eu rezo por você. — Tranqüilamente Miguel avançou para a arma.
José recuou alguns passos, depois se preparou para um golpe mortal. — Perdoe-me, Miguel.
Miguel continuou a se aproximar.
— Miguel, pare! Deixe-o em paz — comandou Alvito.
Miguel obedeceu, a algumas polegadas da lâmina suspensa no ar.
Então Alvito disse, pálido: — Deus tenha piedade de você, José. Você está excomungado. Satã tomou posse da sua alma na terra, assim como a possuirá depois da morte.
— Renuncio ao Deus cristão! Sou japonês... sou xintoísta. Minha alma é minha agora. Não tenho medo — gritou José. — Sim, nós temos orgulho, ao contrário dos bárbaros. Somos japoneses, não somos bárbaros. Nem os nossos camponeses são bárbaros.
Gravemente Alvito fez o sinal-da-cruz como proteção para todos eles e destemidamente deu as costas à faca. — Oremos juntos, irmãos. Satã está entre nós.
Os outros também se voltaram, muito tristes, alguns ainda chocados. Apenas Miguel permaneceu onde estava, olhando para José. José arrancou o seu rosário e a cruz. Estava prestes a atira-los ao chão, mas Miguel estendeu-lhe a mão de novo. — Por favor, irmão, por favor, dê isso a mim... é um presente tão simples — disse.
José o olhou um longo momento, depois deu-lhe. — Por favor desculpe-me.
— Rezarei por você — disse Miguel.
— Você não ouviu? Renunciei a Deus!
— Rezarei a Deus para que não renuncie a você, Uruganoh-Tadamasa-san.
— Perdoe-me, irmão — disse José. Enfiou a faca no sash, abriu a porta com um repelão, e caminhou às cegas pelo corredor, rumo à varanda. As pessoas o olhavam curiosas, entre elas Uo, o pescador, que esperava pacientemente e à sombra. José cruzou o pátio e se dirigiu para o portão. Um samurai surgiu em seu caminho.
— Alto!
José parou.
— Aonde vai, por favor?
— Desculpe, por favor, desculpe-me, eu... eu não sei.
— Sirvo ao Senhor Toranaga. Sinto muito, não pude deixar de ouvir o que aconteceu lá. A hospedaria inteira deve ter ouvido. Uma chocante falta de educação... chocante para o seu líder, gritar assim e perturbar a paz. E para você também. Estou a serviço aqui, acho que é melhor que você veja o oficial do meu turno.
— Acho... obrigado, irei pelo outro caminho. Por favor, desculpe...
— Você não vai a parte alguma, sinto muito. Vai ver o meu oficial.
— O quê? Oh... sim. Sim, desculpe, naturalmente. — José tentou fazer o cérebro funcionar.
— Bom. Obrigado. — O samurai voltou-se quando outro samurai se aproximou, vindo da ponte, e saudou.
— Devo levar o Tsukku-san ao Senhor Toranaga. — Bom. Você é esperado.