CAPÍTULO 58
Os regentes estavam reunidos no Grande Salão no segundo andar do torreão. Ishido, Kiyama, Zataki, Ito e Onoshi. O sol do amanhecer lançava sombras compridas e o odor de fogo ainda pairava pesadamente no ar.
A Senhora Ochiba estava perturbada.
— Sinto muito, senhor general, discordo — estava dizendo Kiyama na sua voz irritadiça. — É impossível ignorar o seppuku da Senhora Toda, a bravura da minha neta e o testemunho e a morte formal da Senhora Maeda — junto com cento e quarenta e sete homens de Toranaga mortos e aquela parte do castelo quase arrasada! Simplesmente não pode ser ignorado.
— Concordo — disse Zataki. Chegara de Tarato na véspera, de manhã, e quando soubera os detalhes da confrontação de Mariko com Ishido ficara secretamente encantado. — Se ela tivesse sido autorizada a partir ontem, conforme aconselhei, não estaríamos nessa enrascada agora.
— Não é tão sério quanto os senhores pensam. — A boca de Ishido era uma linha compacta e Ochiba sentiu aversão por ele naquele momento, repugnando-lhe que ele tivesse falhado e os tivesse encerrado a todos naquela crise. — Os ninfas estavam apenas atrás de saque — disse Ishido.
— O bárbaro é saque? — zombou Kiyama um ataque tão vasto por um bárbaro?
— Por que não? Poderiam pedir resgate por ele, neh? — Ishido encarou o daimio, que estava ladeado por Ito Teruzumi e Zataki. — Os cristãos em Nagasaki pagariam muito bem por ele, morto ou vivo... era possível. E é possível. Neh?
— É possível — concordou Zataki. — É assim que os bárbaros combatem.
— Está sugerindo, também que os cristãos planejaram e pagaram por esse ataque?
— Organizariam formalmente — disse Kiyama com firmeza —, que infame?
— Sim. Mas não é provável — interveio Ishido, não querendo que o precário equilíbrio que existia entre os regentes fosse destruído por uma discussão aberta agora. Ainda estava muito irritado de que os espiões não o tivessem prevenido sobre o esconderijo secreto de Toranaga, e ainda não compreendia
— Eu disse que como pudera ser elaborado com tanto sigilo, sem nem um sopro de rumor presente sobre ele. — Na minha opinião os ninjas estavam atrás de saque.
— É muito sensato e muito correto — disse Ito com um lampejo malicioso nos olhos. Era um homem pequeno, de meia idade, resplendentemente adornado com espadas ornamentais, embora tivesse sido arrancado da cama como todos os demais. Estava maquilado como uma mulher e tinha os dentes escurecidos. — Sim, senhor general. Mas talvez os ninjas não pretendessem cobrar resgate por ele em Nagasaki, mas em Yedo, do Senhor Toranaga. Ele não continua sendo lacaio dele?
O cenho de Ishido se ensombreceu à menção do nome. — Concordo em que devemos gastar o nosso tempo discutindo sobre o Senhor Toranaga e não sobre ninjas. Provavelmente ele ordenou o ataque, neh? É traiçoeiro o suficiente para fazer isso.
— Não, ele nunca usaria ninjas — disse Zataki. — Traição, sim, mas não esse lixo. Mercadores fariam isso — ou bárbaros. Mas não o Senhor Toranaga.
Kiyama observava Zataki, odiando-o. — Os nossos amigos portugueses não poderiam instigar tal interferência nos nossos assuntos. Nunca!
— O senhor acreditaria que eles e/ou os padres deles conspirariam com um dos daimios cristãos de Kyushu para combater os não-cristãos — a guerra apoiada por uma invasão estrangeira? — Quem? Diga-me. Tem provas?
— Ainda não, Senhor Kiyama. Mas os rumores correm e um dia terei provas. — Zataki voltou-se para Ishido. — O que podemos fazer em relação a esse ataque? Qual é a saída do dilema? — perguntou, e olhou de relance para Ochiba. Ela observava Kiyama, depois seus olhos moveram-se na direção de Ishido, depois de volta a Kiyama, e ele nunca a tinha visto mais desejável.
— Todos concordamos — disse Kiyama — que é evidente que o Senhor Toranaga tramou para que fôssemos enredados por Toda Mariko-sama, por mais corajosa que ela tenha sido, por mais impelida pelo dever e honrada, Deus tenha piedade dela. Ito arrumou uma dobra nas saias do seu quimono impecável. — Mas o senhor não concorda que seria um estratagema perfeito para o Senhor Toranaga atacar seus próprios vassalos desse modo? Oh, Senhor Zataki, sei que ele nunca usaria ninjas, mas é esperto o bastante para levar os outros a tomar-lhe as idéias e acreditar que são suas. Neh?
— Tudo é possível. Mas usar ninjas não seria característico dele. É inteligente demais para usá-los. Ou para levar alguém a fazer isso. Não são dignos de confiança. E por que forçar Mariko-sama? Muito melhor esperar e nos deixar cometer o erro. Estávamos encurralados. Neh?
— Sim. Ainda estamos encurralados. — Kiyama olhou para Ishido. — E quem quer que tenha ordenado o ataque foi um imbecil, e não nos prestou serviço algum.
— Talvez o senhor general esteja certo e não seja tão sério quanto pensamos — disse Ito. — Mas é muito triste, uma morte deselegante para ela, pobre senhora.
— Isso foi o karma dela, e não estamos encurralados. — Ishido encarou Kiyama. — Foi muito afortunado que ela tivesse aquela toca aferrolhada para onde correr, ou aquela ralé a teria capturado.
— Mas não a capturaram, senhor general, e ela cometeu uma forma de seppuku, e o mesmo fizeram os outros, e agora, se não deixarmos todos se irem, haverá mais mortes de protesto e não podemos nos permitir isso — disse Kiyama.
Não concordo. Todos devem ficar aqui — pelo menos até que Toranaga-sama entre em nossos domínios, sorriu. — Esse será um dia memorável.
Acha que ele não fará isso? — perguntou Zataki.
O que penso não tem valor, Senhor Zataki. Logo saberemos o que ele vai fazer. Seja o que for, não faz diferença. Toranaga deve morrer, se é para o herdeiro herdar. — Ito olhou para Ishido. — O bárbaro já morreu, senhor general?
Ishido balançou a cabeça e olhou Kiyama. — Seria azar que ele morresse agora, ou que ficasse mutilado, um homem corajoso assim, Neh?
— Acho que ele é uma praga e quanto mais depressa morrer, melhor. O senhor esqueceu?
