CAPÍTULO 33
Blackthorne despertou ao amanhecer. Sozinho. Ao primeiro momento teve a certeza de haver sonhado, mas o perfume dela ainda pairava, e ele soube que não fora um sonho.
Uma batida discreta.
- Hai?
- Ohayo, Anjin-san, gomen nasai. - Uma criada abriu a porta para Fujiko, depois trouxe a bandeja com chá, uma tigela de papa de arroz e bolos doces de arroz.
- Ohayo, Fujiko-san, domo - disse ele, agradecendo-lhe. Ela sempre vinha pessoalmente com a primeira refeição, abria o mosquiteiro e esperava enquanto ele comia, e a criada estendia um quimono limpo, tabis e uma tanga.
Ele sorveu o chá, perguntando-se se Fujiko sabia sobre o ocorrido à noite. O rosto dela não traía nada.
- Ikaga desu ka? Como está? - perguntou Blackthorne.
- Okagesama de genki desu, Anjin-san, Anata wa? Muito bem, obrigada. E o senhor?
A criada tirou a roupa limpa dele do armário fechado que se fundia com perfeição ao resto do aposento de gelosia de papel, depois deixou-os a sós.
- Anata wa yoku nemutta ka? Dormiu bem?
- Hai, Anjin-san, arigato gozie,nashita! - Ela sorriu, pôs a mão na cabeça simulando dor, estar bêbada e dormir como uma pedra. - Anata wa?
- Watashi wa yoku nemuru. Eu dormi muito bem.
Ela o corrigiu:
- Watashi wa yoku nemutta.
- Domo. Watashi wa yoku nemutta.
- Yoi! Talhenyoi! Bom. Muito bom.
Então, do corredor, ele ouviu Mariko chamar:
- Fujiko-san?
- Hai, Mariko-san? - Fujiko foi à shoji e abriu uma fresta. Ele não pôde ver Mariko. E não entendeu o que elas diziam. Espero que ninguém saiba, pensou. Rezo para que seja secreto, apenas entre nós. Talvez fosse melhor se tivesse sido um sonho.
Começou a se vestir. Fujiko voltou e se ajoelhou para lhe calçar os tabis.
- Mariko-san? Nan ja?
- Nani-mo, Anjin-san - replicou ela. Não era nada de importante. Foi até o takonoma, a alcova com os pergaminhos pendurados e o arranjo de flores, onde as espadas eram sempre deixadas. Entregou-as a ele. Ele as prendeu no cinto. As espadas já não lhe pareciam ridículas, embora tivesse vontade de conseguir usá-las com menos consciência de si mesmo.
Ela lhe contara que as espadas tinham sido conferidas ao seu pai, por bravura, após uma batalha particularmente sangrenta no extremo-norte da Coréia, sete anos atrás, durante a primeira invasão. Os exércitos japoneses haviam irrompido através do reino, vitoriosos, retalhando a região norte. Depois, quando estavam perto do rio Yalu, as hordas chinesas abruptamente brotaram do outro lado da fronteira para enfrentar os exércitos japoneses e, devido ao peso das suas tropas inacreditáveis, haviam-nos desbaratado. O pai de Fujiko fazia parte da retaguarda que cobria a retirada para as montanhas ao norte de Seul, onde se voltaram e travaram batalha visando a um empate. Essa campanha e a segunda tinham sido a expedição militar mais dispendiosa jamais empreendida. Quando o taicum morrera, no ano anterior, Toranaga, em nome do conselho de regentes, imediatamente ordenara aos remanescentes dos exércitos que regressassem, para grande alívio da maioria dos daimios, que detestavam a campanha coreana.
Blackthorne saiu para a varanda. Calçou as sandálias e fez um aceno de cabeça aos criados, que tinham sido reunidos em linha para saudá-lo, como de costume.
Fazia um dia encoberto. O céu estava nublado e um vento quente e úmido vinha do mar. As alpondras que estavam fixadas no cascalho do caminho estavam molhadas da chuva que caíra durante a noite. Além do portão estavam os cavalos e seus dez samurais batedores. E Mariko.
Já estava montada e usava um manto amarelo-claro sobre as calças de seda verde-clara, um chapéu de aba larga e um véu, preso por fitas amarelas, e luvas. Preso à sela, um guarda-chuva.
- Ohayo - disse ele formalmente. - Ohayo, Mariko-san.
- Ohayo, Anjin-san. Ikaga desu ka?
- Okagesama de genki desu. Anata wa?
Ela sorriu.
- Yoi, arigato goziemashita.
Não deu o menor indício de haver qualquer diferença entre eles. Mas ele esperava por isso, em público, sabendo como a situação era perigosa. Seu perfume chegou até ele, que teria gostado de beijá-la ali, diante de todos...
- Ikimasho! - disse ele, e saltou para a sela, acenando para os samurais para que se pusessem em marcha à frente. Conduziu o cavalo vagarosamente e Mariko se pôs ao seu lado. Quando ficaram sozinhos, ele se descontraiu.
- Mariko.
- Hai?
Então ele disse, em latim:
- Você é linda e eu a amo.
- Agradeço-lhe, mas todo aquele vinho da noite passada faz a minha cabeça não se sentir nem um pouco bela hoje, não de verdade, e "amor" é uma palavra cristã.
- Você é linda e cristã, e o vinho não poderia afetá-la.
- Obrigada pela mentira, Anjin-san, sim, agradeço-lhe.
- Não. Eu é que devo agradecer.
- Oh? Por quê?
- Nunca "por quê?", nada de "por quê?" Agradeço-lhe sinceramente.
- Se o vinho e a carne o deixam tão cordial, agradável e galante - disse ela -, preciso dizer à sua consorte que mova céus e terra para obtê-los para o senhor todas as noites.
- Sim. Eu repetiria tudo, sempre.
- O senhor está feliz hoje - disse ela. - Ótimo, muito bom. Mas por quê? Por quê, realmente?
- Por sua causa. Você sabe por quê?
- Não sei nada, Anjin-san.
- Nada? - arreliou ele.
- Nada.
Ele ficou perplexo. Estavam os dois sozinhos e em segurança.
- Por que "nada" tira a alma do seu sorriso? - perguntou ela.
- Estupidez! Absoluta estupidez! Esqueci que é mais prudente ser cauteloso. Foi só porque estamos sozinhos e eu queria falar a respeito. E, na verdade, dizer mais.
- O senhor fala por enigmas. Não o entendo.
