CAPÍTULO 50
Blackthorne estava sentado sozinho ao sol da manhã, num canto do jardim, fora da casa de hóspedes, devaneando, o dicionário na mão. Fazia um dia ótimo, sem nuvens — o primeiro em muitas semanas —, e era o quinto dia desde a última vez que vira Toranaga. Todo esse tempo estivera confinado ao castelo, incapaz de ver Mariko, visitar seu navio ou sua tripulação, explorar a cidade, ou caçar ou cavalgar. Uma vez por dia ia nadar num dos fossos com outros samurais, e para passar o tempo ensinou alguns a nadar e a mergulhar. Mas isso não tornava a espera mais fácil.
— Sinto muito, Anjin-san, mas é a mesma coisa para todo mundo — dissera Mariko na véspera, quando a encontrara por acaso na sua seção do castelo. — Até o Senhor Hiromatsu está sendo mantido à espera. Faz dois dias que ele chegou e ainda não viu o Senhor Toranaga. Ninguém viu.
— Mas isso é importante, Mariko-san. Pensei que ele tivesse compreendido que cada dia é vital. Não há algum modo de eu lhe enviar uma mensagem?
— Oh, sim, Anjin-san. Isso é simples. Simplesmente escreva. Se me disser o que quer dizer, escreverei para o senhor. Todo mundo tem que escrever para uma entrevista, são essas as ordens atuais. Por favor, seja paciente, é tudo o que podemos fazer.
— Então, por favor, peça uma entrevista. Eu agradeceria... — Isso não é problema, o prazer é meu.
— Onde a senhora esteve? Faz quatro dias que não a vejo. — Por favor, desculpe-me, mas tive que fazer muitas coisas. É ... é um pouco difícil para mim, tantos preparativos...
— O que está acontecendo? Este castelo todo está como uma colméia prestes a levantar vôo há quase uma semana.
— Oh, sinto muito. Está tudo ótimo, Anjin-san.
— Está? Sinto muito, um general e um administrador cometem seppuku no adro do torreão. Isso é normal? O Senhor Toranaga se tranca na torre de marfim, mantendo as pessoas à espera sem razão aparente... isso também é normal? E o Senhor Hiromatsu?
— O Senhor Toranaga é o nosso senhor. Tudo o que ele faz é certo.
— E a senhora, Mariko-san? Por que não a tenho visto? — Por favor, desculpe-me, sinto muito, mas o Senhor Toranaga ordenou que eu o deixasse com os seus estudos. Estou visitando a sua consorte agora, Anjin-san. Não o senhor.
— Por que ele objetaria a isso?
— Meramente, suponho, para que o senhor seja obrigado a falar a nossa língua. Foram só alguns dias, neh?
— Quando parte para Osaka?
— Não sei. Esperava partir há três dias, mas o Senhor Toranaga ainda não assinou o meu passe. Arranjei tudo, carregadores e cavalos, e diariamente apresento os meus papéis de viagem ao secretário deie, para que sejam assinados, mas são sempre devolvidos. "Apresente-os amanhã."
— Pensei que ia levá-la a Osaka por mar. Ele não disse que eu devia levá-la por mar?
— Sim. Sim, disse, mas... bem, Anjin-san, nunca se sabe com o nosso suserano. Ele muda os planos.
— Ele sempre foi assim?
— Sim e não. Desde Yokosé ele tem estado cheio de... como dizer... melancolia, neh? ... sim, melancolia, e muito diferente. Ele... sim, está diferente agora.
— Desde a Primeira Ponte a senhora está cheia de melancolia e muito diferente. Sim, está diferente agora.
-— A Primeira Ponte foi um fim e um começo, Anjin-san, e a nossa promessa. Neh?
— Sim. Por favor, desculpe-me.
Ela se curvara tristemente e partira, e depois, a uma distância segura, sem se voltar, sussurrara em latim: — Você... — A palavra pairou no corredor com o seu perfume.
À refeição noturna ele tentara interrogar Fujiko. Mas ela também não sabia nada de importante, ou não podia explicar o que havia de errado no castelo.
— Dozo gomen nasai, Anjin-san.
Ele foi para a cama perturbado. Perturbado pela frustração com os adiamentos e as noites sem Mariko. Era sempre ruim saber que ela estava tão perto, que Buntaro estava fora da cidade, e agora, por causa do "Você...", que o desejo dela continuava tão intenso quanto o seu. Alguns dias atrás ele fora à casa dela, sob o pretexto de que precisava de auxílio com o japonês. Os guardas samurais lhe disseram: "Sinto muito, ela não está". Ele lhes agradecera, depois caminhara à toa até o portão principal sul. Dali podia enxergar o oceano. Como a terra era muito plana, não conseguia ver nada além dos embarcadouros e dos cais, embora pensasse poder distinguir os altos mastros do seu navio à distância.
O oceano o chamava. Era o horizonte mais que o mar, a necessidade de um vento calmo soprando contra ele, olhos semicerrados contra a sua força, a língua sentindo-lhe o sal, o convés adernando, e no topo dos mastros o cordame, as adriças estalando e gemendo sob a pressão das velas que, de vez em quando, dariam estalidos de alegria quando a brisa forte mudasse um ponto ou dois.
E era a liberdade mais que o horizonte. A liberdade de ir em qualquer direção, com qualquer tempo, conforme o capricho.
Erguer-se no seu tombadilho e ser árbitro, assim como, ali, Toranaga sozinho era árbitro.
Blackthorne levantou os olhos para a parte mais elevada do torreão. O sol cintilava nas suas curvas simetricamente cobertas de telhas. Ele nunca vira movimento ali, embora soubesse que cada janela abaixo do último andar era guardada.
Gongos soaram a mudança da hora. Pela primeira vez sua mente lhe disse que aquilo era a metade da hora do Cavalo, e não oito badaladas do turno — pleno meio-dia.
Colocou o dicionário na manga, contente de ser a hora da primeira refeição de verdade.
Naquele dia foi arroz, camarões grandes grelhados, sopa de peixe e vegetais em conserva.
— Aceita mais um pouco, Anjin-san?
— Obrigado, Fujiko. Sim. Arroz, por favor. E um pouco de peixe. Bom... muito... — Procurou a palavra "delicioso" e disse-a várias vezes para memorizar. — Sim, delicioso, neh?
Fujiko ficou satisfeita. — Obrigada. Este peixe é do norte. Água mais fria ao norte, compreende? O nome é "kurima-ebi". Ele repetiu o nome e guardou-o na memória. Quando terminou e as bandejas foram levadas, ela lhe serviu mais chá e tirou um pacote da manga.
— Dinheiro, Anjin-san. — Mostrou-lhe as moedas de ouro. — Cinqüenta kobans. Valem cento e cinqüenta kokus. O senhor quer, neh? Para os marinheiros. Por favor, está compreendendo? — Sim, obrigado.
— Não há de quê. Suficiente?
— Sim. Acho que sim. Onde conseguiu?
— O... — Fujiko procurou um meio simples de dizer. — Eu vou importante homem Toranaga. Chefe. Como Mura, neh? Não samurai... só prestamista. Assino meu nome pelo senhor.
— Ah, compreendo. Obrigado. Meu dinheiro? Meus kokus? — Oh, sim.
— Esta casa. Comida. Criados. Quem paga? — Oh, eu pago. Do seu... dos kokus um ano. — É suficiente, por favor? Kokus suficientes? — Oh, sim. Sim, acredito que sim — disse ela. — Por que preocupação? Preocupação no rosto?
— Oh, por favor, desculpe-me, Anjin-san. Não estou preocupada. Não preocupação...
— Dor? Queimadura dor?
— Não dor. Veja. — Cuidadosamente Fujiko se levantou das espessas almofadas que ele insistia que ela usasse. Ajoelhou-se diretamente sobre os tatamis sem qualquer sinal de desconforto, depois se sentou sobre os calcanhares e se acomodou. — Pronto, tudo melhor.
— Iiiiiih, muito bom — disse ele, satisfeito por ela. — Mostrar, hein?
Ela se ergueu com cuidado, levantou a barra das saias e permitiu-lhe que olhasse as costas das pernas. O tecido da cicatriz não se fendera e não havia supuração. — Muito bom — disse ele. — Sim, logo como pele de bebê, neh?
— Obrigada, sim. Macia. Obrigada, Anjin-san.
Ele notou a leve mudança na voz dela, mas não comentou. Naquela noite não a mandou embora.
O "travesseiro" foi satisfatório. Nada mais. Para ele não houve crepúsculo ou alegre lassidão. Foi apenas um acasalamento. Tão errado, pensou ele, e no entanto não errado, neh?
Antes de deixá-lo, ela se ajoelhou, curvou-se novamente e pousou as mãos sobre a testa dele. — Agradeço-lhe de todo o coração. Por favor, durma agora, Anjin-san.
— Obrigado, Fujiko-san. Durmo mais tarde.
— Por favor, durma agora. É meu dever e me daria grande prazer.
O toque da mão era quente e seco e não era agradável. Ainda assim, ele fingiu adormecer. Ela o acariciou inabilmente, embora com grande paciência. Depois, silenciosamente, voltou para o seu quarto. Agora sozinho de novo, e contente por estar sozinho, Blackthorne apoiou a cabeça nos braços e olhou na escuridão.
Tomara uma decisão em relação a Fujiko durante a viagem de Yokosé a Yedo.
— É o seu dever — dissera-lhe Mariko, deitada nos seus braços.
— Acho que seria um erro, neh? Se ela engravidar, bem, vou levar quatro anos para navegar até em casa e voltar, e Deus sabe o que pode acontecer até lá.
Ele se lembrava de como Mariko tremera então. — Oh, Anjin-san, isso é muito tempo.
— Três então. Mas você estará a bordo comigo. Vou levá-la de volta com...
— A sua promessa, meu querido! Nada do que é, neh?
— Tem razão. Sim. Mas com Fujiko muitas coisas ruins poderiam acontecer. Não acho que ela desejaria um filho meu. — Você não sabe isso. Não o compreendo, Anjin-san. É o seu dever. Ela sempre poderia evitar um filho, neh? Não esqueça, ela é sua consorte. Na verdade, você lhe tira a dignidade se não a convida para "travesseirar". Afinal de contas, o próprio Toranaga ordenou que ela fosse para a sua casa.
— Por que ele fez isso?
— Não sei. Não tem importância. Ordenou, por conseguinte é o melhor para você e o melhor para ela. Foi bom, neh? Ela tem cumprido seu dever do melhor modo que pode, neh? Por favor, mas você não acha que devia cumprir seu dever?
— Chega de sermões! Ame-me e não fale mais.
— Como devo amá-lo? Ah, como Kiku-san me disse hoje? — Como é isso?
— Assim.
— Isso é muito bom ... muito bom.
— Oh, esqueci, acenda a lâmpada, por favor, Anjin-san. Tenho uma coisa para lhe mostrar.
— Mais tarde, agora eu...
— Oh, por favor, desculpe-me, tem que ser agora. Comprei para você. É um livro de "travesseiro". As figuras são muito engraçadas.
— Não quero ver um livro de "travesseiro" agora.
— Mas, desculpe, Anjin-san, talvez uma das gravuras o excitasse. Como se pode aprender sobre "travesseiro" sem um livro de "travesseiro"?
— Já estou excitado.
— Mas Kiku-san disse que é o melhor meio de escolher posições. São quarenta e sete. Algumas parecem surpreendentes e muito difíceis, mas, ela disse que é importante tentar todas... Por que está rindo?
— Você está rindo... por que eu não deveria rir também? — Mas eu estava rindo porque você também estava, e eu senti o seu estômago balançando e você não vai deixar que eu me levante. Por favor, deixe-me levantar, Anjin-san!
— Ah, mas você não pode ser tão rabugenta, Mariko, querida. Não há mulher no mundo que possa realmente ser tão rabugenta assim...
— Mas, Anjin-san, por favor, deve deixar que eu me levante. Quero lhe mostrar.
— Está bem. Se isso ...
— Oh, não, Anjin-san, eu não queria — você não deve — não pode só esticar a mão — por favor, ainda não — oh, por favor, não se afaste — oh, como o amo assim...
Blackthorne lembrava-se daquela noite. Mariko excitou-o mais do que Kiku, e Fujiko não era nada comparada às duas. E Felicity?
Ah, Felicity, pensou ele, concentrando-se no seu grande problema. Devo estar louco por amar Mariko, e Kiku. E no entanto... a verdade sobre Felicity é que agora ela não pode se comparar sequer com Fujiko. Fujiko é limpa. Pobre Felicity. Nunca serei capaz de lhe dizer, mas a lembrança de nós dois no cio como um par de arminhos sobre o feno ou sob cobertas rançosas faz a minha pele se arrepiar. Agora conheço coisa melhor. Agora poderia ensiná-la, mas ela gostaria de aprender? E como poderíamos nos limpar, permanecer limpos e viver limpos?