— Ele nos poderia ser útil. Concordo com o Senhor Zataki — e com o senhor — em que Toranaga não é nenhum imbecil. Tem que haver uma boa razão para Toranaga estimá-lo. Neh?
— Sim, tem razão novamente — disse Ito. — O Anjin-san agiu bem para um bárbaro, não? Toranaga estava certo em fazê-lo samurai. — Olhou para Ochiba. — Quando ele lhe deu a flor, senhora, considerei o gesto poético, digno de um cortesão.
Houve uma aquiescência geral.
— E a competição de poesia, senhora? — perguntou Ito. — Deve ser cancelada, sinto muito — disse Ochiba. — Sim — concordou Kiyama.
— O senhor havia decidido participar? — perguntou ela. — Não — respondeu ele. — Mas agora eu poderia dizer:
Num ramo sem vida. A tempestade caiu... Lágrimas de um verão escuro.
— Deixemos que isso seja o epitáfio dela. Ela era samurai — disse Ito calmamente. — Compartilho dessas lágrimas de verão.
— Por mim — disse Ochiba —, eu preferiria um final diferente:
Num ramo sem vida. A neve ouviu... Silêncio de inverno.
Mas concordo, Senhor Ito. Também acho que todos nós compartilharemos dessas lágrimas de verão escuro.
— Não, sinto muito, senhora, mas está enganada — disse Ishido. — Haverá lágrimas, sim, mas serão Toranaga e seus aliados quem as derramará. — Começou a conduzir a reunião para um encerramento. — Darei início a um inquérito sobre o ataque ninja imediatamente. Duvido que jamais descubramos a verdade. Enquanto isso, por questão de segurança pessoal, todos os passes serão lamentavelmente cancelados e todas as pessoas lamentavelmente proibidas de partir até o vigésimo segundo dia.
— Não — disse Onoshi, o leproso, o último dos regentes, do seu lugar solitário do outro lado da sala, onde se encontrava, invisível, atrás das cortinas opacas da sua liteira. — Sinto muito, mas isso é exatamente o que o senhor não pode fazer. Agora deve deixar todos partirem. Todos.
— Por quê?
A voz de Onoshi era malévola e destemida. — Se não o fizer, desonrará a senhora mais corajosa do reino, desonrará a Senhora Kiyama Achiko e a Senhora Maeda. Deus tenha piedade da alma delas. Quando esse ato infame for do conhecimento comum, só Deus, o pai, sabe que prejuízo causará ao herdeiro — e a todos nós, se não formos cautelosos.
Ochiba sentiu um calafrio. Um ano atrás, quando Onoshi viera prestar seus respeitos ao táicum moribundo, os guardas haviam insistido para que as cortinas da liteira fossem abertas, para o caso de Onoshi ter armas ocultas, e ela vira o meio rosto devastado — sem nariz, sem orelhas, coberto de crostas —, os olhos fanáticos e candentes, o toco da mão esquerda e a direita, boa, agarrada à espada curta.
A Senhora Ochiba rezou para que nem ela nem Yaemon jamais contraíssem lepra. Também ela queria que aquela reunião se encerrasse, pois tinha que decidir agora o que fazer — o que fazer em relação a Toranaga e o que fazer em relação a Ishido. — Segundo — dizia Onoshi —, se o senhor usar esse ataque infame como desculpa para reter qualquer pessoa aqui, estará deixando implícito que nunca pretendeu permitir que partissem, embora tenha dado a sua garantia solene por escrito. Terceiro: o senhor...
Ishido interrompeu: — O conselho todo concordou em emitir os salvo-condutos!
— Desculpe, o conselho inteiro concordou quanto à sábia sugestão da Senhora Ochiba de oferecer salvo-condutos, presumindo, com ela, que poucos tirariam partido da oportunidade de partir, e ainda que o fizessem, que ocorreriam atrasos.
— Está sugerindo que as mulheres de Toranaga e Toda Mariko não teriam partido e que outras não as teriam seguido? — O que aconteceu a essas mulheres não desviaria o Senhor Toranaga um nada do seu objetivo. Temos que nos preocupar com os nossos aliados! Sem o ataque ninja e os três seppukus, todo este absurdo teria abortado!
— Não concordo.
— Terceiro e último: se o senhor não deixar todos partirem, depois do que a Senhora Etsu disse publicamente, será acusado pela maioria dos daimios de ordenar o ataque — embora não publicamente — e todos correremos o risco de ter a mesma sorte, e então haverá muitas lágrimas.
— Não preciso contar com ninjas.
— Naturalmente — concordou Onoshi, a voz venenosa. — Nem eu, ou qualquer pessoa aqui. Mas acho que é meu dever lembrá-lo de que existem duzentos e sessenta e quatro daimios, que a força do herdeiro repousa sobre a coalizão de talvez duzentos, e que o herdeiro não pode se permitir ter o senhor, seu guia mais leal e comandante-chefe, supostamente culpado de tais métodos vis e de uma ineficiência tão monstruosa, já que o ataque falhou.
— Está dizendo que eu ordenei o ataque?
— Claro que não, desculpe. Simplesmente disse que o senhor será acusado de negligência se não deixar todo mundo partir.
— Há alguém aqui que pense que eu ordenei o ataque? — Ninguém desafiou Ishido abertamente. Não havia provas. Corretamente, ele não os consultara e conversara apenas através de vagas alusões, mesmo com Kiyama e Ochiba. Mas todos sabiam e estavam todos igualmente furiosos de que ele tivesse tido a estupidez de falhar — todos, menos Zataki. Ainda assim, Ishido continuava sendo o senhor de Osaka, governador do tesouro do táicum, portanto nâo podia ser tocado ou eliminado.
— Bom — disse Ishido com determinação. — Os ninfas estavam atrás de saque. Votaremos sobre os salvo-condutos. Voto que sejam cancelados.
— Discordo — disse Zataki.
— Sinto muito, também me oponho — disse Onoshi.
Ito corou com o escrutínio deles. — Tenho que concordar com o Senhor Onoshi, ao mesmo tempo, bem... é tudo muito difícil, neh?
— Vote — disse Ishido com severidade.
— Concordo com o senhor, senhor general. — Sinto muito, eu não — disse Kiyama.
— Bom — disse Onoshi. — Está resolvido, mas concordo, senhor general, temos outros problemas urgentes. Temos que saber o que o Senhor Toranaga fará agora. Qual é a sua opinião?
Ishido sustentava o olhar de Kiyama, o rosto imóvel. Então disse: — O que responde a isso?