Ele ficou confuso de novo.
- Não quer falar a respeito? Em absoluto?
- A respeito de quê, Anjin-san?
- O que aconteceu a noite passada, então?
- Passei pela sua porta esta noite, quando a minha criada, Koi, estava com o senhor.
- O quê!
- Nós, sua consorte e eu, achamos que ela seria um presente agradável para o senhor. Ela lhe agradou, não?
Blackthorne estava tentando se recompor. A criada de Mariko era do tamanho dela, mas mais jovem e nunca tão encantadora e nunca tão linda, mas sim, estava escuro como piche, e sim, ele tinha a cabeça enevoada por causa do vinho, mas não, não era a criada.
- Isso não é possível - disse ele em português.
- O que não é possível, senhor? - perguntou ela, na mesma língua.
Ele voltou ao latim, já que os batedores não se encontravam muito afastados, o vento soprando na sua direção.
- Por favor, não brinque comigo. Ninguém pode ouvir. Conheço uma presença e um perfume.
- Pensou que fosse eu? Oh, não era, Anjin-san. Eu ficaria honrada, mas eu nunca poderia... apesar do muito que pudesse desejar - oh, não, Anjin-san. Não era eu, mas Koi, a minha criada. Eu ficaria honrada, mas pertenço a outro até que ele esteja morto.
- Sim, mas não era a sua criada. - Ele engoliu a raiva. - Mas deixe estar como a senhora prefere.
- Era a minha criada, Anjin-san - disse ela, apaziguadora. - Nós a friccionamos com o meu perfume e instruímo-la: nada de palavras, apenas toque. Não pensamos um momento sequer que o senhor acharia que era eu! Isso não foi para ludibriá-lo, mas para o seu conforto, sabendo que as repugnantes coisas relativas a "travesseiro" o embaraçam. - Ela o fitava com olhos enormes, inocentes. - Ela lhe agradou, Anjin-san? O senhor agradou a ela.
- Uma brincadeira envolvendo coisas de grande importância às vezes não tem graça.
- Coisas de grande importância serão sempre tratadas com grande importância. Mas uma criada, na noite, com um homem, não tem importância.
- Não a considero sem importância.
- Agradeço-lhe. Digo o mesmo. Mas uma criada, à noite, com um homem, é assunto privado e sem importância. É um presente dela a ele e, algumas vezes, dele a ela. Nada mais.
- Nunca?
- Às vezes. Mas este assunto de "travesseiro" em particular não tem a vasta seriedade que o senhor lhe atribui.
- Nunca?
- Apenas quando a mulher e o homem se unem contra a lei. Neste país.
Ele se conteve, finalmente compreendendo a razão por que ela negava.
- Peço desculpas. Sim, a senhora tem razão e eu estou muito enganado. Nunca deveria ter falado. Desculpe-me.
- Por que se desculpar? Por quê? Diga-me, Anjin-san, essa garota usava um crucifixo?
- Não.
- Eu sempre uso. Sempre.
- Um crucifixo pode ser tirado - disse ele automaticamente em português. - Isso não prova nada. Podia ser emprestado, como um perfume.
- Diga-me uma última verdade: o senhor realmente viu a garota? Realmente a viu?
- Naturalmente. Por favor, vamos esquecer que...
- A noite estava muito escura, a lua nublada. Por favor, a verdade, Anjin-san. Pense! O senhor realmente viu a garota?
Claro que a vi, pensou ele indignado.
Maldição, pense direito. Você não a viu. A sua cabeça estava enevoada. Podia ter sido a criada, mas você achou que era Mariko porque desejava Mariko e na sua cabeça viu apenas Mariko, acreditando que Mariko o desejaria igualmente. Você é um imbecil. Um maldito imbecil.
- Na verdade, não. Na verdade eu devo realmente pedir desculpas - disse ele. - Como me desculpar?
- Não há necessidade de se desculpar, Anjin-san - retrucou ela, calmamente. - Já lhe disse muitas vezes que um homem nunca se desculpa, mesmo quando está errado. - Os olhos dela o arreliavam agora. - Minha criada não necessita de desculpas.
- Obrigado - disse ele, rindo. - A senhora me fez sentir como um tolo.
- Os anos desaparecem do senhor, quando ri. O tão sério Anjin-san torna-se um menino de novo.
- Meu pai dizia que eu nasci velho.
- É mesmo?
- Ele achava que sim.
- Como é ele?
- Era um excelente homem. Um armador, um capitão. Os espanhóis o mataram num lugar chamado Antuérpia, quando passaram essa cidade pela espada. Queimaram-lhe o navio. Eu tinha seis anos, mas lembro dele como um homem grande, alto, de boa índole, com cabelo dourado. Meu irmão mais velho, Arthur, tinha só oito anos... Tivemos maus momentos, Mariko-san.
- Por quê? Por favor, conte-me. Por favor!
- É tudo muito banal. Cada centavo estava empatado no navio, que se perdeu ... e, bem, não muito tempo depois disso, minha irmã morreu. Morreu de fome, realmente. Houve carestia em 71, e praga, novamente.
- Temos praga às vezes. Varíola. Vocês eram muitos na sua família?
- Três - disse ele, contente por conversar para afastar a outra mágoa. - Willia, minha irmã, tinha nove anos quando morreu. Arthur foi o próximo. Queria ser artista, escultor, mas teve que se tornar aprendiz de pedreiro para ajudar a nos sustentar. Foi morto na armada. Tinha vinte e cinco anos, o coitado, acabara de se engajar num navio, sem treinamento, que desperdício. Sou o último dos Blackthorne. A mulher e a filha de Arthur vivem com a minha mulher e filhos agora. Minha mãe ainda vive, assim como a minha avó Jacoba - tem setenta e cinco anos e é resistente como um pedaço de carvalho inglês, embora seja irlandesa. Pelo menos estavam vivas quando eu parti, há mais de dois anos.
A dor estava voltando. Pensarei neles quando partir para casa, prometeu ele a si mesmo, mas não antes disso.
- Vai cair uma tempestade amanhã - disse, olhando o mar. - E forte, Mariko-san. Depois, em três dias, teremos tempo bom.
- Esta é a estação dos temporais. O céu fica nublado a maior parte do tempo e carregado de chuva. Quando as chuvas cessam, fica muito úmido. Aí começam os taifuns.
Gostaria de estar ao mar agora, pensava ele. Será que estive ao mar alguma vez? O navio era real? O que é a realidade? Mariko ou a criada?