Meu lar é lixo amontoado sobre lixo, mas é lá que se encontra a minha mulher, é lá que estão meus filhos e é lá que eu sou. — Não pense nesse lar, Anjin-san — dissera Mariko uma vez, quando ele se deixara envolver pela névoa escura das lembranças. — O lar real é aqui, o outro está a dez milhões de vezes, dez milhões de bastões de distância. Aqui é a realidade. O senhor vai enlouquecer se tentar atingir a wa a partir de tais impossibilidades. Ouça, se o senhor quer paz deve aprender a tomar chá de uma xícara vazia.
Ela lhe mostrara como. — O senhor pensa na realidade na xícara, pensa que o chá está lá, a quente e verde-clara bebida dos deuses. Se se concentrar intensamente... Oh, um professor zen poderia lhe mostrar, Anjin-san. É muito difícil, mas muito fácil. Como gostaria de ser inteligente o bastante para lhe mostrar, pois então todas as coisas do mundo podem ser suas, bastando pedi-Ias... até o presente mais inconquistável: a tranqüilidade perfeita.
Ele tentara muitas vezes, mas nunca conseguiu tomar a bebida quando ela não estava lá.
— Não tem importância, Anjin-san. Leva muito tempo para aprender, mas o senhor aprenderá, algum dia.
— A senhora consegue?
— Raramente. Apenas em momentos de grande tristeza ou solidão. Mas o sabor do chá irreal parece dar um sentido à vida. É difícil de explicar. Fiz uma ou duas vezes. Às vezes se atinge a wa com a simples tentativa.
Agora, deitado no escuro do castelo, o sono tão remoto, ele acendeu a vela com a pederneira e se concentrou na pequena xícara de porcelana que Mariko lhe dera e que ele agora mantinha sempre ao lado da cama. Tentou durante uma hora. Mas não conseguiu purificar a mente. Inevitavelmente os mesmos pensamentos se atropelavam: quero partir, quero ficar. Tenho medo de voltar, tenho medo de permanecer aqui. Odeio a ambos e amo a ambos. E depois há os "eters".
Se dependesse apenas de mim, eu não partiria, ainda não. Mas há outros envolvidos e eles não são "eters" e eu assinei como piloto: "Pelo Senhor Deus, prometo partir com a frota e, com a graça de Deus, trazê-la para casa de novo". Quero Mariko. Quero ver a terra que Toranaga me deu e preciso ficar aqui, para gozar o fruto da minha grande sorte só mais um pouquinho. Sim. Mas também há dever envolvido e isso transcende a tudo, neh?
Com o amanhecer, Blackthorne soube que, embora fingisse ter adiado a decisão novamente, na realidade se decidira. Irrevogavelmente.
Que Deus me ajude, primeiro e último sou piloto.
Toranaga desenrolou a minúscula tira de papel que chegou duas horas após o amanhecer. A mensagem de sua mãe dizia simplesmente: "Seu irmão concorda, meu filho. A carta de confirmação dele partirá hoje, por mensageiro. A visita de cerimônia do Senhor Sudara e família deve começar dentro de dez dias". Toranaga sentou-se, fraco. Os pombos esvoaçaram nos poleiros, depois pousaram de novo. O sol da manhã filtrava-se no pombal de modo agradável, embora nuvens de chuva estivessem se formando. Reunindo as forças, ele desceu às pressas os degraus para os aposentos abaixo, para começar.
— Naga-san! — Sim, Pai? — Mande Hiromatsu aqui. Depois dele, o meu secretário! — Sim, Pai.
O velho general veio calmamente. Suas juntas rangiam devido à subida e ele se curvou profundamente, a espada frouxa nas mãos como sempre, o rosto mais feroz do que nunca, mais velho do que nunca, e ainda mais resoluto.
— Seja bem-vindo, velho amigo.
— Obrigado, senhor. — Hiromatsu levantou os olhos. — Entristece-me ver as preocupações do mundo no seu rosto. — E entristece a mim ver e ouvir tanta traição.
— Sim. Traição é uma coisa terrível.
Toranaga viu os firmes olhos velhos medindo-o. — Pode falar à vontade.
— Alguma vez não fiz isso, senhor? — O velho estava grave. — Por favor, desculpe por tê-lo feito esperar.
— Por favor, desculpe-me por perturbá-lo. Qual é o seu desejo, senhor? Por favor, dê-me a sua decisão sobre o futuro da sua casa. É Osaka afinal... curvar-se àquele monte de esterco?
— Alguma vez você já me viu tomar alguma decisão final sobre qualquer coisa?
Hiromatsu franziu o cenho, depois pensativamente endireitou as costas para abrandar a dor nos ombros. — É por isso que não consigo compreendê-lo agora. Não é próprio do senhor desistir.
— O reino não é mais importante do que o meu futuro? — Não.
— Ishido e os outros regentes ainda são governantes legais, de acordo com o testemunho do táicum.
— Sou vassalo de Yoshi Toranaga-noh-Minowara e não reconheço outro senhor.
— Bom. Depois de amanhã é o dia que escolhi para partir para Osaka.
— Sim. Ouvi sobre isso.
— Você estará no comando da escolta, Buntaro será o segundo em comando.
O velho general suspirou. — Também sei disso, senhor. Mas desde que voltei, senhor, conversei com seus conselheiros mais velhos e gene...
— Sim. Eu sei. E qual é a opinião deles?
— Que o senhor não devia deixar Yedo. Que as suas ordens deviam ser temporariamente anuladas.
— Por quem?
— Por mim. Por ordens minhas.
— É isso o que eles desejam? Ou é o que você decidiu? Hiromatsu pousou a espada no chão, mais perto de Toranaga, e agora, indefeso, olhou diretamente para ele. — Por favor, desculpe-me, senhor, gostaria de lhe perguntar o que devo fazer. Meu dever parece dizer-me que eu deveria tomar o comando e impedi-lo de partir. Isso forçará Ishido a vir imediatamente contra nós. Sim, claro que perderemos, mas esse parece ser o único caminho honroso.
— Mas estúpido, neh?
As sobrancelhas grisalhas do general se franziram. — Não. Morremos em batalha, com honra. Recuperamos a wa. O Kwanto torna-se um espólio de guerra, mas não veremos o novo amo nesta vida. Shikata ga nai.
— Jamais gostei de gastar homens desnecessariamente. Nunca perdi uma batalha e não vejo razão para começar agora.
— Perder uma batalha não é desonra, senhor. A rendição é honrosa?
— Estão todos de acordo quanto a essa traição?
— Senhor, por favor, desculpe-me, apenas pedi a alguns indivíduos uma opinião militar. Não há traição ou conspiração. — Ainda assim você deu ouvidos à traição.
— Por favor, desculpe-me, mas se eu concordar, na qualidade de seu comandante-chefe, então não se tornará traição, mas política legal de Estado.
— Tomar decisões longe do suserano é traição.
— Senhor, há muitos precedentes de deposição de um suserano. O senhor fez isso, Goroda fez, o táicum — todos fizemos isso e pior. Um vencedor nunca comete traição.
— Você resolveu me depor?
— Peço a sua ajuda para essa decisão.
— Você é a única pessoa em quem eu pensei que pudesse confiar!
— Por todos os deuses, só desejo ser o seu vassalo mais devotado. Sou apenas um soldado. Quero cumprir o meu dever para com o senhor. Penso apenas no senhor. Mereço a sua confiança. Se isso ajuda, tire-me a cabeça. Se vai convencê-lo a lutar, de bom grado lhe entrego a minha vida, o sangue do meu clã, hoje, em público, em particular ou do modo como o senhor desejar — não foi isso o que o nosso amigo General Kiyoshio fez? Sinto muito, mas não compreendo por que lhe devo permitir desperdiçar uma vida de esforço.
— Então você se recusa a obedecer às minhas ordens de comandar a escolta que partirá para Osaka depois de amanhã? Uma nuvem passou por sobre o sol e os dois homens olharam pelas janelas.
— Logo vai chover de novo — disse Toranaga.
— Sim. Houve chuva demais este ano, neh? As chuvas devem cessar logo ou a colheita estará perdida. Entreolharam-se.
— Bem?
Punho de Aço disse simplesmente: — Formalmente lhe pergunto, senhor: ordena-me que o escolte de Yedo, depois de amanhã, para começar a viagem para Osaka?
— Já que o contrário parece ser o conselho de todos os meus conselheiros, aceitarei a opinião deles, e a sua, e adiarei a minha partida.
Hiromatsu estava totalmente despreparado para isso. — Hein? Não vai partir?
Toranaga riu, a máscara caiu, e ele se tornou de novo o velho Toranaga. — Nunca pretendi ir a Osaka. Por que eu seria tão estúpido?
— O quê?
— Meu acordo em Yokosé não foi mais que um truque para ganhar tempo — disse Toranaga afavelmente. — Ishido mordeu a isca. O imbecil me espera em Osaka dentro de poucas semanas. Zataki também mordeu a isca. E você e todos os meus bravos vassalos indignos de confiança também morderam a isca. Sem concessão real de qualquer tipo, ganhei um mês e confundi Ishido e seus imundos aliados. Ouvi dizer que já estão se engalfinhando pelo Kwanto. Foi prometido a Kiyama, assim como a Zataki.
— O senhor nunca pretendeu ir? — Hiromatsu balançou a cabeça, então, quando a clareza da idéia repentinamente o atingiu, seu rosto fendeu-se num sorriso deliciado. — Foi tudo uma manobra astuciosa?
— Claro. Ouça, todo mundo tinha que ser convencido, neh? Zataki, todo mundo, até você! Ou os espiões teriam contado a Ishido e ele se teria movido contra nós imediatamente e nenhuma boa fortuna na terra ou deuses no céu poderiam ter impedido a catástrofe.
— Isso é verdade ... ah, senhor, perdoe-me, sou tão estúpido. Mereço perder a cabeça! Então foi tudo um absurdo, sempre absurdo. Mas... mas e quanto ao General Kiyoshio?
— Ele disse que era culpado de traição. Não preciso de generais traiçoeiros, apenas de vassalos obedientes.
— Mas por que atacar o Senhor Sudara? Por que retirar dele o seu favor?
— Porque me agrada fazer isso — disse Toranaga asperamente.
— Sim. Por favor, desculpe-me. Isso é privilégio exclusivo seu. Peço-lhe que me perdoe por ter duvidado do senhor.
— Por que eu deveria lhe perdoar por ser o que é, amigo velho? Eu precisava que você fizesse o que fez e dissesse o que disse. Agora preciso de você mais do que nunca. Preciso de alguém em quem possa confiar. É por isso que estou lhe fazendo a confidência. Isto tem que ficar em segredo entre nós.
— Oh, senhor, faz-me tão feliz...
— Sim — disse Toranaga. — É a única coisa de que tenho medo.
— Senhor?
— Você é comandante-chefe. Só você pode neutralizar esse motim estúpido que está sendo tramado enquanto aguardo. Confio em você e devo confiar. Meu filho não pode controlar os meus generais, embora nunca viesse a demonstrar alegria com o segredo, se o soubesse, mas o seu rosto é o portão da sua alma, amigo velho.
— Então deixe-me tirar a vida depois de ter acomodado os generais.
— Isso não é ajuda. Você deve mantê-los unidos, à espera da minha pretensa partida, neh? Simplesmente terá que vigiar o seu rosto e o seu sono como nunca antes. Você é o único no mundo que sabe — é o único em quem devo confiar, neh?
— Perdoe-me minha estupidez. Não falharei. Explique-me o que devo fazer.
— Diga aos meus generais a verdade: que você me persuadiu a aceitar o seu conselho, que também é o deles, neh? Formalmente ordeno que a minha partida seja adiada por sete dias. Depois adiarei de novo. Por doença, dessa vez. Você é o único que sabe.
— E depois? Depois será Céu Carmesim?
— Não, conforme o planejado originalmente. Céu Carmesim foi sempre um último plano, neh?
— Sim. E o Regimento de Mosquetes? Não poderia abrir caminho através das montanhas?
— Parte do caminho. Mas não o caminho todo até Kyoto. — Mande assassinar Zataki.
— Isso poderia ser possível. Mas Ishido e seus aliados ainda são invencíveis. — Toranaga revelou-lhe os argumentos de Omi, Yabu, Igurashi e Buntaro, no dia do terremoto. — Naquela época ordenei Céu Carmesim como outro ardil para confundir Ishido... e também tive as partes certas da discussão cochichadas em ouvidos errados. Mas o fato é que a força de Ishido ainda é invencível.
— Como podemos dividi-Ia? E quanto a Kiyama e Onoshi? — Não, esses dois estão implacavelmente contra mim. Todos os cristãos estarão contra mim, exceto o meu cristão, e logo o colocarei, a ele e ao seu navio, em uso, um uso ótimo. Tempo é o que mais preciso. Tenho aliados e amigos secretos por todo o império, e se tivesse tempo... Cada dia que eu ganho enfraquece mais Ishido. Esse é o meu plano de batalha. Cada dia de atraso é importante. Ouça, depois das chuvas, Ishido virá contra o Kwanto, numa manobra de tenazes, Ikawa Jikkyu avançando contra o sul, Zataki ao norte. Nós vamos deter Jikkyu em Mishima, depois recuar até o passo Yokosé e Odawara, de onde fazemos nossa resistência final. Ao norte reteremos Zataki nas montanhas ao longo da estrada Hosho-kaido, em algum lugar perto de Mikawa. O que Omi e Igurashi disseram é verdade: podemos rechaçar o primeiro ataque e não deve haver outra grande invasão. Lutamos e esperamos atrás das nossas montanhas. Lutamos e protelamos e esperamos e depois, quando a fruta estiver madura... Céu Carmesim.