Kiyama estava tentando eliminar da mente todos os seus ódios, temores e preocupações para fazer uma escolha final — Ishido ou Toranaga. Esta deve ser a hora. Lembrou-se vividamente de Mariko falando sobre a suposta traição de Ishido e a suposta prova dessa traição que Toranaga teria, sobre o bárbaro e seu navio — e sobre o que poderia acontecer ao herdeiro e à igreja se Toranaga dominasse o país e o que poderia acontecer à lei deles se os santos padres dominassem a terra. E por sobre isso tudo estava a angústia do padre-inspetor quanto ao herege e seu navio, e o que aconteceria se o Navio Negro se perdesse, e a convicção do capitão-mor, jurada por Deus, de que o Anjin-san fora gerado por Satã, Mariko enfeitiçada como Rodrigues estava enfeitiçado. Pobre Mariko, pensou ele tristemente, morrer assim depois de tanto sofrimento, sem absolvição, sem os últimos ritos, sem um padre, passar toda a eternidade afastada da doce graça celestial de Deus. Nossa Senhora tenha piedade dela. Muitas lágrimas de verão.
E Achiko? O líder ninja a escolheu ou foi apenas mais uma morte? Como foi corajosa em atacar e não se encolher de medo, pobre criança. Por que o bárbaro ainda está vivo? Por que o ninja não o matou? Deveriam ter recebido ordem para fazer isso, se esse ataque imundo foi concebido por Ishido, como naturalmente deve ter sido. Que vergonha para Ishido fracassar — que repugnante fracassar. Ah, mas que coragem Mariko teve, como foi inteligente em nos enredar na sua teia corajosa! E o bárbaro.
Se eu fosse ele, nunca teria sido capaz de retardar os ninjas com tanta coragem, ou de proteger Mariko da hedionda vergonha da captura — e Kiritsubo e Sazuko e a Senhora Etsu, sim, e até Achiko. Não fosse ele e o refúgio secreto, a Senhora Mariko teria sido capturada. E todos eles. É meu dever de samurai honrar o Anjin-san como samurai. Neh?
Deus me perdoe, não fui até Mariko-san para ser seu assistente, o que era meu dever cristão. O herege ajudou-a e ergueu-a, assim como Jesus Cristo ajudou a outros e os ergueu, mas eu, eu a abandonei. Quem é o cristão? Não sei. Ainda assim, ele tem que morrer.
— E quanto a Toranaga, Senhor Kiyama? — repetiu Ishido. — E quanto ao inimigo?
— E quanto ao Kwanto? — perguntou Kiyama, observando-o.
— Quando Toranaga estiver destruído, proponho que o Kwanto seja dado a um dos regentes.
— Que regente?
— O senhor — respondeu Ishido, brando, e acrescentou: — ou talvez Zataki, senhor de Shinano. — Kiyama considerou prudente a observação, pois Zataki era muitíssimo necessário enquanto Toranaga estivesse vivo e Ishido já lhe dissera, um mês antes, que Zataki solicitara o kwanto como pagamento por se opor a Toranaga. Juntos haviam combinado que Ishido prometeria o Kwanto a ele, ambos sabendo que se trataria de uma promessa vazia. Ambos haviam combinado que Zataki perderia a vida e a sua província pela impertinência tão logo fosse conveniente.
— Naturalmente eu dificilmente seria a escolha certa para tal honra — disse Kiyama, cuidadosamente calculando quem na sala era a seu favor e quem era contra.
Onoshi tentou disfarçar sua desaprovação. — Essa decisão certamente é valiosa, digna de discussão, neh? Mas é para o futuro. O que o atual senhor do Kwanto vai fazer agora?
Ishido ainda estava olhando para Kiyama. — Bem? Kiyama sentiu a hostilidade de Zataki, embora o rosto do inimigo não demonstrasse nada. Dois contra mim, pensou, e Ochiba, mas ela não vota, Ito votará sempre com Ishido, portanto eu venço — se Ishido estiver falando a sério. Estará? perguntou a si mesmo, estudando o rosto à sua frente, sondando a verdade. Então decidiu e disse abertamente o que concluíra. — O Senhor Toranaga nunca virá a Osaka.
— Bom — disse Ishido. — Então está isolado, proscrito, e o convite imperial para que ele cometa seppuku já está preparado para a assinatura do Exaltado. E esse é o fim de Toranaga e da sua linhagem. Para sempre.
— Sim. Se o Filho do Céu vier a Osaka. — O quê?
— Concordo com o Senhor Ito — continuou Kiyama, preferindo tê-lo como aliado a tê-lo como inimigo. — O Senhor Toranaga é o mais manhoso dos homens. Acho que tem até astúcia suficiente para impedir a chegada do Exaltado.
— Impossível!
— E se a visita for adiada? — perguntou Kiyama, subitamente apreciando o desconforto de Ishido, detestando-o por haver falhado.
— O Filho do Céu estará aqui, conforme o planejado! — E se o Filho do Céu não estiver?
— Digo-lhe que estará! — E se não estiver?
— Como o Senhor Toranaga poderia fazer isso? — perguntou a Senhora Ochiba.
— Não sei. Mas se o Exaltado quisesse que sua visita fosse adiada por um mês... não há nada que possamos fazer. O senhor Toranaga não é um mestre na subversão? Eu não o considero incapaz de nada — nem de influenciar o Filho do Céu.
Houve silêncio mortal na sala. A enormidade daquele pensamento, e suas repercussões, envolveu-os.
— Por favor, desculpem-me, mas... mas qual é a resposta? — disse Ochiba, por todos eles.
— Guerra! — disse Kiyama. — Mobilizamo-nos hoje, secretamente. Esperamos até que a visita seja adiada, como será. Esse será o nosso sinal de que Toranaga influenciou o Altíssimo. No mesmo dia marchamos contra o Kwanto, durante a estação das chuvas.
Repentinamente o chão começou a tremer.
Primeiro o terremoto foi leve e durou apenas alguns momentos, mas fez as vigas estalarem.
Depois houve outro tremor. Mais forte. Uma fenda rasgou uma parede de pedra e parou. Poeira desprendeu-se do teto. Colunas, traves e telhas guincharam e telhas se soltaram de um telhado e se lançaram no adro lá embaixo.
Ochiba sentiu-se tonta e nauseada, e se perguntou se era o seu karma ser soterrada por entulho naquele dia. Agarrou-se ao soalho tremendo e esperou, assim como todo mundo no castelo, e a cidade e os navios na enseada, que o verdadeiro abalo começasse.