- O senhor não ri muito, não é, Anjin-san?
- Estive navegando muito tempo. Os marujos são sempre sérios. Aprendemos a observar o mar. Estamos sempre observando e esperando alguma catástrofe. Tire os olhos do mar um segundo e ele agarra o seu navio e o transforma em palitos de fósforo.
- Tenho medo do mar - disse ela.
- Eu também. Um velho pescador me disse um dia: " O homem que não tem medo do mar logo se afogará, porque se porá ao largo num dia em que não deveria. Mas nós temos medo do mar, portanto só naufragamos de vez em quando". - Ele olhou para ela. - Mariko-san ...
- Sim?
- Poucos minutos atrás a senhora me convenceu de que... bem, digamos que fui convencido. Agora não estou. Qual é verdade? A honro. Eu tenho que saber.
- Os ouvidos servem para ouvir. Claro que foi a criada.
- Essa criada. Posso tê-la sempre que quiser?
- Naturalmente. Mas um homem sábio não o faria.
- Porque eu poderia ficar desapontado? Da próxima vez?
- Possivelmente.
- Acho difícil possuir uma criada e perder uma criada, difícil não dizer nada...
- "Travesseiro" é um prazer. Do corpo. Não há nada a ser dito.
- Mas como dizer a uma criada que ela é linda? Que eu a amo? Que ela me encheu de êxtase?
- Não é apropriado "amar" uma criada desse modo. Não aqui, Anjin-san. Essa paixão não é nem para uma esposa ou uma consorte. - Os olhos dela se franziram repentinamente. - Mas apenas para alguém como Kiku-san, cortesã, que é muito bela e merece isso.
- Onde posso encontrar essa garota?
- Na aldeia. Eu ficaria honrada em servir de intermediária.
- Por Cristo, acho que fala a sério.
- Naturalmente. Um homem precisa de paixões de todos os tipos. Essa dárna é digna de romance... se o senhor puder pagar por ela.
- O que quer dizer isso?
- Ela seria muito dispendiosa.
- Não se compra amor. Esse tipo não vale nada. "Amor" não tem preço.
Ela sorriu.
- "Travesseirar" sempre tem preço. Sempre. Não necessariamente dinheiro, Anjin-san. Mas um homem paga, sempre, para "travesseirar", de um modo ou de outro. Ao verdadeiro amor nós chamamos dever, é de alma para alma e não necessita dessa expressão, da expressão física, exceto, talvez, a dádiva da morte.
- Está enganada. Gostaria de poder mostrar-lhe o mundo como ele é.
- Conheço o mundo como é, e como será para sempre. Deseja aquela criada desprezível de novo?
- Sim. A senhora sabe que sim...
Mariko riu alegremente.
- Então ela lhe será enviada. Ao pôr-do-sol. Nós a escoltaremos, Fujiko e eu!
- Maldição! Acho que a senhora faria isso, mesmo! - Ele riu com ela.
- Ah, Anjin-san, é bom vê-lo rir. Desde que voltou para Anjiro, o senhor passou por uma grande mudança. Uma mudança muito grande.
- Não. Não tanto. Mas a noite passada tive um sonho. Esse sonho foi a perfeição.
- Deus é a perfeição. E às vezes o pôr-do-sol, ou o nascer da lua, ou o primeiro açafrão do ano.
- Não a compreendo em absoluto.
Ela passou o véu por sobre o chapéu e olhou diretamente para ele.
- Uma vez outro homem me disse: "Não a compreendo em absoluto", e o meu marido disse: "Perdão, senhor, mas nenhum homem consegue compreendê-la. O pai não a compreende, nem os deuses, nem o Deus bárbaro dela, nem a mãe a compreende".
- Foi Toranaga? O Senhor Toranaga?
- Oh, não, Anjin-san. Foi o taicum. O Senhor Toranaga me compreende. Ele compreende tudo.
- Até a mim?
- Muitíssimo ao senhor.
- Tem certeza disso, não?
- Sim, muita.
- Ele vencerá a guerra?
- Sim.
- Sou o vassalo favorito dele?
- Sim.
- Ele vai aceitar a minha marinha?
- Sim.
- Quando vou reaver o meu navio?
- Não vai.
- Por quê?
A gravidade dela desvaneceu-se.
- Porque o senhor terá a sua "criada" em Anjiro e estará "travesseirando" tanto, que não terá energia para partir, nem de quatro, quando ela lhe implorar que suba a bordo do seu navio, e quando o Senhor Toranaga lhe pedir que suba a bordo e nos deixe a todos!
- Lá vai a senhora de novo! Num momento tão séria, no outro não!
- Isso foi só para responder-lhe, Anjin-san, e para pôr certas coisas nos devidos lugares. Ah, mas antes que o senhor nos deixe, devia ver a Senhora Kiku. Ela é digna de uma grande paixão. É tão linda e talentosa! Para ela o senhor teria que ser extraordinário!
- Estou tentado a aceitar esse desafio.
- Não desafio ninguém. Mas se o senhor estivesse preparado para ser samurai e não... não fosse estrangeiro... se estivesse preparado para tratar o "travesseiro" pelo que é, então eu ficaria honrada em agir como sua intermediária.
- O que significa isso?
- Quando o senhor estiver de bom humor, quando estiver pronto para diversão muito especial, peça à sua consorte que fale comigo.
- Por que Fujiko-san?
- Porque é dever da sua consorte providenciar para que o senhor seja satisfeito. É costume nosso tornar a vida simples. Admiramos a simplicidade, por isso homens e mulheres podem ver o "travesseiro" pelo que é: uma parte importante da vida, certamente, mas entre um homem e uma mulher há coisas mais essenciais. Humildade, por exemplo. Respeito. Dever. Até esse seu "amor". Fujiko o "ama".
- Não, não ama!
- Ela dará a vida pelo senhor. O que mais há para dar?
Finalmente ele desviou dela os olhos e fitou o mar. As ondas
encapelavam-se na praia à medida que o vento ganhava forças.
Voltou-se para ela. — Então não há nada a dizer? — perguntou.
- Entre nós?
- Nada. Isso é prudente.
- E se eu não concordar?
- O senhor tem que concordar. Está aqui. Este é o seu lar.