— Iuuuh, que esse dia chegue logo!
— Ouça, amigo velho, só você pode controlar os meus generais. Com tempo e o Kwanto seguro, completamente seguro, podemos vencer o primeiro ataque e então as alianças de Ishido começarão a se romper. Uma vez que isso aconteça, o futuro de Yaemon está garantido e o testamento do táicum, inviolável.
— Não tomará o poder sozinho, senhor?
— Pela última vez: "A lei pode subverter a razão, mas a razão não pode subverter a lei, ou a nossa sociedade toda se rasgará como um tatami velho. A lei pode ser usada para confundir a razão, a razão certamente não pode ser usada para subverter a lei". O testamento do táicum é lei.
Hiromatsu curvou-se em aceitação. — Muito bem, senhor. Nunca mencionarei isso de novo. Por favor, desculpe-me. Agora... — Deixou seu sorriso mostrar-se. — Agora, o que devo fazer?
— Finja que me convenceu a adiar. Simplesmente controle-os todos com o seu punho de aço.
— Quanto tempo devo manter o fingimento? — Não sei.
— Não confio em mim mesmo, senhor. Posso cometer um engano, sem a intenção disso. Acho que posso manter a alegria longe do rosto por alguns dias. Com a sua permissão, as minhas "dores" devem se tornar sérias, e ficarei confinado ao leito, sem visitas, neh?
— Bom. Faça isso dentro de quatro dias. A partir de hoje, demonstre que está sentindo dor. Não será difícil, neh?
— Não, senhor. Sinto muito. Fico contente de que a batalha comece este ano. No próximo... posso não ser capaz de ajudar.
— Absurdo. Mas será este ano se eu disser sim ou não. Dentro de dezesseis dias partirei de Yedo para Osaka. Até lá você terá dado a sua "aprovação relutante" e liderará a marcha. Só você e eu sabemos que haverá adiamentos posteriores e que bem antes de atingir as minhas fronteiras, voltarei a Yedo.
— Por favor, perdoe-me por ter duvidado do senhor. Não fosse porque devo permanecer vivo para ajudar os seus planos, eu não poderia viver com a minha vergonha.
— Não há de que se envergonhar, amigo velho. Se você não tivesse sido convencido, Ishido e Zataki teriam percebido o truque. Oh, a propósito, como estava Buntaro-san quando você o viu?
— Perturbado, senhor. Será bom termos uma boa batalha para ele lutar.
— Ele sugeriu me substituir como suserano?
— Se ele me dissesse isso, eu lhe teria arrancado a cabeça. Imediatamente!
— Mandarei chamar você dentro de três dias. Peça para me ver diariamente, mas eu recusarei até lá.
— Sim, senhor. — O velho general curvou-se humildemente. — Por favor, perdoe este velho tolo. Deu-me um sentido para a vida novamente. Obrigado. — E saiu.
Toranaga tirou a pequena tira de papel da manga e releu a mensagem da mãe com uma satisfação enorme. Com a estrada nordeste possivelmente aberta e Ishido possivelmente traído lá, as suas probabilidades melhoravam enormemente. Atirou a mensagem às chamas. O papel contorceu-se reduzindo-se a cinzas. Contente, ele desmanchou a cinza, transformando-a em pó. Agora, quem deve ser o novo comandante-chefe? perguntou a si mesmo.
Ao meio-dia, Mariko atravessou o adro do torreão, por entre as silenciosas fileiras de guardas, e entrou. O secretário de Toranaga a esperava numa das ante-salas do térreo. — Sinto muito ter mandado chamá-la, Senhora Toda — disse ele sem prestar-lhe atenção.
— O prazer foi meu, Kawanabi-san.
Kawanabi era um samurai velho, de traços severos, com a cabeça raspada. Já fora sacerdote budista. Fazia anos, agora, que lidava com toda a correspondência de Toranaga. Normalmente era brilhante e entusiasmado. Naquele dia, como a maioria das pessoas no castelo, estava grandemente inquieto. Estendeu a ela um pequeno rolo de pergaminho. — Aqui estão os documentos de viagem para Osaka, devidamente assinados. Deve partir amanhã e chegar lá o mais rápido possível.
— Obrigada. — A voz dela soou minúscula para ela mesma. — O Senhor Toranaga diz que talvez tenha alguns despachos particulares para a senhora levar à Senhora Kiritsubo e à Senhora Koto. Também para o Senhor General Ishido e a Senhora Ochiba. Ser-lhe-ão entregues amanhã ao amanhecer se... sinto muito, se estiverem prontos. Providenciarei para que lhe sejam entregues.
— Obrigada.
Dentre uma quantidade de rolos empilhados com um esmero pedante na escrivaninha baixa dele, Kawanabi selecionou um documento oficial. — Fui instruído para lhe entregar isto. É o aumento do feudo do seu filho, conforme o prometido pelo Senhor Toranaga. Dez mil kokus anuais. Está datado do último dia do mês passado e... bem, aqui está.
Ela aceitou, leu e examinou os selos oficiais. Estava tudo perfeito. Mas não lhe deu felicidade alguma. Ambos acreditavam que era um papel vazio agora. Se a vida do seu filho fosse poupada, ele se tornaria ronin. — Obrigada. Por favor, agradeça ao Senhor Toranaga pela honra que me confere. Posso ser autorizada a vê-lo antes de partir?
— Oh, sim. Quando sair daqui, a senhora é solicitada a se dirigir ao navio bárbaro. É solicitada a esperá-lo lá.
— Devo... devo traduzir?
— Ele não disse. Eu presumiria que sim, Senhora Toda. — O secretário examinou uma lista na sua mão. — O Capitão Yoshinaka recebeu ordem de comandar a sua escolta até Osaka, se lhe aprouver.
— Eu ficaria honrada em estar sob o comando dele novamente. Posso perguntar como vai o Senhor Toranaga?
— Parece bastante bem, mas para um homem ativo como ele, engaiolar-se por dias a fio... O que posso dizer? — Espalmou as mãos, desamparado. — Sinto muito. Pelo menos hoje ele viu o Senhor Hiromatsu e concordou com um adiamento. Também concordou em tratar de outras coisas... os preços do arroz devem ser estabilizados agora, para o caso de uma má colheita... Mas aqui há tanto o que fazer... simplesmente não parece ele, Senhora Toda. Os tempos são terríveis, neh? E terríveis os presságios: os adivinhos dizem que a colheita estará perdida este ano. — Não acreditarei neles... até o tempo da colheita.
— Sábio, muito sábio. Mas não serão muitos de nós que verão o tempo da colheita. Devo ir com ele para Osaka. — Kawanabi estremeceu e se inclinou para frente nervosamente. — Ouvi um boato de que a peste começou de novo entre Kyoto e Osaka... varíola. Será que é outro sinal do céu de que os deuses estão desviando o rosto de nós?
— Não é próprio do senhor acreditar em boatos ou em sinais do céu, Kawanabi-san, ou passar boatos. Sabe o que o Senhor Toranaga pensa disso.
— Sei. Sinto muito. Mas, bem... ninguém parece estar normal hoje em dia, neh?
— Talvez o boato não seja verdadeiro... rezo para que não seja. — Ela afastou o pressentimento. — A nova data para a partida já foi marcada?
— Tomei conhecimento de que o Senhor Hiromatsu disse que estava adiada por sete dias. Estou muito contente de que o nosso comandante-chefe tenha retornado e muito contente de que tenha convencido... gostaria de que a partida fosse cancelada para sempre. É melhor combater do que ser desonrado lá, neh? — Sim — concordou ela, sabendo que não havia mais sentido em fingir que esse não era o pressentimento na mente de todo mundo. — Agora que o Senhor Hiromatsu voltou, talvez o nosso senhor veja que a rendição não é a melhor linha de conduta. — Senhora, apenas para os seus ouvidos. O Senhor Hiromatsu... — Ele parou, levantou os olhos e pôs um sorriso no rosto. Yabu estava entrando na saia, as espadas retinindo. — Ah, Senhor Kasigi Yabu, que prazer em vê-lo. — Curvou-se, Mariko curvou-se, houve algumas amenidades e depois ele disse: — O Senhor Toranaga o aguarda, senhor. Por favor, suba imediatamente.
— Bom. Para que ele me quer ver?
— Sinto muito, senhor, ele não me disse... só que queria vê-lo.
— Como vai ele?
Kawanabi hesitou. — Não houve mudança, senhor. — A partida... foi marcada uma nova data?
— Tomei conhecimento de que será dentro de sete dias. — Talvez o Senhor Hiromatsu consiga adiá-la ainda mais, neh?
— Isso dependeria do nosso amo, senhor. — Claro. — Yabu saiu.
— O senhor estava dizendo sobre o Senhor Hiromatsu? — Apenas para os seus ouvidos, senhora, já que Buntaro-san não está aqui — sussurrou o secretário. — Quando o velho Punho de Aço voltou do encontro com o Senhor Toranaga, teve que repousar quase uma hora. Estava sentindo fortes dores, senhora. — Oh! Seria terrível se alguma coisa lhe acontecesse agora! — Sim. Sem ele, haveria uma revolta, neh? Esse adiamento não resolve nada, não é? É apenas uma trégua. O verdadeiro problema... tenho medo... tenho medo desde que o Senhor Sudara agiu como assistente formal do General Kiyoshio, cada vez que o nome do Senhor Sudara é mencionado o nosso senhor fica furioso... Foi apenas o Senhor Hiromatsu quem o convenceu a adiar e isso é a única coisa que... — Lágrimas começaram a correr pelas faces do secretário. — O que está acontecendo, senhora? Ele perdeu o controle, neh?
— Não — disse ela com firmeza, sem convicção. — Tenho certeza de que tudo dará certo. Obrigado por me dizer. Tentarei ver o Senhor Hiromatsu antes de partir.
— Vá com Deus, senhora.
Ela ficou surpresa. — Não sabia que o senhor era cristão, Kawanabi-san.
— Não sou, senhora. Mas sei que isso é um costume seu. Ela saiu para o sol, grandemente preocupada com Hiromatsu, ao mesmo tempo agradecendo a Deus o fato de a espera ter terminado e no dia seguinte poder escapar. Dirigiu-se para o palanquim e a escolta, que a esperavam.
— Ah, Senhora Toda — disse Gyoko, avançando das sombras, interceptando-a.
— Ah, bom dia, Gyoko-san, que prazer em vê-Ia. Espero que esteja passando bem — disse ela cordialmente, um calafrio repentino percorrendo-a.
— Nada bem, em absoluto, estou com medo, sinto muito. E muito triste. Parece que não gozamos do favor do nosso senhor, Kiku-san e eu. Desde que chegamos aqui, fomos confinadas a um imundo hotel de terceira classe, onde eu não colocaria um prostituto de oitava classe.
— Oh, sinto muito. Tenho certeza de que deve ter havido algum engano.
— Ah, sim, um engano. Certamente espero que sim, senhora. Finalmente, hoje, recebi permissão de vir ao castelo, finalmente há uma resposta à minha solicitação de ver o grande senhor, finalmente permitem-me curvar-me diante do grande senhor de novo, ainda hoje, mais tarde. — Gyoko sorriu-lhe, falsa. — Ouvi dizer que a senhora também vinha ver o secretário do senhor, então pensei esperar para saudá-la. Espero que não se importe.
— É um prazer vê-Ia, Gyoko-san. Eu a teria visitado, e a Kiku-san, ou pedido que ambas viessem me visitar, mas infelizmente isso não foi possível.
— Sim... muito triste. Estes tempos são tristes. Difíceis para os nobres. Difíceis para os camponeses. A pobre Kiku-san está doente de preocupação de não contar mais com o favor do nosso senhor.
— Estou certa de que ela está enganada, Gyoko-san. Ele... o Senhor Toranaga tem muitos problemas urgentes, neh?
— É verdade... é verdade. Talvez pudéssemos tomar um chá agora, Senhora Toda. Eu ficaria honrada em poder conversar com a senhora um momento.
— Ah, sinto muito, mas recebi ordem de tratar de um assunto oficial. Senão ficaria muito honrada.
— Ah, sim, a senhora tem que ir ao navio do Anjin-san agora. Ah, esqueci, sinto muito. Como vai o Anjin-san?
— Acredito que esteja bem — disse Mariko, furiosa de que Gyoko soubesse dos seus assuntos particulares. — Vi-o apenas uma vez, e ainda assim só por alguns momentos, desde que chegamos.