Mas não começou. O terremoto terminara. A vida recomeçou. A alegria de viver invadiu-os de novo, e seu riso ecoou pelo castelo. Todos pareciam saber que desta vez — aquela hora, aquele dia — o holocausto passara perto deles.
— Shikata ga nai — disse Ishido, ainda convulsionado. — Neh?
— Sim — disse Ochiba gloriosamente.
— Vamos votar — disse Ishido, saboreando a própria existência. — Voto pela guerra!
— Eu também! — Eu também! — Eu também! — Eu também!
Quando Blackthorne recuperou a consciência, soube que Mariko estava morta, e soube como ela morrera e por que morrera. Estava deitado sobre futons, cinzentos guardando-o, um teto de vigas no alto, a ofuscante luz do sol ferindo-lhe os olhos, o silêncio estranho. O primeiro dos seus grandes temores se esvaneceu. Posso ver.
O médico sorriu e disse alguma coisa, mas Blackthorne não conseguiu ouvir. Começou a se levantar, mas uma dor ofuscante disparou um ressoar violento nos seus ouvidos. O acre gosto de pólvora ainda lhe estava na boca e o seu corpo inteiro doía.
Por um momento perdeu a consciência de novo, depois sentiu mãos gentis erguer-lhe a cabeça, encostar-lhe uma xícara aos lábios, e o agridoce sabor do chá com cheiro de jasmim eliminou o gosto de pólvora. Forçou os olhos a se abrirem. Novamente o médico disse alguma coisa, novamente não conseguiu ouvir, e novamente o terror começou a brotar, mas ele o deteve, sua mente lembrando-se da explosão, de vê-Ia morta e, antes de ela morrer, de dar-lhe uma absolvição que não era qualificado para dar. Deliberadamente afastou a lembrança e se concentrou na outra explosão — a vez em que fora atirado ao mar depois de o velho Alban Caradoc ter perdido as pernas. Daquela vez também tivera o mesmo ressoar nos ouvidos, a mesma dor, a mesma ausência de som, mas sua audição voltara alguns dias depois.
Não há motivo para se preocupar, disse a si mesmo. Ainda não.
Podia ver a extensão das sombras do sol e a cor da luz. Amanheceu há pouco tempo, pensou, e novamente bendisse a Deus por sua visão estar incólume.
Viu os lábios do médico moverem-se, mas nenhum som atravessou a turbulência ressoante.
Cuidadosamente apalpou o rosto, a boca e os maxilares. Não havia dor ali, nem ferimentos. Depois o pescoço, braços e peito. Nada de ferimentos. Depois desceu mais as mãos, sobre os rins, a sua masculinidade. Mas não estava mutilado, como Alban Caradoc fora, e agradeceu a Deus por não ter sido ferido ali e deixado vivo para saber, como o pobre Alban Caradoc soubera.
Descansou um momento, a cabeça doendo de modo abominável. Depois apalpou as pernas e os pés. Tudo parecia em ordem. Cautelosamente pousou as mãos sobre as orelhas e fez pressão, depois abriu parcialmente a boca, engoliu e meio que bocejou, para tentar clarear os ouvidos. Mas isso só aumentou a dor.
Você esperará um dia e meio, ordenou a si mesmo, e dez vezes esse tempo se for necessário, até lá você não terá medo. O médico tocou-o, seus lábios movendo-se.
— Não consigo ouvir, sinto muito — disse Blackthorne calmamente, ouvindo as palavras apenas no cérebro.
O médico assentiu e falou novamente. Desta vez Blackthorne leu nos lábios do homem: "Compreendo. Por favor, durma agora".
Mas Blackthorne sabia que não dormiria. Tinha que planejar. Tinha que se levantar e deixar Osaka e ir a Nagasaki — arranjar atiradores e marujos para tomar o Navio Negro. Não havia mais nada em que pensar, mais nada de que se lembrar. Não havia mais razão para brincar de ser samurai ou japonês. Agora estava livre, todas as dívidas e amizades canceladas. Porque ela se fora.
Novamente levantou a cabeça e novamente sentiu a dor cegante. Dominou-a e se sentou. O quarto girou e ele vagamente se lembrou de que em seus sonhos estivera de volta a Anjiro, durante o terremoto, quando a terra se fendera e ele pulara lá dentro para salvá-la e a Toranaga de serem tragados. Ainda podia sentir a fria e pegajosa umidade, e aspirar o mau cheiro da morte que vinha da fenda, Toranaga imenso, monstruoso e rindo no seu sonho.
Forçou os olhos a verem. O quarto parou de girar e a náusea passou. — Chá, dozo — disse, o gosto de pólvora na boca de novo. Mãos ajudaram-no a beber, depois ele estendeu os braços e elas o ajudaram a se erguer. Sem elas teria caído. Seu corpo era um grande ferimento, mas agora tinha certeza de que nada se quebrara internamente, nem externamente, exceto os seus ouvidos, e que descanso, massagem e o tempo o curariam. Agradeceu novamente a Deus por não ter sobrevivido cego ou mutilado. Os cinzentos ajudaram-no a se sentar de novo e ele se deitou um momento. Não notou que o sol se moveu um quadrante do momento em que se deitou até o momento em que abriu os olhos.
Curioso, pensou, avaliando a sombra do sol, sem perceber que dormira. Eu poderia ter jurado que amanhecera há pouco. Meus olhos estão me pregando peças. Está perto do fim do turno da manhã agora. Isso fê-lo lembrar-se de Alban Caradoc e suas mãos se moveram pelo corpo mais uma vez, para certificá-lo de que não sonhara que estava ileso.
Alguém tocou-o e ele levantou os olhos. Yabu estava a observá-lo e falando.
— Sinto muito — disse Blackthorne lentamente. — Ainda não consigo ouvir, Yabu-san. Logo estarei bem. Ouvidos doem, compreende?
Viu Yabu assentir e franzir o cenho. Yabu e o médico conversaram e depois, com sinais, Yabu fez Blackthorne compreender que logo voltaria e que Blackthorne descansasse até que ele o fizesse. E saiu.
— Banho, por favor, e massagem — disse Blackthorne. Mãos ergueram-no e levaram-no até lá. Ele dormiu sob os dedos calmantes, o corpo mergulhado no êxtase do calor, a maciez e o aroma doce dos óleos que lhe foram esfregados na carne. E o tempo todo sua mente planejou. Enquanto dormiu, os cinzentos vieram, ergueram-lhe a maca e carregaram-na aos aposentos internos do torreão, mas ele não despertou, drogado pela fadiga e pela poção curativa e sonífera.