Os quinhentos atacantes galoparam através do flanco da colina num grupo desorganizado, desceram para o vale salpicado de pedras, onde os dois mil "defensores" estavam alinhados numa formação de batalha. Cada cavaleiro trazia um mosquete passado às costas e um cinto com cartucheiras para balas, pederneiras e um chifre de pólvora. Como as da maioria dos samurais, suas roupas eram uma heterogênea reunião de quimonos e trapos, mas as armas sempre as melhores que podiam pagar. Apenas Toranaga e Ishido, copiando o primeiro, insistiam em que seus homens se uniformizassem e fossem meticulosos no trajar. Todos os outros consideravam essa extravagância material como um tolo esbanjamento de dinheiro, uma inovação desnecessária. Até Blackthorne concordava com isso. Os exércitos na Europa nunca usavam uniformes - que rei podia se permitir isso, exceto para uma guarda pessoal?
Blackthorne estava em pé numa elevação com Yabu e seus ajudantes, Jozen e todos os seus homens, e Mariko. Aquele era o primeiro ensaio de ataque em larga escala. Ele aguardava inquieto. Yabu estava excepcionalmente tenso, e Omi e Naga estavam suscetíveis quase ao ponto de beligerância. Particularmente Naga.
- O que está acontecendo com todo mundo? - perguntara a Mariko.
- Talvez desejem fazer bonito na frente do seu senhor e do hóspede.
- Ele também é um daimio?
- Não. Mas é importante, é um dos generais do Senhor Ishido. Seria bom se tudo saísse perfeito hoje.
- Gostaria de que me tivessem prevenido de que haveria um ensaio.
- De que teria servido isso? Tudo o que podia fazer, o senhor fez.
Sim, pensou Blackthorne, enquanto olhava os quinhentos. Mas eles ainda estão longe de estarem prontos. Certamente Yabu sabe disso, todo mundo sabe. Portanto, se houver um desastre, bem, será karma, disse ele a si mesmo com mais confiança, e encontrou consolo nesse pensamento.
Os atacantes ganhavam velocidade e os defensores se mantinham à espera sob as bandeiras de seus capitães, escarnecendo do "inimigo' como fariam normalmente, enfileirados numa formação ampla, com uma profundidade de três ou quatro homens. Logo os atacantes desmontariam fora do alcance de uma seta. Depois os guerreiros mais valentes de ambos os lados truculentamente avançariam, arrogantes, para lançar o desafio, proclamando a própria linhagem e superioridade com os insultos óbvios. Teriam início conflitos armados isolados, o número de participantes gradualmente iria aumentando, até que um comandante ordenasse um ataque geral e aí era cada um por si. Normalmente o grupo maior derrotava o menor, depois as reservas eram trazidas e a confusão se repetia até que o moral de um lado arrefecia, e aos poucos covardes que se retiravam logo se unia a maioria, sucedendo-se uma debandada. A traição não era habitual. Algumas vezes regimentos inteiros, seguindo as ordens do amo, trocavam de lado, para serem bem-vindos como aliados - sempre bem-vindos, mas nunca merecedores de confiança. Algumas vezes os comandantes derrotados corriam para se reagruparem a fim de lutar de novo. Algumas vezes ficavam e lutavam até a morte, algumas vezes cometiam seppuku com cerimônia. Raramente eram capturados. Alguns ofereciam seus serviços aos vitoriosos. Algumas vezes isso era aceito, mas na maioria era recusado. A morte era o quinhão dos derrotados, rápida para os bravos e vergonhosa para os covardes. E esse era o padrão histórico de todas as escaramuças no país, mesmo nas grandes batalhas. Os soldados ali eram o mesmo que em qualquer outro lugar, com a diferença de que eram ferozes e havia muitos, muitos mais preparados para morrer pelos respectivos amos do que em qualquer outro lugar na terra.
O tropel dos cascos ecoou no vale.
- Onde está o comandante do ataque? Onde está Omi-san? - perguntou Jozen.
- No meio dos homens, tenha paciência - respondeu Yabu.
- Mas onde está o estandarte dele? E por que não está usando armadura e plumas de combate? Onde está o estandarte do comandante? São exatamente como um bando de bandidos imundos!
- Seja paciente! Todos os oficiais têm ordens de permanecer indistinguíveis. Eu lhe disse. E por favor, não se esqueça de que estamos simulando uma batalha no auge, que isto é parte de uma grande batalha, com reservas e ar...
Jozen explodiu:
- Onde estão as espadas deles? Nenhum está usando espadas! Samurais sem espadas? Seriam massacrados!
- Seja paciente!
Agora os atacantes estavam desmontando. Os primeiros guerreiros avançaram das posições de defesa para mostrar o seu valor. E um número igual de defensores começou a imitá-los. Então, de repente, a canhestra massa de atacantes precipitou-se em cinco falanges cerradas e disciplinadas, cada uma com quatro fileiras de vinte e cinco homens, três falanges à frente e duas na reserva, quarenta passos atrás. Como um todo, investiram contra o inimigo. Atingindo o raio de tiro, detiveram-se com um estremecimento e as fileiras da frente dispararam, em uníssono, uma salva de rebentar os ouvidos. Gritos e homens morrendo. Jozen e seus homens abaixaram-se reflexamente, depois olharam atônitos quando as fileiras da frente se ajoelharam e começaram a recarregar, enquanto as segundas fileiras faziam fogo por cima delas, com as terceiras e quartas fileiras seguindo o mesmo esquema. A cada salva mais defensores caíam, e o vale se encheu de tiros, gritos e confusão.
- O senhor está matando seus próprios homens! - gritou Jozen por sobre o tumulto.
- É munição vazia, não é real. Estão todos representando, mas imagine que se trata de um ataque real, com balas de verdade! Olhe!
Os defensores "recuperaram-se" do choque inicial. Reagruparam-se e fizeram meia-volta para um ataque frontal. Mas a essa altura as fileiras da frente já haviam recarregado e, a uma ordem, dispararam outra salva de uma posição ajoelhada, depois a segunda fila atirou de pé, imediatamente se ajoelhando para recarregar, depois a terceira e a quarta, como antes, e embora muitos mosqueteiros fossem lentos e as fileiras se desordenassem, foi fácil imaginar a terrível dizimação que homens treinados causariam. O contra-ataque falhou, depois se dissolveu, e os defensores se retiraram numa confusão simulada, até a elevação, parando logo abaixo dos observadores. Muitos "mortos" jaziam pelo chão.
Jozen e seus homens estavam abalados.
- Essas armas romperiam qualquer linha!
- Espere. A batalha não terminou!