— Um homem interessante. Sim, muito. É triste não ver os amigos, neh?
As duas mulheres sorriam, falavam com voz polida e despreocupada, ambas conscientes dos impacientes samurais que observavam e ouviam.
— Ouvi dizer que o Anjin-san visitou os amigos, a tripulação. Como os encontrou?
— Ele não me disse nada, Gyoko-san. Como lhe falei, só o vi um momento. Sinto muito, mas tenho que ir...
— É triste não ver os amigos. Talvez eu lhe pudesse falar sobre eles. Por exemplo, que vivem numa aldeia eta.
— O quê?
— Sim. Parece que os amigos dele pediram permissão para morar lá, preferindo a aldeia à áreas civilizadas. Curioso, neh? Não são como o Anjin-san, que é diferente. Corre o boato de que eles dizem que lá é mais como em casa para eles... a aldeia eta. Curioso, neh?...
Mariko lembrou-se de como o Anjin-san estivera estranho na escada naquele dia. Isso explica, pensou ela. Eta! Minha Nossa Senhora, pobre homem. Como deve ter ficado envergonhado. — Desculpe, Gyoko-san, o que foi que disse?
— Só que é curioso que o Anjin-san seja tão diferente dos outros.
— Como são eles? A senhora os viu? Os outros?
— Não, senhora. Eu não iria lá. O que eu teria a ver com eles? Ou com etas? Devo pensar nos meus clientes e na minha Kiku-san. E no meu filho.
— Ah, sim, o seu filho.
O rosto de Gyoko se entristeceu sob o guarda-sol, mas os olhos continuaram insensivelmente marrons como o quimono. — Por favor, desculpe-me, mas suponho que a senhora nem tenha idéia de por que estamos em desgraça com o Senhor Toranaga? — Não. Tenho certeza de que a senhora está enganada. O contrato foi firmado, neh? Conforme o combinado?
— Oh, sim, obrigada. Tenho uma carta de crédito junto a um rico mercador de Mishima, pagável contra apresentação. Menos do que combinamos. Mas o dinheiro estava longe da minha mente. O que é o dinheiro quando se perdeu o favor do protetor — seja ele ou ela quem for? Neh?
— Tenho certeza de que a senhora conserva o favor dele. — Ah, favores! Estava preocupada com o seu também, Senhora Toda.
— A senhora conta sempre com a minha boa vontade. E amizade, Gyoko-san. Talvez possamos conversar uma outra vez, realmente tenho que ir agora, sinto muito...
— Ah, sim, é muito gentil de sua parte. Eu gostaria muito. — Quando Mariko se voltou, Gyoko acrescentou no seu tom mais adocicado: — Mas a senhora terá tempo? Parte amanhã, neh? Para Osaka?
Mariko sentiu uma súbita farpa de gelo no peito, enquanto a armadilha se fechava.
— Alguma coisa errada, senhora?
— Não... não, Gyoko-san... Esta... durante a hora do Cão, esta noite... seria conveniente?
— É muito gentil, senhora. Oh, sim. Oh, sim, como vai ver o nosso amo agora, antes de mim, a senhora intercederia por nós? Precisamos de um favorzinho. Neh?
— Eu ficaria contente em fazer isso. — Mariko pensou um instante. — Alguns favores podem ser pedidos, mas ainda assim não serão concedidos.
Gyoko retesou-se ligeiramente. — Ah! A senhora já pediu a ele o... pediu-lhe que nos favorecesse?
— Naturalmente... por que não o faria? — disse Mariko com cuidado. — Kiku-san não é uma favorita? A senhora não é uma vassala devotada? Não recebeu favores no passado?
— Minhas solicitações são sempre tão pequenas. Tudo o que eu disse antes ainda se aplica, senhora. Talvez ainda mais.
— Sobre cães de barriga vazia?
— Sobre ouvidos aguçados e línguas seguras. — Ah, sim. E segredos.
— Seria tão fácil me satisfazer. O favor do meu senhor — e o da minha senhora — não é pedir demais, neh?
— Não. Se ocorrer uma oportunidade... Não posso prometer nada.
— Até a noite, senhora.
Curvaram-se uma para a outra e nenhum samurai desconfiou de nada. Mariko subiu ao palanquim para mais mesuras, ocultando os tremores que a acometiam, e o cortejo pôs-se em marcha. Gyoko ficou olhando para ela.
— Você, mulher — disse asperamente um jovem samurai, ao passar. — O que está esperando? Vá tratar dos seus negócios. — Ah! — disse Gyoko desdenhosamente para diversão dos outros. — Mulher, é, jovenzinho? Se eu fosse procurar o seu negócio, poderia ter muita dificuldade em encontrá-lo, hein, embora você ainda nem seja homem bastante para ter pêlos!
Os outros riram. Com uma sacudidela de cabeça, ela se afastou sem medo.
— Alô — disse Blackthorne.
— Boa tarde, Anjin-san. Parece feliz!
— Obrigado. É a vista de uma dama tão adorável, neh?
— Ah, obrigada — respondeu Mariko. — Como está o seu navio?
— De primeira classe. Gostaria de subir a bordo? Eu gostaria de mostrá-lo à senhora.
— Isso é permitido? Recebi ordem de vir aqui para encontrar o Senhor Toranaga.
— Sim. Estamos todos à espera dele agora. — Blackthorne voltou-se e falou ao samurai mais velho no ancoradouro. — Capitão, levo a Senhora Toda lá. Mostrar navio. Quando o Senhora Toranaga chega, o senhor chama, neh?
— Como desejar, Anjin-san.
Blackthorne tomou a dianteira do molhe. Samurais guardavam as barreiras e a segurança estava mais cerrada do que nunca, na praia e no convés. Primeiro ele foi ao tombadilho. — Isto é meu, todo meu — disse com orgulho.
— Algum dos seus tripulantes está aqui?
— Não, nenhum. Hoje não, Mariko-san. — Mostrou tudo tão depressa quanto pôde, depois guiou-a para baixo. — Esta é a cabina principal. — As vigias da popa davam para a praia. Ele fechou a porta. Agora estavam totalmente sozinhos.
— É a sua cabina? — perguntou ela.
Ele meneou a cabeça, observando-a. Ela foi para os braços dele. Abraçou-a com força. — Oh, como senti saudades de você...
— E eu também...
— Tenho muito para lhe dizer. E para lhe perguntar — disse ele.
— Não tenho nada a dizer. Exceto que o amo de todo o coração. — Ela estremeceu nos braços dele, tentando afastar o terror de que Gyoko ou alguém os denunciasse. — Tenho muito medo por você.
— Não tenha medo, Mariko, minha querida. Vai dar tudo certo.
— Isso é o que digo a mim mesma. Mas hoje é impossível aceitar que karma é a vontade de Deus.
— Você estava tão distante a última vez.
— Isto é Yedo, meu amor. E além da Primeira Ponte. — Foi por causa de Buntaro-san. Não foi?
— Sim — disse ela simplesmente. — Isso e a decisão de Toranaga de se render. É uma inutilidade tão desonrosa... Nunca pensei que diria isso em voz alta, mas tenho que dizer. Sinto muito. — Ela se aninhou mais ainda à proteção dos ombros dele. — Quando ele for para Osaka, você está liquidada, também? — Sim. O clã Toda é poderoso e importante demais. Em qualquer eventualidade, não me deixariam viva.
— Então deve vir comigo. Escaparemos. Nós... — Sinto muito, mas não há escapatória.
— A menos que Toranaga autorize, neh? — Por que ele deveria autorizar? Rapidamente Blackthorne contou-lhe o que dissera a Toranaga, mas não que também a pedira. — Sei que posso forçar os padres a trazer Kiyama ou Onoshi para o lado dele, se ele me autorizar a tomar esse Navio Negro — concluiu excitadamente —, e sei que posso fazer isso!
— Sim — disse ela, contente, pela salvação da Igreja, de que ele fosse impedido pela decisão de Toranaga. Examinou novamente a lógica do plano dele e considerou-o sem falhas. — Deve funcionar, Anjin-san. Agora que Harima é hostil, não haveria razão por que Toranaga-sama não devesse ordenar um ataque, se ele fosse combater e não render-se.
— Se o Senhor Kiyama ou o Senhor Onoshi, ou ambos, se juntassem a ele, isso faria a balança pender para o lado dele?
— Sim — disse ela. — Com Zataki e tempo. — Ela já havia explicado a importância estratégica do controle da estrada norte por Zataki. — Mas Zataki está contra Toranaga-sama.
— Ouça, posso estrangular os padres. Sinto muito, mas eles são meus inimigos, embora sejam os seus padres. Posso dominá-los em nome dele — no meu também. Você me ajudará a ajudá-lo? Ela o encarou. — Como?
— Ajude-me a persuadi-lo a me dar a chance, e convença-o a adiar a ida para Osaka.
Houve o ruído de cavalos e vozes que se erguiam no embarcadouro. Distraídos, eles se dirigiram às janelas. Os samurais estavam puxando para o lado uma das barreiras. O Padre Alvito esporeou a montaria e avançou para a clareira.
— O que ele quer? — resmungou Blackthorne, carrancudo. Observaram o padre desmontar, puxar um rolo da manga e entregá-lo ao samurai mais velho. O homem leu. Alvito olhou o navio.
— Seja o que for, é oficial — disse ela com voz débil.
— Ouça, Mariko-san, não sou contra a Igreja. A Igreja não é má, os padres é que são. E nem todos são maus. Alvito não é, embora seja um fanático. Juro por Deus que acredito que os jesuítas se curvarão ao Senhor Toranaga se eu tomar o Navio Negro deles e ameaçar o do ano que vem, porque eles têm que ter dinheiro — Portugal e Espanha têm que ter dinheiro. Toranaga é mais importante. Você me ajudará?
— Sim. Sim, eu o ajudarei, Anjin-san. Mas, por favor, desculpe-me, não posso trair a Igreja.
— Tudo o que peço é que converse com Toranaga, ou me ajude a conversar com ele, se achar melhor.
Soou uma trompa distante. Olharam pelas janelas de novo.
Estavam todos de olhos fixos na direção oeste. A dianteira de um cortejo de samurais em torno de uma liteira acortinada aproximava-se da direção do castelo.
A porta da cabina abriu-se. — Anjin-san, venha agora, por favor — disse o samurai.
Blackthorne tomou a dianteira rumando para o convés e para o embarcadouro. Seu aceno de cabeça foi friamente polido. O padre foi igualmente glacial. Com Mariko, Alvito foi gentil. — Alô, Mariko-san. Que prazer em vê-Ia.
— Obrigada, padre — disse ela, fazendo uma profunda mesura.
— Que as bênçãos de Deus recaiam sobre a senhora. — Fez o sinal-da-cruz sobre ela. — In nomine Patris et Filii et Spiritui Sancti.
— Obrigada, padre.
Alvito olhou de relance para Blackthorne. — Então, piloto? Como está o seu navio?
— Tenho certeza de que o senhor já sabe.
— Sim, sei. — Alvito correu os olhos pelo Erasinus; o rosto tenso. — Que Deus o maldiga e a todos os que viajarem nele, se for usado contra a fé e contra Portugal!
— Foi para isso que veio aqui? Para espalhar mais veneno? — Não, piloto — disse Alvito. — Pediram-me que viesse aqui para encontrar o Senhor Toranaga. Acho a sua presença tão desagradável quanto o senhor acha a minha.
— A sua presença não é desagradável, padre. Apenas o mal que o senhor representa.
Alvito corou e Mariko disse rapidamente: — Por favor. É mau discutir assim em público. Peço a ambos que sejam mais circunspectos.
— Sim, por favor, desculpe-me, Mariko-san. Peço desculpas, Mariko-san. — O Padre Alvito voltou-se e olhou para a liteira que vinha atravessando a barreira, a flâmula de Toranaga esvoaçando, samurais uniformizados à frente e atrás, encerrando um outro grupo esparso e heterogêneo de samurais.
O palanquim parou. As cortinas se descerraram. Yabu desceu. Todos ficaram atônitos. No entanto, curvaram-se. Yabu retribuiu a saudação arrogantemente.
— Ah, Anjin-san — disse Yabu. — Como vai? — Bem, obrigado, senhor. E o senhor?
— Bem, obrigado. O Senhor Toranaga está doente. Pediu-me que viesse em seu lugar. Compreende?
— Sim. Compreendo — retrucou Blackthorne, tentando dissimular o desapontamento com a ausência de Toranaga. — Sinto muito Senhor Toranaga doente.
Yabu deu de ombros, cumprimentou Mariko com deferência, fingiu não notar Alvito, e estudou o navio um instante. Estava com um sorriso retorcido quando se voltou para Blackthorne. — So desu, Anjin-san. Seu navio está diferente desde a última vez que o vi, neh? Sim, o navio está diferente, o senhor está diferente, tudo está diferente — até o nosso mundo está diferente! Neh?
— Sinto muito, não compreendo, senhor. Por favor, desculpe-me, mas suas palavras são muito rápidas. Como o meu... — Blackthorne começou a frase de reserva, mas Yabu interrompeu guturalmente: — Mariko-san, por favor, traduza para mim.