— Ele estará seguro agora, senhora — disse Ishido. — Contra Kiyama? — perguntou Ochiba.
— Contra todos os cristãos. — Ishido fez sinal aos guardas para o corredor, que estivessem muito alerta e saiu do quarto depois para o jardim inundado de sol.
— Foi por isso que a Senhora Achiko foi morta? Porque era cristã?
Ishido ordenara isso para o caso de ela ser uma assassina introduzida lá pelo avô Kiyama, a fim de matar Blackthorne. — Não tenho idéia — disse.
— Eles se agarram uns aos outros, como abelhas numa colmeia. Como é que alguém pode acreditar no absurdo religioso deles?
— Não sei. Mas logo serão todos destruídos.
— Como, senhor general? Como o senhor fará isso quando tanta coisa depende da boa vontade deles?
— Promessas — até que Toranaga esteja morto. Aí eles cairão uns sobre os outros. Dividimos e governamos. Não é isso o que faz Toranaga, o que o senhor táicum fez? Kiyama quer o Kwanto, neh? Pelo Kwanto ele obedecerá. Por isso foi-lhe prometido, para um momento no futuro. Onoshi? Quem sabe o que esse louco deseja... exceto cuspir na cabeça de Toranaga e na de Kiyama antes de morrer?
— E se Kiyama descobrir a sua promessa a Onoshi — que todas as terras de Kiyama serão dele —, ou que o senhor pretende manter sua promessa a Zataki e não a ele?
— Mentiras, senhora, espalhadas por inimigos. — Ishido olhou para ela. — Onoshi quer a cabeça de Kiyama. Kiyama quer o Kwanto. Assim como Zataki.
— E o senhor, senhor general? O que deseja?
— Primeiro o herdeiro em segurança aos quinze anos, depois governando o reino em segurança. E a senhora e ele seguros e protegidos até lá. Nada mais.
— Nada?
— Não, senhora.
Mentiroso, pensou Ochiba. Colheu uma flor perfumada, aspirou-lhe o aroma e ofereceu-a a ele. — Adorável, neh?
— Sim, adorável — disse Ishido, pegando-a. — Obrigado.
— O funeral de Yodoko-sama foi lindo. Merece ser cumprimentado, senhor general.
— Sinto muito que ela tenha morrido — disse Ishido polidamente. — O seu conselho era sempre valioso.
Andaram a esmo, em silêncio, um momento. — Elas já partiram? Kiritsubo-san, a Senhora Sazuko e seu filho? — perguntou Ochiba.
— Não. Partirão amanhã. Depois do funeral da Senhora Toda. Muitos partirão amanhã, o que é grave.
— Sinto muito, mas isso faz diferença? Agora que todos concordamos em que Toranaga-sama não virá aqui?
— Acho que sim. Mas não é importante, não enquanto detivermos o Castelo de Osaka. Não, senhora, temos que ser pacientes, conforme Kiyama sugeriu. Esperaremos até o dia. Então marcharemos.
— Por que esperar? O senhor não pode marchar agora? — Vai levar tempo reunir as nossas hostes.
— Quantos enfrentarão Toranaga? — Trezentos mil homens. Pelo menos oitenta mil dentro dos muros, e três vezes o número de Toranaga.
— E a minha guarnição? — Deixarei uma elite de mais cinqüenta mil nas passagens. — E Zataki?
— Trairá Toranaga. No final ele o trairá.
— O senhor não acha curioso que o Senhor Sudara, minha irmã e todos os filhos dela estejam visitando Takato?
— Não. Claro que Zataki fingiu algum acordo secreto com o meio irmão. Mas é apenas um truque, nada mais. Ele o trairá. — Ele deveria... ele tem o mesmo sangue corrompido — disse ela com desagrado. — Mas eu ficaria muito aborrecida se alguma coisa acontecesse à minha irmã ou a seus filhos.
— Nada acontecerá, senhora, tenho certeza.
— Se Zataki estava pronto a assassinar a própria mãe... neh? Tem certeza de que ele não o trairá?
— Não. Não no final. Porque odeia a Toranaga mais do que a mim, senhora, e respeita a senhora e deseja o Kwanto acima de tudo. — Ishido sorriu para os andares que se elevavam acima dele. — Enquanto o castelo for nosso e o Kwanto existir para ser oferecido, não há nada a temer.
— Esta manhã tive medo — disse ela, segurando uma flor junto ao nariz, apreciando o perfume, desejando que ela extinguisse o travo de medo que ainda perdurava. — Tive vontade de sair correndo, mas aí me lembrei do adivinho.
— Hein? Oh, ele. Tinha me esquecido — disse Ishido, divertido mas sério. Era o adivinho, o emissário chinês, que predissera que o táicum morreria no leito deixando um filho saudável para segui-lo, que Toranaga morreria pela espada na meia idade, que Ishido morreria muito velho, como o general mais famoso do reino, os pés firmes no solo. E que a Senhora Ochiba terminaria seus dias no Castelo de Osaka, rodeada pelos maiores nobres do império.
— Sim — repetiu Ishido. — Eu tinha me esquecido dele. Toranaga é de meia-idade, neh?
— Sim. — Novamente Ochiba sentia a profundidade do olhar dele, e foi como se seus rins se fundissem com o pensamento de um homem de verdade em cima dela, dentro dela, abraçando-a, tomando-a, dando-lhe uma nova vida dentro dela. Desta vez uma concepção honrosa, não como a última, quando ela se perguntara horrorizada como seria a criança e como se pareceria.
Que tola você é, Ochiba, disse a si mesma, enquanto perambulavam pelos caminhos perfumados e sombreados. Afaste esses pesadelos imbecis — não passam disso. Você estava pensando num homem.
De repente Ochiba teve vontade de que Toranaga estivesse ali ao seu lado e não Ishido, que Toranaga fosse senhor do Castelo de Osaka e senhor do tesouro do táicum, protetor do herdeiro e general-chefe dos exércitos de oeste, e não Ishido. Então não haveria problemas. Juntos eles possuiriam o reino, o reino todo, e agora, hoje, neste momento, ela o chamaria para o leito ou para uma clareira convidativa e amanhã ou no dia seguinte eles se casariam, e, acontecesse o que acontecesse no futuro, hoje ela possuiria e seria possuída e estaria em paz.
Ponha os sonhos de lado, Ochiba, disse-se ela. Seja realista como o táicum — ou como Toranaga.
— O que vai fazer com o Anjin-san? — perguntou.