Novamente os defensores se formaram e agora seus comandantes os exortaram à vitória, convocaram as reservas, e ordenaram o ataque geral final. Os samurais correram colina abaixo, emitindo seus terríveis gritos de batalha, para cair em cima do inimigo.
- Agora serão esmagados - disse Jozen, envolvido como todos os outros pelo realismo da batalha simulada.
E estava certo. As falanges não resistiram. Romperam-se e dispararam na corrida, sob os gritos de batalha dos samurais autênticos, com espadas e lanças, e Jozen e seus homens uniram seus gritos de escárnio ao alarido quando os regimentos se arremessaram para a matança. Os mosqueteiros corriam como os comedores de alho, cem passos, duzentos passos, trezentos, então, de repente, a uma ordem, as falanges se reagruparam, desta vez numa formação em V. Novamente as salvas ensurdecedoras começaram. O ataque vacilou. Depois parou. Mas os tiros continuaram. Depois também pararam. O jogo terminara. Mas todos na elevação sabiam que em condições reais os dois mil teriam sido massacrados.
Agora, em silêncio, defensores e atacantes começaram a se separar. Os "corpos" se levantaram, armas foram coletadas. Houve risos e gemidos. Muitos homens mancavam e alguns estavam com ferimentos mais graves.
- Cumprimento-o, Yabu-sama! - disse Jozen com grande sinceridade. - Agora compreendo tudo o que o senhor queria dizer!
- O tiroteio estava disperso - disse Yabu, inteiramente encantado. - Vai levar meses para treiná-los.
Jozen balançou a cabeça.
- Eu não gostaria de atacá-los agora. Não se tivessem munição verdadeira. Nenhum exército poderia resistir àquele murro, nenhum alinhamento. As fileiras nunca conseguiriam permanecer fechadas. E então se lançariam tropas comuns e cavalaria através da brecha e se enrolariam os lados como se fosse um velho pergaminho. — Ele agradecia a todos os kamis por ter tido o bom senso de assistir a um ataque. - Foi terrível de assistir. Por um instante pensei que a batalha fosse real.
- Eles receberam ordens de fazer parecer real. E agora o senhor pode revistar os meus mosqueteiros, se desejar.
- Obrigado. Isso seria uma honra.
Os defensores estavam afluindo para os seus acampamentos que se erguiam no flanco da colina oposta. Os quinhentos mosqueteiros esperavam embaixo, perto do caminho que subia pela elevação e descia para a aldeia. Estavam se formando nas suas companhias. Omi e Naga à frente deles, ambos usando espadas de novo.
- Yabu-sama?
- Sim, Anjin-san?
- Bom, não?
- Sim, bom.
- Obrigado, Yabu-sama. Eu satisfaço.
Mariko corrigiu-o automaticamente:
- "Fico satisfeito."
- Ah, desculpe. Fico satisfeito.
Jozen chamou Yabu de lado. - Isso saiu tudo da cabeça do Anjin-san?
- Não - mentiu Yabu. - Mas é o modo como os bárbaros lutam. Ele está só treinando os homens a carregar e atirar.
- Por que não fazer o que Naga-san aconselhou? O senhor tem o conhecimento do bárbaro agora. Por que correr o risco de que isso se espalhe? Ele é uma praga. Muito perigoso, Yabu-sama. Naga-san tinha razão. É verdade: os camponeses poderiam combater deste modo. Facilmente. Livre-se do bárbaro já.
- Se o Senhor Ishido quiser a cabeça dele, só terá que pedir.
- Eu peço. Agora. - Novamente a truculência. - Falo com a voz dele.
- Considerarei isso, Jozen-san.
- E também, em nome dele, peço que se retirem todas as armas daqueles homens imediatamente.
Yabu franziu o cenho, depois voltou a atenção para as companhias. Estavam se aproximando do topo da colina, as fileiras em ordem, disciplinadas, levemente ridículas como sempre, só porque aquela formação não era habitual. A cinqüenta passos de distância, pararam. Omi e Naga avançaram sozinhos e saudaram.
- Estava bem para um primeiro exercício - disse Yabu.
- Obrigado, senhor - respondeu Omi. Coxeava levemente e tinha o rosto sujo, escoriado, marcado de pólvora.
- Suas tropas teriam que portar espadas numa batalha real, Yabu-sama, neh? - disse Jozen. - Um samurai tem que portar espadas. Eventualmente ficariam sem munição, neh?
- As espadas terão o seu papel, no ataque e na retirada. Oh, eles as usarão como sempre para manter a surpresa, mas, logo depois da primeira carga, livram-se delas.
- Samurais sempre precisarão de espadas. Numa batalha real. Ainda assim, estou contente porque não teremos nunca que usar esta força de ataque, ou... - Jozen ia acrescentar "ou esse imundo e traiçoeiro método de guerra". Mas disse: - ...ou teremos todos que abandonar nossas espadas.
- Talvez tenhamos, Jozen-san, quando formos à guerra.
- O senhor renunciaria à sua lâmina Murasama? Ou mesmo ao presente de Toranaga?
- Para vencer uma batalha, sim. De outro modo não.
- Então o senhor talvez tivesse que correr bem depressa para salvar as frutas quando o seu mosquete emperrasse ou a pólvora molhasse. - Jozen riu com o próprio gracejo. Yabu não.
- Omi-san! Mostrê-lhe! - ordenou.
Imediatamente Omi deu uma ordem. Seus homens puxaram a pequena baioneta embainhada que pendia quase despercebida nas costas do cinto de cada um e a enfiaram na cavidade da boca dos mosquetes.
- Atacar!
Imediatamente os samurais investiram com o seu grito de batalha:
- Kasigiiiiii!
A floresta de aço nu parou a um passo deles. Jozen e seus homens riram nervosamente devido à repentina e insuspeita ferocidade.
- Bom, muito bom - disse Jozen. Estendeu a mão e tocou uma baioneta. Era extremamente afiada. - Talvez tenha razão, Yabu-sama. Esperemos que isto não tenha que ser testado.
- Omi-san! - chamou Yabu. - Forme-os. Jozen-san vai revistá-los. Depois voltem para o acampamento. Mariko-san, Anjin-san, sigam-me! - Desceu a passos largos da elevação, por entre as fileiras, seguido dos auxiliares, de Blackthorne e Mariko.
- Formar no caminho. Substituir baionetas!
Metade dos homens obedeceram no mesmo instante, deram meia-volta e desceram a vertente de novo. Naga e seus duzentos e cinqüenta samurais continuaram onde estavam, as baionetas ainda ameaçando.