Ela fez isso.
Blackthorne assentiu e disse lentamente: — Sim. Diferente, Yabu-sama.
— Sim, muito diferente. O senhor não é mais bárbaro, e sim samurai, assim como o seu navio, neh?
Blackthorne viu o sorriso nos lábios grossos, a postura belicosa, e repentinamente foi projetado de volta a Anjiro, de volta à praia, de joelhos, Croocq no caldeirão, os gritos de Pieterzoon soando-lhe aos ouvidos, o mau cheiro do buraco nas narinas, e sua mente gritava: Tão desnecessário tudo aquilo, todo o sofrimento, o terror, Pieterzoon, Spillbergen, Maetsukker, a cela, os catas, e tudo por sua culpa!
— Está se sentindo bem, Anjin-san? — perguntou Mariko, apreensiva com a expressão nos olhos dele.
— O quê? Oh... oh, sim. Sim, estou bem. — O que há com ele? — disse Yabu.
Blackthorne meneou a cabeça, tentando aclarar as idéias e apagar o ódio do rosto. — Sinto muito. Por favor, desculpe-me. Eu... não é nada. Cabeça ruim... não dormir. Sinto muito. — Sustentou o olhar de Yabu, esperando ter dissimulado o seu perigoso lapso. — Pena Toranaga-sama doente... espero não problema Yabu-sama.
— Não, problema algum — disse Yabu, mas pensando: problema, sim, você não passa de um problema, e só tive problemas desde que você e o seu navio imundo chegaram às minhas praias. Izu foi-se, minhas armas foram-se, a honra foi-se, e agora minha cabeça está perdida por causa de um covarde. — Problema algum, Anjin-san — disse muito cordialmente. — Toranaga-sama pediu-me que lhe entregasse os seus vassalos, conforme ele prometeu. — Seus olhos deram com Alvito. — Ora, Tsukku-san! Por que o senhor é inimigo de Toranaga-sama?
— Não sou, Kasigi Yabu-sama!
— Os seus daimios cristãos são, neh?
— Por favor, desculpe-me, senhor, mas somos apenas padres, não somos responsáveis pelas idéias políticas daqueles que adoram a verdadeira fé, nem exercemos controle sobre os daimios que...
— A verdadeira fé na Terra dos Deuses é a xintoísta, junto com o Tao, o caminho de Buda!
Alvito não respondeu. Yabu desdenhosamente lhe deu as costas e berrou uma ordem. O grupo de samurais dispersos começou a se alinhar diante do navio. Nenhum deles estava armado. Alguns tinham as mãos atadas.
Alvito avançou e curvou-se. — Talvez o senhor me dê licença, senhor. Eu devia ver o Senhor Toranaga. Como ele não virá...
— O Senhor Toranaga queria o senhor aqui para servir de intérprete entre ele e o Anjin-san — interrompeu-o Yabu com maus modos deliberados, conforme Toranaga lhe dissera que fizesse. — Sim, para servir de intérprete como apenas o senhor pode fazer, falando direta e imediatamente, neh? Naturalmente o senhor não tem objeções em fazer para mim o que o Senhor Toranaga solicitou, antes de se ir?
— Não, claro que não, senhor.
— Bom. Mariko-san! O Senhor Toranaga pede-lhe que veja que as respostas do Anjin-san também sejam corretamente traduzidas.
Alvito corou, mas se conteve.
— Sim, senhor — disse Mariko, odiando Yabu.
Yabu berrou outra ordem. Dois samurais foram até a liteira e voltaram com a caixa-forte do navio. — Tsukku-san, comece: ouça, Anjin-san, em primeiro lugar, o Senhor Toranaga me pediu que devolvesse isto. É propriedade sua, neh? Abram-na — ordenou aos samurais. A caixa estava transbordando de moedas de prata. — Está conforme foi tirado do seu navio.
— Obrigado. — Blackthorne mal podia acreditar nos próprios olhos, pois aquilo lhe dava poder para contratar a melhor tripulação do mundo, sem promessas.
— Deve ser colocada na sala-forte do navio. — Sim, naturalmente.
Yabu acenou para dois samurais a bordo. Então, para fúria crescente de Alvito, que continuava com a tradução quase simultânea, Yabu disse: — Segundo: o Senhor Toranaga diz que o senhor é livre para ir ou ficar. Quando estiver na nossa terra, será samurai, hatamoto e governado pela lei samurai. Ao mar, além das nossas costas, é como era antes de vir aqui, e governado por leis bárbaras. É-lhe concedido o direito vitalício de atracar em qualquer porto sob controle do Senhor Toranaga, sem vistoria por parte das autoridades portuárias. Finalmente: estes duzentos homens são vassalos seus. Ele me pediu que os entregasse formalmente, com armas, conforme o prometido.
— Posso partir quando e como quiser? — perguntou Blackthorne, incrédulo.
— Sim, Anjin-san, pode partir, conforme determinou o Senhor Toranaga.
Blackthorne fitou Mariko, mas ela lhe evitou os olhos, então ele olhou de novo para Yabu. — Eu poderia partir amanhã? — Sim, se quiser. Quanto a estes homens — acrescentou Yabu —, são todos ronins. Todos das províncias do norte. Todos concordaram em jurar lealdade eterna ao senhor e aos seus descendentes. São todos bons guerreiros. Nenhum deles cometeu crime que pudesse ser provado. Todos se tornaram ronins porque os respectivos suseranos foram assassinados, morreram ou foram depostos. Muitos combateram em navios contra wakos. — Yabu sorriu ao seu modo malévolo. — Alguns podem ter sido wakos, compreende "wako"?
— Sim, senhor.
— Os que estão amarrados são provavelmente bandidos ou wakos. Apresentaram-se como um grupo e se ofereceram voluntariamente para servi-lo sem medo, em troca de perdão por quaisquer crimes passados. Juraram ao Senhor Noboru — que selecionou todos estes homens por ordem do Senhor Toranaga — que nunca cometeram crime algum contra o Senhor Toranaga ou qualquer um dos samurais dele. O senhor pode aceitá-los individualmente, ou como um grupo, ou recusá-los. Compreende? — Posso recusar qualquer um deles?
— Por que faria isso? — perguntou Yabu. — O Senhor Noboru os escolheu cuidadosamente.
— Claro, sinto muito — disse Blackthorne a Yabu, consciente do crescente mau humor do daimio. — Compreendo totalmente. Mas os que estão amarrados... o que acontece se eu os recusar?
— A cabeça deles será cortada. Naturalmente. O que tem isso a ver?
— Nada. Sinto muito.
— Siga-me. — Yabu dirigiu-se empertigado para a liteira. Blackthorne deu uma olhada em Mariko. — Posso partir. Ouviu só!
— Sim.
— Isso significa ... É quase como um sonho. Ele disse... — Anjin-san!
Obedientemente Blackthorne se apressou na direção de Yabu. Agora a liteira servia de estrado. Um escrevente armara uma mesa baixa, sobre a qual havia rolos de pergaminho. A pouca distância, samurais vigiavam uma pilha de adagas e espadas longas, lanças, escudos, machados, arcos e flechas, que alguns carregadores estavam descarregando de cavalos. Yabu fez sinal a Blackthorne que se sentasse ao seu lado, Alvito bem em frente e Mariko do outro lado. O escrevente chamou nomes. Cada homem se aproximou, curvou-se com formalidade, deu seu nome e linhagem, jurou fidelidade, assinou o pergaminho que lhe correspondia, e selou com uma gota de sangue que o escrevente ritualmente picou-lhe do dedo. Cada um se ajoelhou para Blackthorne uma última vez, depois se levantou e correu ao alfageme. Primeiro recebeu a espada mortífera, depois a adaga. Cada um aceitou as duas lâminas com reverência e examinou-as meticulosamente, expressando orgulho ante a sua qualidade, e enfiou-as ao sash com uma alegria selvagem. Depois recebeu outras armas e um escudo de guerra. Quando os homens tomaram seus novos lugares, completamente armados agora, samurais de novo e não mais ronins, estavam mais fortes, mais eretos e pareciam ainda mais ferozes.
Os ronins amarrados ficaram por último. Blackthorne insistiu em cortar pessoalmente as amarras de cada um. Um a um juraram fidelidade, conforme tinham feito todos os outros: — Pela minha honra de samurai, juro que os seus inimigos são os meus inimigos, e total obediência.
Depois de ter jurado, cada homem foi apanhar suas armas. Yabu chamou: — Uraga-noh-Tadamasa!
O homem avançou. Alvito ficou desconcertado. Uraga — Irmão José — estivera despercebido entre os samurais agrupados por perto. Estava desarmado e usava um quimono simples e um chapéu de bambu. Yabu sorriu malicioso ante a agitação de Alvito e voltou-se para Blackthorne. — Anjin-san. Este é Uraga-noh-Tadamasa. Samurai, agora ronin. Reconhece-o? Compreende "reconhecer"?
— Sim, compreendo. Sim, reconheço. — Bom. Antes padre cristão, neh? — Sim.
— Agora não. Compreende? Agora ronin. — Compreendo, Yabu-sama.
Yabu observou Alvito. O padre olhava fixamente o apóstata, que o encarava com ódio. — Ah, Tsukku-san, também o reconhece?
— Sim. Reconheço-o, senhor.
— Está pronto para traduzir de novo... ou perdeu a vontade para isso?
— Por favor, continue, senhor.
— Bom. — Yabu apontou para Uraga. — Ouça, Anjin-san, o Senhor Toranaga lhe dá este homem, se o quiser. Ele antes era padre cristão, um padre noviço. Agora não é. Agora abjurou ao falso deus estrangeiro e reconverteu-se à verdadeira fé xintoísta e... — Fez uma pausa, porque o padre parara de falar. — Disse exatamente isso, Tsukku-san? Verdadeira fé xintoísta?
O padre não respondeu. Suspirou, depois traduziu exatamente, acrescentando: — É o que ele diz, Anjin-san, que Deus o perdoe. — Mariko deixou passar sem comentário, odiando Yabu ainda mais, prometendo a si mesma vingar-se dele num dia muito breve.
Yabu observou-os, depois continuou: — Então Uraga-san não é mais um cristão. Agora está preparado para servi-lo. Sabe falar bárbaro e a língua particular dos padres, e foi um dos quatro jovens samurais enviados para as suas terras. Até conheceu o cristão chefe de todos os cristãos, como eles dizem — mas agora ele os odeia a todos, exatamente como o senhor, neh? — Yabu observava Alvito, engodando-o, os olhos esvoaçando na direção de Mariko, que ouvia de modo igualmente atento. — O senhor odeia os cristãos, Anjin-san, neh?
— A maioria dos católicos são meus inimigos, sim — respondeu ele, completamente consciente de Mariko, que olhava fixamente o vazio. — A Espanha e Portugal são inimigos do meu país, sim.
-— Os cristãos são nossos inimigos também. Hein, Tsukku-san?
— Não, senhor. E o cristianismo dá a chave para a vida imortal.
— Dá mesmo, Uraga-san? — disse Yabu.
Uraga balançou a cabeça. Sua voz soou áspera. — Não penso mais assim, senhor. Não.
— Diga ao Anjin-san.
— Senhor Anjin-san — disse Uraga, com uma pronúncia pesada, mas as palavras portuguesas corretas e facilmente compreensíveis —, não acredito que o catolicismo seja a trava, perdão, a chave da imortalidade.
— Sim — disse Blackthorne. — Concordo.
— Bom — continuou Yabu. — Portanto o Senhor Toranaga oferece-lhe este ronin, Anjin-san. É renegado, mas de boa família samurai. Uraga jura, se for aceito, que será seu secretário, tradutor, e fará qualquer coisa que o senhor queira. O senhor terá que lhe dar as espadas. O que mais, Uraga? Diga-lhe.
— Senhor, por favor, desculpe-me. Primeiro... — Uraga tirou o chapéu. Seu cabelo era restolho, a cabeça raspada ao estilo samurai, mas ele ainda não tinha o rabo-de-cavalo. — Primeiro, estou envergonhado de que o meu cabelo não esteja correto e não tenho rabo-de-cavalo como um samurai deve ter. Mas o cabelo crescerá e não sou menos samurai por isso. — Recolocou o chapéu. Disse a Yabu o que havia dito, e os ronins que estavam próximos e conseguiam escutar também ouviram atentamente. — Segundo, por favor, desculpe-me enormemente, mas não sei usar espadas... ou qualquer arma. Eu... eu nunca fui treinado nelas. Mas aprenderei, acredite-me, aprenderei. Por favor, desculpe a minha vergonha. Juro-lhe absoluta fidelidade e peço que me aceite... — O suor lhe escorria pelo rosto e pelas costas.
Blackthorne disse compadecidamente: — Shikata ga nai, neh? Ukeru anata wa desu, Uraga-san. O que importa isso? Eu o aceito, Uraga-san.