Ishido riu. — Protegê-lo, deixá-lo tomar o Navio Negro talvez, ou usá-lo como ameaça contra Kiyama e Onoshi, se for necessário. Ambos o odeiam, neh? Oh, sim, ele é uma espada na garganta deles — e na imunda Igreja deles.
— No jogo de xadrez entre o herdeiro e Toranaga, como julgaria o valor do Anjin-san, senhor general? Um peão? Um cavaleiro, talvez?
— Ah, senhora, no Grande Jogo, meramente um peão — disse Ishido imediatamente. — Mas no jogo do herdeiro contra os cristãos, uma torre, facilmente uma torre, talvez duas.
— O senhor não acha que os jogos estão interligados?
— Sim, interligados, mas o Grande Jogo será decidido por daimio contra daimio, samurai contra samurai, e espada contra espada. Naturalmente, em ambos os jogos, a senhora é a rainha.
— Não, senhor general, por favor, desculpe-me, não uma rainha — disse ela, contente de que ele percebesse isso. Depois, por questão de segurança, mudou de assunto. — Corre o boato de que o Anjin-san e Mariko-san "travesseiravam" juntos.
— Sim. Sim, também ouvi dizer. Deseja saber a verdade sobre isso?
Ochiba meneou a cabeça. — Seria impensável que isso tivesse acontecido.
Ishido observava-a atentamente. — A senhora acha que haveria algum valor em destruir a honra dela? Agora? E junto com a dela, a de Buntaro-san?
— Não quis dizer nada, senhor general, nada disso. Só estava me perguntando... apenas uma tolice de mulher. Mas é como o Senhor Kiyama disse esta manhã: lágrimas de um verão escuro, triste, muito triste, neh?
— Eu preferi o seu poema, senhora. Prometo-lhe que o lado de Toranaga terá as lágrimas.
— Quanto a Buntaro-san, talvez nem ele nem o Senhor Hiromatsu lutem pelo Senhor Toranaga na batalha.
— Isso é um fato?
— Não, senhor general, não um fato, mas uma possibilidade. — Mas existe alguma coisa que a senhora possa fazer, talvez? — Nada, senão pedir-lhes o apoio ao herdeiro de todos os generais de Toranaga, no momento em que a batalha esteja resolvida.
— Está resolvida agora, um movimento de tenazes norte e sul e o ataque final a Odawara. — Sim, mas não de fato. Não até que exército enfrente exército no campo de batalha.
Depois perguntou: — Desculpe, mas o senhor tem certeza de que é prudente o herdeiro comandar os exércitos?
— Eu comandarei os exércitos, o herdeiro deve estar presente. Aí Toranaga não poderá vencer. Mesmo Toranaga jamais atacará o estandarte do herdeiro.
— Não seria mais seguro que o herdeiro ficasse aqui por causa de assassinos, de Amidas ... ? Não podemos pôr a vida dele em risco. Toranaga tem um braço comprido, neh?
— Sim. Mas nem tanto, e o estandarte pessoal do herdeiro torna o nosso lado legal e o de Toranaga ilegal. Conheço Toranaga. No final respeitará a lei. E apenas isso colocará a sua cabeça na ponta de um chuço. Ele está morto, senhora. Assim que estiver morto de fato, destruirei a Igreja cristã — toda ela. Então a senhora e o herdeiro estarão seguros.
Ochiba levantou o olhar para ele, uma promessa não dita nos olhos. — Rezarei pelo sucesso... e pelo seu regresso seguro. O peito dele se apertou. Ele esperara muito tempo. — Obrigado, senhora, obrigado — disse, compreendendo-a. — Não lhe falharei.
Ela se curvou e deu-lhe as costas. Que impertinência, estava pensando. Como se eu fosse tomar um camponês por marido! Agora, devo realmente descartar Toranaga?
Dell'Aqua estava ajoelhado em oração diante do altar nas ruínas da pequena capela. A maior parte do telhado e de uma parede estava desmoronada, mas o terremoto não danificara o presbitério, e nada tocara o belo vidro colorido da janela, ou a Nossa Senhora esculpida que era o seu orgulho.
O sol da tarde incidia através das vigas quebradas. Lá fora, trabalhadores já estavam removendo entulho do jardim, consertando e conversando e, misturados à tagarelice deles, Dell'Aqua podia ouvir os gritos das gaivotas vindos da praia e sentir um travo na brisa, parte sal, parte fumaça, algas marinhas e pântanos. O odor transportou-o para casa, a sua quinta perto de Nápoles, onde, misturados aos odores do mar, havia o perfume dos limões e laranjas e o de pães frescos assando, e massa e alho e abbacchio assando sobre brasas, e, na grande vila, a voz de sua mãe, dos irmãos e irmãs e seus filhos, todos felizes, alegres e vivos, aquecidos pelo sol dourado.
Ó minha Nossa Senhora, deixe-me voltar para casa em breve, orou ele. Estou longe há muito tempo. De casa e do Vaticano. Nossa Senhora, alivie-me do fardo. Perdoe-me, mas estou farto de japoneses, Ishido, matança, peixe cru, Toranaga, Kiyama, cristãos de arroz, tentar manter viva a sua Igreja. Dê-me a sua força.
E proteja-nos dos bispos espanhóis. Os espanhóis não compreendem o Japão ou os japoneses. Eles destruirão o que começamos pela sua glória. E perdoe a sua serva, a Senhora Maria e tome-a sob a sua guarda. Vele por...
Ouviu alguém entrar na nave. Quando terminou as orações, levantou-se e voltou-se.
— Desculpe interrompê-lo, Eminência — disse o Padre Soldi —, mas o senhor queria saber imediatamente. Há uma mensagem cifrada do Padre Alvito. De Mishima. O pombo acabou de chegar.
— E?
— Ele só diz que verá Toranaga hoje. A noite passada foi impossível porque Toranaga estava fora de Mishima, mas espera-se que regresse ao meio-dia de hoje. A mensagem está datada desta manhã.
Dell'Aqua tentou reprimir o desapontamento, depois olhou as nuvens e o tempo, buscando confiança. A notícia do ataque ninja e da morte de Mariko tinha sido enviada a Alvito ao amanhecer, a mesma mensagem por dois pombos, por questão segurança.
— As notícias logo estarão lá — disse Soldi. — Sim. Sim, com certeza espero que sim.
Dell'Aqua saiu da capela, tomou o claustro e rumou para os seus escritórios. Soldi, pequeno, um passarinho, tinha que se apressar para acompanhar as grandes passadas do padre-inspetor. — Há mais uma coisa de extrema importância, Eminência disse Soldi. — Nossos informantes relatam que pouco depois de amanhecer os regentes votaram pela guerra.