Jozen indignou-se.
- O que está havendo?
- Considero seus insultos intoleráveis - disse Naga malignamente.
- Isso é absurdo. Não o insultei, nem a ninguém! As suas baionetas é que insultam a minha posição! Yabu-sama!
Yabu voltou-se. Estava agora do outro lado do contingente Toranaga.
- Naga-san - chamou friamente -, o que significa isso?
- Não posso perdoar a esse homem os insultos a meu pai, ou a mim.
- Ele está protegido. Você não pode tocá-lo! Está sob o emblema dos regentes!
- Seu perdão, Yabu-sama, mas isto é entre mim e Jozen-san.
- Não. Você está sob as minhas ordens. Ordeno-lhe que diga aos seus homens que regressem ao acampamento.
Nem um homem se moveu. A chuva começou.
- Seu perdão, Yabu-san, por favor, perdoe-me, mas isto é entre mim e ele, e aconteça o que acontecer, isento-o de toda responsabilidade pelo meu ato e o dos meus homens.
Atrás de Naga, um dos homens de Jozen sacou a espada e avançou para as costas desprotegidas de Naga. Uma saraivada de vinte mosquetes estourou-lhe a cabeça imediatamente. Esses vinte homens se ajoelharam e começaram a recarregar. A segunda fileira preparou-se.
- Quem ordenou munição real? - perguntou Yabu.
- Eu. Eu, Yoshi-noh-Toranaga!
- Naga-san! Ordeno-lhe que deixe Nebara Jozen e seus homens irem-se livremente. Ordeno-lhe que se retire para o seu alojamento até que eu possa consultar o Senhor Toranaga sobre a sua insubordinação!
- Naturalmente o senhor informará o Senhor Toranaga, e karma é karma. Mas lamento, Senhor Yabu, que antes este homem precise morrer. Todos devem morrer. Hoje!
Jozen estremeceu.
- Estou protegido pelos regentes! Você não ganhará nada me matando.
- Recupero minha honra, neh? - disse Naga. – Retribuo-lhe as zombarias a meu pai e seus insultos a mim. Mas o senhor teria que morrer de qualquer maneira, neh? Eu não poderia ter sido mais claro a noite passada. Agora o senhor assistiu a um ataque. Não posso correr o risco de que Ishido tome conhecimento de todo este... - sua mão apontou para o campo de batalha - ... este horror!
- Ele já sabe! - deixou escapar Jozen, abençoando a própria antevisão da noite precedente. - Ele já sabe! Mandei uma mensagem por pombo secretamente ao amanhecer! Não ganha nada me matando, Naga-san!
Naga fez sinal a um dos seus homens, um velho samurai, que avançou e atirou o pombo estrangulado aos pés de Jozen. Depois a cabeça decepada de um homem também foi atirada ao chão - a cabeça do samurai, Masumoto, enviado na véspera por Jozen com o pergaminho. Os olhos ainda estavam abertos, os lábios repuxados numa careta de ódio. A cabeça começou a rolar. Foi aos trambolhões por entre as fileiras até pousar contra uma rocha.
Um gemido irrompeu dos lábios de Jozen. Naga e todos os seus homens riram. Até Yabu sorriu. Outro dos samurais de Jozen saltou para Naga. Vinte mosquetes espocaram e o homem atrás dele, que não tinha se movido, também caiu em agonia, mortalmente ferido.
O riso cessou.
- Devo ordenar aos meus homens que ataquem, senhor? - perguntou Omi. Fora tão fácil manobrar Naga.
Yabu enxugou a chuva do rosto.
- Não, isso não serviria para nada. Jozen-san e seus homens já estão mortos, não importa o que eu faça. É o karma dele, assim como Naga tem o seu. Naga-san! - bradou ele. - Pela última vez, ordeno-lhe que os deixe partir!
- Por favor, desculpe-me, mas tenho que recusar.
- Muito bem. Quando estiver acabado, apresente-se a mim.
- Sim. Deve haver uma testemunha oficial, Yabu-sama. Para o Senhor Toranaga e para o Senhor Ishido.
- Omi-san, você fica. Assinará o certificado de morte e fará o relatório. Naga-san e eu o rubricaremos.
Naga apontou para Blackthorne.
- Deixe-o ficar também. Igualmente como testemunha. Ele é responsável pela morte deles. Devia testemunhar.
- Anjin-san, suba até aqui! Junto de Naga-san! Compreendeu?
- Sim, Yabu-san. Compreendi, mas por quê, por favor?
- Para ser uma testemunha.
- Desculpe, não compreendi.
- Mariko-san, explique "testemunha" a ele, que ele deve testemunhar o que vai acontecer, depois acompanhe-me. - Ocultando a sua imensa satisfação, Yabu voltou-se e se afastou.
Jozen estremeceu.
- Yabu-san! Por favor! Yabuuuuuusamaaaa!
Blackthorne assentiu. Quando terminou, voltou para casa. Havia silêncio na casa e uma mortalha sobre a aldeia. Um banho não o fez sentir-se limpo. O saquê não lhe tirou o gosto da boca. O incenso não lhe desobstruiu o mau cheiro das narinas.
Mais tarde Yabu mandou buscá-lo. O ataque foi dissecado, momento a momento. Omi e Naga estavam lá, com Mariko - Naga como sempre, frio, ouvindo, raramente comentando, ainda segundo em comando. Nenhum deles parecia tocado pelo que ocorrera.
Trabalharam até depois do pôr-do-sol. Yabu ordenou que o ritmo do treinamento fosse acelerado. Um segundo grupo de quinhentos devia ser formado imediatamente. Dentro de uma semana, outro.
Blackthorne caminhou para casa sozinho, comeu sozinho, acossado pela sua assombrosa descoberta: que eles não tinham sentido de pecado, eram todos sem consciência - até Mariko.
Naquela noite não conseguiu dormir. Saiu de casa, o vento lutando contra ele. Rajadas faziam espumar as ondas. Uma lufada mais forte lançou entulho com estrépito contra uma cabana da aldeia. Cães uivavam para o céu, andando à cata de alimento. Os telhados de palha de arroz moviam-se como coisas vivas. Venezianas batiam com violência e homens e mulheres, espectros silenciosos, esforçavam-se por fechá-las e fixá-las com traves. A maré subia lentamente. Todos os botes de pesca tinham sido puxados para a segurança da praia, muito mais longe do que o habitual. Tudo fora fixado com sarrafos. Ele caminhou pela praia, depois voltou para casa, vergado pela pressão do vento. Não encontrara ninguém. A chuva começou a cair em rajadas e ele logo ficou encharcado.