Uraga curvou-se, depois explicou a Yabu o que dissera. Ninguém riu. Exceto Yabu. Mas a sua risada foi interrompida pelo começo de uma alteração entre os últimos dois ronins sobre a escolha das espadas remanescentes. — Vocês dois, calem-se! — gritou ele.
Os dois giraram sobre os calcanhares e um vociferou: — Você não é meu amo! Onde estão as suas maneiras? Diga "por favor", ou cale a boca você!
Imediatamente Yabu se pôs de pé com um pulo e se precipitou sobre o ronin, espada em riste. Homens se dispersaram e o ronin saiu na disparada. Perto do ancoradouro, o homem sacou a espada com um puxão e abruptamente se voltou para o ataque, com um diabólico grito de batalha. Imediatamente todos os seus amigos arremeteram em seu socorro, espadas preparadas, e Yabu foi encurralado. O homem atacou. Yabu evitou uma violenta estocada, revidou, e errou, enquanto o grupo se lançava maciço à matança. Tarde demais os samurais de Toranaga se precipitaram, sabendo que Yabu era um homem morto.
— Parem! — gritou Blackthorne em japonês. Todos ficaram paralisados ante a potência da sua voz. — Vão lá! — Apontou para o local onde os homens estavam alinhados antes. — Agora! Ordem!
Por um instante todos os homens no ancoradouro permaneceram imóveis. Depois começaram a se mover. O encanto rompeu-se. Yabu lançou-se ao homem que o insultara. O ronin saltou para trás, moveu-se para o lado, a espada levantada acima da cabeça, nas duas mãos, esperando sem medo pelo próximo ataque. Seus amigos hesitaram.
— Vão lá! Agora! Ordem!
Relutante mas obedientemente, o resto dos homens recuou para fora do caminho, embainhando as espadas. Yabu e o homem andavam lentamente em círculo.
— Você! — gritou Blackthorne. — Pare! Baixe a espada! Ordeno!
O homem mantinha os olhos furiosos em Yabu, mas ouviu a ordem e umedeceu os lábios. Simulou investir pela esquerda, depois pela direita. Yabu recuou, e o homem deslizou para fora do seu alcance, correu para perto de Blackthorne e colocou a espada diante deste. — Obedeço, Anjin-san. Eu não o ataquei. — Quando Yabu investiu, ele se desviou com um pulo e recuou sem medo, mais veloz do que Yabu, mais jovem do que Yabu, escarnecendo dele.
— Yabu-san — chamou Blackthorne. — Sinto muito... acho foi engano, neh? Talvez...
Mas Yabu esguichou um jorro de palavras japonesas e atacou o homem, que disparou de novo, sem medo.
Alvito agora estava friamente divertido. — Yabu-san disse que não há engano, Anjin-san. Esse cabrón tem que morrer, diz ele. Nenhum samurai poderia aceitar tal insulto!
Blackthorne sentia todos os olhos sobre si enquanto desesperadamente tentava decidir o que fazer. Observou Yabu se aproximar cauteloso do homem. Bem à esquerda, um samurai de Toranaga assestou o arco. O único ruído era o dos dois arquejando, correndo e gritando um para o outro. O ronin recuou, depois se voltou e saiu correndo, em torno da clareira, ziguezagueando, dando voltas e pulos, o tempo todo mantendo um fluxo gutural e sibilante de insultos.
— Ele está iludindo Yabu, Anjin-san — disse Alvito. — Ele diz "Sou samurai ... não mato homens desarmados como você... você não é samurai, você é um camponês, esterco fedorento... ah, então é isso, você não é samurai, é eta, neh? Sua mãe era eta, seu pai era eta e... " — O jesuíta parou quando Yabu soltou um urro de cólera e apontou para um dos homens e gritou alguma coisa. — Yabu disse: "Você! Dê-lhe a espada!" O ronin hesitou e olhou para Blackthorne.
Blackthorne pegou a espada. — Yabu-san, peço não lutar — disse ele, desejando o outro morto. — Por favor, peço não lutar...
— Dê-lhe a espada!
Um murmúrio encolerizado percorreu os homens de Blackthorne. Ele levantou a mão. — Silêncio! — Olhou para o seu vassalo ronin. — Venha cá. Por favor! — O homem observou Yabu, negaceou à direita, à esquerda, e a cada vez Yabu golpeou com uma cólera desvairada, mas o homem conseguiu se esquivar e correr para junto de Blackthorne. Desta vez Yabu não o seguiu. Simplesmente esperou e observou, como um touro enlouquecido preparando o ataque. O homem curvou-se para Blackthorne e pegou a espada. Depois voltou-se para Yabu e, com um uivante grito de batalha, se arremessou ao ataque. Espadas chocaram-se e chocaram-se de novo. Agora os dois homens circulavam em silêncio. Houve outra troca frenética, as espadas cantando. Então Yabu tropeçou e o ronin arremeteu para a matança fácil. Mas Yabu habilmente se desviou e investiu. As mãos do homem, ainda agarrando a espada, foram decepadas. Por um momento o ronin se manteve ali, uivando, os olhos fixos nos cotos, depois Yabu cortou-lhe a cabeça.
Houve silêncio. Então um troar de aplausos envolveu Yabu. O daimio golpeou uma vez o corpo que se contorcia. Então, com a honra vingada, pegou a cabeça pelo topete, cuspiu cuidadosamente no rosto e atirou-a ao chão. Calmamente caminhou de volta para junto de Blackthorne e curvou-se.
— Por favor, desculpe-me os maus modos, Anjin-san. Obrigado por ter dado a espada a ele — disse, em voz polida, Alvito traduzindo. — Peço desculpas por haver gritado. Obrigado por me permitir banhar a minha espada em sangue com honra. Baixou os olhos para o legado que Toranaga lhe oferecera. Cuidadosamente examinou-lhe a ponta. Ainda estava perfeita. Desatou o sash de seda para limpar o sangue. — Nunca toque uma lâmina com os dedos, Anjin-san, isso a arruinaria. Uma lâmina deve sentir apenas seda, ou o corpo de um inimigo. — Parou e levantou os olhos. — Posso polidamente sugerir que o senhor permita aos seus vassalos testarem suas lâminas? Será um bom presságio para eles.
Blackthorne voltou-se para Uraga. — Diga-lhes isso.
Quando Yabu retornou a casa, o dia estava quase findando. Criados tiraram-lhe as roupas suadas, deram-lhe um quimono limpo e lhe calçaram tabis limpos. Yuriko, sua esposa, o esperava ao frescor da varanda com chá e saquê, escaldantes, do modo como ele gostava.
— Saquê, Yabu-san? — Yuriko era uma mulher alta e magra, com cabelo raiado de cinza. Seu quimono escuro de pobre qualidade realçava-lhe agradavelmente a pele bonita.
— Obrigado, Yuriko-san. — Yabu tomou o vinho apreciando a raspadela doce e áspera enquanto a bebida lhe descia pela garganta ressecada.
— Foi tudo bem, ouvi dizer. — Sim.
— Que impertinência daquele ronin!
— Ele me serviu bem, senhora, muito bem. Sinto-me ótimo agora. Mergulhei em sangue a espada de Toranaga e a fiz realmente minha. — Yabu terminou o cálice e ela o encheu de novo. Sua mão acariciou o punho da espada. — Mas a senhora teria apreciado a luta. Ele era uma criança... caiu na primeira armadilha.
Ela o tocou ternamente. — Estou contente de que tenha feito isso, marido.
— Obrigado, mas quase não me deu trabalho. — Yabu riu. — A senhora devia ter visto o padre! Teria ficado encantada de ver aquele bárbaro transpirando — eu nunca o tinha visto tão zangado. Estava tão furioso que quase sufocava para se conter. Canibal! São todos canibais. Pena que não haja meio de aniquilá-los antes de partirmos desta terra.
— Acha que o Anjin-san poderia fazer isso?
— Ele vai tentar. Com dez daqueles navios e dez dele, eu poderia controlar os mares daqui até Kyushu. Com apenas ele eu poderia prejudicar Kiyama, Onoshi e Harima, e esmagar Jikkyu e conservar Izu! Só precisamos de um pouco de tempo e logo cada daimio estará combatendo com o seu inimigo especial. Izu estaria segura e seria minha de novo! Não compreendo por que Toranaga vai deixar o Anjin-san partir. Outro desperdício estúpido! — Fechou o punho e socou-o no tatami. A criada sobressaltou-se mas não disse nada. Yuriko não fez o menor movimento. Um sorriso esvoaçou-lhe pelo rosto.
— Como foi que o Anjin-san encarou sua liberdade, e seus vassalos? — perguntou ela.
— Ficou tão feliz que parecia um velho sonhando que tinha um Yang com quatro pontas. Ele... ah, sim... — Yabu franziu o cenho, lembrando-se. — Mas houve uma coisa que ainda não compreendo. Quando aqueles wakos me cercaram, eu era um homem morto. Não há dúvida quanto a isso. Mas o Anjin-san os deteve e me devolveu a vida. Não havia razão para que ele fizesse isso, neh? Pouco antes, eu tinha visto o ódio escrito nele inteiro. Tão ingênuo fingir outra coisa... como se eu confiasse nele.
— Ele lhe deu a vida?
— Oh, sim. Estranho, neh?
— Sim. Muitas coisas estranhas estão acontecendo, marido. — Ela dispensou a criada, depois perguntou baixinho: — O que Toranaga realmente queria?
Yabu inclinou-se para a frente e sussurrou: — Acho que ele quer que eu me torne comandante-chefe.
— Por que ele faria isso? Punho de Aço está morrendo? — perguntou Yuriko. — E o Senhor Sudara? Ou Buntaro? Ou o Senhor Noboru?
— Quem sabe, senhora? Estão todos em desgraça, neh? Toranaga muda de idéia com tanta freqüência, que ninguém pode predizer o que ele fará agora. Primeiro me pediu que fosse em seu lugar ao ancoradouro e detalhou como queria que cada coisa fosse dita, depois falou sobre Hiromatsu, de como ele estava envelhecendo, e perguntou o que eu realmente pensava sobre o Regimento de Mosquetes.
— Ele poderia estar preparando Céu Carmesim de novo? — Isso está sempre pronto. Mas ele perdeu a Fruta para isso. Isso necessitará de liderança e habilidade. Antes ele a tinha, agora não. Agora é uma sombra do Minowara que foi. Fiquei chocado com a aparência dele. Sinto muito, cometi um erro. Deveria ter ido com Ishido.
— Penso que o senhor escolheu corretamente.
— O quê?
— Primeiro tome o seu banho, depois acho que tenho um presente para o senhor.
— Que presente?
— O seu irmão Mizuno virá após a refeição noturna.
— Isso é um presente? -— indignou-se Yabu. — O que eu poderia querer com esse imbecil?
— Informação ou prudência especial, mesmo vinda de um imbecil, pode ter valor igual à que vem de um conselheiro, neh? Às vezes até mais.
— Que informação?
— Primeiro o seu banho. E comida. Precisará estar com a cabeça fresca esta noite, Yabu-chan.
Yabu a teria pressionado, mas o banho o tentava e, na verdade, estava dominado por uma agradável lassidão que não sentia há muitos dias. Parte dela devia-se à deferência de Toranaga naquela manhã, parte à deferência geral dos últimos dias. Mas a maior parte vinha da matança, a ondulação de alegria que correra para o braço, para a cabeça. Ah, matar tão habilmente, de homem para homem, diante de homens, isso é uma alegria concedida a muito poucos, muito raramente. Rara o suficiente para ser apreciada e saboreada.
Então deixou a esposa e entregou-se mais ainda à sua alegria. Permitiu que mãos lhe cuidassem do corpo e depois, refrescado e revigorado, dirigiu-se para um aposento com varanda. Os últimos raios de crepúsculo adornavam o céu. A lua estava baixa, crescente, e delgada. Ele comeu frugalmente, em silêncio. Um pouco de sopa e vegetais em conserva.
A garota sorriu, convidativa. — Devo desdobrar os futons agora, senhor?
Yabu balançou a cabeça. — Mais tarde. Antes diga à minha esposa que quero vê-Ia.
Yuriker chegou, usando um quimono asseado mas velho. — So desu ka?
— Seu irmão está esperando. Devemos vê-lo sozinho. Primeiro o senhor o vê, depois conversamos, o senhor e eu — também a sós. Por favor, seja paciente, neh?
Kasigi Mizuno, irmão mais novo de Yabu e pai de Omi, era um homem pequeno com olhos bulbosos, testa alta e cabelo ralo. Suas espadas não pareciam lhe cair bem e ele mal sabia manejá-las. Mesmo com arco e flecha não era muito melhor.