Dell'Aqua parou. — Guerra?
— Parece que estão convencidos de que Toranaga nunca virá a Osaka, ou o imperador. Por isso decidiram em conjunto ir contra o Kwanto.
— Não há engano nisso?
— Não, Eminência. É a guerra. Kiyama acabou de mandar um aviso pelo Irmão Miguel, que confirma a nossa fonte. Miguel acabou de voltar do castelo. A votação foi unânime.
— Dentro de quanto tempo?
— No momento em que souberem que o imperador não virá aqui.
— A guerra não terminará nunca. Deus tenha piedade de nós! E abençoe Mariko — pelo menos Kiyama e Onoshi foram prevenidos da perfídia de Toranaga.
— E quanto a Onoshi, Eminência? E quanto à perfídia dele contra Kiyama?
— Não tenho provas disso, Soldi. É coisa forçada demais. Não posso acreditar que Onoshi fizesse isso.
— Mas se fizer, Eminência?
— Neste exato momento não é possível, mesmo que tenha sido planejado. Agora precisam um do outro.
— Até o falecimento do Senhor Toranaga...
— Você não precisa me lembrar da inimizade desses dois, ou de que eles não têm escrúpulos; Deus perdoe a ambos. — Pôs-se em movimento de novo.
Soldi alcançou-o. — Devo mandar essa informação ao Padre Alvito?
— Não. Ainda não. Primeiro tenho que resolver o que fazer. Toranaga ficará sabendo bem depressa, pelas suas próprias fontes. Deus tome esta terra sob a sua guarda e tenha piedade de todos nós.
Soldi abriu a porta para o padre-inspetor. — O único outro assunto de importância é que o conselho formalmente recusou que ficássemos com o corpo da Senhora Mariko. Ela terá um funeral cerimonial amanhã e não fomos convidados.
— Era de se esperar, mas é esplêndido que queiram honrá-la assim. Mande algum dos nossos buscar uma parte das suas cinzas — isso será permitido. As cinzas serão enterradas em solo santificado em Nagasaki. — Endireitou um quadro automaticamente e sentou-se atrás da escrivaninha. — Direi um réquiem por ela aqui — o réquiem completo, com toda a pompa e cerimônia que pudermos, será quando os seus despojos forem formalmente enterrados. Ela será sepultada em solo de catedral, como uma filha muito abençoada da Igreja. Providencie uma placa, contrate os melhores artistas, calígrafos — tudo deve ser perfeito. A abençoada coragem e auto-sacrifício dela serão um enorme encorajamento ao nosso rebanho. Muito importante, Soldi.
— E a neta de Kiyama, senhor? As autoridades nos deixarão ficar com o corpo. Ele insistiu.
— Ótimo. Então os seus despojos devem ser enviados para Nagasaki imediatamente. Consultarei Kiyama sobre quão importante ele deseja que o funeral seja.
— O senhor realizará o serviço, Eminência?
— Sim, desde que seja possível que eu saia daqui.
— O Senhor Kiyama ficaria muito satisfeito com essa honra. — Sim, mas devemos nos certificar de que as suas exéquias não prejudiquem as da Senhora Maria. As de Maria são, politicamente, muitíssimo importantes.
— Claro, Eminência. Compreendo perfeitamente.
Dell'Aqua examinou o seu secretário. — Por que não confia em Onoshi?
— Desculpe, Eminência, provavelmente porque ele é leproso e me petrifica de terror. Peço desculpas.
— Peça desculpas a ele, Soldi, ele não tem culpa pela doença — disse Dell'Aqua. — Não temos provas da conspiração.
— As outras coisas que a senhora disse eram verdadeiras. Por que não isso?
— Não temos provas. É tudo suposição. Sim, suposição.
Dell'Aqua moveu o frasco de água, observando a luz se refrangendo. — Nas minhas orações, senti o cheiro de flores de laranjeira e de pães frescos, e, oh, como gostaria de ir para casa.
Soldi suspirou. — Sonho com abbacchio, Eminência, e com carne pizzaiola ou um jarro de Lacrima Christi e... Deus me perdoe pelas fomes da fome! Logo poderemos ir para casa, Eminência. No próximo ano. Pelo próximo ano estará tudo acomodado aqui.
— Nada estará acomodado aqui no próximo ano. Essa guerra nos atingirá. Prejudicará a Igreja e os fiéis terrivelmente.
— Não, Eminência. Kyushu será cristã vença quem vencer — disse Soldi confiantemente, querendo consolar o superior. — Essa ilha pode esperar pelo bom tempo de Deus. Há mais que o suficiente a fazer em Kyushu, Eminência, não há? Três milhões de almas a converter, meio milhão de fiéis a quem atender. Depois há Nagasaki e o comércio. Eles precisam ter comércio. Ishido e Toranaga vão se rasgar em pedaços. O que importa isso? São ambos anticristãos, pagãos e assassinos.
— Sim. Mas infelizmente o que acontecer em Osaka e em Yedo controlará Kyushu. O que fazer, o que fazer? — Dell'Aqua pôs de lado a melancolia. — E o Inglês? Onde está agora?
— Ainda sob guarda no torreão.
— Deixe-me sozinho um pouco, amigo velho, preciso pensar. Tenho que decidir o que fazer. Finalmente. A Igreja está em grande perigo. — Dell'Aqua olhou pelas janelas para o adro. Então viu o Frei Perez se aproximando.
Soldi foi para a porta a fim de interceptar o monge. — Não — disse o padre-inspetor. — Eu o verei agora.
— Ah, Eminência, boa tarde — disse o Frei Perez, coçando-se sem perceber. -— Queria me ver?
— Sim. Por favor, traga a carta, Soldi.
— Ouvi dizer que a sua capela foi destruída — disse o monge.
— Danificada. Por favor, sente-se. — Dell'Aqua sentou-se na sua cadeira de espaldar alto atrás da escrivaninha, o monge à sua frente. — Ninguém se feriu, graças a Deus. Dentro de alguns dias estará nova outra vez. E a sua missão?
— Intacta — disse o monge, com satisfação evidente. — Houve incêndios em toda a nossa volta depois dos tremores e muitos morreram, mas não fomos tocados. O olho de Deus vela por nós. — Depois acrescentou, crítico: — Ouvi dizer que pagãos estiveram assassinando pagãos a noite passada.
— Sim. Uma das nossas mais importantes convertidas, a Senhora Maria, foi morta na escaramuça.