Fujiko o esperava na varanda, o vento açoitando-a, fazendo pingar a lâmpada de óleo protegida por um anteparo. Estavam todos acordados. Criados carregavam valores para o depósito de pedra no fundo do jardim.
A ventania ainda não era ameaçadora.
Uma telha virou, solta, quando o vento penetrou sob uma aba do telhado, que estremeceu todo. A telha caiu e se espatifou sonoramente. Criados se alvoroçavam ao redor, alguns preparando baldes de água, outros tentando consertar o telhado. O velho jardineiro, Ueki-ya, ajudado por crianças, amarrava os arbustos e as árvores tenros a estacas de bambu.
Outra rajada balançou a casa.
- Vai desabar, Mariko-san.
Ela não disse nada, o vento ferindo-a e a Fujiko, provocando-lhes lágrimas nos cantos dos olhos. Ele olhou para a aldeia. Os detritos estavam sendo atirados por toda parte. Então o vento se introduziu por um rasgão na shoji de papel de uma construção e a parede inteira sumiu, deixando apenas um esqueleto entrelaçado. A parede oposta esfacelou-se e o telhado ruiu.
Blackthorne voltou-se, indefeso, quando uma shoji do seu quarto veio abaixo. Aquela parede desapareceu, e o mesmo aconteceu com a oposta. Logo todas as paredes estavam em tiras. Ele podia ver através da casa toda. Mas os suportes do telhado agüentaram e o telhado não se deslocou. Leitos, lanternas e esteiras estavam sendo arrastados, criados atrás deles.
A tempestade demoliu as paredes de todas as casas da aldeia. E algumas foram-completamente arrasadas. Ninguém se feriu gravemente. Ao amanhecer o vento acalmou e homens e mulheres começaram a reconstruir seus lares.
Pelo meio-dia as paredes da casa de Blackthorne tinham sido refeitas e metade da aldeia estava de volta ao normal. As paredes de treliça leve requeriam pouco trabalho para serem erguidas mais uma vez, apenas cavilhas de madeira e amarras para conexões que eram sempre encaixadas e carpintejadas com grande habilidade. Os telhados de telhas e sapé eram mais difíceis, mas ele viu que as pessoas se ajudavam mutuamente, sorridentes, rápidas e com muita prática. Mura corria pela aldeia, aconselhando, orientando e supervisionando. Subiu a colina para inspecionar os progressos.
- Mura, você fez - Blackthorne procurou as palavras -, você faz a coisa parecer fácil.
- Ah, obrigado, Anjin-san. Sim, obrigado, mas fomos felizes de não ter havido incêndios.
- Vocês incêndios com freqüências?
- Desculpe: "Vocês têm incêndios com freqüência?"
- Vocês têm incêndios com freqüência? - repetiu Blackthorne.
- Sim. Mas eu havia dado ordens para que a aldeia se
preparasse. "Preparasse", o senhor compreende?
- Sim.
- Quando essas tempestades começam... - Mura se retesou e olhou por sobre o ombro de Blackthorne. Sua mesura foi profunda.
Omi estava se aproximando no seu passo gingado, os olhos amistosos apenas em Blackthorne, como se Mura não existisse.
- Bom dia, Anjin-san.
- Bom dia, Omi-san. Sua casa está bem?
- Sim. Obrigado. - Omi olhou para Mura e disse bruscamente: - Os homens deviam estar pescando, ou trabalhando os campos. As mulheres também. Yabu-san quer seus impostos. Estão tentando me envergonhar na frente dele com a sua preguiça?
- Não, Omi-san. Por favor, desculpe-me. Providenciarei imediatamente.
- Não devia ser necessário dizer-lhe. Não lhe direi na próxima vez.
- Peço desculpas pela minha estupidez. - Mura afastou-se às pressas.
- O senhor está bem hoje - disse Omi a Blackthorne.
- Nenhum problema à noite?
- Bem hoje, obrigado. E o senhor?
Omi falou longamente. Blackthorne não assimilou tudo, assim como não compreendera tudo o que Omi dissera a Mura, só algumas palavras aqui, outras ali.
- Desculpe. Não compreendo.
- Gostou? Gostou de ontem? Do ataque? Da batalha simulada?
- Ah, compreendo. Sim, acho bom.
- E o testemunho?
- Por favor?
- Testemunho! O ronin Nebara Jozen e seus homens? - Omi imitou a estocada de baioneta com uma risada. - O senhor testemunhou a morte deles. Morte! Compreende?
- Ah, sim. A verdade, Omi-san, não gostar matanças.
-. Karma, Anjin-san.
- Karma. Hoje treinamento?
- Sim. Mas Yabu-sama quer conversar apenas. Mais tarde. Compreendeu, Anjin-san? Apenas conversar, mais tarde – Omi repetia pacientemente.
- Conversar apenas. Compreender.
- Está começando a falar a nossa língua muito bem. Sim. Muito bem.
- Obrigado. Difícil. Pequeno tempo.
- Sim. Mas o senhor é um bom homem e tenta arduamente. Isso é importante. Nós lhe daremos tempo, Anjin-san, não se preocupe. Eu o ajudarei. - Omi podia ver que a maior parte do que dizia se perdia, mas não importava, desde que Anjin-san captasse o essencial. - Quero ser seu amigo - disse, e repetiu com toda a clareza. - Compreende?
- Amigo? Eu compreendo "amigo".
Omi apontou para si mesmo, depois para Blackthorne. Quero ser seu amigo.
- Ah! Obrigado. Honrado.
Omi sorriu de novo e curvou-se, de igual para igual, e se afastou.
- Amigo dele? - resmungou Blackthorne. - Será que ele esqueceu? Eu não.
- Ah, Anjin-san - disse Fujiko, correndo na sua direção.
- Gostaria de comer? Yabu-sama vai mandar buscá-lo dentro em breve
- Sim, obrigado. Muitos quebras? - perguntou ele, apontando para a casa.
- Desculpe-me, sinto muito, mas o senhor deve dizer: "Houve muitos danos?"
- Houve muitos danos?
- Nenhum dano real, Anjin-san.
- Ótimo. Não ferimentos?
- Desculpe-me, sinto muito, o senhor deve dizer: "Ninguém se feriu.”
- Obrigado. Ninguém se feriu?
- Não, Anjin-san. Ninguém se feriu.