Mizuno curvou-se e cumprimentou Yabu pela habilidade daquela tarde, pois a notícia da façanha se espalhara rapidamente em torno do castelo, intensificando ainda mais a reputação de Yabu como lutador. Depois, ansioso por agradar, foi ao ponto. — Recebi uma carta em código hoje, do meu filho, senhor. A Senhora Yuriko achou que seria melhor entregá-la ao senhor pessoalmente. — Estendeu o pergaminho a Yabu, com a decodificação. A mensagem de Omi dizia: "Pai, por favor diga ao Senhor Yabu rapidamente e em particular, primeiro, que o Senhor Buntaro veio a Mishima, secretamente via Takato. Um dos homens dele deixou isso escapar durante uma noite de bebedeira que organizei em honra deles. Segundo: durante essa visita secreta a Takato, que durou três dias, Buntaro viu o Senhor Zataki duas vezes e a senhora mãe dele, três. Terceiro: antes de o Senhor Hiromatsu partir de Mishima, disse à sua nova consorte, a Senhora Oko, que não se preocupasse, porque enquanto eu viver, o Senhor Toranaga nunca deixará o Kwanto. Quarto: que..."
Yabu levantou os olhos. — Como Omi pode saber o que Punho de Aço disse privadamente à consorte? Não temos espiões na casa dele.
— Agora temos, senhor. Por favor, continue a ler. "Quarto: que Hiromatsu está decidido a cometer traição, se necessário, e confinará Toranaga em Yedo, se necessário, e ordenará Céu Carmesim contra a recusa de Toranaga, com ou sem o assentimento do Senhor Sudara, se necessário. Quinto: que isto são verdades a que se pode dar crédito. A criada pessoal da Senhora Oko é filha da mãe adotiva de minha esposa, e foi introduzida no serviço da Senhora Oko aqui em Mishima quando, lamentavelmente, a criada dela curiosamente contraiu uma indisposição devastadora. Sexto: Buntaro-san está como louco, meditabundo e furioso: hoje desafiou e massacrou um samurai de propósito, amaldiçoando o nome do Anjin-san. Por último: espiões relatam que Ikawa Jikkyu concentrou dez mil homens em Suruga, prontos para se derramar pelas nossas fronteiras. Por favor, apresente ao Senhor Yabu as minhas saudações... " O resto da mensagem era inconseqüente.
— Jikkyu, hein!? Será que vou para a morte sem tomar vingança desse demônio!?
— Por favor, seja paciente, senhor — disse Yuriko. — Diga-lhe, Mizuno-san.
— Senhor — começou o homenzinho —, durante meses tentamos pôr em prática o seu plano, aquele que o senhor sugeriu quando o bárbaro chegou. Lembra-se, com todas aquelas moedas de prata, o senhor mencionou que cem ou até quinhentas, nas mãos do cozinheiro certo, eliminariam Ikawa Jikkyu de uma vez por todas. — Os olhos de Mizuno pareceram tornar-se ainda mais anfíbios. — Parece que Mura, o cabeça de Anjiro, tem um primo, o qual tem um primo, cujo irmão é o melhor cozinheiro de Suruga. Ouvi dizer hoje que ele foi aceito na casa de Jikkyu. Já recebeu duzentas por conta e o preço total é quinhe...
— Não temos esse dinheiro! Impossível! Como posso levantar quinhentas — estou tão endividado agora, que não posso levantar nem cem!
— Por favor, desculpe-me, senhor. Sinto muito, mas o dinheiro já está separado. Nem todas as moedas do bárbaro continuaram na caixa-forte. Mil moedas extraviaram-se antes de o dinheiro ser oficialmente contado. Sinto muito.
Yabu olhou-o apalermado. — Como?
— Parece que Omi-san recebeu ordem de fazer isso em seu nome. O dinheiro foi trazido para cá secretamente, para a Senhora Yuriko, cuja permissão foi solicitada e concedida antes de se correr o risco de contrariá-lo.
Yabu pensou sobre isso um longo tempo. — Quem ordenou? — Eu. Depois de obter permissão.
— Obrigado, Mizuno-san. E obrigado, Yuriko-san. — Yabu curvou-se para ambos. — Ora! Jikkyu, hein? Finalmente! — Bateu calorosamente no ombro do irmão e o homenzinho foi quase patético no seu prazer servil. — Agiu muito bem, irmão. Mandarlhe-ei alguns rolos de seda. Como vai a senhora sua esposa?
— Bem, senhor, muito bem. Pede-lhe que aceite os seus melhores votos.
— Vamos comer juntos. Bem... bom. Agora, quanto ao resto do relatório... quais são os seus pontos de vista?
— Nada, senhor. Eu estaria mais interessado no que o senhor acha que significa.
— Primeiro... — Yabu parou ao captar o olhar da esposa, advertindo-o, e mudou o que ia dizer. — Primeiro e último, significa que Omi-san, seu filho, é leal e um excelente vassalo. Se eu tivesse controle sobre o futuro, eu o promoveria — sim, ele merece promoção, neh?
Mizuno ficou untuosamente encantado. Yabu foi paciente com ele, tagarelando, cumprimentando-o de novo, e, tão logo a polidez o permitiu, dispensou-o.
Yuriko mandou buscar chá. Quando ficaram absolutamente a sós de novo, ele disse: — O que significa o resto?
O rosto dela refletia sua excitação agora: — Por favor, desculpe-me, senhor, mas quero lhe dar uma nova idéia: Toranaga está nos fazendo a todos de tolos e não tem intenção, nem nunca teve, de ir a Osaka render-se.
— Absurdo!
— Deixe-me dar-lhe fatos... Oh, senhor, não sabe como é feliz em ter o seu vassalo Omi e esse estúpido irmão que roubou mil moedas. A prova da minha teoria poderia ser esta: Buntaro san, um íntimo de confiança, é enviado secretamente a Zataki. Por quê? Obviamente para levar uma nova oferta. O que tentaria Zataki? O Kwanto — apenas isso. Por isso a oferta é o Kwanto — em troca de lealdade, desde que Toranaga seja novamente presidente do conselho de regentes — um conselho novo com um novo mandato. Ele poderia se permitir dar o Kwanto então, neh? — Ela esperou, depois continuou meticulosamente: — Se ele convence Zataki a trair Ishido, está a um quarto do caminho até a capital, Kyoto. Como o pacto com o irmão pode ser consolidado? Reféns! Ouvi esta tarde que o Senhor Sudara, a Senhora Genjiko, suas filhas e filho vão visitar a veneranda avó em Takato, dentro de dez dias.
— Todos eles?
— Sim. Depois Toranaga devolve o navio ao Anjin-san, tão bom quanto se estivesse novo, com todos os canhões e pólvora, duzentos fanáticos e todo aquele dinheiro, certamente o suficiente para contratar mais mercenários bárbaros, wakos de Nagasaki. Por quê? Para permitir-lhe atacar e tomar o Navio Negro dos bárbaros. Se não houver Navio Negro, não haverá dinheiro, e haverá um problema imenso para os padres cristãos que controlam Kiyama, Onoshi e todos os traidores daimios cristãos.
— Toranaga nunca ousaria fazer isso! O táicum tentou e falhou, e era todo-poderoso. Os bárbaros partirão furiosos. Nunca comerciaremos de novo.
— Sim. Se nós o fizermos. Mas desta vez é bárbaro contra bárbaro, neh? Não tem nada a ver conosco. E digamos que o Anjin-san ataque Nagasaki e lhe ateie fogo. Harima não é hostil agora, e Kiyama e Onoshi e, por causa deles, a maioria dos daimios de Kyushu? Digamos que o Anjin-san queime alguns dos seus outros portos, pilhe a navegação deles, e ao mesmo tempo... — E ao mesmo tempo Toranaga desencadeie Céu Carmesim! exclamou Yabu.
— Sim. Oh, sim — concordou Yuriko, exultante. — Isso não explica Toranaga? Essa intriga não se ajusta a ele como a própria pele? Não está fazendo o que sempre fez, apenas esperando como sempre, jogando para ganhar tempo como sempre, um dia aqui, um dia ali, e logo um mês se passa e novamente ele tem uma força esmagadora para arrasar toda oposição? Ele já ganhou quase um mês desde que Zataki trouxe a convocação a Yokosé.
Yabu podia ouvir o pulso explodindo-lhe nos ouvidos. — Então estamos salvos?
— Não, mas não estamos perdidos. Acredito que não haverá rendição. — Ela hesitou. — Mas todo mundo ficou desapontado. Oh, ele é tão inteligente, neh? Todo mundo logrado como nós. Até esta noite. Omi me deu as chaves. Todos nos esquecemos de que Toranaga é um grande ator, que pode usar o próprio rosto como uma máscara, se necessário, neh?
Yabu tentou ordenar os pensamentos, mas não conseguia. — Mas Ishido ainda tem o Japão inteiro contra nós!
— Sim. Menos Zataki. E deve haver outras alianças secretas. Toranaga e o senhor podem defender as passagens até o momento certo.
— Ishido tem o Castelo de Osaka, o herdeiro e o tesouro do táicum.
— Sim. Mas ficará escondido lá dentro. Alguém o trairá. — O que devo fazer?
— O contrário de Toranaga. Deixe-o esperar, o senhor deve apertar o passo.
— Como?
— O primeiro a fazer, senhor, é isto: Toranaga se esqueceu de uma coisa que o senhor notou esta tarde. A fúria do Tsukku-san! Por quê? Porque o Anjin-san ameaça o futuro dos cristãos, neh? Por isso o senhor tem que colocar o Anjin-san sob a sua proteção imediatamente, porque aqueles padres ou seus fantoches vão assassiná-lo dentro de horas. Depois: o Anjin-san necessita de que o senhor o proteja e guie, que o ajude a conseguir a nova tripulação em Nagasaki. Sem o senhor e seus homens, ele fracassará. Sem ele e o navio dele, os canhões e mais bárbaros, Nagasaki não arderá, e isso tem que acontecer, ou Kiyama, Onoshi e Harima, e os padres imundos não serão distraídos para temporariamente retirar seu apoio de Ishido. Nesse meio tempo, Toranaga, agora miraculosamente apoiado por Zataki e seus fanáticos, com o senhor comandando o Regimento de Mosquetes, atravessa os desfiladeiros de Shinano, descendo para as planícies de Kyoto. — Sim. Sim, tem razão, Yuriko-chan! Tem que ser assim. Oh, a senhora é tão inteligente, tão sábia!
— A sabedoria e a sorte não são boas sem os meios de pôr um plano em prática, senhor. Apenas o senhor pode fazer isso — o senhor é o líder, o lutador, o general de batalha, é o senhor que deve vê-lo esta noite.
— Não posso ir a Toranaga e dizer-lhe que vi por entre a astúcia dele, neh?
— Não, mas dirá que tem que razão plausível.
— Mas se o Anjin-san atacar Nagasaki e o Navio Negro, eles não vão parar de comerciar e partir?
— Sim. Possivelmente. Mas isso será no ano que vem. Pelo ano que vem Toranaga será um regente, presidente dos regentes. E o senhor o comandante-chefe dele.
Yabu caiu das nuvens. — Não — disse com firmeza. — Assim que tiver o poder, ele me ordenará que cometa seppuku.
— Muito antes disso o senhor terá o Kwanto. Os olhos dele piscaram. — Como?
— Toranaga na realidade nunca dará o Kwanto ao meio irmão. Zataki é uma ameaça perpétua. É um homem selvagem, cheio de orgulho, neh? Será muito difícil para Toranaga manobrar Zataki no sentido de que ele peça a posição avançada na batalha. Se Zataki não for morto... talvez uma bala ou seta extraviada? Provavelmente uma bala. O senhor deve comandar o Regimento de Mosquetes na batalha, senhor.
— Por que eu não seria atingido por uma bala extraviada, igualmente?
— Talvez seja, senhor. Mas não é parente de Toranaga e ameaça ao poder dele. O senhor se tornará o seu mais devoto vassalo. Ele precisa de generais de combate. O senhor merecerá o Kwanto, e esse deve ser o seu único objetivo. Ele o dará ao senhor quando Ishido for traído, porque tomará Osaka para si.
— Vassalo? Mas a senhora disse para esperar e logo eu...
— Agora o aconselho a apoiá-lo com todas as forças. Não seguir as ordens dele cegamente, como o velho Punho de Aço, mas com inteligência. Não se esqueça, Yabu-chan, balas extraviadas são coisas que acontecem. Enquanto comandar o regimento, o senhor poderá escolher, também... a qualquer momento, neh?
— Sim — disse ele, admirado com ela.
— Lembre-se, Toranaga é digno de ser seguido. É Minowara, Ishido é camponês. Ishido é o idiota. Posso ver isso agora. Ishido deve estar forçando os portões de Odawara agora, com chuva ou sem chuva. Omi-san não disse isso também, meses atrás. Odawara não é insuficientemente equipada? Toranaga não está isolado? Yabu martelou o punho no chão, encantado.
— Então é a guerra, afinal! Como a senhora é esperta de ver através dele! Ah, então esteve fazendo o papel de raposa o tempo todo, neh?
— Sim — disse ela, enormemente satisfeita.