— Ah, sim. Também recebi relatórios. "Mate-o, Yoshinaka", disse a Senhora Maria, e deu início à carnificina. Ouvi dizer que ela até tentou matar alguns pessoalmente, antes de cometer suicídio.
Dell'Aqua corou. — O senhor não compreende nada sobre os japoneses depois de todo esse tempo, e até fala um pouco da língua deles.
— Compreendo heresia, estupidez, matança e interferência política, e falo a língua pagã muito bem. Compreendo muita coisa sobre esses pagãos.
— Mas não sobre boas maneiras.
— A palavra de Deus não exige boas maneiras. É a Palavra. Oh, sim. Também compreendo sobre adultério. O que pensa sobre adultério — e meretrizes, Eminência?
A porta abriu-se. Soldi estendeu a carta do papa a Dell'Aqua e saiu.
O padre-inspetor passou o papel ao monge, saboreando a própria vitória. — Isto é de Sua Santidade. Chegou ontem por um mensageiro especial vindo de Macau.
O monge pegou a ordem papal e leu-a. Ordenava, com o acordo formal do rei da Espanha, que todos os padres de todas as ordens religiosas deviam, no futuro, viajar para o Japão apenas via Lisboa, Goa e Macau; que todos estavam proibidos, sob pena de excomunhão imediata, de ir diretamente de Manila para o Japão; e, finalmente, que todos os padres que não jesuítas deviam deixar o Japão imediatamente e dirigir-se para Manila, de onde poderiam, se seus superiores assim o desejassem, regressar ao Japão, mas somente via Lisboa, Goa e Macau.
O Frei Perez examinou com atenção o selo, a assinatura e a data, releu cuidadosamente a ordem, depois riu zombeteiro, e atirou a carta sobre a mesa. — Não acredito nisso!
— É uma ordem de Sua Santidade o...
— É mais uma heresia contra o rebanho de Deus, contra nós e todos os mendicantes que levamos a Palavra aos pagãos. Com esse ardil ficamos proibidos de vir ao Japão para sempre, porque os portugueses, instigados por certas pessoas, vão tergiversar para sempre e nunca nos concederão passagem ou vistos. Se isto for genuíno, serve apenas para provar o que vimos dizendo há anos: os jesuítas podem corromper até o vigário de Cristo em Roma!
Dell'Aqua se controlou. — O senhor recebeu ordem de partir. Ou será excomungado.
— As ameaças jesuíticas não têm significado, Eminência. O senhor não fala com a língua de Deus, nunca falou, nunca falará. Não são soldados de Cristo. Servem a um papa, a um homem, Eminência. São políticos, homens da terra, homens do luxo com suas sedas pagãs e terras e poder e riquezas e influência. O Senhor Jesus Cristo veio ao mundo disfarçado de homem simples, que se coçava, andava descalço e cheirava mal. Nunca partirei — nem os meus irmãos!
Dell'Aqua nunca estivera tão furioso na vida. — O-senhor nunca sairá-do-Japão!
— Diante de Deus, não sairei! Mas esta é a última vez que venho aqui. Se no futuro o senhor me quiser ver, venha à nossa santa missão, venha e sirva aos pobres, aos doentes e aos indesejados, como fez Cristo. Lave-lhes os pés, como fez Cristo, e salve a sua própria alma antes de ser tarde demais. — O senhor recebeu ordem, sob pena de excomunhão, de partir do Japão imediatamente.
— Ora vamos, Eminência, não estou excomungado e nunca estarei. Claro que aceito o documento, a menos que tenha caducado. Vem datado de 16 dc setembro de 1598, quase dois anos atrás. Tem que ser verificado, é importante demais para ser aceito imediatamente — e isso levará no mínimo quatro anos.
— Claro que não caducou! — Engana-se. Como Deus é meu juiz, acredito que tenha caducado. Dentro de poucas semanas, no máximo dentro de alguns meses, teremos finalmente um arcebispo no Japão. Um bispo espanhol! As cartas que tenho de Manila relatam que a ordem real é esperada a qualquer momento.
— Impossível! Isto é território português e nossa província!
— Era português. Era jesuítico. Mas agora tudo mudou. Com a ajuda dos nossos irmãos e a orientação divina, o rei da Espanha derrotou o seu geral em Roma.
— Isso é um absurdo. Mentiras e boatos. Pela sua alma imortal, obedeça às determinações do vigário de Cristo.
— Obedecerei. Escreverei a ele hoje mesmo, prometo-lhe. Enquanto isso, aguardo um bispo espanhol, um vice-rei espanhol e um novo capitão do Navio Negro — também espanhol! Isso também deve fazer parte da ordem real. Também temos amigos em altos postos e, finalmente, eles venceram os jesuítas, de uma vez por todas! Fique com Deus, Eminência. — O Frei Perez levantou-se, abriu a porta e saiu.
Na antecâmara, Soldi observou-o partir, depois voltou correndo para a sala. Assustado pela cor de Dell'Aqua, correu para o frasco de conhaque e serviu um pouco de bebida. — Eminência?
Dell'Aqua meneou a cabeça e continuou a fitar o vazio, inexpressivo. Durante o ano anterior houvera inquietantes notícias dos seus delegados na corte de Filipe da Espanha, em Madri, sobre a crescente influência dos inimigos da Companhia.
— Não é verdade, Eminência. Os espanhóis não podem vir aqui. Não pode ser verdade.
— Pode ser verdade, facilmente. Facilmente demais. — Dell'Aqua tocou a ordem papal. — Este papa pode estar morto, o nosso geral morto... até o rei da Espanha. Enquanto isso... — Pôs-se de pé e ergueu-se em toda a sua altura. — Enquanto isso nós nos prepararemos para o pior e rezaremos por ajuda, faremos o melhor que pudermos. Mande o Irmão Miguel trazer Kiyama aqui imediatamente.
— Sim, Eminência. Mas Kiyama nunca esteve aqui antes. Seria pouco provável que viesse agora.
— Diga a Miguel que use quaisquer argumentos que julgar necessários, mas deve trazer Kiyama aqui antes do crepúsculo. Depois mande imediatamente a notícia sobre a guerra a Martim, para ser passada a Toranaga o mais rápido possível. Escreva você os detalhes, que quero mandar uma mensagem particular junto. Depois, mande alguém trazer Ferreira aqui.
— Sim, Eminência. Mas quanto a Kiyama, com certeza Miguel não será capaz...
— Diga a Miguel que lhe ordene vir aqui, em nome de Deus, se necessário! Somos soldados de Cristo, vamos à guerra — à guerra de Deus! Depressa!