De repente Blackthorne se cansou de ser continuamente corrigido, então encerrou a conversa com uma ordem.
- Estou fome! Comida!
- Sim, imediatamente. Desculpe, mas o senhor deve dizer: "Estou com fome". Uma pessoa tem fome, mas está com fome, ou faminta. - Esperou até que ele dissesse corretamente, depois se afastou.
Ele se sentou na varanda e observou Ueki-ya, o velho jardineiro, limpando o estrago e as folhas dispersas. Podia ver mulheres e crianças consertando a aldeia, e barcos saindo para o mar encapelado. Gostaria de saber que impostos eles têm que pagar, disse a si mesmo. Eu odiaria ser um camponês aqui. Não só aqui - em qualquer lugar.
À primeira luz ele ficara desolado com a aparente devastação da aldeia.
- Essa tempestade mal tocaria uma casa inglesa - dissera a Mariko. - Oh, foi uma ventania, está certo, mas não foi séria. Por que vocês não constroem com pedra ou tijolos?
- Por causa dos terremotos, Anjin-san. Qualquer construção de pedra naturalmente racharia e desabaria, e provavelmente feriria ou mataria os moradores. Com o nosso estilo de construção, o dano é pequeno. O senhor verá como tudo será rapidamente reconstruído.
- Sim, mas vocês têm riscos de incêndio. E o que acontece quando chegam os Grandes Ventos? Os taifuns?
- Aí é muito mau.
Ela explicara sobre os taifuns e as estações deles - de junho a setembro, às vezes mais cedo, às vezes mais tarde. E sobre as outras catástrofes naturais.
Poucos dias antes tinha havido outro tremor. Fora leve. Uma chaleira caíra do braseiro e o derrubara. Felizmente as brasas tinham sido apagadas. Uma casa na aldeia pegara fogo, mas o incêndio não se alastrara. Blackthorne nunca vira um combate ao fogo tão eficiente. Além disso, ninguém na aldeia prestara muita atenção. Simplesmente riram e continuaram com a vida de todo dia.
- Por que as pessoas riem?
- Consideramos muito vergonhoso e descortês demonstrar sentimentos fortes, particularmente o medo, então ocultamo-los com uma risada ou um sorriso. Claro que ficamos todos com medo, embora não devamos demonstrá-lo.
Alguns de vocês demonstram, pensou Blackthorne.
Nebara Jozen demonstrara. Morrera pessimamente, soluçando de medo, implorando clemência, uma morte lenta e cruel. Deram-lhe permissão para correr, depois fora baionetado cuidadosamente por entre risadas, depois forçado a correr de novo, e novamente paralisado. Em seguida deixaram-no rastejar, depois estriparam-no lentamente, enquanto urrava, o sangue gotejando, e abandonaram-no para morrer.
Em seguida Naga voltara a atenção para os outros samurais. Imediatamente três dos homens de Jozen se ajoelharam, despiram o ventre e sacaram as adagas para cometer o seppuku ritual. Três dos seus companheiros postaram-se atrás deles como assistentes, as espadas compridas desembainhadas e levantadas, nenhum deles molestado por Naga ou seus homens. Quando os samurais ajoelhados estenderam a mão para a faca, os assistentes esticaram-lhes o pescoço e as três espadas faiscaram e os decapitaram com um único golpe. As cabeças rolaram, chocalhando dentes, depois ficaram imóveis. Moscas enxamearam.
Depois dois samurais se ajoelharam, o último homem em pé, pronto para agir como auxiliar. O primeiro ajoelhado foi decapitado à maneira dos companheiros quando se lançou para a faca. O outro disse:
- Não, eu, Hirasaki Kenko, sei como morrer... como um samurai deve morrer.
Kenko era um jovem suave, perfumado e quase bonito, de pele pálida, o cabelo bem oleado e muito arrumado. Pegou a faca reverentemente e envolveu parcialmente a lâmina com o sash para segurá-la melhor.
- Protesto contra a morte de Nebara Jozen-san e destes homens - disse com firmeza, curvando-se para Naga. Deu uma última olhada para o céu e ao auxiliar um último sorriso tranqüilizador. - Sayonara, Tadeo. - Depois enterrou a faca no lado esquerdo do estômago. Com as duas mãos, rasgou de lado a lado, tirou a faca e mergulhou-a mais fundo ainda, bem acima da virilha, e arrancou-a em silêncio. Seus intestinos dilacerados derramaram-se sobre o colo e enquanto seu rosto horrivelmente contorcido, torturado, se lançava para a frente, seu auxiliar desceu a espada num único arco fustigante.
Naga pessoalmente pegou-lhe a cabeça pelo cabelo, limpou a sujeira e fechou-lhe os olhos. Depois disse a seus homens que providenciassem para que a cabeça fosse lavada, embrulhada e enviada a Ishido com honras totais, com um relato completo da bravura de Hirasaki Kenko.
O último samurai se ajoelhou. Não sobrara ninguém para assisti-lo. Também ele era jovem. Seus dedos tremiam e o medo o consumia. Por duas vezes cumprira o seu dever para com os companheiros, por duas vezes cortara imaculadamente, honrosamente, poupando-os da aflição da dor e da vergonha do medo.
E esperara que seu amigo mais caro morresse como um samurai devia morrer, auto-lmolado num silêncio orgulhoso, depois cortara imaculadamente de novo, com perfeita habilidade. Ele nunca matara antes.
Seus olhos focalizaram a sua própria faca. Despiu o estômago e rezou para ter a coragem do amante. Lágrimas afloraram, mas ele pela força de vontade transformou o rosto numa máscara gelada, sorridente. Desatou o sash e envolveu parcialmente a lâmina. Depois, porque o jovem cumprira bem o seu dever, Naga fez um gesto ao seu lugar-tenente.
Esse samurai avançou e se curvou, apresentando-se formalmente.
- Osaragi Nampo, capitão da Nona Legião do Senhor Toranaga. Eu ficaria honrado em agir como seu auxiliar.
- Ikomo Tadeo, primeiro oficial, vassalo do Senhor Ishido - retrucou o jovem. - Obrigado. Eu ficaria honrado em aceitá-lo como meu auxiliar.
Sua morte foi rápida, indolor e honrosa.
As cabeças foram reunidas. Mais tarde Jozen voltou à vida com um estremecimento. Suas mãos frenéticas tentaram em vão fechar o ventre.
Abandonaram-no aos cães que tinham subido da aldeia.