Mariko chegara à mesma surpreendente conclusão, embora não a partir dos mesmos fatos. Toranaga deve estar fingindo, jogando um jogo secreto, raciocinou ela. É a úmica explicação possível para o seu comportamento inacreditável — dar ao Anjin-san o dinheiro, o navio, todos os canhões e a liberdade na frente do Tsukku-san. Agora o Anjin-san com certeza irá contra o Navio Negro. Ele o tomará, e ameaçará o do próximo ano, e em conseqüência prejudicará a Santa Igreja e forçará os santos padres a conpelirem Kiyama e Onoshi a traírem Ishido...
Mas por quê? Se isso for verdade, pensou ela, perplexa, e Toranaga estiver considerando um plano de longo alcance assim, então é claro que ele não pode ir a Osaka e se curvar diante de Ishido, neh? Ele deve... Ah! E o adiamento de hoje que Hiromatsu convenceu Toranaga a fazer? Oh, minha Nossa Senhora nas alturas, Toranaga nunca pretendeu se render! É tudo um truque.
Por quê? Para ganhar tempo. Para conseguir o que? Esperar e tramar não importa o quê, só que Toranaga tem mil truques mais, e é mais uma vez o que sempre foi: o todo-poderoso titeriteiro.
Quanto tempo até que a paciência de Ishido se esgote e ele levante o estandarte de batalha e se mova contra nós? Um mês. Não mais do que isso. — No máximo dois meses? Não sei — Então, só pelo nono mês deste quinto ano de Keicho, a batalha pelo Kwanto começa.
Mas o que Toranaga ganhou foi para os dois, sei que agora meu filho tem uma chance de herdar os seus dez mil kokus, e de viver e ter filhos, e agora, talvez, a estirpe de meu pai não desaparecerá da face da Terra.
Ela saboreou o seu conhecimento recém-descoberto, brincando com ele, examinando-o, considerando a sua lógica impecável.
Mas o que fazer até lá? perguntou-se ela. Nada além do que você tem feito — e decidiu fazer. Neh?
— Ama?
— Sim, Chimmoko?
— Gyoko-san está aqui. Ela diz que tem um encontro.
— Ah, sim. Esqueci de lhe dizer. Primeiro aqueça o saquê, depois traga-o para cá, e depois ela.
Mariko refletiu sobre a tarde. Lembrou-se dos braços dele ao seu redor, tão seguros, quentes e fortes. — Posso vê-Ia esta noite? — perguntara ele cautelosamente, depois que Yabu e Tsukku-san se tinham ido.
— Sim — dissera ela impulsivamente. — Sim, meu querido. Oh, como sou feliz por você. Diga a Fujiko-san... peça-lhe que me mande chamar depois da hora do Javali.
No silêncio da casa, sua garganta se contraiu. Tanta tolice e risco.
Examinou a maquilagem e o penteado no espelho e tentou se compor. Passos se aproximaram. A shoji se abriu. — Ah, senhora — disse Gyoko, curvando-se profundamente. -— Que gentil da sua parte me receber.
— Seja bem-vinda, Gyoko-san. Tomaram saque, Chimmoko servindo-as. — Que louça adorável, senhora. Tão bonita.
Tiveram algum tempo de conversação polida, depois Chimmoko foi mandada embora.
— Sinto muito, Gyoko-san, mas o nosso amo não foi esta tarde. Não o vi, embora eu espere vê-lo antes de partir.
— Sim, ouvi dizer que Yabu-san foi ao embarcadouro no lugar dele.
— Quando eu vir Toranaga-sama, pedirei a ele mais uma vez. Mas receio que sua resposta seja a mesma. — Mariko serviu saque para ambas. — Sinto muito, ele não concederá o meu pedido.
— Sim, acredito. A menos que haja uma grande pressão. — Não há pressão que eu possa usar. Sinto muito.
— Sinto muito também, senhora.
Mariko pousou o cálice. — Então a senhora resolveu que algumas línguas não são seguras.
— Se eu fosse cochichar segredos a seu respeito — disse Gyoko asperamente —, diria isso na sua cara? Considera-me tão ingênua?
— Talvez seja melhor que a senhora vá embora, sinto muito. Tenho muito o que fazer.
— Sim, senhora, eu também tenho! — replicou Gyoko, a voz ríspida. — O Senhor Toranaga me perguntou, na minha cara, o que eu sabia sobre a senhora e o Anjin-san. Esta tarde. Eu lhe disse que não existia nada entre os dois. Eu disse: "Oh, sim, senhor, também ouvi os abomináveis rumores, mas não há verdade neles. Juro pela cabeça do meu filho, senhor, e pelos filhos dele. Se houvesse alguém para saber, com certeza seria eu. O senhor pode crer que é tudo uma mentira maliciosa — tagarelice, tagarelice invejosa, senhor..." Oh, sim, senhora, pode acreditar que fiquei convenientemente chocada, minha atuação foi perfeita e ele ficou convencido. — Gyoko tragou o saque, e acrescentou amarga: — Agora estamos todos arruinados se ele conseguir provas... o que não seria difícil de conseguir. Neh?
— Como?
— Ponha o Anjin-san à prova... com métodos chineses. Chimmoko — com métodos chineses. Eu, Kiku-san. Yoshinaka... sinto muito, até a senhora — com métodos chineses.
Mariko tomou fôlego profundamente. — Posso... posso lhe perguntar... por que decidiu correr esse risco?
— Porque em certas situações as mulheres devem se proteger mutuamente contra os homens. Porque na realidade eu não vi nada. Porque a senhora não me fez mal. Porque eu gosto da senhora e do Anjin-san e acredito que ambos têm seus próprios karmas. E porque prefiro tê-la viva como amiga a tê-la morta, e é excitante vê-los fazer circular a chama da vida.
— Não acredito na senhora.
Gyoko riu suavemente. — Obrigada, senhora. — Controlada agora, disse com completa sinceridade: — Muito bem, eu lhe direi a razão real. Preciso da sua ajuda ainda. Sim. Toranaga-sama não me concederá o pedido, mas talvez a senhora possa pensar num jeito. A senhora é a única chance que jamais tive, que jamais terei nesta vida, e não posso perdê-la levianamente. Pronto, agora sabe. Por favor, humildemente lhe peço que me ajude com a minha solicitação. — Colocou as duas mãos sobre os futons e se curvou profundamente. — Por favor, desculpe a minha impertinência, Senhora Toda, mas tudo o que tenho será posto ao seu dispor se me ajudar. — Depois acomodou-se sobre os calcanhares, arrumou as dobras do quimono, e terminou o saque.
Mariko tentou pensar direito. Sua intuição lhe dizia que confiasse na mulher, mas sua mente ainda estava parcialmente aturdida com a compreensão recente sobre Toranaga e com o alívio por Gyoko não a ter denunciado, conforme esperara, por isso resolveu pôr a decisão de lado, para consideração posterior.
— Sim, tentarei. A senhora tem que me dar tempo, por favor.
— Posso lhe dar coisa melhor. Eis um fato: conhece os Amida Tong? Os assassinos?
— O que há com eles?
— Lembra-se daquele no Castelo de Osaka, senhora? Ia atacar o Anjin-san mesmo, não Toranaga-sama. O copeiro-chefe do Senhor Kiyama deu dois mil kokus por aquele atentado.
— Kiyama? Mas por quê?
— Ele é cristão, neh? O Anjin-san era o inimigo até então, neh? Se era naquela altura, o que não se dirá de agora? Agora que o Anjin-san é samurai e está livre, com seu navio.
— Outro Amida? Aqui?
Gyoko sacudiu os ombros. — Quem sabe? Mas eu não daria a tanga de um eta pela vida do Anjin-san se ele for descuidado fora do castelo.
— Onde está ele agora?
— Nos seus aposentos, senhora. Vai visitá-lo logo, neh? Talvez fosse bom preveni-lo.
— A senhora parece saber de tudo o que acontece, Gyoko-san!
— Conservo os ouvidos abertos, senhora, e os olhos. Mariko controlou a preocupação com Blackthorne. — Falou isso a Toranaga-sama?
— Oh, sim, falei. — Os cantos dos olhos de Gyoko se enrugaram enquanto ela sorvia o saquê. — Na realidade, não acho que ele tenha ficado surpreso. Interessante, não acha?
— Talvez a senhora se tenha enganado.
— Talvez. Em Mishima ouvi um boato de que havia uma trama para envenenar o Senhor Kiyama. Terrível, neh?
— Que trama?
Gyoko contou-lhe os detalhes.
— Impossível! Um daimio cristão nunca faria isso a outro! Mariko encheu os cálices.
— Posso perguntar o que mais foi dito, pela senhora e por ele?
— Em parte, senhora, a minha súplica para recuperar o favor dele e sair daquela hospedaria infestada de pulgas, e com isso ele concordou. Agora devemos ter alojamentos adequados dentro do castelo, perto do Anjin-san, numa das casas de hóspedes, e posso ir e vir como quiser. Ele pediu que Kiku-san o distraísse esta noite e isso é outra melhora, embora nada o vá tirar daquela melancolia. Neh? — Gyoko observava Mariko especulativamente. Mariko mantinha o rosto inocente, e simplesmente assentiu. A mulher suspirou e continuou. — Sim, ele está muito triste. É uma pena. Parte de tempo foi gasto com os três segredos. Ele me pediu que repetisse o que eu sabia.
Ah, pensou Mariko, outra peça que se encaixa perfeitamente. Ochiba? Então foi essa a isca para Zataki. E Toranaga também tem um porrete sobre a cabeça de Omi, se necessário, e uma arma a usar contra Onoshi com Harima, ou mesmo Kiyama.
— Está sorrindo, senhora?
Oh sim, queria Mariko dizer, desejando compartilhar o seu júbilo com Gyoko. Como a sua informação deve ter sido valiosa para o nosso amo, queria ela dizer a Gyoko. Agora ele deve recompensá-la! A senhora mesma devia ser promovida a daimio! E como Toranaga-sama é fantástico: ouviu com tanto desinteresse aparente! Como ele é maravilhoso!
Mas Toda Mariko-noh-Buntaro apenas meneou a cabeça e disse calmamente: — Sinto muito que a sua informação não o tenha animado.
— Nada do que eu disse lhe melhorou o humor, que estava sombrio e derrotado. Triste, neh?
— Sim, sinto muito.
— Sim. — Gyoko fungou. — Outra informação antes de partir, para interessá-la, senhora, para cimentar a nossa amizade. É muito possível que o Anjir-san seja muito fértil.
— O quê?
— Kiku-san está grávida. — Do Anjin-san?
— Sim. Ou do Senhor Toranaga. Possivelmente de Omi-san. Todos estiveram dentro do período de tempo correto. Naturalmente ela tomou precauções depois de Omi-san, como sempre, mas como a senhora sabe, nenhum método é perfeito, nada é garantido sempre, os enganos acontecem, neh? Ela acha que esqueceu depois do Anjin-san, mas não tem certeza. Foi no dia em que o mensageiro chegou a Anjiro e na animação de partir para Yokosé e da compra do contrato dela pelo Senhor Toranaga — é compreensível, neh? — Gyoko ergueu as mãos, grandemente perturbada. — Depois do Senhor Toranaga, por sugestão minha, ela fez o contrário. Também acendemos bastões de incenso, nós duas, e rezamos por um menino.
Mariko estudou a estampa do seu leque. — Quem? Quem a senhora acha que foi?
— Esse é o problema, senhora. Não sei. Eu ficaria grata pelo seu conselho.
— Esse começo deve ser interrompido. Naturalmente. Não há risco para ela.
— Concordo. Infelizmente Kiku-san não concorda.
— O quê? Estou abismada, Gyoko-san! Claro que ela deve. Ou o Senhor Toranaga deve ser informado. Afinal de contas, aconteceu depois de ele...
— Talvez tenha acontecido, senhora.
— O Senhor Toranaga terá que ser informado. Por que Kiku-san é tão desobediente e tola?
— Karma, senhora. Ela quer um filho. — Filho de quem?
— Ela não dirá. Tudo o que disse foi que qualquer um dos três tinha vantagens.
— Ela seria prudente em deixar esse ir-se e ter certeza na próxima vez.
— Concordo. Pensei que a senhora devia saber para o caso... Há muitos e muitos dias antes que qualquer coisa apareça ou antes que um aborto fosse risco para ela. Talvez mude de idéia. Nisso não posso forçá-la. Não é mais propriedade minha, embora, por enquanto, eu esteja tentando tomar conta dela. Seria esplêndido se a criança fosse do Senhor Toranaga. Mas digamos que tenha olhos azuis... Um último conselho, senhora: diga ao Anjin-san que confie nesse Uraga-noh-Tadamasa apenas por enquanto, e nunca em Nagasaki. Nunca lá. A lealdade final desse homem será sempre para o tio, o Senhor Harima.
— Como descobre essas coisas, Gyoko-san?
— Os homens precisam cochichar segredos, senhora. É isso o que os faz diferentes de nós — precisam compartilhar segredos, mas nós, mulheres, só os revelamos para obter alguma vantagem. Com um pouco de prata e um ouvido preparado — e eu tenho os dois, é tudo muito fácil. Sim. Os homens precisam compartilhar segredos. É por isso que lhes somos superiores e eles estarão sempre em nosso poder.